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Oficinas de criatividade - DESLOCAMENTOS E COM-POSIÇÕES Ângela Nobre de Andrade Quem somos nós - What the bleep do we (k)now7 7. “What the bleep do we (k)now” é o título de um filme produzido em 2004, dirigido por William Arntz, Betsy Chasse e Marc Vicente. Espécie de documentário que, ao discutir as descobertas da Física Quântica e suas conseqüências para a existência humana, apresenta pontos relevantes e comuns à discussão que se segue. De modo simplificado, poderiamos dizer que o ser humano é, antes de tudo, um ser da ilusão, pois pauta seu existir em modelos transcendentes, creditados como naturais e verdadeiros. Trata-se do pensamento metafísico, alicerce dos valores e formações societárias ocidentais, que opera a duplicação da vida através da separação entre um mundo sensível (espaço do erro, ilusão, aparência e inconstância) e um mundo inteligível (espaço do conhecimento das essências, da objetividade, da verdade e da estabilidade), com supremacia deste sobre o primeiro. Tal deslocamento ótico, fruto de um desejo de conhecer, explicar/justificar a vida, imprime uma inversão no modo de valorar a existência: à experimentação, norteadora e suporte da avaliação ética, sobrepõem-se as abstrações arbitrárias que, baseando-se num sistema de julgamento externo, estabelecem uma valoração moral norteadora do existir humano. Material com direitos autorais 54 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA A crítica que Nietzsche desenvolve ao longo de sua obra sobre o valor da verdade ou, segundo o autor, ‘a crença na verdade’, está diretamente associada ao seu trabalho de genealogia da moral. Nietzsche cria um conceito fundamental, “vontade de verdade”, a partir do qual articula ordem moral e ordem epistemológica, ambas calcadas na crença de uma essência (verdade) que se oporia a uma aparência (erro). A crítica da vontade de verdade que atua no conhecimento é o ponto de base para todas as reflexões nietzschianas sobre a ciência (e a moral): a oposição entre o universalismo e o perspectivismo do conhecimento, a crítica das noções sujeito e objeto, assim como a necessidade de superar a dicotomia essência-aparência e todas as demais conseqüentes dicotomias presentes no modelo predominante de pensar nossa existência humana. A crença metafísica de que existe um verdadeiro superior a um falso, de que a verdade tem mais valor que a aparência, é o postulado tanto das ciências quanto da moral. O que, porém, coage a isso, àquela incondicional vontade de verdade, é a crença no próprio ideal ascético, mesmo que como seu imperativo inconsciente, que ninguém se iluda sobre isso é a crença em um valor ‘metafísico’, em um valor ‘em si da verdade’, tal como somente naquele ideal está garantida e credenciada. [...] É que o ideal ascético foi até agora ‘senhor’ sobre toda a filosofia, é que a verdade foi posta como ser, como Deus, como instância mais alta mesmo... Desde o instante que a crença no Deus do ideal ascético é negada, ‘há também um novo problema: o do valor da verdade’. A vontade de verdade precisa de uma crítica; determinemos com isso nossa própria tarefa, o valor da verdade deve alguma vez, experimentalmente, ser ‘posto em questão’...” (Nietzsche, 1983, aforismo 24) Em outro texto, Nietzsche desenvolve uma análise da proveniência do “impulso à verdade” e nos mostra a arbitrariedade das designações (presentes nas convenções de linguagem) que passam a ser consideradas como verdades. A linguagem designa apenas as relações das coisas aos homens e, para essa expressão, utiliza uma série de metáforas das coisas que, de modo algum, correspondem às entidades de origem. Material com direitos autorais Christina M.B. Cupertino (organizadora) 55 O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (Nietzsche, 1983, Aforismo 1) Denuncia, portanto, a/o negação/aprisionamento da imanente expansão da vida por transcendentais de estabilidade, essências verdadeiras e modelos de julgamento. As conseqüências de tal inversão estão na base do ‘sentir-se’ humano, coagido a um eterno sofrimento e/ ou falta, uma vez que “existe” um mundo verdadeiro, sem contradições, incondicionado, naturalmente em equilíbrio e harmonia. Espinosa, já no século XVII, denunciava essa negação da vida em sua expansão e potência de agir (sentimento de alegria) em proveito do sofrimento humano como condição inexorável de impotência e falta. Ou seja, ao eleger a representação (consciência) como campo de acesso à verdade, o ser humano desconhece “o que um corpo pode”; a consciência recolhe apenas os efeitos sobre o corpo (alegria e tristeza), ignorando as causas. Lugar de desconhecimento e ilusão, a consciência nos leva a ter idéias inadequadas e mutiladas, elegendo causas externas para explicar/justificar efeitos que advêm da nossa própria relação de composição e/ou decomposição nos diversos encontros. Instaura-se, nesse momento, a Moral; a ilusão dos valores morais se confunde com a ilusão da consciência: basta não compreender para moralizar. Por exemplo, quando não compreendemos uma lei, esta nos aparece sob a espécie moral de um “Deve-se” (Espinosa, 2004). A Moral é, pois, um sistema de julgamento externo e, como tal, incondicionado e absoluto, que relaciona sempre a existência a valores transcendentes. A Ética de Espinosa é uma tipologia de modos de existência imanentes que desarticula esse sistema (de Bem e Mal) pela diferença qualitativa de modos de existência humana em seus efeitos de composições e/ou decomposições (bom e mau) (Deleuze, 2002). O predomínio dos valores morais na produção e sustentação de um modelo existencial, em que só resta à condição humana o (desejo Material com direitos autorais 56 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA de) padecimento, pois jamais alcançará a essência perfeita e verdadeira (Deus, Razão Suficiente, Corpos Perfeitos, Alma Gêmea, Madre Tereza de Calcutá, Mao, Tom Cruise, Michele Pfeiffer... a lista de idealizações é infinita!), Espinosa credita à Trindade Moralista: o escravo, o tirano e o padre. Seres humanos das paixões tristes, uma vez ignorantes e impotentes. O primeiro combate por sua servidão como se fosse sua salvação (crença religiosa em uma outra e verdadeira vida); o segundo é aquele que explora essas paixões tristes, precisa delas para estabelecer seu poder e o terceiro se entristece com as paixões do homem em geral, cumprindo seu destino de minimizar tal sofrimento inerente à condição humana. O que os une é o ódio à vida, o ressentimento. O homem do ressentimento, para o qual qualquer tipo de felicidade é uma ofensa, faz da miséria ou da impotência sua única paixão (Deleuze, 2002). Nesta descrição de tipos existenciais, não consigo me furtar a pensar que a psicologia, depois da “morte de deus”, institui-se para ocupar o lugar do padre! Não se trata de um pensamento fortuito (relação entre psicólogo e padre), uma vez que a psicologia tem sua genealogia nessa inversão e somente toma corpo em função do predomínio dos valores morais; seu arcabouço teórico visa não somente explicar/compreender as faltas e sofrimentos humanos, como ‘consertá-los’ no reencontro com um suposto equilíbrio natural. Sustenta-se instituindo (e reforçando) tais necessidades de explicação e referências que garantam um controle do eu (consciência) sobre a vida. Entretanto, como toda instituição, é percorrida por embates e contradições desde seu nascimento, inerentes à própria conformação sócio-histórica. De acordo com Muller-Lauter (2005), antes da virada do século XIX e nosanos subseqüentes, observa-se uma “crise metafísica” com a negação de toda pretensa ordem de sentido e de valores. Se, no primeiro momento, essa negação foi vivida como uma libertação da corrente despótica dos valores morais e uma confiança na infinita possibilidade de expansão da humanidade, no segundo momento, após a primeira guerra, essa alegria afirmativa do pluralismo cede lugar a um niilismo desconfiado das forças criadoras do homem. Niilismo diagnosticado por Nietzsche, em que a felicidade estaria ancorada no dever, na adaptação, na sujeição, no sacrifício do próprio eu. Na seqüência de sua análise, Muller-Lauter avalia que, dos três pensadores que marcam Material com direitos autorais Christina M.B. Cupertino (organizadora) 57 o início da modernidade - Nietzsche, Freud e Marx - coube ao primeiro a crítica e a dissolução dos códigos sociais estabelecidos. Entretanto, a essa possibilidade de expansão livre e criativa, “segue-se, com o apelo a Marx e Freud, a recodifícação mediante os dois sistemas fundamentais do marxismo e da psicanálise, enquanto ordens que fixam a vida pública, de um lado, e a vida privada, de outro” (Muller-Lauter, 2005:72). A psicologia parece ter suas raízes nesse movimento de forças antagônicas. De um lado, temos os “indivíduos” sofrendo com a perda das referências tradicionais e buscando na psicologia um suporte para estas vivências disruptoras; um suporte para a instituição de novos modos de existência. De outro, sistemas de verdade reguladores recodificando os fluxos expansivos da vida, demandando à psicologia teorias estruturalistas e funcionalistas, voltadas para os ideais de adaptação e equilíbrio. Ou seja, regras comportamentais que não permitissem sobras ou restos - daí a importância do diagnóstico psicológico para justificar cientificamente os inaptos ao modelo - a fim de não ameaçarem o projeto da modernidade, qual seja, a supremacia da racionalidade técnico-científica. Diversos (muitas vezes antagônicos) são os objetos de estudo abordados e teorizados pela psicologia, refletindo a própria ambivalência do projeto moderno de construção social, que pretende um indivíduo racional, estável e asséptico, mas ao mesmo tempo se depara com um ser humano pleno de paixões e impulsos não capturáveis pelo campo representacional.8 8. Análises cuidadosas sobre a emergência da psicologia e os embates presentes em sua instituição histórico-social podem ser encontradas em Figueiredo, L. C. 1991, 1993 e 1994. As vertentes psicológicas sustentadas pela metafísica negam a processualidade imanente à vida e, em nome de verdades estabelecidas como universais, trabalham com categorias modelares apriorísticas e objetivantes (advindas dos valores morais de Bem e Mal) que, facilmente, são transpostas para definir saúde/doença, normal/patológico e toda a gama de classificações arbitrárias. Separando e desvalorizando o universo sensível da experimentação, negam a alteridade imanente aos encontros e os estranhamentos daí advindos são avaliados como desequilíbrios dos sujeitos. Estas concepções, além de considerarem os conflitos como des-ordem, como uma des-harmonia de uma suposta Material com direitos autorais 58 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA estabilidade natural, tendem a situar no indivíduo o foco do problema, desconsiderando as dimensões históricas, políticas e sociais presentes em qualquer configuração. E importante enfatizar que os conceitos de alteridade e subjetividade aqui utilizados referem-se a um modo de pensamento em que o mundo é concebido em permanente transformação; a imanência da vida está na produção de diferença - processos de diferenciação - e não na estabilidade. Ou seja, não existe uma ordem à qual se fará contrapor um caos, mas transformações sucessivas em velocidade infinita com a qual as formas surgem para desaparecer em seguida, dando lugar a outras formas, outras conexões (Deleuze, 1992). Um processo contínuo de engendramento. A subjetividade não se restringe ao aspecto identitário do eu (não devendo ser confundida com o conceito de sujeito) e, num outro plano, está constantemente esboçando novas composições. Estas geram em nós estados inéditos, inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência subjetiva de nossa atual figura. Podemos dizer que a cada vez que isso acontece é uma violência vivida por nosso corpo em sua forma atual, pois nos desestabiliza e nos coloca a exigência de criarmos um novo corpo - em nossa existência, em nosso modo de sentir, de pensar, de agir etc. - que venha encarnar esse estado inédito que se fez em nós, esta diferença que fica reverberando a espera de um corpo que a traga para o visível. E a cada vez que respondemos à exigência imposta por um desses estados - ou seja, a cada vez que encarnamos uma diferença - nos tomamos outros. Assim, a alteridade e seus efeitos, embora invisíveis, são reais: nossa natureza é essencialmente produção de diferença e a diferença é gênese de devir-outro. Se considerarmos que a processualidade é este devir-outro - ou seja, a corporificação, no visível, das diferenças que vão se engendrando no invisível - ganha maior consistência a idéia de que a processualidade é intrínseca à(s) ordem (ns) que nos constitui (em). (Rolnik, 1994:161) Um modelo de pensamento diferente desse, entretanto, é ainda predominante na formação acadêmica do psicólogo e apresenta-se particularmente danoso em países como o Brasil, em que a maioria da Material com direitos autorais Christina M.B. Cupertino (organizadora) 59 população é alijada de seus direitos de cidadania e de participação na distribuição de renda do país. A ausência de debates nos congressos brasileiros, ao longo de anos de sua história, das dimensões éticas, estéticas e políticas das práticas psicológicas, é bastante reveladora do predomínio dessa racionalidade técnico-instrumental em nossas academias. Somente recentemente, há uns cinco ou seis anos, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) “conclamou” seus pares a debaterem sobre Direitos Humanos nos congressos nacionais. Tal constatação é surpreendente se pensarmos que o psicólogo é um profissional do encontro (bem definido por Figueiredo) e, como tal, deveria estar em constante interrogação sobre os embates, afetações, valores e sensações presentes nos diversos encontros - no entre - assim como aquilo que foi produzido a partir de. O alunado, herdeiro dos valores morais predominantes na sociedade (assim como todos nós), experimenta constantes deslocamentos e estranhamentos ao longo de sua formação, principalmente ao passar pela experiência de estágio, momento do encontro, em que as teorias, transmitidas de forma mais ou menos dogmáticas, jamais “darão conta” daquele vivido. A intensidade dessa experimentação de estranhamento/desmanche, advindo da alteridade, está diretamente relacionada, não somente à abertura/despojamento pessoal para tal, mas também à presença ou ausência de espaços múltiplos de experimentação ao longo da formação, que dêem suporte a tais vivências (Cupertino, 2001). Por uma psicologia do desmascaramento Em muitas passagens de sua obra, Nietzsche se autodenomina psicólogo e se remete a uma “psicologia do desmascaramento”. Esta deveria dedicar-se à crítica e denúncia dos valores morais que adoecem ou apequenam a vida humana. Necessitamos de uma crítica dos valores morais, e antes de tudo deve discutir-se o valor destes valores, e por isso é de toda necessidade conhecer as condições e circunstâncias em que nasceram, em que se desenvolveram e deformaram... As críticas ao predomínio da razão técnico-científica vêm sendo elaboradas há algumas décadas, principalmente, em outras áreas de produção de conhecimento. “Denúncias radicais” aos danos causados pela crença metafísica na existência humana já estavam presentes em Material com direitos autorais 60 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA filósofos como Espinosa (séc. XVII)e, mais recentemente, Nietzsche (séc. XIX). Considerados, entretanto, loucos e/ou malditos, suas reflexões permaneceram à margem das diversas áreas de produção de conhecimento. Essas críticas foram retomadas, com diferentes olhares e problematizações, por filósofos como Heidegger, Arendt, Lévinas, Foucault, Deleuze, Morin, entre tantos outros. Pode-se dizer, porém, que a adesão maior, na contemporaneidade, à crítica dos pressupostos metafísicos foi provocada pela própria ciência através de autores como Prigogine (na química), Maturana e Varela (na biologia) e pelas descobertas da física quântica. Estas foram geradoras de importantes debates não somente na filosofia, mas em múltiplas áreas de conhecimento (Karl Popper, Cornelius Castoriadis e Boaventura Sousa Santos são alguns exemplos, além dos citados acima). A inclusão da incerteza e do acaso nas ciências advém, paradoxalmente, das chamadas “ciências exatas”. E interessante observar que, exatamente no momento que as ciências humanas objetivam se instituir nos moldes das ciências naturais (fim do séc. XIX), a física/ química inicia um processo de questionamento a seus métodos e modelo de pensamento. Depara-se com a instabilidade, com perturbações subjacentes às estruturas organizadas. Deixa-se de pensar a oposição entre ordem e desordem (esta última concebida como um erro ou caso particular) e passa-se a trabalhar com os conceitos de Caos e Complexidade que contemplam uma relação permanente, não excludente, entre ordem e desordem. “A ciência clássica privilegiava a ordem, a estabilidade, enquanto agora reconhecemos em todos os níveis de observação, o papel primordial das flutuações e da instabilidade” (Prigogine, 1996:12). Este questionamento aos referenciais transcendentes vem ocorrendo não somente nos debates científicos, mas também no campo das artes e, principalmente, na vida cotidiana das pessoas, nos modos existenciais contemporâneos. Não se trata de uma “coincidência” a ocorrência, quase simultânea, de transformações nos modos de produção científica, artística e senso comum, uma vez que não são “instâncias separadas”, mas intrinsecamente interligadas, acontecem na tessitura concreta das existências e conformações societárias. Estas transformações e rupturas nos modos existenciais contemporâneos têm sido avaliadas pelos analistas de duas formas antagônicas: alguns Material com direitos autorais Christina M.B.Cupertino (organizadora) 6 I consideram que a perda dos referenciais externos bem definidos e incorporados, modelos norteadores do existir/sentir humano, tem gerado sofrimento e desamparo nas pessoas; esta “crise da metafísica” é considerada, para estes, como altamente prejudicial ao ser humano e às relações societárias. Outros, ao contrário, apontam para maior fluidez e abertura nos modos existenciais, permitindo a experimentação de novas e diferentes sensibilidades, até então não contempladas, o que possibilita aos seres humanos nortearem-se por referenciais próprios (e não externos) daquilo que lhes compõe mais ou menos; haveria, nesse caso, uma sobreposição do agir sobre o padecer, conforme analisado por Espinosa, Nietzsche, entre outros. Tal debate é bastante instigante, porém não é objetivo do presente texto, sendo apenas pontuado aqui. Podem-se tomar rapidamente, como exemplo ilustrativo desse modo de pensamento comum a uma dada conformação sócio-histórica (ou moda moral, conforme designado por Nietzsche) as transformações ocorridas no campo cinematográfico nestes cem anos de sua existência. Os filmes produzidos até a década 60 do séc. XX, salvo algumas exceções, apresentavam um enredo linearmente definido - histórias com princípio, meio e fim claramente reconhecidos pelo espectador - e personagens com características solidamente apresentadas: mocinho ou bandido, herói ou vilão, casta ou prostituta, entre tantas outras dicotomias. Tais referenciais bem demarcados correspondiam aos valores morais rígidos que norteavam os modelos existenciais da época, em que a “identidade ou personalidade” da cada um era uma unidade estável e estruturada, bem conhecida e explicada pela própria psicologia. Para toda (ou quase toda) a sociedade, os referenciais morais de Bem e Mal eram tidos como naturais, dentro de uma concepção de natureza estável e harmônica, não havendo lugar para o (instigante) inesperado das ambivalências/contradições. Entretanto, como estas sempre estiveram presentes na vida humana, e não poderiam ser simplesmente ignoradas, eram reservadas aos personagens “desarrazoados”. Obviamente, associados aos valores idealizados de personalidade (bondade, coragem, solidariedade, inteligência, etc.) eram acrescidos os modelos de beleza física: o mocinho era sempre um ator considerado bonito e charmoso e o vilão apresentava traços físicos esteticamente desvalorizados. A partir dos anos 60, iniciam-se movimentos contestatórios em diversos segmentos das sociedades, incluindo o campo do cinema. No Brasil, temos como referência Glauber Rocha e o então chamado Cinema Material com direitos autorais 62 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA Novo. Ora, ao observar a maior parte da produção cinematográfica contemporânea, percebe-se claramente a radicalidade das transformações ocorridas. A importância da linearidade tempo/espaço desaparece para dar lugar a outras percepções e afetações, em que prepondera o instante ou o tempo intensivo. Os personagens transbordam em ambivalências e referenciais múltiplos, muitas vezes contraditórios, em que os limites rigorosos dos valores morais de Bem e Mal aparecem bem desvanecidos. E a atual sociedade, como outrora, continua adorando, sensibilizando-se e, por que não, identificando-se com esses personagens mais fluidos, híbridos e nômades. A “necessidade” de compreender/explicar objetivamente o enredo de um filme (como a própria vida) parece estar se deslocando para uma maior abertura às afetações, nem sempre capturáveis pelo campo da representação. Para o presente e rápido exemplo, não é necessário introduzir diretores “complexos” e/ou “controversos” como David Linch, que faz palestras para explicar seus filmes ao público. Já que o teor desta reflexão remete-se às valorações morais, se pode tomar como exemplo um filme em que todos os personagens são híbridos, quando não “a-morais”, quanto aos valores ainda pregnantes na maioria das sociedades ocidentais. Trata-se do filme “A Excêntrica Família de Antonia”, produzido há alguns anos, tão bem acolhido pelos brasileiros. Produzido em 1995 por Hans De Weers, sob a direção de Marleen Gorris e cenário localizado na Bélgica, Inglaterra e Alemanha, foi definido como uma celebração da vida e da morte, mas vai além ao contar a história de uma encantadora geração de mulheres. Comandada por Antonia, a saga familiar atravessa três gerações, falando de força, de beleza e de escolhas que desafiam o tempo. Passear com Antonia por suas paisagens modificadas a qualquer momento pela força da imaginação e conhecer seus curiosos personagens - o filósofo pessimista, a netinha superdotada, a filha lésbica, a avó louca, o padre herege, a amiga que adora procriar, a vizinha que sofre abusos sexuais e os muitos amigos que são acolhidos por sua generosidade - vai nos fazer lembrar do quanto ainda se pode fazer pelo mundo, pela vida e por tudo que existe em nós e precisa ser modificado, simplesmente celebrando a felicidade. Cada personagem do filme encarna, de diferentes formas, modos de vida até então rejeitados pela Moral (e seus pré-conceitos) supostamente predominante na sociedade brasileira. Entretanto, todos Material com direitos autorais Christina M.B. Cupertino (organizadora) 63 “amaram” o filme, consideraram um filme lindo e sensível! Esse exemplo, e tantos outros da vida cotidiana, aponta para mudanças significativas, engendradas e/ou em engendramento, nos modos de experimentar e valorar a existência presentes na população brasileira.Já há alguns anos, temos importantes trabalhos e pensadores críticos, alguns voltados para discutir a própria alienação da psicologia, que não conseguem, entretanto, atravessar as trincheiras metafísicas da academia e romper com o predomínio do pensamento modelar. A maioria dos debates acadêmicos na psicologia, conhecidos tanto pelos discursos/práticas presentes na formação, quanto pelas publicações científicas ou aquilo que é avaliado como “científico” pelas revistas indexadas e seus pareceristas, parece ainda desconsiderar tais transformações, assim como o arcabouço de críticas à metafísica que alicerça as teorias e sistemas psicológicos. Vários autores têm apontado para o despreparo dos profissionais de psicologia na efetivação de uma práxis em que a dimensão ético/afetivo/política esteja presente, provocando e acompanhando transformações efetivas vividas pela população brasileira (Campos, 1992; Novo, 1998; Sawaia, 1998, Andrade e Araújo, 2003). Tais avaliações criticam, exatamente, a herança epistemológica que sustenta e orienta a postura e a intervenção do psicólogo. Essa discussão sobre a impropriedade da formação do psicólogo para atuar junto à comunidade brasileira não é recente, nem marginal. Autores como Martins (1989), Chauí (1990), Patto (1991), Andrade (2001), entre outros, vêm mostrando como “a crise de interpretação é nossa” (Valia, 1996:177), ao produzirmos a separação sistemática entre a racionalidade científico-instrumental e os modos existenciais singulares e cotidianos. Ou seja, herdamos academicamente a idéia de que o profissional é que detém o conhecimento científico (a teoria) e o saber popular é menor (pois que “limitado” à experiência) ou incapaz de produzir mudanças. Falo de postura, referindo-me à nossa dificuldade em aceitar que as pessoas “humildes, pobres, moradoras da periferia” são capazes de produzir conhecimento, são capazes de organizar e sistematizar pensamentos sobre a sociedade e, dessa forma, fazer uma interpretação que contribui para a avaliação que nós fazemos da mesma sociedade. (Valia, 1996:178). Material com direitos autorais 64 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA Esta crítica é também desenvolvida por Martins (1989), que enfatiza a importância dos diversos saberes e compreende a cultura popular como conhecimento acumulado, sistematizado e interpretativo, ou seja, uma teoria imediata, elaborada a partir de experiências concretas e cotidianas. Trata-se da típica postura acadêmica em que o profissional se dispõe a trocar saberes com os demais, mas não permite a construção de um saber comum, um conhecimento gerado coletivamente no encontro. Algo que não é da ordem do já constituído, mas da criação, que exige a desconstrução das configurações estáveis e cristalizadas para a produção conjunta de outros sentidos. E a grande dificuldade está, exatamente, em se despojar de um saber constituído que, aparentemente, dá uma sensação de poder e controle sobre si e sobre o outro. Este nos parece ser o grande desafio na formação do psicólogo: que se consiga transmutar esses valores acadêmicos (transcendentes e abstratos) na afirmação da multiplicidade imanente ao encontro, para que a produção coletiva ganhe corpo; afirmação da dimensão ético/ estético/política que fundamenta e direciona nossas ações. Falar em produção coletiva implica, necessariamente, na abertura para o desconhecido, para algo que surge no encontro, algo que não comporta o a priori. Trata-se de uma invenção permanente geradora de um outro modo de conhecimento que emerge no entre e extrapola o saber/fazer que cada um detém em sua singularidade e formação (Andrade, 2003; Cupertino, 2001). Este outro modo de pensamento sempre esteve presente na história, porém, de forma marginal. Um modo que procura avaliar o conhecimento a partir da vida, em toda sua complexidade, sem eliminar o aleatório gerador de criação e transformação. Estes pensadores inquietos se debruçam exatamente na produção da diferença e não na repetição do mesmo. Neste debruçar, desenvolvem uma crítica radical ao nosso pensamento dominante que empobrece e simplifica o universo, reproduzindo práticas cotidianas seletivas e excludentes. Práticas presentes não somente em nossas vidas privadas, mas também na formação acadêmica, pesquisas, métodos e construções teóricas. É a este debruçar crítico que Nietzsche nos convida quando cria a genealogia. Material com direitos autorais Christina M.B. Cupertino (organizadora) 65 A DIMENSÃO ÉTICO/ESTÉTICO/POLÍTICA DA AVALIAÇÃO GENEALÓGICA Uma teoria psicológica não existe no abstrato. Ela é construída a partir de determinados valores, de uma determinada concepção de mundo, de ser humano; valores também implicados nas escolhas metodológicas e na produção de conhecimento daí advinda. Estas produções se efetuam numa prática concreta, constituinte de subjetividades, de modos de estar no mundo. E, assim como as demais práticas sociais, o exercício da psicologia atualiza diversas forças operando ao mesmo tempo, em constante dominação de umas sobre as outras, conforme o universo em que se desenvolvem. Encontramos, assim, uma produção de saber dominante, pautada no pensamento herdado, que tende a uma reprodução social da exclusão, na medida em que reproduz os valores morais normalizantes. Paralelamente, encontramos, ainda que marginais, saberes/práticas que criticam e denunciam estes valores dominantes, objetivando sua transmutação em um outro modo de pensamento fundamentado na produção da diferença, na criação e instituição de outros modos de estar no mundo. A genealogia considera todo saber como peça de um dispositivo político articulado a um contexto social-histórico. As produções da psicologia não são avaliadas a partir de um sujeito do conhecimento (o psicólogo ou a teoria), mas das relações de forças presentes nessas produções e a direção que estas imprimem na constituição de subjetividades contemporâneas. Queria ver como estes problemas de constituição podiam ser resolvidos no interior de uma trama histórica, em vez de remetê-los a um sujeito constituinte. E preciso se livrar do sujeito constituinte, livrar- se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica. É isto que eu chamaria de genealogia, isto é, uma forma histórica que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história. (Foucault, 1985: 07). Não se trata de buscar a origem histórica de uma problemática ou de uma configuração, pois uma pesquisa da origem pressupõe que haja uma essência exata a ser encontrada ali, num suposto início; ou encontrar a verdade da coisa, como algo estático que se deu em Material com direitos autorais 66 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA determinado momento. Essa busca captura o embate de forças em um referencial fixo inicial. Trata-se, antes, de encontrar a proveniência, a proliferação dos acontecimentos, através dos quais determinada configuração se constitui em constante movimento. Um conjunto de acidentes, de acontecimentos que, em sua atualização já trazem o devir- outro, pois a pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário, ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido. Conceber a vida como embate é, pois, concebê-la como uma relação de forças sempre em busca de dominar e sobrepujar umas às outras. Esse jogo de forças, entretanto, não obedece a um determinado fim ou a uma mecânica, mas se dá ao acaso da luta. O fundamental da genealogia é avaliar que conjunto de forças produz certo tipo de valor e qual direção este valor imprime à vida (esta sendo concebida como movimento de expansão e não de adaptação). Uma direção ativa significa criar condições para que as forças expansivas afirmem o devir. Como, para Nietzsche, nossos valoresocidentais dominantes diminuem a vida, na medida em que há um predomínio de valores escravos (forças reativas), a genealogia age, sempre, no sentido de uma transmutação, de uma trans-valorização. Nesta perspectiva, a genealogia implica diretamente a postura existencial do pesquisador. Ou seja, ao desenvolver uma análise genealógica, o pesquisador, avaliando e apontando o sentido imprimido pelas forças presentes em uma determinada configuração, se implica nesta ação e seus efeitos visam, necessariamente, a instituição de um outro sentido. Assim, uma avaliação genealógica traz consigo, é inseparável de uma dimensão política crítica da moral dominante que, atravessando os diversos saberes, nega a vida como produção permanente e exclui a diferença valorizando-a como desvio, anormalidade. Nesse sentido, a genealogia não é uma metodologia, não comporta uma técnica a ser aplicada nas diversas situações. Trata-se antes, de uma postura, de um modo de estar no mundo que se presentifica em toda a ação do pesquisador, em suas experiências, olhares e falas cotidianos (Andrade, 1999). Perante qualquer saber ou produção, a pergunta é: qual o sentido que está sendo produzido? Trata-se de uma reprodução dos valores dominantes ou, ao contrário, trata-se uma abertura para a construção de outros sentidos, de outros modos de estar no mundo? Avaliação dos diversos movimentos presentes em determinada prática, sua emergência Material com direitos autorais Christina M.B.Cupertino (organizadora) 67 e em qual direção estão remetendo a vida: para sua expansão, potência de agir e intensificação (o que implica uma ética de afirmação da alteridade e do perspectivismo como fundamentos da vida) ou, ao contrário, para adaptação, conservação e constrição. Assim, a pesquisa genealógica não tem um instrumento construído a priori que propiciará um conhecimento mais ou menos objetivo da problemática. A própria problemática será colocada em questão! Ou seja, a ação do psicólogo se traduz num processo permanente de avaliação coletiva dos valores presentes nos diversos encontros. As concepções, subjacentes à própria “problemática” levantada pelos profissionais e população, serão avaliadas conjuntamente. Qual a emergência de tal concepção? Quais valores a instituem e sustentam? A postura do psicólogo será sempre de estar provocando, desconfiando, num movimento contínuo de reflexão e análise, das diversas verdades ali apresentadas. Portanto, ele está implicado durante todo o processo e, nesta implicação, ele também é avaliado, questionado e “chacoalhado” em suas verdades. As cristalizações não estão no indivíduo, mas na produção social, naquilo que é produzido nos diversos encontros. Tal processo de desmanche não se reduz ao conhecimento racional, ou seja, não é suficiente “falar” das cristalizações ou ter consciência delas para que algo se transforme. A reflexão e a crítica são importantes, mas a transmutação implica também num processo de “afetação”, que não é da ordem do racional, mas da ação, da abertura para outras sensibilidades que advém dos múltiplos encontros cotidianos. Encontros estes que não se reduzem, também, a dois indivíduos, mas aos acontecimentos diários, como assistir a um filme, ler um livro, escutar música, entre tantos outros. A genealogia não concebe, assim, a problemática em questão como algo a ser conhecido/compreendido para, num segundo momento, ser corrigido ou transformado. Ela desconfia da própria problemática. E seu olhar estará voltado, principalmente, para o inesperado, para aquilo que está ali sendo negado, mas insiste em se produzir. O aleatório que surpreende e, quando afirmado, processualiza a criação de outros modos de estar. É uma ação ético/estético/política comprometida com a criação de outros modos de existência cotidiana. De onde emergem aquelas falas, posturas, angústias, crenças, olhares? Não estão situados dentro dos indivíduos, mas nos valores morais dominantes em determinado contexto, sustentando os modos de pensar, de sentir, de ser afetado e de afetar. Material com direitos autorais 68 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA Quando se traz à tona tais questões, quando se desconfia e provoca, o psicólogo não está sendo neutro ou sem objetivos. Ao contrário, ele tem sim uma meta, instituir um outro sentido àquele embate de forças que está sendo aprisionante e excludente. Entretanto, não é o psicólogo que vai consertar o outro, fazê-lo enxergar de outra forma, mas a produção de sentidos que vai sendo instituída por todos, nos diversos encontros. Como esta produção não é exclusivamente da ordem da racionalidade e da objetividade, o psicólogo não sabe, jamais, o que ali vai ser processualizado; ele não conta com aquilo que se repete (o mesmo), mas com aquilo que pode quebrar esta repetição para que algo seja criado. Trata-se de uma construção coletiva permanente, em que todos estão implicados. Não se pesquisa somente para conhecer, mas também para transformar. A transformação é inerente à investigação genealógica e ao conhecimento daí resultante. Recursos expressivos como possibilidade DE ATUALIZAÇÃO DO VIRTUAL A oficina é o lugar para exercitar um abandono consentido do que é sistemático, e nisso talvez esteja o último resíduo que permite que ainda a chamemos de Oficina de Criatividade, entendendo aqui o criativo quase que do ponto de vista amplo do senso comum, como o que se opõe ao sistemático. (Cupertino, 2001:200). O presente trabalho objetivou não somente apontar para o embate de forças presente na formação do psicólogo, mas por trazer exemplos de práticas que, efetivamente, subvertem o modelo hegemônico. Não se trata, pois, de análise de discursos sobre as próprias concepções/práticas psicológicas - contemporaneamente todos adotam o discurso politicamente correto de respeito às diferenças (porém, identitárias) - mas de compartilhar esses fazeres e trazer para debate aqueles que, de fato e ainda que marginais, subvertem o modelo e funcionam na produção e afirmação da expansão imanente à vida. Dentre estas práticas, pude compartilhar o projeto coordenado pela Prof3. Dra. Christina Cupertino, realizado com alunos da Universidade Paulista (UNIP), através de Oficinas de Criatividade. O Material com direitos autorais Christina M.B. Cupertino (organizadora) 69 projeto visa contribuir para uma formação profissional inserida sócio- culturalmente, geradora de reflexões críticas sobre a constituição sócio- histórica do sujeito contemporâneo valorado, ainda predominantemente em seus aspectos universais de estabilidade e conservação do mesmo. É importante entendermos com clareza o que se compreende, nesta proposta, por “reflexões críticas” e como desenvolvê-las, pois aqui reside todo o diferencial/potencial dessa prática em relação às demais. A preocupação primeira é que tais reflexões ocorram a partir da experimentação própria e singular a cada aluno (e/ou pessoas envolvidas na atividade) e não referenciada a algo externo, já constituído e apresentado em sua unicidade e objetividade, algo distante/fora sobre o qual nos debruçamos para refletir sobre. Ao contrário, estamos aqui no campo da Ética espinosiana, em que a reflexão é intrínseca à experimentação, sentir e pensar torna-se a mesma coisa; o referencial é o próprio corpo afetado nos encontros e suas diversas composições e/ ou decomposições geradoras de potência de agir (sempre acompanhada do sentimento de alegria) ou padecer (tristeza). A concepção moral norteadora da vida, base das teorias psicológicas que se dedicam a refletir sobre a criatividade, é subvertida pela própria experiência dos alunos ao vivenciarem as oficinas. Não se trata de ensinar aos alunos técnicas novas a serem aplicadas no trabalho com a população ou ensinar como fazer oficina de criatividade; mais uma proposta alternativa no ofício profissional. Antes, a proposta é de uma “anti-receita”, uma vez que visa a experiência singular do fazer/sentir que, sendo única, implica em um movimento de criação permanente; criação de si e, como conseqüência imediata, do entorno ou de outros modos de existir/viver uma vida. Experimentação no campo intensivo, das intensidades que deslocam o instituído (extensão/forma) na produção de outras configurações. Para que tal processo ocorra, é necessário um espaço de afirmação/acolhimento a tais deslocamentos ou, dito de outra forma, uma postura afirmativa dessa expansão como imanente à vida e não como algo assustador que deva ser negado e capturado pelo julgamento moral que des-potencializa e paralisa a ação. Esta sustentação advém, pois, da postura da própria Christina junto ao grupo de alunos e sua forma de concretizar as oficinas. Estas acontecem em diferentes atividades, propostas pela professora, que exigem a livre expressão, Material com direitos autorais 70 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA através de recursos expressivos para sua execução. As atividades podem acontecer tanto na sala de aula quanto fora (alguma tarefa a ser feita em outros espaços e depois trazida para compartilhamento grupai na sala). O importante é que estas experiências de livre expressão sejam compartilhadas no grupo, momento/espaço em que vivenciam pessoal e coletivamente a inesgotável possibilidade anárquica e plural do criar/ fazer humano. Estas vivências, acompanhadas de reflexões sobre a própria criação, geram uma des-construção (não somente teórico- filosófica, mas fundamentalmente vivencial) do modelo herdado, incorporando, como imanente à vida, as experiências singulares próprias do existir/fazer humano. Esta experimentação de outras sensibilidades é acompanhada, quase sempre, de angústia e incertezas, uma vez que rompem com o modelo moral que sustenta nosso modo de pensar/sentir. Entretanto, quando compartilhadas e sustentadas coletivamente, passam a ser com- sentidas e acolhidas em sua propriedade. Ou seja, as afetações inicialmente ameaçadoras na experiência da alteridade (estranhamento e deslocamento da suposta essencialidade do eu), passam a ser incorporadas como próprias e singulares, e vividas com a alegria e suavidade que advém do aumento da potência de agir. Nesse sentido, as oficinas de criatividade abrem um espaço inexistente na formação, qual seja a inseparabilidade do mundo racional e mundo sensível que, como vimos acima, é a base para o exercício da liberdade e eticidade cotidianas e as inevitáveis rupturas advindas desse modo plural de viver uma vida. Esta experimentação própria do alunado é fundamental para que este possa sustentar esse lugar (múltiplo e nômade) em suas práticas profissionais, afirmando espaços de com- sentimentos em seus diversos encontros/entornos não somente de trabalho, pois que incorporado como um modo Ético de criar/ experimentar uma vida. A especificidade da Oficina de Criatividade, como parte da formação, está no uso de recursos expressivos de natureza artística como deflagradores de experiências particulares, vividas pelos participantes como facilitadoras da expansão dos horizontes pessoais e da circulação através de pontos de vista múltiplos, seja sobre os conhecimentos específicos de cada área, seja sobre sentimentos, valores e crenças (Cupertino, 2003). Material com direitos autorais Christina M.B. Cupertino (organizadora) 7 I As práticas de atenção psicológica propostas pelas oficinas sustentam-se, pois, na lógica da experimentação, uma vez que visam à implicação político-social do profissional na transformação das relações societárias e, como tal, nos modos de pensar/estar na vida, através da com-vocação de outras sensibilidades, subversivas à razão técnico- científica predominante. Propõem como suporte a essa subversão, a recuperação da dimensão ético-estética deixada de lado ou negada por esta racionalidade dominante, uma vez que, contrariamente à estabilidade pressuposta, descortina a expansão criativa como imanente à vida. Trata-se aqui, de uma transmutação dos valores predominantes ao se questionar, através da própria experiência, o Valor desses valores. Para que servem? O que têm posto para funcionar na conformação societária contemporânea? O projeto coordenado pela Christina não se reduz às oficinas realizadas em sala de aula, mas estende-se às práticas de estágio com a população. As atividades desenvolvidas nestas práticas não são necessariamente as mesmas vividas em sala de aula, pois, como dito, não se trata de técnicas objetivas a serem aprendidas, mas de espaços de criação que, como tais, jamais podem ser repetidos/reproduzidos, mas acontecem sempre singulares a cada grupo/configuração. A lógica é de uma afirmação dessas singularidades já vivida pelos alunos em sala de aula. Assim, os projetos a serem desenvolvidos são elaborados a partir de uma discussão prévia coletiva (profissionais e população) sobre os interesses particulares de cada grupo, de cada contexto. Durante o período que acompanhei/compartilhei essas práticas, havia quatro grupos de trabalho, conformando turmas sob supervisão da professora, com diversos projetos sendo desenvolvidos junto à população. Cada grupo subdivide-se na proposta e elaboração de um projeto específico a ser desenvolvido durante o estágio. Acompanhei um desses grupos e seus projetos (excetuando o último, todos desenvolvidos na periferia de São Paulo), listados a seguir: - Oficina desenvolvida por duas alunas com mulheres/mães, na Instituição “Lar Fabiano de Cristo” (ONG), e oficina desenvolvida por uma aluna com crianças, filhos das mães acima referidas, no mesmo horário e instituição. - Oficina desenvolvida por três alunos com adolescentes, na Instituição “Projeto Eduardo Marlière - Crescente” (ONG). Material com direitos autorais 72 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA - Oficina denominada “Cine mudança - Cenas de uma transformação”, desenvolvida por três alunas, com adolescentes, na Instituição “Projeto Eduardo Marlière - Crescente” (ONG). - Oficina desenvolvida por uma aluna com crianças superdotadas, em um projeto já existente, denominado “Arte e Ciência”, criado pela Professora Christina, em parceria com o Colégio Objetivo, localizado em São Paulo. Estes trabalhos são relatados e discutidos em supervisão grupai semanal, espaço de compartilhamento das afetações vividas pelos alunos nos diversos encontros. A expressão “afetação” é utilizada no presente para destacar a qualidade/dimensão das questões abordadas e refletidas nesse espaço: não se trata de um relato das atividades focado nas produçÕes/reaçÕes da população envolvida (tradicionalmente denominada “cliente” ou “clientela”) com o objetivo de explicar seus problemas e avaliar a eficácia da intervenção (em suas categorias de certo X errado), situando no aluno o saber/fazer competente ou inexperiente. Trata-se de uma reflexão sobre o encontro como um acontecimento coletivo, produtor de múltiplos sentidos para todos os envolvidos. Não se pergunta o quê estes significam e/ou porque (dificilmente nomeáveis/explicáveis objetivamente), interpretando-os ou os aprisionando em relações de causalidade, antes, pergunta-se pelos seus efeitos, como funcionou.9 O que foi colocado em funcionamento, coletivamente (alunos e população) naquele encontro? Em que momentos os sentidos produzidos funcionaram como desmanche dos cristalizados (pré-conceitos), acionando outras sensibilidades e promovendo expansão de vida (afirmação das singularidades) ou, ao contrário, em que momentos foram capturados em sentidos já dados e adaptados aos valores normativos dominantes? Tais reflexões, fundamentais ao avaliarmos o 9. A expressão funcionar é utilizada neste contexto de forma bem diferente daquela compreendida pelas teorias psicológicas funcionalistas e adaptativas, em que ser humano e sociedade são concebidos como sistemas ou organizações estáveis e harmônicas. A função do psicólogo seria explicar e consertar as disfunções do sistema.No presente, “colocar em funcionamento” é concebido de forma oposta, qual seja colocar em movimento, deslocar ou desmanchar os modelos pré- estabelecidos pela Moral vigente. Expressão utilizada por Gilles Deleuze para situar a imanência da vida na produção de diferença e não na estabilidade. Material com direitos autorais Christina M.B.Cupertino (organizadora) 73 que estamos produzindo cotidianamente em nossos encontros, não se restringem à razão instrumental, tão cara às práticas psicológicas, mas envolvem uma afirmação ao intensivo (produção de diferença) imanente à extensão/forma apresentada, porém, não passível de representação. Ao realizarem em grupo atividades de cunho artístico (plástico, cênico, corporal) os membros do grupo entram em contato com a suspensão da fala racional sistematizada, vivenciando uma experiência de natureza estética, entendida aqui como um mergulho na falta de sentido imediato e na construção gradativa de significados múltiplos para as experiências vividas. Essa experiência gera o espaço para o aparecimento e revisão de situações vividas e de atitudes tomadas no cotidiano, e a possibilidade de transformá-las (Cupertino, 2003). Esse modo de pensar/fazer psicologia apresenta-se como uma ruptura necessária e fundamental no tocante à formação do profissional e sua atuação em instituições públicas, em que a dimensão político- social é intrínseca, ou deveria ser, ao ofício do psicólogo no seu compromisso com a transformação societária. Ressalto a necessidade de uma radical inversão, pois não se trata simplesmente de fazeres ou práticas alternativas, mas de uma ruptura com a base de sustentação das diversas psicologias, qual seja a metafísica. Algumas análises tendem a avaliar a diversidade (e novas modalidades) de práticas como se estas estivessem, efetivamente, rompendo com nossa herança modelar (CFI’ 1994). Entretanto, uma observação mais cuidadosa revela tratar- se de técnicas e/ou métodos diferentes, mas ainda sustentados pelos mesmos valores (Andrade, 2001). “Não basta enunciar nossa pluralidade, mas é preciso que penetremos em seus desdobramentos” (Lupo, 1995:14). Voltamos, com Lupo, à pergunta fundamental: o que estamos produzindo? O que estamos colocando em funcionamento através de nossas práticas? Essa denúncia do predomínio de valores morais na formação do psicólogo e de suas práticas adaptativas/normativas não é recente, mas parece ainda marginal à academia. (Baptista, 1987; Aquino, 1990; Cupertino, 1995). Entretanto, esse movimento de resistência e insistência, esse acreditar na possibilidade do predomínio da Ética, está presente em recentes trabalhos e propostas de diversos autores. O crescente uso de recursos expressivos na instituição de outras sensibilidades, não restritivas à supremacia da lógica racional (e Moral), foi alvo de uma pesquisa desenvolvida por Cupertino, através do Material com direitos autorais 74 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA levantamento e análise de trabalhos acadêmicos como teses ou dissertações, nas principais universidades da cidade de São Paulo. De acordo com a autora, todos os trabalhos analisados têm subjacente a retomada de uma idéia aparentemente óbvia e bastante antiga, que é a do benefício da associação entre a aprendizagem formalmente estruturada, hegemônica nos sistemas educacionais, e a aprendizagem pela experiência, cuja maior abrangência eles defendem em suas produções. A introdução dos recursos artísticos, nesse caso, não apenas facilitaria a experiência, como daria a ela e a todo o processo educativo uma outra configuração (Cupertino, 2003). E interessante observar o reconhecimento da importância da experimentação no processo de formação, no processo de conhecer e aprender, fundamento do modo existencial ético, conforme avaliado por Espinosa. Retomando o filósofo, é o experimentar do encontro que possibilita ao ser vivo conhecer/ser afetado por aquilo que o compõe (ou não) em sua potência singular e agir a partir dessa referência própria e não simplesmente padecer a partir de algo externo e arbitrário. Este último - construto humano abstrato e transcendente - não nos dá nada a conhecer, mas nos remete ao mesmo, à repetição. A potência de agir (imanente aos seres vivos) é aumentada pelas afetações dos bons encontros que não acontecem na repetição do mesmo, mas na alegria da criação. Esta exige uma errância, um deslocar-se dos pré-conceitos, um com- sentir que acontece “também pelo desvio e pela divergência, pela navegação em processos que escapam às formulações de qualquer linguagem que vise apenas representar fielmente o que está presente e visível” (Cupertino, 2003). O compartilhar as oficinas e esta análise desenvolvida por Christina têm funcionado, para mim, como bons encontros... Rajadas de ar fresco no niilismo reinante! Traz à visibilidade aqueles interlocutores anônimos com os quais temos nossa potência de agir aumentada! Em todos os casos, a exposição ao desconhecido e a coragem de navegar por áreas híbridas nos leva para além do estabelecido (como linguagem, como produção de conhecimento, como forma de ensinar ou de atender clientes), desvelando formas de pensamento e expressão cuja compreensão, ainda em estado embrionário, abre caminhos para as transformações futuras (Cupertino, 2003). Como dizia nosso saudoso Deleuze, “um pouco de ar, senão sufoco”! 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