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RPM E DHPN

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Victória Figueiredo – 98
AMNIORREXE
A ruptura prematura das membranas (RPM) é a amniorrexe espontânea que ocorre antes do início do parto. No termo, 8% das gestantes apresentam RPM. A ruptura prematura das membranas pré termo (RPMP), definida como a amniorrexe ocorrida antes de 37 semanas, incide em 3% de todas as gestações e é responsável por aproximadamente 30% dos partos pré-termo. A RPM é caracterizada, em geral, por breve período de latência, tempo transcorrido entre a ruptura e o início do parto. 
A morbidade materna está associada à infecção intrauterina (corioamnionite) e ao descolamento prematuro da placenta (DPP). A morbimortalidade perinatal é consequência de infecção (sepse neonatal), sofrimento fetal (compressão do cordão umbilical pelo oligoidrâmnio, DPP) e prematuridade – síndrome de angústia respiratória (SAR), enterocolite necrotizante e hemorragia intraventricular.
· ETIOLOGIA
A RPM tem sido tradicionalmente atribuída ao estresse físico que produz estiramento das membranas, como, por exemplo, o associado a polidrâmnio, gravidez gemelar e contrações uterinas sintomáticas. Todavia, evidências sugerem que a ruptura das membranas está também relacionada a processos bioquímicos, incluindo a disrupção do colágeno dentro da matriz extracelular do âmnio e do cório.
A infecção intrauterina (corioamnionite) tem papel relevante em cerca de 50% dos casos de RPMP/ parto pré-termo, especialmente em idades gestacionais precoces, atuando por meio de diversos mecanismos, como, por exemplo, citocinas pró inflamatórias (TNFα, IL-1, IL-6), metaloproteinases da matriz (MMP) e produção de prostaglandinas (PGE2 , PGF2α) pelas membranas fetais.
A síndrome de Ehlers-Danlos, distúrbio hereditário do tecido conjuntivo, é caracterizada por vários defeitos na estrutura da síntese do colágeno e constitui exemplo drástico de doença genética associada à RPM.
Outros fatores de risco aventados são o sangramento vaginal no 2º e no 3º trimestre, tabagismo, uso de drogas ilícitas, baixo nível socioeconômico, conização ou circlagem cervical, colo curto (< 25 mm) no 2 o trimestre e amniocentese.
Na maioria dos casos não se identifica o fator etiológico da RPM. O fator de risco mais importante é a história de ruptura em gravidez anterior, com taxa de recorrência de aproximadamente 15 a 30%.
· HISTÓRIA NATURAL
· Ruptura prematura das membranas a termo: a RPM a termo ocorre em 8% das gestações, e é geralmente seguida pelo início imediato do parto, 50% dentro de 5h e 95% após 28h. A principal consequência da RPM a termo é a infecção intrauterina, que aumenta com a duração entre o tempo de ruptura e o início do parto (> 18 h). 
· Ruptura prematura das membranas pré-termo (< 37 semanas): a RPMP ocorre em 3% das gestações e, no mínimo, em 50% dos casos a gestante entra em trabalho de parto no prazo de 1 semana; quanto menor é a idade gestacional, maior é o tempo de latência. Com o tratamento expectante, 2,8 a 13% das gestantes podem parar de perder líquido, restaurando o volume do líquido amniótico (LA) à normalidade, caracterizando um prognóstico favorável. A infecção intrauterina clínica ocorre em 15 a 25% dos casos e a infecção pós-parto em 15 a 20%; a incidência da infecção é maior em idades mais precoces da ruptura; o DPP incide em 2 a 5% dessas gestações. 
Embora seja evidente o risco de infecção fetal pela corioamnionite, a complicação mais importante para o feto é a prematuridade – SAR, enterocolite necrotizante, hemorragia intraventricular e paralisia cerebral. Após a RPMP, a infecção e os acidentes do cordão umbilical são responsáveis por 1 a 2% da morte antenatal. 
· Ruptura prematura das membranas periviável (< 24 semanas): a RPM periviável (< 24 semanas) incide em menos de 1% das gestações. Cerca de 40 a 50% das grávidas com RPM pré-viável dão à luz na primeira semana após a ruptura e 70 a 80% dentro de 2 a 5 semanas. 
A incidência de hipoplasia pulmonar após a RPMP de < 24 semanas é de 10 a 20%. A hipoplasia pulmonar está associada a alta mortalidade, mas é raramente letal quando a ruptura ocorre com 23 a 24 semanas de gestação, provavelmente porque o crescimento alveolar adequado para suportar o desenvolvimento pós-natal já ocorreu. Rupturas em idades gestacionais precoces e com pouco volume residual de LA são determinantes primários de hipoplasia pulmonar. 
A oligoidramnia acentuada e precoce é responsável ainda pela síndrome de Potter: fácies de Potter (implantação baixa das orelhas e prega nos epicantos), contratura dos membros e hipoplasia pulmonar. 
As complicações maternas significantes são: infecção intramniótica, endometrite, DPP e retenção placentária. A sepse tem sido observada em aproximadamente 1% dos casos, por vezes levando ao óbito materno. 
· Vazamento de líquido após amniocentese: o vazamento de LA após amniocentese, em geral realizada para estudo genético no diagnóstico pré natal, ocorre em 1% dos casos e o de perda fetal em < 0,5%. Na maioria das vezes, há resselagem das membranas, com normalização do volume do LA em 70% dos casos dentro de 1 mês da amniocentese.
· DIAGNÓSTICO
· História e exame clínico: em aproximadamente 90% dos casos, o diagnóstico da RPM é feito pela história da paciente, que revela deflúvio abundante de líquido pela vagina. O exame com espéculo estéril confirma o diagnóstico ao visualizar líquido escorrendo pelo orifício cervical. O toque vaginal aumenta o risco de infecção e nada acrescenta ao diagnóstico; deve ser evitado, a menos que a paciente esteja em pleno trabalho de parto. 
· Testes laboratoriais: recomendam-se dois testes simples, de leitura imediata, no líquido vaginal coletado de preferência no fundo de saco posterior: papel de nitrazina (para a determinação do pH) e cristalização. Enquanto o pH da secreção vaginal é ácido e varia entre 4,5 e 6,0, o do LA é alcalino e se situa entre 7,1 e 7,3. Na ruptura, o papel de nitrazina assume a coloração azul (pH > 6,5). Informação adicional pode ser obtida pela coleta de líquido vaginal, secado por 10 min em lâmina e observado ao microscópio; arborização (cristalização) define a amniorrexe. 
Recentemente incorporado à prática obstétrica, o AmniSure é um teste rápido, imunocromatográfico, que detecta a proteína macroglobulina alfa-1 placentária (PAMG-1) no meio vaginal. 
Tem desempenho semelhante o teste Actim PROM que detecta a proteína de ligação ao fator de crescimento insulina-like-1 (IGFBP-1).
· Ultrassonografia: a ultrassonografia é utilíssima para confirmar a oligoidramnia (maior bolsão de líquido amniótico < 2 cm), mas não é diagnóstico da ruptura – cerca de 50% das amniorrexes ocorrem sem oligoidramnia. Do mesmo modo, o diagnóstico pela ultrassonografia (e pela ressonância magnética) de hipoplasia pulmonar nas RPMP de < 24 semanas não tem sido efetivo. Afastadas as malformações urinárias fetais (ultrassonografia morfológica) e a insuficiência placentária (Doppler umbilical), a hipótese de RPM é muito sugestiva para explicar a oligoidramnia. 
· Dificuldades no diagnóstico: na fissura alta das membranas, o escoamento é habitualmente escasso e persistente. A integridade do polo inferior do ovo possibilitará, no parto, a formação da bolsa das águas e o falso diagnóstico de não ter havido amniorrexe.
· TRATAMENTO
· Medidas gerais
O tratamento da RPM está fundamentalmente calcado na idade da gravidez na qual ocorreu o acidente e na existência de complicações, tais como infecção, DPP, sofrimento fetal e início do parto. Em qualquer idade gestacional, a evidência de trabalho de parto, infecção intrauterina, DPP ou de comprometimento da vitalidade fetal é indicação para a pronta interrupção da gravidez.
· Hospitalização: levando em conta que o tempo de latência é frequentemente curto, a infecção pode se apresentar subitamente e o feto está sob o risco de compressão do cordão umbilical o home care não é aconselhado, sendo recomendada a hospitalização das mulheres grávidas com RPMP uma vez alcançada a viabilidade fetal (24 semanas).
· Monitoramento eletrônico: pacientes com RPMP devem ser submetidasao monitoramento eletrônico para avaliar o bem-estar fetal, especialmente a desaceleração umbilical, indicativa de compressão de cordão. 
· Cultura de estreptococo do grupo B: a coleta de material da vagina e do reto para a cultura de estreptococo do grupo B (GBS) será indicada se o tratamento for expectante. O uso do antibiótico profilático na conduta expectante não exclui a profilaxia antibiótica intraparto para GBS, por ventura indicada. 
No termo (≥ 37 semanas), se o intervalo entre a amniorrexe e o parto é prolongado (≥ 18 h) está também aumentado o risco de sepse neonatal precoce por GBS e indicada a profilaxia antibiótica intraparto. 
· Monitoramento da infecção: na paciente com RPMP, a temperatura > 38°C pode indicar infecção amniótica ou corioamnionite, embora a dor à palpação uterina e a taquicardia fetal possam ser indicadores melhores, em face da possibilidade da corioamnionite subclínica. A contagem de leucócitos não é específica e a oligoidramnia (maior bolsão < 2 cm) revela antes a probabilidade de morbidade neonatal por SAR do que o risco de infecção materna e fetal. Recentemente, tem-se apontado a concentração de PCR ≥ 5 mg/ℓ (durante a admissão de gestante com RPMP após 34 semanas) como o melhor indicador de infecção neonatal precoce.
· Corioamnionite: uma vez diagnosticada a corioamnionite, a conduta, qualquer que seja a idade gestacional, é induzir o parto e administrar antibióticos. O regime habitual é ampicilina, 2 g IV a cada 6 h, mais gentamicina, 1,5 mg/kg IV a cada 8 h. Clindamicina, 900 mg IV de 8/8 h, ou metronidazol, 500 mg IV de 8/8 h, podem ser adicionados para cobertura anaeróbica, se for realizada cesárea. A administração da terapia antibiótica na corioamnionite deve continuar até que a paciente esteja afebril e assintomática por 24 a 48 h após o parto. 
Se a febre persistir após 24 h de iniciados os antibióticos, adicionar um terceiro agente (metronidazol ou clindamicina), caso não tenha sido administrado.
· Parto: sofrimento fetal, corioamnionite clínica e DPP significante são indicações claras para a interrupção da gravidez. O parto também é recomendado para todos os casos de RPM com 34 ou mais semanas.
· RPM com ≥ 37 semanas (termo-precoce e termo)
O monitoramento eletrônico deverá ser prontamente utilizado para avaliar a vitabilidade fetal. 
A RPM com ≥ 37 semanas é indicação para a indução do parto com ocitocina/misoprostol, nas doses habituais, para reduzir a morbidade infecciosa materna, sem elevar os riscos de cesárea ou de operatória transpélvica.
A profilaxia intraparto GBS será indicada se a cultura previamente realizada for positiva ou se houver indicadores de risco.
· RPMP com ≥ 34 semanas (pré-termo-tardio)
À semelhança do que ocorre para a RPM a termo, o melhor tratamento para a RPMP com ≥ 34 semanas é o parto imediato.
· RPMP entre 24 e 33 semanas (pré-termo)
Entre 24 e 33 semanas, na ausência de complicações, o melhor tratamento é o expectante com a paciente hospitalizada. A paciente deve manter o repouso relativo no leito (evitar atividade física) e pélvico (proibido o coito e o toque vaginal) e, concomitantemente, a gestante deve ser observada para a evidência de infecção, DPP, compressão do cordão umbilical, sofrimento fetal e início do parto. A elevação da temperatura pode indicar infecção intrauterina; na ausência de febre a contagem de leucócitos e outros testes de inflamação não se mostraram relevantes. A avaliação fetal é feita pelo monitoramento eletrônico de seus batimentos cardíacos e pelo perfil biofísico fetal (PBF) simplificado (cardiotocografia e volume do LA). A frequência desses testes pode ser diária ou 2/semana, dependendo do resultado. É recomendada a indução do parto quando a gravidez alcançar 33 semanas.
· Antibiótico profilático: a administração de antibiótico profilático após a RPMP visa à postergação do parto e à redução da morbidade neonatal. Protocolo do National Institute of Child Health and Human Development (NICHD), com tratamento intravenoso durando 48 h, é realizado com a ampicilina (2 g de 6/6 h) associada à eritromicina (250 mg de 6/6 h); segue-se o tratamento VO por mais 5 dias com a amoxicilina (250 mg de 8/8 h) associada à eritromicina (250 mg de 8/8 h). O retardo esperado no parto fornece tempo suficiente para que o corticoide exerça seus efeitos. A co-amoxiclav (combinação amoxicilina/ácido clavulânico) deve ser evitada, pois aumenta os riscos de enterocolite necrosante no recém-nascido. A eritromicina parece ser o antibiótico de escolha, porém tem seu uso impossibilitado no Brasil, que não dispõe do fármaco para via venosa. Recomendamos a administração venosa de ampicilina 2 g a cada 6 h por 48 h (trata estreptococo B, muitos bacilos anaeróbios gram-negativos e alguns anaeróbios) associada à azitromicina 1 g VO dose única (trata micoplasma e Chlamydia trachomatis, causa de corioamnionite e pneumonite, conjuntivite neonatal), seguida por amoxicilina 500 mg VO 8/8 h por mais 5 dias (trata bacilos gram-positivos e gram-negativos, principalmente E. coli).
· Corticoide: um único curso de corticoide é recomendado para gestantes com RPMP entre 24 e 34 semanas, e pode ser considerado para mulheres com 23 semanas, com risco de parto iminente. O curso de resgate não está referendado na RPMP.
· Tocólise: não há indicação de tocólise terapêutica no tratamento expectante da RPMP.
· Neuroproteção fetal: mulheres com RPMP antes de 32 semanas e risco de parto iminente são candidatas ao tratamento com sulfato de magnésio para a neuroproteção fetal. 
· RPMP com < 24 semanas (periviável)
As pacientes com RPMP antes de 24 semanas (periviável) devem ser aconselhadas em relação aos riscos e benefícios do tratamento expectante versus o parto imediato. A interrupção da gravidez deve ser sugerida à paciente. O tratamento expectante ambulatorial (home care) pode ser tentado com monitoramento da infecção, DPP e parto. Está indicada a ultrassonografia seriada para avaliar a oligoidramnia, na esperança da resselagem das membranas e restauração do volume amniótico, o que só parece ocorrer em 8% dos casos.
A administração antenatal de corticoide é apropriada se há risco iminente de parto. É razoável oferecer um curso de antibiótico profilático para prolongar a gravidez para as pacientes que escolheram o tratamento expectante. Alcançada a viabilidade fetal, essas pacientes devem ser hospitalizadas.
· Vazamento de líquido amniótico após amniocentese 
O risco de vazamento de LA em mulheres submetidas à amniocentese de segundo trimestre é de aproximadamente 1%. O tratamento expectante ambulatorial é o recomendado, com vigilância atenta para a infecção e a interrupção da gravidez. Estão indicados exames periódicos de ultrassonografia para avaliar a normalização do volume do LA, que parece ocorrer com grande frequência nos casos de amniocentese, ao contrário da ruptura das membranas espontânea.
· Conduta na próxima gravidez 
Para reduzir o risco de recorrência, a suplementação com progesterona vaginal, com início entre 16 e 24 semanas, deve ser oferecida a mulheres com história de RPMP. Mulheres com história de ruptura na gestação de menos de 34 semanas e colo curto (< 25 mm) antes de 24 semanas são candidatas à cerclagem cervical.
DOENÇA HEMOLÍTICA PERINATAL
A doença hemolítica perinatal (DHPN), ou eritroblastose fetal e do recém-nascido, é uma afecção generalizada, acompanhada de anemia, destruição das hemácias e aparecimento de suas formas jovens ou imaturas (eritroblastos) na circulação periférica, com atividade persistente e anômala de focos extramedulares de hematopoese.
Decorre, originariamente, de incompatibilidade sanguínea maternofetal. Os anticorpos da gestante, específicos para antígeno localizado nas hemácias do concepto, intervêm como elementos desencadeantes.
Em 98% dos casos de DHPN, a incompatibilidade entre a mãe e o feto é atribuída aos sistemas Rh e ABO. Nos 2% restantes, está em jogo um grupo variado e incomum de anticorpos denominados irregulares.
A incompatibilidade pelo sistema ABO é responsável pela maioriados casos de DHPN; todavia, como são de pequena gravidade clínica, esses casos tendem a passar despercebidos. À discordância de Rh atribui-se contingente expressivo de conceptos seriamente afetados. A DHPN determinada por anticorpos irregulares traz consequências variáveis para o feto, dependendo do fator sanguíneo envolvido. 
Apesar da prevenção com a imunoglobulina Rh, a DHPN continua sendo um grave problema global, sendo a maior causa de anemia fetal.
· ETIOPATOGENIA
Estão relacionados com a ocorrência de doença hemolítica os seguintes fatores: Incompatibilidade sanguínea maternofetal; Aloimunização materna; Passagem de anticorpos da gestante para o organismo do feto; Ação dos anticorpos maternos no concepto.
· Incompatibilidade sanguínea maternofetal
A DHPN é decorrente de incompatibilidade sanguínea maternofetal. Nesse caso, o concepto apresenta fator hemático de herança paterna, ausente no organismo da gestante e capaz de imunizá-la, produzindo anticorpos específicos ao referido fator.
· Sistema Rh: em 1946, Fisher & Race propuseram o conceito de que três genes seriam responsáveis pela codificação dos três maiores antígenos do sistema Rh – D, C/c e E/e. Quase 50 anos mais tarde, o locus Rh foi localizado no braço pequeno do cromossomo 1, mas somente dois genes foram identificados – D e CE. 
A estrutura do gene Rh está localizada no cromossomo 1p36-34. Antígenos do sistema Rh estão codificados por apenas dois genes: RhD e RhCE. A principal característica molecular do indivíduo Rh-negativo é o fato de o gene D ter sido deletado; não existe o antígeno d. Considerando os 3 pares em conjunto, aceita-se que os seus 3 loci estão próximos e talvez absolutamente ligados, transmitindo-se sempre reunidos. 
Para fins práticos, os indivíduos D são considerados Rh-positivos e os desprovidos de D, Rh-negativos. 
Aproximadamente 55% dos indivíduos Rh-positivos são heterozigotos para o locus D. Nesse caso, durante a concepção deles com mulheres Rh-negativas, apenas 50% dos fetos serão Rh-positivos e, assim, passíveis de serem atingidos pelo anticorpo materno. Por outro lado, os outros 50% de fetos Rh-negativos não são afetados. Para maridos Rh-positivos homozigotos, todos os fetos gerados serão Rh-positivos. O antígeno D das hemácias Rh-positivo apresenta uma variante denominada D-fraco (antigo Du de Stratton). Alguns portadores do antígeno D-fraco são capazes de produzir o antígeno anti-D, embora a aloimunização raramente ocorra. 
· Outros sistemas: outros sistemas de grupos sanguíneos são capazes de aloimunização. Entre os de maior antigenicidade destacam-se Kell, Duff e Kidd.
· Aloimunização materna
Na DHPN, a aloimunização materna é ocasionada: 
· Pela administração de sangue incompatível produzida por hemotransfusão ou como na antiga prática da heteroemoterapia; em ambas, o que há de danoso e altamente condenável é o desconhecimento do fator Rh da receptora antes da aplicação do sangue. 
· Subsecutivamente à gestação de produtos Rh-discordantes, sendo determinada pela passagem de hemácias fetais, que são as únicas células com antígeno Rh, durante a gestação ou no momento do parto. 
Hemorragias fetomaternas espontâneas ocorrem com frequência e volumes crescentes durante a evolução da gravidez. Na maioria dos casos, a carga antigênica do antígeno D das hemácias fetais é insuficiente para estimular o sistema imunológico materno. Todavia, no caso da hemorragia fetomaterna do parto ou, excepcionalmente, vigente grande hemorragia fetomaterna antenatal, os linfócitos B maternos passam a reconhecer o antígeno D. A produção de anti-D materno é inicialmente de IgM, de curta duração, com rápida mudança para a resposta IgG. A memória dos linfócitos B, então, espera nova exposição antigênica que ocorrerá na gravidez subsequente. Se estimulados pelo antígeno D das hemácias fetais, esses linfócitos rapidamente se proliferam e produzem anticorpos IgG que elevam os títulos maternos. 
Cerca de metade das mulheres sensibiliza-se na primeira gravidez e 1/3 na segunda gestação. Em 20% dos casos, a sensibilização ocorre após 28 semanas da gestação e em 80% dos casos no pós-parto.
· Passagem de anticorpos da gestante para o organismo fetal
Os anticorpos dos vários sistemas de grupos sanguíneos que se encontram na fração IgG (nomeados imunes, incompletos ou bloqueadores) atravessam a placenta. Os IgM e IgA, chamados anticorpos naturais ou completos, não passam para o organismo fetal.
A transferência de anticorpos da mãe para o filho é feita pela placenta e pelo IgG, o qual se liga ao receptor Fc da membrana plasmática do trofoblasto. O transporte é realizado por endocitose receptor-mediada. 
Quando decorre de incompatibilidade com o sistema ABO, a DHPN tem como anticorpos responsáveis os imunes anti-A e anti-B, pois os naturais anti-A e anti-B não franqueiam a placenta.
· Ação dos anticorpos maternos no organismo fetal 
Os anticorpos maternos que passam para o feto, em virtude da reação específica antígeno-anticorpo, irão produzir hemólise de suas hemácias e, depois, a das hemácias do recém-nascido e, segundo a subclasse de IgG e a intensidade do fenômeno, condicionam os diferentes quadros clínicos da doença. 
Esses anticorpos maternos, quando ingressam no organismo do feto, combinam-se com suas hemácias; os macrófagos do sistema reticuloendotelial (SRE) esplênico reconhecem a porção Fc do anticorpo na hemácia e a fagocitam, o que gera bilirrubina. É a hemólise lato sensu. 
Sabe-se que as formas clínicas da DHPN (ictérica, anêmica e hidrópica) decorrem da intensidade do processo de destruição e formação das hemácias e consoante a predominância de IgG1 ou de IgG3. O IgG1 migra mais cedo, tem teor elevado, e a regeneração (formação de novas hemácias – eritroblastose) leva ao empobrecimento proteico do feto, o que causa edema, ascite e hidropisia. Se prevalecer o IgG3, cuja passagem é tardia, os níveis, menores, só ascendem após 28 semanas. Em geral, o feto nasce anêmico; a icterícia só irrompe depois do parto; se não tratada, progride e pode chegar ao kernicterus.
· QUADRO CLÍNICO
· Diagnóstico anteparto 
Na gravidez, a incompatibilidade pelo sistema Rh poucas vezes acomete o primeiro filho (5%), exceto se houver referência à hemotransfusão sem o conhecimento prévio do fator Rh. 
O histórico de um ou dois filhos normais, seguidos de recém-nascidos com icterícia grave e persistente, manifesta nas primeiras horas de vida, anemia e morte nos casos de maior agravo clínico sugerem aloimunização Rh. 
Em outros casos, há natimortos e hidrópicos que se repetem, encerrando gravidezes de curso normal. 
Em mulheres com história clínica de um natimorto por incompatibilidade Rh, a probabilidade de se reproduzir o acidente é de 75%, que ascende para 90% quando o histórico é de dois natimortos. 
A incompatibilidade ABO ocorre, na primeira gravidez, em 40 a 50% dos casos. 
Apenas 3 anticorpos determinam a DHPN grave: anti-D, anti-c e anti-Kell1.
· Ultrassonografia 
A ultrassonografia é extremamente importante para o seguimento fetal na DHPN. Além de possibilitar o monitoramento de procedimentos invasivos, a ultrassonografia pode orientar a identificação dos fetos mais gravemente atingidos por anemia hemolítica, o que possibilita assentar o grau de seu comprometimento.
Sinais sonográficos de descompensação fetal, de hidropisia, representam grave anemia do concepto, com hematócrito inferior a 20% e hemoglobinometria com menos de 7 g/dℓ. 
Diante da ausência de hidropisia do concepto, na fase compensada do seu comprometimento, outros sinais sonográficos têm muito menor importância. 
O aumento da espessura placentária (maior que 4 cm), perda de sua arquitetura e maior homogeneidade parecem ser os primeiros indicadores da doença. 
Polidrâmnio e aumento da circunferência abdominal do feto, medida seriadamente, correspondem ao agravamento do processo hemolítico.
· Cordocentese 
Considerada o método de eleição para determinar o hematócrito, a hemoglobina e o grupo sanguíneo fetal, a cordocentese tem sido substituída pelo Doppler da artéria cerebralmédia (ACM) do concepto.
· Diagnóstico pós-parto no recém-nascido 
O exame do recém-nascido tem características peculiares ao tipo de incompatibilidade e à forma clínica da enfermidade.
· Incompatibilidade Rh: verifica-se que 10 a 15% de todos os casos são hidrópicos; outros 10 a 15% estão constituídos de formas leves, sem sintomatologia (eritroblastose de laboratório); finalmente, 70 a 80%, formas icteroanêmicas, têm gravidade variável e exigem tratamento. 
· Hidropisia fetal: os recém-nascidos com esta condição apresentam-se muito deformados pela infiltração edematosa que lhes invade o corpo inteiro. O abdome de batráquio, condicionado pela ascite, caracteriza-se por fígado e baço enormes (Figura 39.8). Em geral natimortos, a sobrevivência desses bebês era exceção. As transfusões intrauterinas têm impedido a morte de muitos bebês hidrópicos.
A hidropisia fetal geralmente ocorre quando a hemoglobina fetal é < 7 g/dℓ ou o hematócrito < 20%.
· Icterícia grave: pode-se observar icterícia, instalada precocemente, nas primeiras horas de vida. O aumento de volume do fígado e do baço é pontual.
· Anemia grave: é a modalidade menos expressiva, clinicamente, de DHPN; há espleno-hepatomegalia, extrema palidez e anemia, com descoramento intenso das mucosas visíveis. O exame de sangue é fundamental. A icterícia, em geral presente, mascara a identificação dos sinais clínicos. 
No hemograma dos primeiros dias, a anemia constitui descoberta acidental; alcança seu máximo durante a 3 a semana, sem relação com a icterícia e o grau de eritroblastose.
· Incompatibilidade ABO: embora seja a mais frequente causa de DHPN, a anemia resultante costuma ser leve. Cerca de 20% de todos os bebês apresentam incompatibilidade ABO, mas apenas 5% são clinicamente afetados: 
· A doença ABO é frequentemente vista no primeiro filho (40 a 50% dos casos) porque muitas mulheres do grupo O apresentam isoaglutininas anti-A que antedatam a gravidez. Esses anticorpos imunes são atribuídos à exposição a bactérias que exibem antígenos similares.
· Grande parte dos anticorpos anti-A e anti-B são IgM que não atravessam a placenta e, por isso, não têm acesso às hemácias fetais. Além disso, as hemácias fetais têm menos locais antigênicos A e B do que as células adultas e são, assim, menos imunogênicas. Não há necessidade de monitoramento da gravidez nem justificativa para o parto antecipado.
· A doença ABO é invariavelmente muito mais leve do que a aloimunização D e raramente determina anemia significante. Os bebês afetados tipicamente apresentam anemia/icterícia neonatal que pode ser tratada com fototerapia (5% dos casos). Em conclusão, a aloimunização ABO é uma doença pediátrica e não merece maiores preocupações obstétricas.
· A aloimunização ABO pode comprometer gestações futuras, mas raramente é progressiva como a Rh. 
O critério usual para a hemólise neonatal por incompatibilidade ABO é: 
· Mãe do grupo O e feto A, B ou AB. 
· Icterícia que se desenvolve nas primeiras 24 h.
· Vários graus de anemia, com reticulocitose e esferocitose. 
· Teste de Coombs direto positivo, mas nem sempre.
· Exclusão de outras causas de hemólise no bebê.
· PREVENÇÃO
A imunoprofilaxia anti-D tornou a eritroblastose fetal determinada pela sensibilização ao antígeno D uma doença previnível, de modo que a mortalidade perinatal pela aloimunização demonstrou diminuição de 100 vezes. Todavia, mesmo nos países desenvolvidos (Reino Unido, Canadá), a aloimunização materna ainda persiste em 0,4:1.000 nascimentos, ou aproximadamente 1 a 2% das mulheres D-negativas, na maioria das vezes por falhas na profilaxia.
· Imunoglobulina anti-D
A imunoglobulina anti-D é um produto sanguíneo que contém títulos elevados de anticorpos que neutralizam o antígeno RhD das hemácias fetais e, assim, é efetiva na prevenção da aloimunização RhD. A via de administração usual é a intramuscular (IM). Após a administração da anti-D, o rastreamento para anticorpos apresenta resultado fracamente reativo, com título baixo. O anti-D atravessa a placenta e se liga às hemácias fetais, sem causar hemólise, anemia ou icterícia. 
As preparações canadenses não têm produzido infecções de origem sanguínea, como HIV, hepatites B e C. Reações adversas são raras e costumam ser leves, tais como inchaço local, dor de cabeça, calafrios. Também são pouco frequentes reações de hipersensibilidade – urticária, coceira, exantema maculopapular – que não resistem a antialérgicos. Embora seja muito rara a ocorrência de anafilaxia após o uso da IgG anti-D, recomendase ter à mão solução de epinefrina. 
Embora o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG) tenha publicado recomendações sobre a prevenção da DHPN, são mantidas aqui as da Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC), que acrescentam ao diagnóstico dados de grande valor.
· Profilaxia pós-parto
Se a mulher Rh-negativa não receber profilaxia IgG anti-D no pós-parto após o nascimento de bebê Rh-positivo, a incidência de sensibilização na vigência de nova gravidez será de 12 a 16%, em comparação com 1,6 a 1,9% se tiver havido a prevenção.
· Profilaxia anteparto
Sem a profilaxia antenatal anti-D, 1,6 a 1,9% das mulheres Rh-negativas tornam-se sensibilizadas. A profilaxia antenatal universal reduz a taxa de sensibilização durante a gravidez para 0,2%. 
Em pelo menos 50% dos casos, a sensibilização poderia ser evitada pela profilaxia anti-D de rotina com 28 semanas da gestação. Nesse sentido, está indicado no 1 o trimestre da gravidez o NIPT no sangue materno para a tipagem Rh do feto.
· Rastreamento sorológico antenatal
Todas as pacientes devem ser rastreadas na 1 a consulta pré-natal para anticorpos com o teste da antiglobulina indireta (teste de Coombs indireto), desde que 1,5 a 2,0% exibem anticorpos atípicos ou irregulares. Não há consenso sobre se o rastreamento deve ser repetido com 28 semanas para identificar o resultado de 0,18% que se aloimuniza após a consulta inaugural.
· TRATAMENTO
· Transfusão intravascular (TIV)
Historicamente, a transfusão intraperitoneal por controle fluoroscópico foi o tratamento de escolha durante quase 20 anos após ter sido introduzida por Liley em 1963.
As hemácias para TIV são do grupo O, Rh-negativas, citomegalovírus-negativas e coletadas nas últimas 72 h. O local ótimo de punção da veia umbilical é próximo da sua inserção na placenta; na impossibilidade, vale a punção em alça livre (Figura 39.18). Muitos utilizam agente curarizante para paralisar a movimentação fetal. Ao início da TIV, determina-se o hematócrito fetal e o valor < 30% (Hb < 10 g/dℓ) é indicação para o tratamento. A quantidade de sangue a ser transfundido depende desse hematócrito inicial, do peso estimado fetal e do hematócrito do doador. Se o sangue do doador tem hematócrito aproximado de 75%, o peso estimado fetal pela ultrassonografia pode ser multiplicado por 0,02 para determinar o valor de sangue a ser transfundido para atingir aumento no hematócrito de 10%. Procura-se atingir hematócrito final de 40 a 50%, e declínio de cerca de 1% por dia do hematócrito pode ser antecipado após a TIV.
· Fenobarbital 
A administração de fenobarbital oral à mãe (30 mg, 3 vezes/dia) pode ser considerada nos últimos 7 a 10 dias antes do parto com o objetivo de induzir a maturidade hepática e, por conseguinte, melhorar a conjugação da bilirrubina. 
O tratamento de pacientes com perdas recorrentes de 2º e de 3º trimestres é um grande problema. Cordocentese antes de 20 semanas da gestação está associada a elevada perda fetal. Opções terapêuticas são a transfusão intraperitoneal precoce (15 a 16 semanas), plasmaférese (3 procedimentos com 12 semanas) e imunoglobulina intravenosa (semanalmente até 20 semanas).
· Transfusão neonatal
A supressão da eritropoese não é incomum após diversas TIV. Esses fetos nascem com possível ausência de reticulócitos, com suas hemácias quase inteiramente constituídas de células do doador. Como as exanguinotransfusões raramente são necessárias, os anticorpos maternos passivamente adquiridos ficam na circulação neonatalpor semanas. Como consequência, durante o período de 1 a 3 meses o recémnascido pode necessitar de várias transfusões complementares. O hematócrito e a contagem de reticulócitos neonatais devem ser realizados semanalmente, e o hematócrito < 30% no bebê sintomático ou < 20% no assintomático é indicação de transfusão.
· Fototerapia
A molécula da bilirrubina, fotossensível, quando exposta à luz (radiação de 420 a 460 mÅ), transforma-se na atóxica biliverdina; esse achado possibilitou o emprego da superiluminação como recurso para o tratamento das hiperbilirrubinemias do recém-nascido. 
Em virtude da ação exclusiva sobre a bilirrubina, a fototerapia tem emprego menor no tratamento da DHPN, apenas coadjuvante. Na incompatibilidade ABO, a fototerapia reduz a necessidade de transfusão complementar.

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