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História da Filosofia Moderna Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Ms. Luciano Vieira Francisco Revisão Textual: Prof. Ms. Claudio Brites Iluminismo 5 · Iluminismo para inglês ver · “A revolução não será batizada” Nesta Unidade, contextualizaremos o movimento iluminista nas circunstâncias europeias, especificamente francesa, inglesa e alemã. Para que você aproveite ao máximo o estudo e aprenda de maneira significativa é importante tomar alguns cuidados: Em primeiro lugar, seja organizado(a). A disciplina em ensino a distância pode ser realizada em qualquer lugar que você tenha acesso à Internet e em qualquer horário. Dessa forma, normalmente com a correria do dia a dia, não nos organizamos e deixamos para o último momento o acesso ao estudo, o que implicará no não aprofundamento do material trabalhado, ou ainda, na perda dos prazos para o lançamento das atividades solicitadas ao longo da disciplina, atividades essas que constituirão sua nota final. Então, organize seus estudos de maneira que entrem na sua rotina. Por exemplo, você poderá escolher um dia ao longo da semana ou um determinado horário todos ou alguns dias e determiná-lo como o “momento do estudo desta disciplina”. Leia atentamente todo o conteúdo de cada Unidade, pois há indicações de materiais complementares que ampliarão sua interpretação e auxiliarão o entendimento do tema abordado. Iluminismo 6 Unidade: Iluminismo Contextualização O assunto tratado nesta Unidade serviu – talvez involuntariamente – como força intelectual para ações bem concretas quanto violentas relacionadas a, então vangloriada, Revolução Francesa de 1789. A partir de princípios liberalistas em Locke, Voltaire, ou discursos mais inflamados como de Diderot ou Rousseau, a população pegou em armas e levou a cabo a vida de outros, entre nobreza e realeza, além de, aproveitando o calor revolucionário, adversários políticos ou opiniões discordantes às atitudes radicais. Curioso, porém, é notar como atualmente a opinião pública valoriza os fins revolucionários franceses (como a deposição absolutista à força, ou a constituição de uma nova forma de Estado), desconsiderando os meios perversos para tal êxito. Assim, é tanto óbvia a provocação no parágrafo acima como a consciência de que esse não foi o último episódio de apropriação intelectual de uma ideia para a sua execução de forma distorcida e, comumente, brutal. Afinal, o mesmo ocorrera na apropriação nazista sobre certos postulados de Nietzsche, ou mais recentemente, nas atividades do “abominável” Estado Islâmico (EI) em sua “cruzada” sob os preceitos religiosos. Cabe então, no topo deste século XXI, refletir se os acontecimentos de um pouco mais de duzentos anos atrás teriam legitimado o que temos visto na imprensa ultimamente. Ou ainda – e talvez mais importante –, se as razões filosóficas usurpadas para os acontecimentos franceses são mais nobres que as religiosas islâmicas a ponto de legitimar-se aquele ato iluminista em detrimento da atual ação jihadista, ou se ambos são abomináveis. Mas se são, cabe pensar o que teria sido do Ocidente se o absolutismo francês não tivesse sido “degolado” pelo liberalismo burguês. Ainda que sem interrogações, certamente há aqui perguntas. Incertas, porém, são as respostas que eventualmente venham a ser dadas. 7 Iluminismo para inglês ver Embarquemos em nossa “máquina do tempo mental” para nos deslocarmos reflexivamente a fins do século XVII, mais precisamente à Inglaterra, onde seremos recebidos pelo notório filósofo Charles Gildon (1665-1724). Esse que, na primeira oportunidade de conversa – provavelmente durante uma refeição que nos servirá –, ao saber de nosso objetivo de pesquisa iluminista, estufará seus pulmões e nos afirmará sua opinião sobre esse movimento filosófico de livre pensar: Diálogo com o Autor [Do mesmo modo que Deus deu o instinto para servir de orientação aos animais], ele deu ao homem a razão, como regra suprema e pedra de toque, para examinar e escolher em benefício tanto do corpo como do espírito. A razão é a luz que ilumina as coisas que contribuem para nossa felicidade ou a ela se opõem. Sem ela, vagaríamos às cegas na escuridão e teríamos de atribuir ao puro acaso tudo o que nos acontece. É verdade que a razão não é suficiente para levar-nos ao perfeito conhecimento de todas as coisas, mas é capaz de nos dar os conhecimentos suficientes para nossa felicidade, mais do que precisamos deles. Não precisamos atingir a natureza íntima das coisas, mas, já que estamos predestinados a uma existência eterna, é preciso saber tornar essa eternidade feliz, uma vez que isto depende de nós. Ora, visto que um conhecimento desse tipo é absolutamente necessário, só posso obtê-lo por meio de nossa guia soberana, a razão. Portanto, sendo a razão a guia suprema e originária de cada homem, toda violação à sua liberdade de orientação significa uma violação ao estatuto basilar da natureza, quando não do direito específico de cada homem. Assim, os que se comportam dessa maneira são com razão rotulados de inimigos da humanidade (GILDON apud ROVIGHI, 2002, p. 297-298). O discurso de Gildon nos sugere uma sinopse do contexto em que desembarcamos, assim como caracteriza o ideal revolucionário envolvido e, claro, identifica os inimigos. Vejamos: Com o advento da perspectiva da razão humana como combustível que faz mover essa engrenagem que se chama humanidade – energia essa esquematizada principalmente pelos postulados racionalistas de Descartes –, a ideia de um possível operador (Deus, especialmente o cristão) ficou em condição de xeque, seja como existência – tão debatida até então – ou transcendência – “De onde viemos?” “O que fazemos aqui?” “Para onde vamos?” Consequente então que houvesse avaliações e julgamentos sobre o impacto e valor que teria esse novo paradigma de que a razão humana era, em verdade, o legítimo juiz do arbítrio, das ações e da moral do homem, sem qualquer submissão, doutrinação ou crença em um plano superior e além dos alcances físicos e reflexivos que o indivíduo obtinha. Até porque essa nova forma de pensar estava embasada pelas novidades científicas, especialmente de Newton, assim como engajamento filosófico libertário – fosse humanista, para apedrejar os estabelecimentos dogmáticos cristãos, fosse liberalista – faceta esta emblemática de nosso já conhecido John Locke – em atingir a zona de conforto de outra autoridade, essa política e (supostamente) absoluta que era cada rei “escolhido por Deus”. 8 Unidade: Iluminismo Glossário Entende-se nos dicionários e livros de História por absolutismo o sistema político de governo advindo da organização e ascensão burguesa ao longo da Idade Média e cujos dirigentes, chamados de reis, assumem poderes sem limitações ou restrições, dado que são alçados a tal título pela escolha e desejo divino, autodeterminando-se “representantes de Deus na Terra”, com anuência da igreja em troca de espaço e influência política. Diferente da representatividade folclórica que possuem as atuais realezas, como a inglesa e espanhola, no período contemplado nesta Unidade, tais reis e rainhas se enxergavam com poderes políticos beirando a sobre-humanidade, caso exemplar dos franceses Luís XIV (1638-1715), que se autointitulava “Rei Sol”, e de seu descendente, Luís XVI (1754-1793), cujo exagerado poder lhe fez “perder a cabeça”. Assim, esse período histórico que nos catapultamos é importante porque traz a semente que fecundou uma safra de pensadores e ideias radicais que eclodiriam (explodiriam mesmo em alguns lugares da Europa) em revoluções que mudaram mais uma vez nosso modo comum de pensar, mantendo-se em alguns aspectos até nosso nativo século XXI. Agradecendo então a hospitalidade e os ensinamentos de Gildon, despedimo-nos desse com a seguinte interpretação do que se propõe esse movimento nascente: Trocando Ideias A proposição filosófica do iluminismo ratifica a unicidade da razão, ou seja, dacapacidade racional humana como primeira (e para alguns pensadores, única) instância de julgamento da realidade e existência humana. Assim, não caberia mais submissão a explicações e governabilidade ditas “superiores”, fosse diretamente divina ou por supostos representantes terrenos de tal divindade. De modo que a consequência concreta dessa nova forma de pensar acarretou em um radicalismo sem precedentes, abalando os alicerces da igreja cristã e do Estado absolutista. Nota-se na sua fisionomia uma ponta de preocupação, talvez em pensar se fora boa ideia viajar para esse momento histórico em função do perigo que possa correr com esses insurgentes de uma revolução prestes a ser deflagrada. Fique tranquilo(a)! Afinal, estamos na Inglaterra, país que embora tenha fomentado diversos ideais em diferentes autores e teses, não teve nesse momento histórico nenhuma reviravolta de guerra, data sangrenta ou evento do gênero. Na verdade, os pensadores ingleses que contribuíram à maturação do racionalismo cartesiano o fizeram de forma esparsa, lenta, mas nem por isso menos consistente, haja vista que a Inglaterra foi uma das primeiras nações europeias que, além do antecipadíssimo processo de unificação – se comparado a países como Itália e Alemanha –, também foi quem amadureceu de forma rápida a transição do regime absolutista ao liberalista sem pomposas decapitações de “sangue azul” ou outras formas cruéis de deposição real. Tanto que, até a atualidade, esse país possui sua realeza “para inglês ver”, ou seja, figurativa e folclórica, apenas. Nesse panteão de pensadores ingleses há o congraçamento teológico de William Chillingworth (1602-1644) e John Hales (1584-1656), ambos com seu humanismo erasmiano, que, tomando a filosofia de Erasmo de Rotterdam, propunha o “livre exame” dos textos sagrados sem a sombra doutrinadora da igreja cristã; junto do conservadorismo 9 de Thomas Hobbes (1588-1679) – esse que de tão relevante e polêmico materialista, terá uma discussão apropriada em uma unidade futura –; e intermediado pela reticência reflexiva de Robert Boyle (1627-1691), representante daqueles pensadores que viam com reserva a transferência da responsabilidade existencial divina à razão do homem, ao questioná-la em função da finitude do intelecto humano, dada a debilidade que nos é característica e visivelmente manifestada em alguns dos conviventes desse pensador – assim como também notável em alguns de nossos contemporâneos. Mas foi Locke quem serviu de modelo ideal iluminista inglês, dada sua audaciosa faceta liberalista, formulada especialmente em seus escritos sobre tolerância. Não porque esse pensador acreditava radicalmente na razão como perspectiva ao desenvolvimento da humanidade em relação a paradigmas anteriores, mas porque juntava o poder dessa razão a outras crenças, como a experiência adquirida com o mundo exterior, já discutida em Unidade anterior e que, neste contexto, o fazia crer que a leitura da realidade não é única, uma vez que é percebida conforme a experiência de cada um e, em função disso, deveria ser harmonizada socialmente – tolerada –, sem o determinismo de que qualquer ponto de vista seja imposto de uma maneira, apenas, e não de outras. Foi propondo que a tolerância era uma questão política – e não religiosa – que Locke acendeu o pavio do discernimento entre essas duas esferas e como tais deveriam ser entendidas e administradas separadamente, cada qual com seu peso em autoridade na realidade concreta da humanidade. Em outras palavras, tratavam-se de dois entendimentos: um domínio da razão, que dizia respeito a uma organização civil organizada em comum acordo social; e o suprarracional, condizente à prática religiosa, essa que precisava ser optativa e libertária, porque dizia respeito à individualidade e buscas internas de cada ser. Figura 1 (ao lado) – Recepção a Guilherme príncipe de Orange, quem assumiu o trono inglês com a filha protestante do rei católico Jaime II, esse deposto na Revolução Gloriosa – ou Revolução Sem Sangue – de 1688. Trata- se de um exemplo prático do que propusera Locke: deposição do poder absoluto (e católico), constituído com o mínimo de violência deflagrada, resolvido no âmbito político em prol de um regime tolerante (aqui no aspecto religioso). Criticado pelo poder estabelecido, fora contra argumentada em outras teses, como o deísmo inglês de John Toland (1670-1722), Matthew Tindal (1657-1733) e outros pensadores, todos esses argumentado a concordância do religioso (cristão) com a razão, o que importa neste momento é que o pensamento lockeano foi exportado a outros pontos do continente europeu, de modo que suas releituras, assim como associações a novas teorias formuladas nesses outros pontos, criaram condições para tomadas não apenas de opinião, mas também de ações e revoluções – para aonde iremos, fazendo, porém, algumas escalas. Fonte: media.web.britannica.com 10 Unidade: Iluminismo “A revolução não será batizada” Enquanto a região que futuramente se tornaria a Alemanha quase que passou desapercebida nesse momento – o momento nobre da Filosofia alemã ainda estava em estágio embrionário –, em grande medida pela tardia tradução das obras inglesas e francesas, assim como pelo contexto político avesso – ainda desunificado – ao que se tinha em outros países absolutistas, cujo iluminismo fora esparsamente representado, em suma, por pensadores como Christian Thomasius (1655-1728), quem se dedicou ao combate retórico da escolástica e intelectualização doutrinária cristã; na Itália não fora diferente, mesmo com os primórdios de uma física galileana, ou do pensamento de Giambattista Vico (1668-1744), talvez pela sombra da sede cristã, quase nada de notável foi discutido no âmbito da razão iluminista, talvez e exceto pelo ímpeto do teólogo Antonio Genovesi (1712-1769), quem em suas aulas na Universidade de Nápoles – e em função das novidades racionalistas – defendia a liberdade do pensar, sem um ecletismo programático característico da escolástica. Última parada antes da aterrisagem na França iluminista, cabe ainda uma menção honrosa à realidade holandesa. País esse que, se havia desempenhado um importante papel libertário ao pensamento nos dois séculos anteriores, servindo de guarida a filósofos “malditos” como Descartes e Spinoza, além de inúmeros refugiados das diversas inquisições e agitações políticas, agregou à história do iluminismo a contribuição do francês Pierre Bayle (1647-1706), pensador cético tanto em relação à efetividade da metafísica cristã, quanto da capacidade da razão sem que a essa fosse estabelecido o pleno entendimento da moral. Ao questionar a lógica de um Deus onipresente e onipotente que deixava se multiplicar as instituições de castigo físico (prisões e miséria cometidas pelo Estado) e mental (hospícios e doutrinas de pecados inatistas geradas pela religião), também colocava sob juízo o postulado da evolução humana a partir da razão em meio ao convívio e aumento dessas mesmas penúrias que mais se alastravam. Ainda que não propusesse uma solução consistente para os problemas que formulara, os registros filosóficos de Bayle foram exportados à realidade francesa, aumentando ainda mais o nível de insatisfação intelectual e social, residindo aí sua grande contribuição aos livros de História e Filosofia. E assim chegamos ao nosso principal destino historio-turístico, a França absolutista de fins do século XVII e percurso do seguinte, governada “sob a luz” de Luís XIV, que mesmo repressivamente ofuscante, não contivera a circulação clandestina da tradução das publicações inglesas e holandesas, assim como de manuscritos propagandísticos e libertários – instigadores não apenas da revolta da miserabilidade daquele país, mas também fomentando uma geração de pensadores franceses igualmente perigosa. Talvez o primeiro desses sendo Bernard Le Bovier de Fontenelle (1657-1757), refutando a literatura cristã, causadora do “suplemento da razão”, ouseja, agente de um preconceito como mal fundamental do homem daquela época, no sentido de construir uma moral tão antiga quanto estranha às novas descobertas e realidades desvendadas pelo racionalismo e Ciência. Há nas entrelinhas dos registros desse pensador uma acusação de superação da visão cristã de mundo, ainda válida por conta da ignorância, preguiça ou leviandade intelectual daqueles que a amam pela “maravilhosa” narrativa contada de uma transcendência porvir e que justificaria esta existência de penúria. 11 Foi François Marie Arouet – mais conhecido como Voltaire (1694-1778) –, contudo, o grande divulgador na França das boas novas do liberalismo e da nascente Ciência, principalmente porque reportava tais aspectos da Inglaterra, onde se exilou por alguns anos após, maldito na França absolutista, ser encarcerado mais de uma vez na Bastilha, prisão que adiante a esse momento marcou o início revolucionário francês. Figura 2 (à esquerda) – Queda da Bastilha, de 14 de julho de 1789. Eis um suposto clímax do enfrentamento entre populares e forças da realeza com a mencionada prisão ao fundo que por duas vezes “hospedara” Voltaire e tantos outros pensadores e inimigos políticos. Encantado com as descobertas de Newton e com as propostas sociais e políticas de Locke, Voltaire escrevia contra a tirania, hipocrisia e crueldade que testemunhara na França, mas – e contraditoriamente ao que sofreu – acreditando que esse país poderia superar a fase absolutista e de suas instituições viciadas na centralidade de poder nos mesmos moldes liberalistas ingleses, ou seja, sem violência e em uma escalada controlada e racional. Todavia, a realidade inglesa em muito diferia da francesa e, provavelmente, do resto da Europa ocidental daquela época. Especificamente a realidade francesa era pintada por Luís XVI, um rei tão despótico quanto e incapaz de governar quanto fora Luís XIV. Além disso, Luís XVI era cerceado por uma corte que debochava da Lei que herdara, junto de uma igreja com exacerbado poder, utilizado para a perseguição da dissidência huguenote – seguidora do protestantismo calvinista –, tudo isso sob a “cereja nesse bolo estragado” que era a alta miserabilidade da plebe. Daí que atribuíram às ideias liberalistas de Voltaire, involuntariamente – pacifista que era, a ponto de mesmo não concordando com uma ou outra ideia, dizer que defenderia até a morte o direito dessa ser manifestada –, o apadrinhamento como uma das mentes revolucionárias que culminariam com a tomada da prisão que anteriormente o detivera e eclosão dos conflitos revolucionários e contrarrevolucionários consequentes. Importante frisar, porém, que declarados à causa aguerrida foram outros pensadores, caso de Denis Diderot (1713-1784), quem, além de filósofo, romancista e dramaturgo, encarregou-se de dirigir a enciclopédia francesa, obra inspirada na versão liberalista inglesa em que imprimiu sua visão antiautoritária, ou seja, mudando o modo como se pensava até então, por meio de um recurso absoluto na transmissão de conhecimento do período, a partir desse formato de obra de referência que se propõe a compilar todos os conhecimentos humanos. Cético, Diderot negava todo estabelecimento social como verdade inquestionável ao argumentar que o “primeiro passo para a Filosofia é a incredulidade”. Assim o fez em relação ao ensino religioso vigente como fonte de conhecimento ao reescrever à sua ótica conceitos da generalidade que uma publicação desse tipo abarca – enfrentando diretamente tais explicações religiosas sobre alguns estabelecimentos da realidade –, da mesma forma que a empregou como vitrine para os escritos de importantes e engajados pensadores da época, todos esses reunidos sob os princípios racionalistas, da nova Ciência, humanismo e tolerância liberalista, como Montesquieu, Voltaire e Rousseau. Fonte: Wikimedia Commons 12 Unidade: Iluminismo Acerca de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cabe à conclusão expositiva deste material teórico, pois foi o legado filosófico de Rousseau o principal alicerce do levante de 1789, cimentado nos princípios democráticos que sua origem suíça que lhes são tão característicos. Desapegado de uma cultura secular ou tentacular, teve mais arejada sua percepção pluricultural (ou para alguns, acultural), assim como, ao não ter acesso ao ensino formal, lapidou seu posicionamento crítico ao pensamento preestabelecido e de mero interesse conceitual. Ou seja, uma infância errante, envolvida de desapego familiar (perdera a mãe dias depois do próprio nascimento) e recorrente violência física e psicológica – características melhor discorridas quando conversarmos sobre o romantismo, movimento influenciado por esse pensador. Em meio ao ambiente pré-revolucionário em que estamos, no tocante a esse pensador, faz-se importante frisar três de suas ideias revolucionárias à época e as consequências revolucionárias que tiveram. A primeira diz respeito a afirmar que a sociedade não é boa, muito pelo contrário, é má. Note se tratar de opinião totalmente divergente da discussão sobre o estado natural, em que absolutistas argumentavam a necessidade de controle sobre a condição originalmente selvagem do homem, ao passo que liberalistas o faziam pelo avesso, advogando que, em comum acordo, esses selvagens se organizariam em um acordo social. Com tal afirmação, Rousseau ia na contra mão, afirmando que os humanos eram “bons selvagens” em sua condição original, mas corrompiam-se face aos vícios sociais e a necessidade instintiva de sobrevivência nesse meio – um comportamento que seria mais tarde batizado por Hegel de alienação. A consequência: sendo a sociedade nociva à maneira que estava engendrada, caberia à coletividade “quebrar tais grilhões” e, uma vez que não pode voltar à condição original e selvagem, tomar a liberdade tornando selvática a civilização. Em um exemplo prático e nas palavras do próprio: O primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer: “Isto é meu”, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém” (ROUSSEAU, 1999). Interprete isso em um contexto revolucionário – como o francês em que estamos visitando neste momento – e desejará “voltar para nosso presente” frente a tensão violenta que tal ideia pode provocar. O segundo aspecto se refere a reconhecer e valorizar os instintos naturais em detrimento da razão, ou seja, deve-se atender nosso julgamento emocional e não o racional. A consequência: no tocante à educação, tratava-se de, ao invés de reprimir e disciplinar (termo este na acepção militar), encorajar os pequenos a se expressarem sobre e como quiserem, em seio familiar, por meio da prática e oralidade, ou seja, sem intuições sociais ou instrumentos de assimilação de informação. Uma visão simpática aos princípios do conhecimento humano propostos por Locke, embora mais radicais que esses. 13 Você sabia? Essa “pedagogia libertária” proposta por Rousseau é tão atual quanto multifacetada. Pode ser comparada à pedagogia da autonomia há algumas décadas formulada por Paulo Freire – da mesma forma que a crítica de Rousseau é facilmente assemelhada à pedagogia do oprimido julgada por esse pensador brasileiro –, ou visões mesmo europeias e atuais, caso do inglês Ken Robinson, quando afirma, em: http://www.blog. metodologica.info/2011/04/ken-robinson-diz-que-as-escolas-acabam.html, que a atual instituição escolar acaba com a criatividade infantil. O terceiro e derradeiro aspecto enuncia que, estando então em nível societário, essa coletividade, por estar junta, torna-se um ser com vontade própria, que certamente é diferente das vontades individuaisou mesmo dos grupos favorecidos. Assim, uma vez que essa vontade geral (ou coletiva) é manifestada – “Quando o gigante acorda”, para puxar de nossa memória um jargão recente – essa será respeitada, ou por anuência ou por violência, diferente de Locke, por exemplo, que defendia o direito individual, mesmo frente à coletividade. A consequência: ainda que a proposição dessa tese para Rousseau dissesse respeito à condição de, juntos, deliberar a forma como viveríamos, tudo de forma “civilizada” (trocadilho proposital) como era comum em uma ágora grega ou cantão suíço de onde esse filósofo viera, e consciente de que – ainda assim – poder-se-ia tomar decisões equivocadas; o fato é que em um contexto como o absolutista francês do século XVIII, essa vontade geral não se manifestaria sem exigir sacrifícios dolorosos aos que se posicionassem discordantes. Daí que não é difícil projetar esse postulado como combustível aos corações e mentes revolucionárias francesas que atearam fogo, arrancaram cabeças e tomaram a força o poder que Deus havia outorgado ao décimo sexto Luís que sentara no trono francês, mesmo sob uma Declaração de Direitos do Homem que, escrita no ano da Revolução Francesa, professava que “todos os homens nascem livres e iguais de direitos”, ou seja, sob os preceitos da “liberdade, igualdade e fraternidade”, que ditas originalmente por Rousseau, caracterizam esse filósofo que, contraditoriamente, foi também o primeiro (e mais relevante) crítico desse próprio movimento iluminista, no tocante ao seu apelo contra a superioridade da razão, que acreditava ser menos relevante que os instintos. Mas o momento tarda para essa discussão e para a própria integridade desta nossa viagem mental – dado que os radicais jacobinos estão nos alcançando com suas foices e tochas – partiremos desse cenário para, seguros, retornarmos em nossa próxima Unidade e voltarmos a conversar com e sobre Rousseau, abordar sua faceta mais romântica, assim como outros filósofos igualmente, além de outros nacionalistas. Figura 3 – A Liberdade guiando o povo, de Eugène Delacroix, pintada em 1830 em comemoração à Revolução de Julho de 1830! Ora, por que então esta pintura é amplamente associada à Revolução de 1789? Porque trata-se do iluminismo, embora sobre seu fim, que corresponde a uma consecução de protestos e enfrentamentos civis contra o rei Carlos X em prol de ideais, agora sim, burgueses-liberalistas. Na verdade, a Revolução Francesa foi se descaracterizando nos anos seguintes até descarrilar com o Estado do terror (extremista) jacobino e o golpe Fonte: Wikimedia Commons http://www.blog.metodologica.info/2011/04/ken-robinson-diz-que-as-escolas-acabam.html http://www.blog.metodologica.info/2011/04/ken-robinson-diz-que-as-escolas-acabam.html 14 Unidade: Iluminismo napoleônico no 18 de Brumário do calendário revolucionário francês – ou 9 de novembro de 1799. Todavia, a Revolução de 1789 é homenageada nesta pintura no detalhe do barrete – vestuário típico do final do século XVIII – que cobre os cabelos dessa deusa e mulher do povo. 15 Material Complementar Não deixe de consultar as seguintes indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos: Para assistir: Anno 1790. Série televisiva sueca, é um drama policial situado na Estocolmo do final do século XVIII. O personagem principal, o médico Dåådh, é um homem simpático aos ideais iluministas e empolgado com a nova Ciência, contudo, vê-se envolvido em uma realidade controladora, cristã e absolutista, em que atua na investigação de casos de assassinato, usando de métodos pouco ortodoxos. Ao assistir, perceba como, tal qual a realidade francesa à época, edifícios em ruínas ficavam ao lado de mansões suntuosas; como prostitutas e mendigos caminhavam pelas mesmas ruas que comerciantes ricos e mulheres da nobreza e o efervescente embate entre abastados e miseráveis. O trailer está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nHgjFyPPKG8. Livros: Para ler: Um conto de duas cidades, de Charles Dickens, trata ao mesmo tempo da realidade da Inglaterra e da França revolucionária do século XVIII, onde as personagens viviam conflitos sociais em meio à germinação de movimentos que culminariam na Revolução Francesa. Atente-se à forma como Dickens mistura literatura com a memória histórica desses lugares. Sites: Para jogar: Filosofighters, proposta criativa e interativa da revista Superinteressante para associar os princípios filosóficos de dez famosos pensadores aos populares jogos de luta. No que diz respeito ao tema desta Unidade, a sugestão é escolher o pensador-lutador Jean-Jacques Rousseau. Além de conhecer as teorias dos outros nove pensadores-lutadores, é interessante notar/jogar os dois golpes de nosso filósofo: homem natural (cujo comando é para baixo, para a direita e botão C) e liberté (aplicado com o comando para a esquerda, para baixo, para a direita e botão C). Acesse: http://super.abril.com.br/multimidia/filosofighters-631063.shtml. https://www.youtube.com/watch?v=nHgjFyPPKG8 http://super.abril.com.br/multimidia/filosofighters-631063.shtml 16 Unidade: Iluminismo Referências DARNTON, Robert. O iluminismo como negócio: história da publicação da Encyclopédie, 1775-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. MAGGEE, Bryan. História da Filosofia. 2. ed. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 2000. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1999. ______. Discurso sobre a desigualdade. In: Obras. São Paulo: Abril, 1979. (Coleção Os Pensadores). ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel. Trad. Marcos Bagno e Silvana Cobucci Leite. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2002. SEVERINO, Antônio Joaquim. Filosofia. São Paulo: Cortez, 1993. (Col. Magistério 2º Grau; Série Formação Geral). VOLTAIRE. Cândido. São Paulo: Nova Alexandria, 1995. 17 Anotações
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