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OS CONCEITOS DE ESTADO NATURAL, ESTADO CIVIL E CONTRATO SOCIAL SEUNDO AS TEORIAS CONTRATUALISTAS DE HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU Renata Pedrolli Renz Universidade Estácio de Sá Graduação em Direito INTRODUÇÃO O contratualismo é um modelo teórico criado para explicar o surgimento da sociedade. Em linhas gerais, as teorias contratualistas consideram que a sociedade tem origem na livre manifestação de vontade dos sujeitos. Tem-se como base a ideia de que os seres humanos viviam em um estado de relações humanas livre de qualquer ordem social estruturada, um estado pré- social (estado de natureza). Em determinado momento, os homens sentem a necessidade de abandonar este estado de natureza inicial e decidem associar-se. Esta associação ocorre a partir de um contrato hipotético (contrato social) firmado entre as pessoas, num consenso, e através do qual reconhecem uma autoridade e um conjunto de regras, formando a sociedade (estado social). Desta forma, o surgimento da sociedade seria decorrente da vontade humana, fruto de sua liberdade natural, não havendo um impulso natural para isso, como defendido na teoria naturalista. Assim sendo, o contratualismo vai representar o abandono da liberdade natural e o surgimento da liberdade civil. Os principais defensores deste modelo, Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau - também conhecidos como jusnaturalistas por reconhecerem que os indivíduos possuem direitos naturais - defendiam que a formação do Estado se dava a partir contrato social (meio de socialização que expressava o consentimento racional de todos os participantes), e que a sua função seria a de reger um conjunto de regras gerais em nome deste grupo de indivíduos que cedeu sua liberdade natural para legitimar a atuação do Estado em nome de todos. Porém, as razões que induzem esta mudança de estado do homem, de passagem do “estado de natureza” inicial para a sociedade política, variam para cada defensor da corrente. CONTEXUALIZAÇÃO Thomas Hobbes (1588 – 1679) Em seu livro Leviatã, Hobbes afirma que a “natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito”. Esta igualdade entre os homens é independentemente da existência da sociedade civil, uma vez que este estado de natureza é aquele em que “os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito”. Esta condição de igualdade natural de direitos entre os indivíduos é tida como pressuposto de sua construção teórica (Gamba, 2019). Na perspectiva de Hobbes, pessimista quanto à natureza humana, o homem é um ser perverso, essencialmente egoísta e inclinado à agressividade. Guiado por sua tendência natural à violência, existiria no homem um desejo de destruição e de manter o domínio sobre o seu semelhante, o que resultaria em um constante estado de competição, estado de guerra de todos contra todos (GAMBA, 2019; SCALABRIN, 2017; CUNHA, 2018). Esta natureza perversa e egoísta tem sua origem no princípio de que o ser humano é guiado pela ideia do benefício próprio, pois “todo homem é desejoso do que é bom para ele, e foge do que lhe é mau”, existindo um impulso natural de autopreservação. Assim sendo, o objetivo humano primário não é o de se associar aos demais, mas de garantir sua sobrevivência e realizar seus desejos (GAMBA, 2019). Desta forma, inicialmente o homem viveria em um estágio primitivo no qual estaria em constante insegurança e temor. Isso porque, nesse estágio, qualquer um poderia tomar do outro, pela força, o que fosse do seu interesse, uma vez que os homens se encontram em uma condição de igualdade de direitos Com isto, nasce uma necessidade de superar esse estágio inicial e avançar para uma fase na qual possa existir segurança e paz. Esta fase somente poderia ser alcançada se os homens celebrassem um pacto de preservação, um contrato social, em que cada um concorda em abdicar da sua liberdade natural, do direito a tudo, e aceita o direito limitado à liberdade conferida a cada um (GAMBA, 2019; SCALABRIN, 2017). Ou seja, que houvesse a submissão de todos à vontade de um homem, que existisse um poder que estivesse acima dos homens individualmente para que o estado de guerra fosse controlado. Surge, assim, o estado social; um meio artificialmente arquitetado para a busca por sobrevivência, natural no ser humano; uma etapa de formação racional da sociedade, na qual o homem se engaja em manter a paz e a segurança (GAMBA, 2019; SCALABRIN, 2017; CUNHA, 2018). Todavia, em virtude da natureza perversa do homem, da fragilidade e ameaça permanente do estado de natureza, para a manutenção do estado social, a sociedade civil organizada é sempre dependente de um poder coercitivo capaz de manter o indivíduo dentro dos limites definidos no contrato social. Tem-se, então, o surgimento do Estado como manifestação real de poder (SCALABRIN, 2017). Desta forma, diante da relevância do papel do Estado, em que mesmo um governo ruim seria melhor do que o retorno ao estado de natureza, o poder do Estado não deveria sofrer limitações, sendo ilimitado. Do contrário, poderia surgir alguém disposto a julgar as ações do Estado, se tornando, então, o próprio detentor do poder pleno. Assim sendo, todos os indivíduos deviam total obediência ao Estado e em troca este, com um poder coercivo, lhes garantiria a paz (GAMBA, 2019; SCALABRIN, 2017). John Locke (1632 – 1704) O contratualista John Locke descreve o estado de natureza como desprovido de autoridade civil e norteado pela liberdade e igualdade. Há uma espécie de lei moral que guia o homem, estando a execução das leis da natureza nas mãos de todos os homens. Esta lei natural é provida de eficácia, uma vez que, em nome da humanidade, qualquer indivíduo ameaçado pode julgar o transgressor da lei natural e fazer-se executor da sentença. Tem- se, por consequência, a condição de igualdade existente neste estado, na medida em concebe o poder de jurisdição de cada indivíduo no que tange ao efetivo cumprimento das leis naturais, sem que haja um poder superior e imparcial. Neste estado, os homens eram dotados de razão e do direito natural de propriedade. O conceito de propriedade, em uma primeira definição, abrangia a vida, a liberdade e os bens. Posteriormente, o termo propriedade também faz referência aos frutos da terra que até então eram comuns e que se tornam propriedade individual por meio do trabalho. Para Locke, uma vez que Deus deu a terra aos homens para seu sustento, ela é um direito comum e natural a todos. Sendo assim, embora todos os frutos pertençam a todos, o consumo dos frutos disponíveis se converte em sua apropriação legítima, pois a ideia de pertencimento fica associada à condição natural de sobrevivência. Desta forma, a partir do trabalho do homem, o fruto passa ser utilizado para seu propósito (alimentação e sustento) de modo que nenhum outro homem pode alegar qualquer direito a tal alimento. Na visão lockeana, sem um poder superior e imparcial, os homens podem exagerar ou exorbitar o seu poder de jurisdição de acordo com os seus interesses, o que colocaria em risco o direito à propriedade. Neste sentido, o fundamento do pacto social surge da necessidade de existir uma instância acima do julgamento parcial de cada cidadão, um poder mediador ao qual todos devam estar submetidos. Assim, a ideia do contrato social representa a aceitação e validação do poder mediador do Estado para garantir a liberdade e o direito à propriedade dos indivíduos. A criação de um Estado como protetor das leis naturais, como constructo humano necessário para a proteção da propriedade e da liberdade. Com isto, Locke se afasta de qualquer visão paternalista ou absolutista de governo e centra-se em conceitos que viriam a ser pontos essenciais de toda codificação de viés liberal (GAMBA, 2019). Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778) Diferente de seus antecessores, Rousseau apresentava uma visão otimista da natureza humana. Acreditava que o mal não reside na naturezahumana, que o ser humano é naturalmente bom (um "bom selvagem"). Em seu estado natural, os seres humanos viveriam em harmonia entre si e com a natureza, como fazem os outros animais. Assim, o estado de natureza era um período pacífico (SCALABRIN, 2017). O mal, para Rousseau, estava nas estruturas sociais, responsáveis por corromper o homem, sobretudo com a legitimação da propriedade privada - responsável pelo surgimento de desigualdades entre os indivíduos e, consequentemente, um ambiente de tensão entre os possuidores e os não possuidores de propriedades. Desta forma, acreditava que a sociedade civil já era corrompida – posto que era fundada na desigualdade – e procurou não confundir o homem selvagem com os homens de hoje. Para ele, como o homem selvagem ainda não tinha “inventado” a propriedade, não poderia entender qualquer relação de pertencimento com exclusão dos demais; ou seja, não tinha, a ideia de algo seu em contraposição a algo não seu, do outro. Além disto, por não haver noção de propriedade, não poderia haver qualquer relação de dependência entre os homens. Neste estado natural, se não havia qualquer relação de propriedade firmada entre os frutos da terra e os humanos que dele usufruíam, tudo pertencia igualmente a todos sem que houvesse uma desigualdade que concedesse ao mais forte qualquer autoridade sobre o mais fraco. Assim sendo, o homem selvagem prezava apenas por suas reais necessidades e poderia saciá-las com os produtos da natureza. Entretanto, o advento da propriedade rompe no extremo limite do estado de natureza, transformando-o em estado de guerra na medida em que circunscreve o domínio de um homem sobre um pedaço da natureza. É a partir desta apropriação de terras, da sua necessidade de proteção e defesa de propriedade, que surge a tirania das relações sociais, na qual o proprietário mais forte sujeitará os demais homens e seus consequentes efeitos coercitivos. Como consequência, os menos hábeis ou menos violentos tornar-se-ão pobres e, aos não proprietários, não será mais possível o exercício da liberdade que desfrutavam no estado natural. Desta forma, tem-se a instauração da dependência humana, na qual ninguém mais pode viver sem a dependência dos outros, aumentando-se a dificuldade de viver e, progressivamente, aumentando-se as desigualdades. Devido esta constante guerra, não há mais segurança, surgindo o motivo humano motivo para união: assegurar a cada qual a posse do que lhe pertence (GAMBA, 2019). Para Rousseau, caso o homem se mantivesse no estado natural, em algum momento não teria força suficiente para fazer frente aos obstáculos para a sua própria conservação, posto que é um ser fraco (SCALABRIN, 2017). Assim, comunga esforços com os demais e firma-se um contrato social que estabeleça regras que obriguem a todos igualmente, cuja função torna-se reparadora. A sua instituição, na mesma medida em que promove a paz, legitima a propriedade, dando respaldo às desigualdades, pois permite que o Estado possa garantir a manutenção do direito à propriedade e a regulação de toda a sociedade. O direito civil passa a ser, como consequência desta situação, a regra comum dos povos, esvaindo-se o direito natural (GAMBA, 2019; SCALABRIN, 2017). Rousseau propõe que cada sujeito abdique completamente de todos os seus direitos em detrimento da comunidade. O homem perde a liberdade natural e o direito ilimitado a tudo quanto possa alcançar (a mera posse). Porém, é justamente em razão de o indivíduo estar inserido na comunidade, que todos os direitos abdicados ainda serão seus: a liberdade que antes era individual se tornou liberdade coletiva. Ou seja, o homem ganha a liberdade civil (limitada pela vontade geral) e a propriedade (com título) de tudo que possui (GAMBA, 2019; SCALABRIN, 2017). Cada indivíduo só existe enquanto partícipe de uma sociedade, sendo, portanto, parte indivisível do todo. Tem-se, assim, um corpo coletivo, cujo princípio de regência é a vontade geral, voltada ao bem comum (GAMBA, 2019). Assim, o Estado surge como uma ferramenta a serviço da sociedade, como executor da vontade geral extraída da sociedade, com o objetivo de que seja respeitada a vontade geral, voltada ao bem comum, e coibida a ação por interesses particulares. Dessa forma, o soberano não pode ser apenas um indivíduo, mas o corpo social como um todo (SCALABRIN, 2017). CONSIDERAÇÕES De forma geral, as teorias contratualistas apresentam-se muito mais como forma de justificar filosoficamente o Estado do que de explicar sua origem histórica, uma vez que poucos são os teóricos contratualistas que a apresentam como possibilidade histórica e não meramente hipotética como forma de apresentar a origem de fato da sociedade. Assim, ainda que apresente inegável valor filosófico e racional, a hipótese de trabalho da teoria contratualista parte de uma premissa não confirmada na prática (GAMBA, 2019, SCALABRIN, 2017). Entretanto, notadamente, as teorias contratualistas influenciaram diversos movimentos e constituições em todo mundo. Tais ideias marcam o início da modernidade na filosofia política, uma vez que passaram a substituir as teorias teológicas, por teorias racionais plenamente laicas. Como já dito anteriormente, apesar das distinções entre as teorias contratualistas, é possível determinar alguns pontos em comum entre elas, a saber: • Partem de um modelo teórico que propõe um estado de natureza, os seres humanos são compreendidos como livres e iguais; • Há o surgimento de alguns fatores que induzem os indivíduos a abandonarem o estado de liberdade natural e firmarem, de forma consensual, o contrato social; • O contrato é o meio para operacionalizar a transferência mútua de direitos - a liberdade natural é substituída pela liberdade civil; • É através do contrato social que se dá origem à sociedade; • O surgimento do Estado submete os indivíduos a um poder superior, que se manifesta através das leis que asseguram que as vontades de um não subjuguem as vontades do outro, visando a regulação das interações sociais. No quadro abaixo é apresentado um resumo destas diferenças. Quadro 1: Resumo comparativo entre as principais diferenças existentes nas teorias contratualistas abordadas. HOBBES LOCKE ROUSSEAU Natureza humana Pessimista, o homem é mau e egoísta. Tende ao neutro. O homem é bom, faz a guerra para defender a propriedade. Otimista, o homem é bom, mas a sociedade o corrompe (“o bom selvagem”). Estado de Natureza Ambiente de guerra de todos contra todos, situação de total insegurança, incerteza e temor. Sociedade de “paz e harmonia relativa”, domínio racional dos interesses. Propriedade é um direito natural. Advento da propriedade causa desigualdades. Homem é fraco sozinho. Dificuldade em satisfazer as necessidades. Objetivo do contrato social Preservar a vida (único direito natural do homem) Preservar a propriedade Preservar a liberdade civil Delegação do poder É imposta, há renúncia de direitos. É espontânea, o indivíduo dá ao Estado o poder de defender e tutelar seus direitos. É espontânea, cada um abdica de seus direitos em prol da comunidade. Estado civil Autoridade absoluta e soberana para manter a paz e garantir a sobrevivência da espécie. Absolutismo monárquico O instituidor político age por delegação (soberania reside no povo) para defender e tutelar os direitos naturais, e não pode entrar em contradição com os mesmos (poder pode ser revogado). Liberalista parlamentarista Materialização da vontade coletiva. Regulamenta a vida em sociedade através de leis universais. Democrata republicano CONCLUSÕES Dois dos importantes pontos a serem ressaltados a respeito das teorias contratualistas diz respeito direito à liberdade e à racionalidade dados ao homem. Sendo ele considerado livre por natureza, a organização da sociedade civil passa a ser considerada um imperativoda razão humana, independentemente do contexto que o induz a firmar o contrato social para sair do seu estado natural de direitos. É ele quem escolhe, por opção, a viver em sociedade por perceber racionalmente que isto é o melhor para ele. Ao se levar em consideração o contexto histórico vivido por cada um dos pensadores abordados, é possível traçar um paralelo mais aprofundado entre as suas teorias, sendo possível compreender, inclusive, as formas de governo que elas buscaram justificar. REFERÊNCIAS Gamba, João Roberto Gorini. Teoria geral do Estado e ciência política. São Paulo: Atlas, 2019. p. 72 a 90. Scalabrin, Felipe; Débora Sinflorio da Silva Melo. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: SAGAH, 2017. p. 16 a 18. Cunha, Paulo Ferreira da. Teoria geral do Estado e ciência política. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 49 a 52
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