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UNIVÁS - POUSO ALEGRE 2016 VICTOR HUGO SAMPAIO ALVES UM ESTUDO SIMBÓLICO-ARQUETÍPICO DA EDDA EM PROSA UNIVÁS - POUSO ALEGRE 2016 Victor Hugo Sampaio Alves UM ESTUDO SIMBÓLICO-ARQUETÍPICO DA EDDA EM PROSA Monografia apresentada como exigência parcial para a obtenção do título de Psicólogo pela UNIVÁS – Universidade do Vale do Sapucaí, orientada pelo Prof. Ms. Alessandro Caldonazzo Gomes. Alves, Victor Hugo Sampaio. Um estudo simbólico-arquetípico da Edda em Prosa. / Victor Hugo Sampaio Alves. - Registro: 2016. 194f.; 22 cm. Orientador: Ms.Alessandro Caldonazzo Gomes Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Psicologia) – Universidade do Vale do Sapucaí, 2016. 1. Psicologia Analítica. 2. Mitologia Nórdica. 3. Simbologia. . Universidade do Vale do Sapucaí. CDD VICTOR HUGO SAMPAIO ALVES UM ESTUDO SIMBÓLICO-ARQUETÍPICO DA EDDA EM PROSA Trabalho de conclusão de curso para obtenção do título de Psicólogo pela Universidade do Vale do Sapucaí. Orientado pelo Prof. Ms. Alessandro Caldonazzo Gomes. Aprovada em de de 2016. PROFESSOR ORIENTADOR: Prof. Ms. Alessandro Caldonazzo Gomes (UNIVÁS) BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. Marcos Antonio Batista. (UNIVÁS) Profª. Sandra Maria Garcia de Aquino. (UNIVÁS) A meu avô João Luiz, que compartilha comigo o amor pelas mitologias e narrativas do Homem e quem, desde que eu era pequeno, me apresentou um mundo que valia a pena ser vivido e conhecido. “Nem sequer teremos de correr os riscos da aventura sozinhos, pois os heróis de todos os tempos nos precederam; o labirinto é totalmente conhecido. Temos apenas de seguir o fio da trilha do herói. E ali onde pensávamos encontrar uma abominação, encontraremos uma divindade; onde pensávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos; onde pensávamos viajar para o exterior, atingiremos o centro da nossa própria existência; e onde pensávamos estar sozinhos, estaremos com o mundo inteiro.” Joseph Campbell MONOGRAFIA Alves, V.H.S. (2016). Um estudo simbólico-arquetípico da Edda em Prosa. Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Sapucaí-UNIVÁS, Pouso Alegre – MG. RESUMO Este estudo propôs analisar o primeiro capítulo da Edda em Prosa, chamado Gylfaginning, que se traduz por “O Embuste de Gylfi”. A Edda em Prosa é um material literário escrito em nórdico antigo pelo poeta e historiador islandês Snorri Sturluson, por volta do ano de 1220. Dividida em três partes, a obra detém como principal objetivo servir como manual de mitologia, já que as antigas metáforas poéticas e narrativas míticas do passado politeísta da Escandinávia estavam sendo esquecidas após a consolidação do cristianismo. Trata-se da estória do rei Gylfi, que viaja para Ásgarðr buscando um diálogo com os deuses; estes conseguem ver que o rei está a caminho e lhe preparam um embuste, ou seja, uma emboscada. Esta pesquisa qualitativa, investigativa e bibliográfica objetivou identificar certos padrões simbólicos que apontem para a perpetuação de símbolos do inconsciente no material mitológico em questão, além de investigar o modo como tais símbolos se manifestaram na cultura e mitologia nórdica especialmente. Em concordância com a psicologia analítica, concebeu-se que todo artista pode ter seu racionalismo e intenção consciente superados ao executar sua obra, principalmente ao trabalhar com materiais mitológicos. Desta forma, seria possível que o escritor revelasse em sua obra aspectos simbólicos que seriam frutos de um alinhamento de seu inconsciente coletivo com certos temas e arquétipos. Demonstrou-se que os símbolos e arquétipos do inconsciente coletivo se fazem presentes e são inscritos nas mitologias, encarnando lugares, heróis, deuses e bestas. Advindo deste último fato, ressaltou-se a importância, para o psicólogo, dos estudos envolvendo a mitologia, visto que é nela em que os povos dão vida aos símbolos presentes no inconsciente coletivo. Palavras-chave: Psicologia Analítica; Mitologia Nórdica; Simbologia; Arquétipos. MONOGRAPHY Alves, V.H.S. (2016). A symbolic-archetypical study of the Prose Edda. Monography presented to the Psychology Graduation Course, Vale do Sapucaí University-UNIVÁS, Pouso Alegre – MG. ABSTRACT The present study aimed to analyze Prose Edda’s first chapter, which is named Gylfaginning and translates to “The tricking of Gylfi”. The Prose Edda is a literary material written in Old Norse language by the Icelandic historiographer and poet Snorri Sturluson, around the year of 1220. Divided in three parts, this opus holds the objective to serve as a manual of mythology, considering that the old poetic metaphors and mythic narratives from Scandinavia’s polytheist past were about to be forgotten after the consolidation of Christianism. It tells the story of king Gylfi, who travels to Ásgarðr searching for a dialogue with the gods; however, they can foresee that the king is coming and so they prepare him a deception. This qualitative, investigative and bibliographic research aimed to identify certain symbolic patterns which pointed to the perpetuation of unconscious symbols in the mythic material, besides investigating the way these symbols were manifested in Norse culture and mythology specifically. According to analytical psychology, it was conceived that every artist may have his rationalism and conscientious intention surmounted when executing his work, mainly when dealing with mythological material. As a consequence, it would be possible that the writer revealed, in his work, symbolic aspects which would be fruits of an alignment of his collective subconscious with certain themes e archetypes. It was demonstrated that symbols and archetypes of the collective subconscious are presented and inscribed on mythologies, incarnating places, heroes, gods and beasts. As a result from this last fact, it was emphasized the importance for psychologists of studying mythology, taking into account that it is in mythology where peoples give life to symbols alive in their collective subconscious. Keywords: Analytical Psychology; Norse Mythology; Symbolism; Archetype. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................... 1 CAPÍTULO I: ENTREMEIOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA E A MITOLOGIA ............................................................................................... 5 I.I Psicologia Analítica e Mito ........................................................... 5 I.II Mito e oralidade ........................................................................... 9 I.III O autor segundo a Psicologia Analítica ..................................... 13 I.IV Os arquétipos ............................................................................. 17 I.V Os símbolos ................................................................................. 20 CAPÍTULO II: O GYLFAGINNING, A EDDA EM PROSA E SEU AUTOR. ........................................................................................................ 26 II.I A Edda em Prosa ......................................................................... 26 II.II SnorriSturluson.......................................................................... 30 II.III Resumo e tradução do material ................................................. 32 II. IV Tradução resumida do Prólogo ................................................. 33 II.V Tradução resumida do Gylfaginning .......................................... 38 CAPÍTULO III: SOBRE OS SÍMBOLOS E ARQUÉTIPOS NA EDDA EM PROSA. ........................................................................................................ 80 III. I A cosmogonia: Ginnungagap, Auðhumla e Ymir ..................... 80 III. II Muspellheim e Niflheim .......................................................... 87 III.III As moradas Asgard e Gimlé .................................................... 92 III.IV Bifrost ...................................................................................... 98 III.V Yggdrasil ................................................................................... 101 III.VI Odin ......................................................................................... 105 III.VII Hugin e Munin ....................................................................... 114 III.VIII Thor ....................................................................................... 116 III.IX Loki. ........................................................................................ 123 III.X Frigg .......................................................................................... 130 III.XI Freyja ....................................................................................... 134 III.XII Freyr. ...................................................................................... 142 III.XIII As Valquírias ........................................................................ 147 III.XIV Fenrir e Jörmungandr ........................................................... 150 III.XV O Ragnarök. ........................................................................... 156 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 160 REFERÊNCIAS. ......................................................................................... 168 ANEXO I. ...................................................................................................... 173 Glossário ............................................................................................. 173 ÍNDICE DE IMAGENS Imagem 1: Odin, por Rudolf Friedrich Reusch, 1865… ...................................... 111 Imagem 2: Tors strid med jättarna, por Marten Eskil Winge, 1872… ................ 121 Imagem 3: The punishment of Loki, por Doyle Penrose, 1890… ........................ 128 Imagem 4: Freyja, por James Doyle Penrose, 1890. ........................................... 138 . Imagem 5: Estátua de Freyr na Islândia ............................................................... 144 Imagem 6: Uroboros. ............................................................................................ 152 Imagem 7: Asgardsrein, por Peter Nicolai Arbo, 1872. ....................................... 157 1 INTRODUÇÃO Apesar da Escandinávia Medieval e a Era Viking praticamente não serem mencionadas durante o ensino de História nos níveis fundamental e médio, e da imagem popularizada e estereotipada – e, em última instância, anacrônica e fantasiosa 1 - dos Vikings continuar circulando no imaginário popular, os Vikings tem voltado a receber nossa atenção nos tempos atuais. Os principais sentidos que circulam acerca deste povo ainda são aqueles, já relativamente antigos, que os caracterizam e pintam sua imagem como guerreiros bárbaros sedentos de sangue, brutos, invasores, carniceiros, primitivos e truculentos. O próprio movimento midiático da grande massa passa, atualmente, por um resgate desta figura Viking. Temos, por exemplo, o deus Thor enquanto super-herói da Marvel, presente em várias HQ’s (histórias em quadrinhos). Aliás, já existem dois filmes dedicados exclusivamente às aventuras deste super-herói, aventuras essas que, inclusive, retratam outros deuses do mundo nórdico e os integram à trama: Loki, Heimdall e Odin. Além disso, o sucesso da série Vikings, produzida pelo History Channel, demonstra não só um crescente interesse por esse povo, mas também um novo olhar a respeito dos mesmos. Mesmo com seus anacronismos e inexatidões, a série foi em certo aspecto pioneira ao trazer para o telespectador uma nova perspectiva sobre os Vikings, considerando que ela é narrada de seu ponto de vista, e não do ponto de vista de quem foi por eles invadido, geralmente com foco nos ingleses e franceses, como era de costume. Mais especificamente no mundo acadêmico, o interesse sobre a sociedade Viking também tem ressurgido de maneira relevante. Como se sabe nos dias de hoje, os 1 A respeito das origens e perpetuações de estereótipos sobre os Vikings, recomendamos a leitura dos artigos Os Vikings e o estereótipo dos bárbaros no ensino de História e Fúria odínica: a criação da imagem oitocentista sobre os Vikings, ambos pelo Prof.Johnni Langer. 2 Vikings praticavam uma religião politeísta de complexa mitologia, e, dessa forma, tanto suas narrativas mitológicas quanto seu pensamento e comportamento religioso e seus ritos, que incluíam até mesmo sua magia típica, chamada seiðr, tem sido objetos de estudo de historiadores, arqueólogos, filósofos, tradutores e cientistas da religião. Os psicólogos têm se mantido afastados desse debate, e o presente estudo constitui um primeiro esforço para trazer a ótica da psicologia direcionada a esse objeto de estudo. Especificamente no Brasil, existe o grupo acadêmico multidisciplinar e interinstitucional, chamado Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (NEVE), cujos membros dedicam-se ao estudo da religião, cultura, literatura e mitologia da Escandinávia Medieval. O grupo, além disso, mantém um boletim de notícias, o Notícias Asgardianas, onde publicam e disponibilizam suas produções. Há, também, o periódico do grupo Brathair, que foca-se nos estudos celtas e germânicos, trazendo, por vezes, algumas publicações envolvendo a Escandinávia da Era Viking. Por mais que ainda haja muito a ser feito, o momento, enfim, não poderia ser melhor para que se fale dos Vikings. A presente monografia visa investigar uma parte da mitologia nórdica utilizando-se, como fonte primária e como corpus do estudo, a Edda em Prosa. Este material literário foi escrito e compilado pelo monge, historiador e poeta islandês Snorri Sturluson, por volta do ano de 1.220 D.C. A Edda em Prosa trata- se de um manual de técnicas poéticas que ilustra as ferramentas a serem usadas pelos escaldos – os poetas da Escandinávia Medieval -. Portanto, além de oferecer as técnicas que poderiam ser usadas na composição de poemas, a Edda em Prosa também disponibilizava um conteúdo sobre o qual os escaldos poderiam versar a respeito: este conteúdo era justamente um apanhado mitológico contendo várias das principais narrativas mitológicas que circulavam na oralidade da Escandinávia pagã. Dessa forma, o objetivo desta monografia é realizar um estudo dos símbolos e arquétipos presentes neste sistema mitológico e que tenham possivelmente sido 3 registrados na Edda em Prosa. Não pretendemos com este estudo esgotar os temas, símbolos, motivos e arquétipos presentes na mitologia Viking: tal trabalho teria proporções quase inesgotáveis e consistiria numa pretensão irrealizável. Nos ateremos, então, aos símbolos que se fizeram mais presentes ao longo da obra, tanto em questão de presença quanto de profundidade e importância atribuída a eles nesta fonte especificamente. Assim, já que certos símbolos se fizeram mais presentes e potentes nesta obra do que alguns outros que parecem ter sido, por algummotivo, meramente compilados e mencionados, partiremos do princípio que os primeiros possuíam realmente maior importância e presença no sistema mitológico e religioso da Escandinávia politeísta e que também, no momento da escrita, se fizeram mais presentes na mente do autor, seja consciente ou inconscientemente. Portanto, esta pesquisa de cunho investigativo e qualitativo adotará como ferramenta de análise a psicologia analítica, que oferecerá uma leitura simbólica e arquetípica do material a ser investigado. Partindo da conceituação de Jung no que concerne símbolos e arquétipos, buscaremos por estes elementos na obra para debruçarmo-nos sobre eles, amplificando-os em seguida. Em um primeiro momento analisaremos os sentidos, interpretações e cargas afetivas atribuídas aos símbolos e arquétipos, pensando sua ocorrência dentro de seu contexto cultural, social e histórico, ou seja, a Escandinávia Medieval. Em seguida, amplificaremos brevemente o significado de cada símbolo, buscando por análises e interpretações mais universais e que permitam correlacioná-lo com sua ocorrência simbólica em outros lugares, culturas e momentos históricos, numa tentativa de apontar justamente para uma presença de tais conteúdos no inconsciente coletivo, mas que adotam diferentes roupagens de acordo com sua cultura e momento histórico. No primeiro capítulo ofereceremos algumas definições e conceituações nas quais esta monografia se baseia para realizar a análise. Portanto, começaremos 4 explicitando a relação entre psicologia analítica e mito, partindo, em seguida, para algumas questões envolvendo mito e oralidade – visto que os conteúdos presentes na Edda em Prosa circulavam, a princípio, em formato oral na Escandinávia -. Depois, ofereceremos algumas conceituações e breves discussões a respeito dos arquétipos e símbolos, que constituem as principais unidades a serem analisadas por este trabalho. Por último, lançaremos mão de uma pequena explicação a respeito da maneira como a psicologia analítica enxerga o autor em seu relacionamento com sua obra, incluindo o processo de sua produção. Na sequência, disponibilizamos, no segundo capítulo, algumas introduções e maiores explicações sobre o material que analisaremos. Abordaremos algumas questões envolvendo a Edda em Prosa, como, por exemplo, seu contexto sócio-histórico de criação e outras fontes literárias da Escandinávia Medieval que influenciaram no momento de registro do seu conteúdo. Será feita, também, maior contextualização a respeito de Snorri Sturluson, o autor e compilador da obra em questão. Uma vez discutidas estas duas questões, consta uma tradução resumida do conteúdo que será analisado nesta monografia. No caso, disponilizamos a tradução resumida do Prólogo e do primeiro capítulo da Edda em Prosa, o Gylfaginning. O terceiro capítulo trata-se da análise do conteúdo e discussão dos dados. Para melhor organização da análise, dividimos esta parte em vários subcapítulos, organizados conforme o símbolo/arquétipo a ser discutido. Desta forma consta, por exemplo, um subcapítulo para discussão do deus Odin, outro para discutir o mito cosmogônico, um outro para discutir a deusa Frigg, etc. Por fim, uma vez esgotado este capítulo de análise, ofereceremos algumas considerações finais sobre o estudo feito. Visto a grande quantidade de nomes que este material traz, há um glossário com nomes de deuses, criaturas e lugares ao qual o leitor pode recorrer quando julgar necessário. 5 CAPÍTULO I: ENTREMEIOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA E A MITOLOGIA I.I Psicologia Analítica e Mito Entre os principais interesses da Psicologia Analítica figura aquele de que se investigue, fora os aspectos relacionais, afetivos e sociais dos indivíduos, duas importantes características psíquicas que carregam todas estas outras. Tais características encontram-se em constante e mútuo envolvimento, sendo, portanto, objeto de estudo e intervenção da Psicologia Analítica: a primeira seriam as regências psíquicas, que atuam como representantes das atividades da consciência; a segunda seria o seu modus operandi, ou seja, suas estruturas relacionais e suas estruturas de sabedoria profunda. A forma como as pessoas percebem e apreendem a realidade, seguida pela forma como avaliam ou julgam os conteúdos apreendidos dependerá destes dois pressupostos, que são inerentes às suas próprias psiques (Alvarenga, 2007). Esses pressupostos psíquicos são vivenciados pelo indivíduo e explicitados e traduzidos, para a psicologia analítica, por estruturas arquetípicas que são expressas pelas imagens das divindades. Assim sendo, segundo Alvarenga (2007), pode-se dizer que uma pessoa terá sua expressão de psique regulada em função da relação estabelecida por ela com o mundo, assim como em função da apreensão da realidade configurada, da avaliação atribuída por ela ao que foi apreendido e de seu modus operandi ativado. A leitura simbólica feita dessas emergências primordiais, ou melhor, dessas imagens arquetípicas, se amplia ao entendermos que cada um dos personagens míticos traduz e representa uma das possibilidades de humanização do indivíduo. Em outras palavras: 6 O arquétipo, ao estruturar a consciência, o fará segundo perfis existenciais que estarão em conformidade com uma ou mais variantes dos mitologemas que compõem o mito dessas divindades. As demais imagens arquetípicas, consideradas desdobramentos, ou duplos, ou hipóstases da mesma realidade arquetípica primordial poderão se atualizar no mesmo ser humano, em diferentes momentos sincrônicos de sua existência (Alvarenga, 2007, p.22). Hipóstase, por sua vez, é um conceito que se refere à natureza ou instância particular de um objeto do conhecimento. O pressuposto de que parte Alvarenga (2007), então, é o de que, para a Psicologia Analítica, os arquétipos, ao estruturarem a consciência, oferecerão caminhos de humanização ao indivíduo, caminhos esses que serão mais bem compreendidos quando enriquecidos pelas amplificações encontradas, por exemplo, na mítica de cada divindade. O arquétipo, quando realiza seu caminho de humanização, acaba por estruturar a consciência por meio de uma série de emergências simbólicas, até o momento em que segue por uma ou outra variante mítica dentro de um ramo de opções. Estas opções do caminho de humanização terão maior ou menor poder criativo de acordo com as correlações metafóricas que existam em um ou mais dos seus mitologemas. Mitologema, por sua vez, é um complexo de material mítico que, por um motivo ou outro, é continuamente revisitado, encarnado e reorganizado ao longo da história psicológica e social da humanidade. Em outras palavras, os mitologemas são elementos ou temas isolados que se fazem presentes em qualquer mito como, por exemplo, o mito da ascensão e da queda, o mito do herói, o mito da busca e assim por diante (Hollis, 2005). Já o conceito mito será entendido aqui como forma de explicar o mundo e o homem de um modo não-lógico, apresentando-se como categoria de forma primordial 7 de explicar a realidade de ser e estar no mundo. Devido ao seu caráter não-lógico, as explicações míticas costumam ser compreendidas, para a Psicologia Analítica, como decorrentes de um entendimento vindo, possivelmente, do universo inconsciente (Alvarenga, 2007). Segundo o Dicionário Junguiano (2002), o mito é considerado por Jung como uma forma autônoma de pensamento e de organização cognitiva do mundo, paralela a uma organização mantida também pela função sentimento. Trata-se de uma expressão do enigma que está no fundo da vida, sendo, portanto, entendido como aquilo que tenta evidenciar, na linguagem cifrada de seus simbolismos, aquilo que o homem enquanto tal espera de si e do mundo. É importante que se ressalte também que, para Jung, o mito não é uma forma secundária subordinada em relaçãoao pensamento racional – como alegam os positivistas - mas sim uma forma autônoma do pensar. Ao notar-se, então, que esses temas míticos eram dotados da capacidade de se repetir, se reeditar e se re-significar em diferentes períodos históricos e entre os mais distintos povos fez com que eles fossem considerados como expressões objetivas das estruturas primordiais psíquicas, qualificadas posteriormente por Jung como os arquétipos. Também foi essa ocorrência supostamente universal dos mitos – atuando como estruturas primárias da psique – que possibilitou a elaboração, por parte de Jung, do conceito de inconsciente coletivo (Alvarenga, 2007). A respeito do inconsciente coletivo, o Dicionário Junguiano (2002) nos traz a informação de que ele é, na verdade, uma propriedade do que Jung definiu como inconsciente absoluto. Este último era: Uma formulação particular do conceito de inconsciente do qual derivam a teoria sobre a natureza arquetípica de certas representações psíquicas, a teorização das invariáveis da imaginação inconsciente coletiva e as pesquisas junguianas sobre 8 os simbolismos, que constituem o patrimônio histórico-cultural de comunidades mais ou menos amplas ou da sociedade inteira (Pieri, 2002, p.245). Este inconsciente é do tipo formal, ou seja, é uma estrutura inerente à forma dos conteúdos psíquicos, sendo, assim, essencial aos mesmos, pois é ele que permite a formação das representações singulares, tornando possível sua estruturação. Outra característica importante é o fato de que esse inconsciente absoluto é impessoal e coletivo, no sentido de que suas características formais supracitadas não são individuais, mas de caráter universal. Ele também é uniforme, já que se trata de uma estrutura fundamentalmente repetível, ou seja, é quase constante e imutável, sendo também congênito, no sentido de patrimônio psíquico pré-formado em todos os indivíduos, atuando como dispositivo intrínseco (Pieri, 2002). Outras características do inconsciente absoluto, e que talvez se ressaltem mais para o objetivo proposto por este estudo, é seu caráter arcaico-mitológico. Estas seriam as “informações” circulantes e que permeiam suas estruturas, verificáveis sobretudo na linguagem típica do mito e da psicologia “primitiva”. Como conseqüência, segundo Pieri (2002), o inconsciente absoluto acaba por ser, também, numinoso, no significado essencial de experiência de uma energia dinâmica que capta e domina a subjetividade. Portanto, pode-se dizer que são dois os conjuntos que formam o inconsciente absoluto. Um é o conjunto dos instintos, noção que engloba o impulso finalístico dirigido a comportamentos especificamente humanos. O segundo é o conjunto dos arquétipos, que englobam a noção de um inconsciente descrito como sistema vivo de possibilidades de manifestações também especificamente humanas, mas, neste caso, dirigidas à percepção, à cognição e à experiência de si e do mundo (Pieri, 2002). 9 I.II Mito e Oralidade É impossível investigar as questões em torno do mito ou da mitologia sem que se mencione, mesmo que brevemente, seu caráter primeiro: a oralidade. Originalmente, grande parte dos estudos de literatura oral - sobretudo a parte da antropologia que se preocupava com a análise dos mitos de povos específicos - dava enfoque aos textos fixos e seus conteúdos, que, para os estudiosos, eram tidos como portadores de informações sobre uma cultura particular, a sua linguagem, psicologia e mentalidade primitivas (Langdon, 1999). A tradição de se estudar os mitos e o folclore dos povos por meio das narrativas por eles produzidas, mesmo que de caráter oral, data de muito tempo atrás. Langdon (1999) ilustra essa característica tomando por exemplo os Irmãos Grimm, que, no fim dos anos 700, colheram e compilaram uma série de contos de fadas e fábulas que circulavam oralmente na região da Alemanha, numa tentativa não só de preservá-las, mas também de usá-las como parte integrante de suas investigações comparativas e históricas que visavam descobrir as relações entre as línguas Indo-Européias. Ao serem transformados da oralidade para o formato escrito, os conteúdos oriundos dessas narrativas presentes nas sociedades têm sido classificados em diferentes gêneros analíticos que se distinguem uns dos outros, tais como mitos, lendas, contos de fada e história oral. Essa divisão e categorização das narrativas orais, conforme enfatiza Bascom (1984) citado por Langdon (1999), se embasava em critérios éticos de pares de oposições, como temporal/atemporal, veracidade/não-veracidade e sagrado/profano. Levando-se em conta que a escrita constitui sempre um registro adicional à fala, é de se esperar que seu surgimento cause, necessariamente, uma profunda influência na mesma. Segundo Goody (2012), a partir daí, dessa coexistência dos dois sistemas de comunicação, a fala nunca voltará a ser a mesma coisa que era quando estava sozinha. É 10 necessário, então, tomar cuidado para que não se caia na ingenuidade de considerar a literatura escrita como uma simples questão de registrar e escrever o que já existe; um mito (ou história) é sempre modificado ao ser “transcrito”, passando a ocupar seu lugar entre um conjunto de novos gêneros. Esses gêneros que surgem advindos de tal transformação nem sempre recebem designações separadas nas linguagens locais da sociedade em que circulam, apesar de serem distinguidos, na prática acadêmica, de acordo com as diferenças em sua forma, conteúdo e função, diferenças relacionadas, sobretudo, ao público a quem são destinadas. Portanto, devemos ter em mente que, “em qualquer literatura, é importante considerar não somente o orador, mas também o público e o contexto situacional” (Goody, 2012, p.48). No caso específico do mito, o consideramos uma forma de literatura oral cuja principal característica – e também aquela que o diferencia das outras formas de literatura oral – é seu sujeito parcialmente cosmológico. Considerados em seu sentido mais restrito, Goody (2012) explica que os mitos são as próprias recitações de um povo ao redor de um tema cosmológico, como, por exemplo, os mitos sobre a origem ou sobre a criação. Essa percepção acerca da utilidade dos mitos supera a antiga ideia de que os mesmos possuíam função meramente explicativa dos fenômenos naturais, posicionando-o como o mais localizado e específico dos gêneros orais, sobretudo como o mais engastado em ações culturais como, por exemplo, quando são recitados em contextos cerimoniais. Ainda segundo as ideias do autor, “por definição, a mitologia como uma visão de mundo lida com deuses, divindades e agências sobrenaturais em seu relacionamento – seja distante ou próximo – com a humanidade” (Goody, 2012, p.55). Quando se fala em mitos sendo passados da oralidade à narrativa escrita, surgem, conforme vimos, problemáticas inerentes a tal transformação. Visto que a oralidade é o contexto básico não só de criação, mas também de perpetuação das estruturas míticas, há que se perguntar se a literatura é capaz de oferecer um suporte 11 pleno para que esse material mítico e seus sentidos circulem fielmente, o que levanta, conforme apontado por Langer (2006), a seguinte indagação: os sistemas de linguagem registrada afetam o sentido original dos mitos? No caso específico da mitologia Viking, Langer (2006) também questiona se suas fontes literárias, escritas após a conversão ao cristianismo, podem ser considerados testemunhos diretos dos tempos pagãos. Pensando no caso mais específico da mitologia Viking, ressaltemos as duas fontes primárias mais importantes de seus conteúdos míticos, que são as Eddas. A Edda Poética era uma coletânea de poemas anônimos reunidos de várias partes da Escandinávia, datados originalmente entre os séculos IX a XII d.C. Em termos estruturais, apresenta um caráter não uniforme e relativamenteflexível, o que, segundo Langer (2006) era típico dos skålds (escaldos, os poetas da Escandinávia Medieval), que adotavam uma técnica de rememoração construtiva das narrativas orais, narrativas essas que eram entendidas e bem aceitas pelas comunidades a que se destinavam as recitações de tais poemas. Quanto à Edda em Prosa, supostamente escrita pelo islandês Snorri Sturluson em 1221 d.C e que será objeto de análise desta tese, nota-se uma estrutura totalmente coerente e ordenada das narrativas mitológicas, fato que Langer (2006) atribui não somente à influência do referencial cristão e civilizador do escritor, mas também ao maior tempo de penetração da escrita latina na sociedade escandinava, que interferia drasticamente nas formas de se ordenar e transmitir os antigos mitos. Portanto, segundo Langer (2006), as narrativas de ambas as Eddas foram preservadas pelos cristãos, mas refletem diferentes momentos de mudança das narrativas orais para o registro escrito. Dessa forma, a Edda Poética consiste em um conjunto muito menos uniforme, já que foi compilada ainda no período inicial do advento do cristianismo e da escrita latina na Escandinávia e, assim, apresentava ainda vivas as variações narrativas da cultura oral. Já a Edda em Prosa apresentava algumas 12 diferenças nesses aspectos, sobretudo, conforme mencionado, devido ao caráter tardio de sua escrita, momento em que cristianismo e letramento já haviam sido mais consolidados em solo Escandinavo: A extrema racionalização da obra de Sturluson foi devido a outro momento desse processo, já quase definitivo em termos de impacto social, ordenamento e alfabetização – as narrativas um estado mais unificado, fixo e controlado tanto pela Igreja quanto pelos intelectuais (Langer, 2006, p. 54). Em comparação com a Edda Poética, pode-se dizer, então, que a Edda de Snorri se distancia, de certa forma, de um mero relato vivo da mitologia nórdica, apresentando um conjunto narrativo mais unificado e racionalizado, produto que denota as influências do contexto social de sua produção. Afinal, como enfatizado por Jonsson (1991) a respeito da poesia oral, é natural que ela mantenha sua característica de oralidade ao ser transmitida, motivo pelo qual é raramente passada para a escrita sem que aja alguma incitação de fins intelectuais ou racionalistas. 13 I.III O autor segundo a Psicologia Analítica Jung chegou a debruçar-se sobre o fenômeno da literatura ao explicar que, como psicólogo, a força imagística da poesia -embora pertencente ao campo da estética- lhe interessava. Segundo ele, essa força imagística é também um fenômeno psíquico, e, como tal, deve ser considerada também pelo psicólogo (Jung, 2013). A alma, como mãe de toda ciência e paralelamente vaso matricial da criação artística poderia oferecer, às ciências da alma, que elas pudessem ajudar no tocante ao estudo da estrutura psicológica de uma obra de arte, e, por outro, explicar as circunstâncias psicológicas do homem criador. Estas duas tarefas, no entanto, são diferentes em essência. Ao ser investigada pela psicologia (desde que o material para tal esteja disponível), a psicologia pessoal do criador revela certos traços em sua obra, mas não a explica. O estado atual da psicologia não permite de forma alguma que se estabeleça, no campo dos trabalhos literários, encadeamentos exatos de causa e efeito. No entanto, ela é capaz de revelar certos encadeamentos causais estritos no domínio psicológico, fornecendo descrições pormenorizadas dos acontecimentos psíquicos relacionados aos complexos e arquétipos (Jung, 2013). Na obra de caráter literário a descrição dada pelo autor sobre os fatos que pretende narrar, ainda que possa parecer alheia a qualquer intenção psicológica, é do maior interesse para o psicólogo. Afinal, toda a narração se edifica sobre um pano de fundo psicológico inexpresso e o olhar crítico irá distinguí-lo com tanto maior pureza e clareza quanto mais o autor estiver inconsciente de seus pressupostos. Um cuidado a ser tomado, conforme explicita Jung (2013), é que, no que diz respeito à obra de arte, ela nunca deve ser confundida com aquilo que seu poeta tem de pessoal, por mais que sua obra esteja, certamente, permeada de pessoalidade. É indubitável, diz ele, que a visão do poeta seja uma vivência originária autêntica, apesar de qualquer (tentativa de) 14 racionalismo vinda de si. A obra, portanto, não é algo de derivado, nem de secundário, e muito menos um mero sintoma; é um símbolo real, a expressão de uma essencialidade desconhecida (Jung, 2013). Uma das categorias em que esse racionalismo é superado por tendências inconscientes de manifestação simbólica é o uso de figuras mitológicas como expressões da experiência íntima do autor (Jung, 2013). Mesmo os autores que se esforçaram por compilar e registrar materiais mitológicos pertencentes ao seu contexto histórico-social – mesmo que estes estivessem num passado histórico, antes do autor propriamente dito estar vivo – podem ter revelado lapsos do inconsciente em sua obra: um alinhamento ou identificação de seu inconsciente com certos símbolos arquetípicos pode ter feito com que, ao escrever os mitos reunidos, acabasse por enfatizá-los em detalhes, por exemplo. O poeta acaba por criar, conforme afirma Jung (2013), a partir da vivência originária - cuja natureza obscura necessita das figuras mitológicas – essa busca ávida pelos símbolos e temas que lhe são afins para, então, exprimir-se por meio deles. Esta vivência originária é um pressentimento profundo e poderoso que quer expressar-se, é um símbolo vivo, um turbilhão que se apodera de tudo o que se lhe oferece, imprimindo-lhe uma forma visível. Nesta relação, tanto mais fortes sejam esses símbolos internos, tanto mais força fará o inconsciente para esvaí-los em expressões externas. Para Jung (2013), o papel da psicologia poderá ser, então, o de elucidar a essência dessa manifestação múltipla de pessoalidade (consciente) e essencialidade (inconsciente), principalmente através da terminologia e de materiais comparativos. O que aparece na visão é muitas vezes, com efeito, imagem do inconsciente coletivo, ou seja, da estrutura inata e peculiar dessa psique que constitui a matriz e a condição prévia da consciência. Neste processo, pode-se dizer que, 15 Sempre que o inconsciente coletivo se encarna na vivência e se casa com a consciência da época, ocorre um ato criador que concerne a toda a época; a obra é, então, no sentido mais profundo, uma mensagem dirigida a todos os contemporâneos. (...) Todas as épocas têm sua unilateralidade, seus preconceitos e males psíquicos. Cada época pode ser comparada à alma de um indivíduo: apresenta uma situação consciente específica e restrita, necessitando por esse motivo de uma compensação (Jung, 2013, p.153, grifos do próprio autor). Esta compensação é fornecida pelo inconsciente coletivo que, mediante subterfúgio de um poeta ou algum outro tipo de visionário, fará com que seja exprimido o inexprimível de uma época. Por esse motivo -essa relevância- é que Jung (2013) afirmou que, no caso da poesia, sua essência consiste em elevar-se acima do aspecto pessoal, rumo ao coração e espírito da humanidade. Os elementos pessoais constituem, na obra, limitações, “vícios da arte”. Uma arte que fosse única ou essencialmente pessoal mereceria ser tratada como uma neurose. Todo ser criador apresenta certa dualidade que constitui um paradoxo em termos de qualidade. Acontece que ele é, por um lado, uma personalidade humana, e, por outro, um processo criador e impessoal. Enquanto homem, ele pode ter uma série de características, funcionar, por exemplo, de modo saudável e doentio, mas sua psicologia pessoal pode e deve ser explicada de um modo pessoal. Contudo, enquanto artista, ele não poderá ser compreendidoa não ser a partir de seu ato criador. É por esse motivo que Jung (2013) atribui ao artista, no mais alto sentido, o lugar de homem coletivo, portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade. Na obra do poeta serão identificáveis, então, não apenas indicações semióticas ou alegorias há muito conhecidas, mas símbolos, expressões de dados vivos, antigos e atuantes de sua própria época. Estes dados são, muitas das vezes, os arquétipos (Jung, 16 2013). Torna-se importante ressaltar que arquétipo nenhum é, em si mesmo, nem bom, nem mau. Só através de sua confrontação com o consciente é que ele irá se tornar uma coisa ou outra, ou, então, uma dualidade de opostos. Portanto, “esta inflexão para o bem ou para o mal é determinada consciente ou inconscientemente pela atitude humana do sujeito. São numerosas as imagens primordiais desta espécie.” (Jung, 2013, p.160). Estes símbolos e imagens ficam por muito tempo sem se manifestar em determinadas sociedades e momentos históricos, até que a consciência acaba se extraviando numa atitude unilateral e, por consequência, falsa. Quando isto acontece a nível coletivo, constituindo um sintoma, os instintos do inconsciente são vivificados e delegam suas imagens aos sonhos dos indivíduos da comunidade e às visões dos artistas e visionários, que voltarão a expressar tais símbolos, na busca de um equilíbrio anímico. Este processo é uma espécie de homeostase psíquica do coletivo (Jung, 2013). Diz-se, então, que as necessidades anímicas de um povo são satisfeitas na obra do poeta, e justamente por esse motivo ela significa verdadeiramente para seu autor, estando ele consciente disso ou não, mais do que seu próprio destino pessoal. Jung (2013) afirma que, portanto, o segredo da criação artística e de sua atuação consistem precisamente nessa possibilidade de reimergir na condição originária da participation mystique. Nesse plano, vimos que não é o indivíduo nem o artista pessoal isolado, mas o povo que vibra com as vivências simbólicas manifestas. Não se trata mais das alegrias e dores do indivíduo, a obra torna-se impessoal e objetiva, pertencente a toda a humanidade, expressando-se de acordo com cada contexto sócio-histórico em questão. Segundo este conceito, a personalidade do poeta é secundária em relação ao que ele representa como ser criador. 17 I.IV Os arquétipos Conforme visto anteriormente, a noção de arquétipo está intimamente ligada à de inconsciente coletivo, bem como à relevância do estudo da mitologia para a Psicologia Analítica. Para Pieri (2002), os arquétipos são formas e categorias responsáveis por regular o espírito humano, um “modelo” das coisas sensíveis que existem na mente do homem e que se apresentam enquanto predisposições originárias. Em seus pressupostos, Freud (2014) já havia mencionado algo semelhante. Ao se levantar a discussão em torno dos sonhos que traziam imagens e associações análogas à ideias, mitos e ritos primitivos, o psicanalista nomeou essas imagens oníricas de resíduos arcaicos. No entanto, o psicanalista não deteve sua atenção sobre tais resíduos, descartando sua importância para (e na) análise, pois, segundo ele, estes eram meramente elementos psíquicos que sobreviviam na mente humana desde tempos imemoriais, ou seja, resquícios que deveriam ser tomados como tal (Jung, 2008). Portanto, segundo a visão freudiana, o inconsciente era simples apêndice do consciente, um depósito que guardava seus resíduos sem utilidade. Jung, no entanto, apresentou uma visão oposta à de Freud no que diz respeito ao inconsciente. Ele narra como constatou, ao acompanhar os próprios pacientes, o modo como certas associações e imagens estavam presentes no inconsciente, sobretudo nos sonhos, fosse o paciente instruído ou analfabeto, inteligente ou obtuso. Este fato levou Jung a postular que o inconsciente não continha, na verdade, meros “resíduos” sem vida ou significação, na verdade, muito pelo contrário: que estes resíduos apresentavam associações “históricas”, elos entre o mundo racional da consciência e o mundo do instinto (Jung, 2008). A teoria analítica de Jung foi, então, caminhando aos poucos para a percepção de que muitos dos símbolos que influenciam o homem não são de origem individual, mas 18 coletiva. As imagens religiosas detinham um lugar especialmente relevante nesse aspecto. O crente atribui aos símbolos e imagens religiosas uma origem divina, produto de uma revelação feita ao homem, enquanto que o cético garante que foram inventadas. Mesmo não estando nenhum dos dois errados, também não estão inteiramente certos (apesar dos conceitos religiosos serem objeto de cuidadosa elaboração consciente ao longo dos séculos, também não deixam de ter a origem envolta em mistérios do passado). No entanto, uma categoria destes símbolos é inegavelmente importante: o fato de que eles são representações coletivas. O objetivo de tal estudo não é, por exemplo, averiguar a veracidade no contexto criacional dos objetos, mas analisar o modo como os indivíduos respondem à sua influência. A problematização se estende, então, para além da questão do alinhamento religioso ou do dualismo acreditar/não acreditar. Justamente o que caracteriza os símbolos é o fato de que os mesmos, em determinada sociedade e contexto histórico, recebem uma carga afetiva que é reconhecida socialmente. Conforme Frog (2015) explica, mais especificamente sobre os símbolos integrantes de uma mitologia ou sistema religioso, estes símbolos podem ser descritos como investidos de carga afetiva justamente porque sua capacidade de significar e influenciar os indivíduos inseridos em sua sociedade é reconhecida socialmente. Uma característica importante sobre o funcionamento desses símbolos é que a influência que causam nos indivíduos não depende de um entendimento consciente e racional que as pessoas façam deles. Um exemplo bem ilustrativo trazido por Kamppinen (1989), é o da pessoa que não “acredita” em fantasmas, mas que, sozinha e trancada à noite em uma casa supostamente assombrada, pode muito bem ser capaz de sentir medo. Outro aspecto interessante sobre a extensão da influência dos símbolos é que esta não depende de um alinhamento pessoal consciente com a carga afetiva que o símbolo traz. Um ateu pode muito bem responder de maneira positiva ao simbolismo do 19 martírio presente em algum material literário, por exemplo. É precisamente o fato de que os símbolos podem ser apontados e reconhecidos como dotados e investidos de carga emocional que permite que sejam usados e manipulados numa sociedade (Frog, 2015). O arquétipo seria, então, justamente esta tendência a formar as mesmas representações de um motivo significativo sem que perca sua configuração original, por mais que estas representações possam ter inúmeras variações de detalhes de acordo com a sociedade e o momento histórico estudados (Jung, 2008). Eles representam, na verdade, o que Jung definiu como tendências instintivas para representar certos temas e imagens simbólicas. Quanto mais pesquisamos as origens de uma imagem coletiva, mais vamos descobrindo uma teia de esquemas de arquétipos aparentemente interminável que, antes dos tempos modernos, nunca haviam sido objeto de reflexões mais sérias. Paradoxalmente, Jung (2008) aponta que, apesar de sabermos mais a respeito dos símbolos mitológicos hoje em dia do que qualquer outra geração que nos precedeu, nunca estivemos tão distantes do entendimento original sobre os mesmos. Hoje em dia, com toda a ciência e metodologia, estuda-se o mito, analisa-se o mito. Nos tempos passados, os homens não pensavam em seus símbolos, mas os viviam e eram inconscientemente estimulados pelo seu significado, o que torna nosso esforço atual de tentar compreender sua carga afetiva em algo ainda mais árduo, principalmente considerando-se a mudança em nosso modode abordá-los. 20 I.V Os símbolos Para realizar a investigação dos símbolos presentes no material a ser estudado, nos apoiaremos nos estudos do símbolo apresentados por Mircea Eliade. Antes de partirmos para a definição e conceituação dos símbolos, é relevante que se ressalte justamente a importância que a psicologia profunda e a psicanálise trouxeram – ou melhor, ressuscitaram – no que diz respeito ao papel dos símbolos. A consolidação de certas palavras como imagem, símbolo e simbolismo nunca havia acontecido de maneira tão forte antes da psicanálise fazer delas seu objeto de estudo. Paralelamente, estudos em antropologia buscavam por meio de suas pesquisas desenvolver uma sistemática sobre o mecanismo das “mentalidades primitivas”, o que acabou por apontar, também para eles, a importância do simbolismo para o pensamento arcaico, bem como seu papel fundamental na vida das sociedades tradicionais (Eliade, 2012). Com a superação do positivismo e cientificismo, modelos de ciência vigentes no século XIX, surge a atenção voltada para o estudo dos símbolos como um modo de conhecimento autônomo. Redescobriu-se, então, o valor cognitivo dos símbolos, o que possibilitou uma nova abertura para as descobertas relacionadas ao irracional, ao inconsciente, ao simbolismo, às experiências poéticas, às artes exóticas, etc. Dessa maneira, por meio do lento e gradual avanço do estudo autônomo dos símbolos, tornou- se possível discutir algo que antes era inimaginável para o cientificismo: “que o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, que jamais podemos camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas que jamais podemos extirpá-los." (Eliade, 2012, p. 7). O estudioso também aponta que os símbolos oriundos das mitologias, tradições e religiões puderam resistir ao descrédito e ceticismo do século XIX, apesar de enfraquecidos, mas resistiram a essa hibernação, especialmente por meio da literatura. 21 Outro aspecto acerca dos símbolos que foi desmistificado é que o pensamento e o alinhamento simbólico não são características exclusivas das crianças, poetas e desiquilibrados. Conforme Eliade (2012) afirma, o símbolo é consubstancial ao ser humano, precedendo a linguagem e a razão discursiva. Mesmo multifacetados, os símbolos possuem uma interface que demonstra grande capacidade de revelar determinados aspectos do real, os mais profundos deles, desafiando outros meios de conhecimento lógicos e racionais que não conseguem chegar lá. Entendemos, então, que as imagens, símbolos e mitos não são meras criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade de preenchimento de uma função. Essa função seria a de revelar as mais secretas modalidades do ser, partindo-se do princípio de que cada ser histórico traz em si uma grande parte da humanidade anterior à História. Não estamos partindo de nenhum princípio que negue a história ou sua importância no estudo dos símbolos e das religiões, já que o mundo cultural, social e histórico é de relevância inegável quando estudamos essa ou aquela religião ou suas interações e intercâmbios. A diferença reside no enfoque, pois o estudo dos símbolos como ciência autônoma visa, conforme proposto por Eliade (2012), resgatar essa parte a-histórica do ser humano, trazida por ele como uma medalha, a marca de uma existência mais rica, anterior, mais completa e quase beatificante. Ao falarmos dessa parte a-histórica do homem, não estamos necessariamente ressaltando um retrocesso a algum estado animal da humanidade. Para Eliade (2012), na verdade, nas inúmeras vezes em que o Homem se reintegra pelas imagens e símbolos ele está utilizando de um estado paradisíaco do homem primordial. Nesse aspecto, não importa a existência concreta deste homem que se alinha com os símbolos, mantendo em mente que o homem primordial apresenta-se, acima de tudo, como um arquétipo impossível de realizar-se plenamente em uma existência qualquer. Portanto, ao escapar, por meio dos símbolos, de sua historicidade, o homem não está abdicando da qualidade 22 de ser humano e se perdendo na animalidade, mas reencontrando a linguagem e a própria experiência de uma espécie de “paraíso perdido” (Eliade, 2012). Aqueles símbolos presentes no inconsciente são, a princípio, muito mais “poéticos”, “filosóficos” e “míticos” do que a vida consciente. Em consonância com Jung, Eliade (2012) reafirma que nem sempre é necessário conhecer a mitologia para viver os grandes temas míticos. Apesar dos vários monstros e bestas que circulam por nosso inconsciente, eles não são os únicos vivendo lá. Ele é também a morada dos deuses, das deusas, dos heróis e das fadas; e, aliás, os próprios monstros que assombram o inconsciente são também mitológicos, pois continuam a preencher, por meio dele, as mesmas funções que tinham em todas as mitologias: em última instância, ajudar o homem a libertar-se, aperfeiçoar sua iniciação. Outro aspecto dos símbolos e imagens que merece nossa atenção é a sua estrutura multivalente. Se o espírito e o inconsciente utilizam de certas imagens para captar e demonstrar ao indivíduo a realidade profunda das coisas, é exatamente porque essa realidade se manifesta, no concreto daquele indivíduo, de maneira contraditória, e consequentemente não poderia ser expressa por conceitos racionais. Portanto, devido a essa capacidade flexível de manifestarem-se de acordo com a necessidade do indivíduo, os símbolos não podem ser estudados de acordo com uma única realidade que podem, no momento, estar apontando: este aspecto não representa o símbolo em si e em toda sua totalidade. A busca, conforme aponta Eliade (2012), está na imagem em si, enquanto conjunto de significações. Esse conjunto é que representa a imagem verdadeira, e não qualquer de suas facetas separadas do resto: uma única das suas significações ou um único dos seus inúmeros planos de referências, separados do todo, nunca podem ser tidos como uma representação fiel da imagem. Concluímos, assim, que, no plano da dialética da imagem, toda redução exclusiva constitui uma aberração. 23 Uma propriedade dos símbolos que também se mostra importante é o fato de que eles nunca deixam de estar presentes na psique do indivíduo, por mais que possam estar, em certa medida, adormecidos. A pessoa mais pragmática e realista não deixa de viver por meio de imagens: os símbolos jamais desaparecem da atualidade psíquica, podendo até mesmo mudar de aspecto, mas sua função mantém-se íntegra (Eliade, 2012). Dentre os psicólogos que se debruçaram sobre o estudo das imagens e símbolos, Jung foi o que mostrou mais claramente até que ponto os dramas do mundo moderno derivam não só de crises políticas e econômicas, mas também de um profundo desequilíbrio da psique, o que engloba os âmbitos individual e coletivo. Um dos efeitos consequentes desse fenômeno é a esterilização da imaginação. Eliade (2012) explica que imaginação, etimologicamente, está ligada a imago – “representação”, “imitação” – e a imitor – “imitar”, “reproduzir” -. A imaginação, por sua vez, fica encarregada de imitar certos modelos exemplares, que seriam justamente as imagens, buscando reproduzi-los, reatualizá-los e repeti-los indefinida e infinitamente. Dessa forma, as imagens são responsáveis por nos fornecer visões do mundo em sua totalidade, pois: (...) as imagens têm o poder e a missão de mostrar tudo o que permanece refratário ao conceito. Isso explica a desgraça e a ruína do homem a quem ‘falta imaginação’: ele é cortado da realidade profunda da vida e de sua própria alma (Eliade, 2012, p. 16). Os pontos supracitados a respeito dos símbolos servem para demonstrar que o estudo autônomo dos símbolos e imagens interessa ao psicólogo, ao antropólogo e ao historiador das religiões porque contém, em si, o conhecimento envolvendo o homem. Difundidos ou descobertosespontaneamente, os símbolos, mitos e ritos nos revelam sempre uma situação-limite do homem, superando sua situação histórica. Por situação- 24 limite, Eliade (2012) entende aquelas situações em que o homem descobre-se tomando consciência de seu lugar no Universo. Portanto, ao chamarmos a atenção para a sobrevivência dos símbolos e temas míticos na psique do homem e ao mostrar que a redescoberta espontânea que cada indivíduo faz dos arquétipos do simbolismo arcaico é algo comum a todos os seres humanos, não diferindo, em natureza, entre diferentes raças e tempos históricos, a psicologia profunda empoderou o entendimento que fazemos do homem enquanto um símbolo vivo. Para melhor definição do conceito de símbolo, nos alinharemos ao conceito de Silveira (2011), ao afirmar que em todo símbolo está sempre presente a imagem arquetípica como fator essencial, que se junta a outros elementos para construí-lo. Assim sendo, o símbolo se constitui enquanto forma altamente complexa onde se reúnem opostos numa síntese que vai além das capacidades de compreensão disponíveis no momento presente e que, portanto, não pode ser muito presa e formulada dentro de conceitos. Nos símbolos, portanto, consciente e inconsciente aproximam-se, e nesse momento ocorre a convergência de todas as possibilidades semânticas, tornando os símbolos, então, unidades multifacetadas de significações. É relevante ressaltar o fato de que, de uma parte, o símbolo é uma unidade racional e possui um lado acessível à discussão, análise e à razão; mas, de outro, possui uma constituição inconsciente e primitiva (Silveira, 2011). De acordo com Jung (2008), o símbolo não oferece explicações por si só, mas impulsiona aquele que entra em contato com ele para algo que vai além de si mesmo, na direção de um sentido ainda distante, inapreensível, “obscuramente pressentido” e que nenhuma palavra de língua falada poderia exprimir com maior exatidão, sensibilidade ou de maneira satisfatória. Portanto, segundo Silveira (2011), o conceito junguiano de símbolo situa-o enquanto unidade de ação mediadora que constitui uma tentativa de encontro entre 25 opostos movida pela tendência inconsciente à totalização. Dessa forma, o símbolo é uma linguagem universal infinitamente rica, capaz de exprimir, por meio de imagens, muitas das coisas que transcendem problemáticas específicas dos indivíduos. De acordo com essa visão, os símbolos atuam como unidades coletivas e transpessoais que totalizam e universalizam a experiência de certos sentidos, tornando-os acessíveis por meio de imagens. 26 CAPÍTULO II: O GYLFAGINNING, A EDDA EM PROSA E SEU AUTOR II. I A Edda em Prosa Foi provavelmente no ano de 1220 D.C que Snorri Sturluson escreveu a sua Edda, chamada Edda em Prosa (Langer, 2015). É comum conferir a ela também o nome Snorra Edda, ou seja, “Edda de Snorri”, visto que sua autoria costuma ser atribuída a esse político islandês do século XIII (Boulhosa, 2004). Essa suposta autoria conferida comumente à Snorri Sturluson aparece em apenas um manuscrito medieval, o manuscrito DG 11, conhecido também como Codex Upsaliensis (U). A Edda em Prosa também circulou durante a Idade Média através de outros manuscritos, como o GKS 2367 4º, o Codex Regius (R), e o AM 242, ou Codex Wormianus (W), porém, nesses dois, de maneira anônima (Boulhosa, 2004). Este último fato mencionado leva muitos acadêmicos contemporâneos a demonstrarem certo ceticismo em relação ao posicionamento tradicional de atribuir a autoria da Edda em Prosa a Snorri Sturluson (Langer, 2015). Contudo, ainda assim vigora a transferência dessa autoria fixa e imutável à Edda em Prosa, o que leva os estudiosos a estabelecerem e trabalharem com a ideia de um “texto original” que seria, conforme explica Boulhosa (2004), aquele texto escrito pelo punho do próprio autor, sem intervenção de copistas desatentos ou criativos. Assim, ao estudar-se a Edda em Prosa, tende-se a ser escolhido como material para estudo o Codex Regius (o manuscrito R) que seria, em tese, a representação do suposto texto original. O conteúdo da Edda em Prosa apresenta um dos mais completos relatos da mitologia nórdica de que dispomos nos dias atuais, além de ser um extensivo manual de versificação escáldica (Moosburger, 2011). Esta era uma técnica de composição presente na poesia escáldica, uma forma de arte poética cujo auge foi durante a Era 27 Viking, período que teve início antes de 800 D.C e estendeu-se por mais de dois séculos e durante os quais os Vikings deixaram suas marcas na Europa Ocidental, na Rússia Oriental e também através do Mediterrâneo (Bronsted, 2004). No entanto, segundo Moosburger (2011), devido às profundas transformações culturais e espirituais que envolveram o mundo nórdico após a consolidação do cristianismo em suas terras, toda essa tradição mítica e poética ancestral corria o risco de ser esquecida, sendo esse um dos motivos pelos quais Snorri Sturluson resolveu compilá-los e preservá-los em sua obra. Quanto à origem dos poemas presentes na Edda, nota-se que estes existiam em formato de oralidade por várias gerações antes que alguém se propusesse a escrevê-los, e, de maneira geral, todos os poemas que a constituem são fortemente pagãos em essência, ou seja, de caráter politeísta e não dogmático (Bellows, 2014). Afinal, conforme afirma Boyer (1987), citado por Cohat, (1992), no período em que os mitos narrados na Edda em Prosa circulavam originalmente a escrita ainda não havia sido introduzida no norte da Europa, tendo chegado àquela região juntamente ao cristianismo, por volta do ano 1000. É por esse motivo que, até a chegada do alfabeto e a da escrita latinos, a poesia posteriormente encontrada nas Eddas era a princípio feita para ser memorizada e recitada: motivo pelo qual passou por adaptações posteriores para que fosse escrita. Aliás, uma característica marcante da obra é justamente sua relação com o cristianismo, visto que foi a cristianização da Escandinávia que trouxe o início do letramento, tornando possível o registro, via escrita, dos mitos de seu passado pagão (Palamin, 2011). Dessa forma, a Edda em Prosa tinha por “objetivo básico ser um manual de mitologia para os jovens poetas, numa época em que as antigas metáforas poéticas e narrativas míticas estavam sendo esquecidas” (Langer, 2015, p.143). 28 A Edda em Prosa é composta por um prólogo seguido por três capítulos: Gylfaginning, Skáldskaparmál e Háttatal, respectivamente. Os dois últimos, se considerados juntos, constituem uma artes poeticae, ou seja, um manual de técnicas de composição da poesia escandinava da época (Boulhosa, 2014). No capítulo Skáldskaparmál, cujo significado é “Dicção Poética”, a personagem Ægir parte a caminho de Asgard e lá encontra Bragi, com quem tem um longo diálogo sobre toda a arte poética: trata-se de um modo de Snorri Sturluson elucidar sobre os sinônimos (heiti) e metáforas (kenningar) que poderiam ser usados pelos poetas escaldos (Boulhosa, 2014). O terceiro capítulo, Háttatal, significa “Lista de Métricas” e constitui uma sistematização da linguagem poética espalhada em 102 estrofes redigidas em cem métricas diferentes com o intuito de servir como exemplificação de possibilidades métricas na poesia (Boulhosa, 2014). Por sua vez, o primeiro capítulo, o Gylfaginning (o embuste de Gylfi), retrata um desenvolvimento mais sistemático e objetivo da mitologia nórdica. Ele reconta, por meio de um diálogo dos deuses com o Rei Gylfi, toda essa mitologia, desde o início dos tempos até a destruição e a renovação do mundo (Langer, 2015). Encontramos no Gylfaginning temas como a teogonia e a escatologia do(s) mundo(s), além de aventuras e acontecimentos relacionados aos principais deuses. É importante ressaltar, também conforme apontado por Langer (2015), que o capítulo do Gylfaginning contémcitações de um outro material, advindas da Edda Poética. Esta, ao contrário da Edda em Prosa, não é da autoria de Snorri Sturluson, mas de caráter anônimo: trata-se de uma coleção de poemas, em sua grande parte de caráter mitológico e épico, escritos em nórdico antigo, tidos por vários especialistas como a maior fonte para estudo da mitologia nórdica (Langer, 2015). O prólogo apresentado antes do Gylfaginning consiste em uma tentativa da parte de Snorri Sturluson de oferecer uma explicação racional, cristã e evemerista sobre 29 as origens da religião pagã nórdica. O evemerismo consiste, basicamente, em uma tentativa de se explicar, da maneira mais racional possível, o processo de apoteose de homens ilustres, mesmo sendo eles divindades (Brandão, 2001). No caso do prólogo da Edda em prosa, a tentativa evemerista constituiu em um esforço de Snorri Sturluson para retratar os deuses nórdicos como heróis antigos, que na verdade seriam descendentes do Rei Príamo e migraram para o norte da Europa após a queda de Tróia (Langer, 2015). Por fim, apesar das questões religiosas (conscientes ou não) que permeiam o autor e o contexto de escrita da Edda em Prosa, seu autor Snorri Sturluson: foi a primeira pessoa a tratar a mitologia escandinava de uma perspectiva acadêmica e a selecionar o material de forma sistêmica. As atitudes de Snorri para com os mitos nunca são moralistas, não fazem juízo de valor condenando os antigos mitos pagãos, nem equalizadas com os demônios, atitudes típicas de sua época (Langer, 2015, p. 143). O que Boulhosa (2014) nos diz é que precisamos deixar de lado a ideia de que os textos medievais estejam fundamentados em um único sistema religioso coerente e unificador, refletindo supostamente uma única tradição. Aliás, o que as percepções mais recentes nos revelam sobre a Edda em Prosa é que ela não representa uma fonte “correta” e original a respeito das narrativas antigas, mas é um produto de sua época, a Idade Média Central, criando, assim, uma espécie de “nova” mitologia que é baseada tanto na tradição nativa em questão, ou seja, os mitos do passado pagão da Escandinávia, quanto no imaginário cristão (Langer, 2015). 30 II. II Snorri Sturluson Snorri Sturluson (1179 – 1241) foi um islandês envolvido com a pesquisa histórica, a poesia e a política, sendo aquele a quem se atribui a autoria da Edda em Prosa que, por isso, também é conhecida por Edda de Snorri (Langer, 2015). Conforme elucidado por Wanner (2008), Snorri vinha de uma família distinta. Seu avô, antes mero fazendeiro, ascendeu até a posição de goði, que seria, grosso modo, uma espécie de chefe-sacerdote. Quando seu avô Þorgrímsson morreu, o filho mais velho, Sturla, herdou sua posição. Sua fama cresceu conforme executava habilmente suas funções de chefe provinciano, até que um dia casou-se com a mulher que seria a mãe de Snorri. Snorri era o décimo primeiro filho entre sete filhos legítimos e sete filhos ilegítimos de seu pai. Aos dois anos de idade, Snorri foi acometido por um evento que mudaria sua vida. Naquela época seu pai envolveu-se em uma disputa, durante a qual foi atingido no rosto pela esposa do oponente. Após esse acontecimento, resolvera cobrar uma reparação extravagante pelo dano sofrido, “advogando” em causa própria, já que tinha o poder para fazê-lo. O desentendimento só foi finalmente resolvido quando o chefe de uma importante família do sudoeste da Islândia interveio, conversando com Sturla e convencendo-o a aceitar uma quantia muito menor do que a que havia pedido como reparação. Contudo, esse mesmo chefe ofereceu, como reparação, adotar Snorri e deixá-lo sob seus cuidados. E foi dessa forma que a Snorri foi oferecida a oportunidade ter crescido e sido educado em Oddi, que, no século XIII, era o maior centro cultural e educacional da Islândia (Wanner, 2008). De acordo com Langer (2015), depois de adulto, Snorri casou-se com Herdís Bersadóttir, tendo administrado as ricas propriedades da família da esposa. Quando seu sogro morreu, Snorri herdou sua posição de goðorð, uma posição de chefia islandesa. 31 Em 1224 casou-se novamente, desta vez com Hallveig Ormsdóttir e, a partir de então, tornou-se um dos homens mais ricos e de maior prestígio político na Islândia, vindo a ser lögusögumaðr, um recitador de leis. Esta posição, embora não envolva grandes ganhos financeiros diretos, demonstra a dimensão da influência de Snorri em torno das estruturas políticas islandesas. Entre 1218-1220, fez uma visita à Noruega e conheceu Skúli Bárðarson, tio do rei Hákon Hákonarson e administrador de seu reino enquanto o rei ainda não tinha idade para administrá-lo por conta própria. Snorri torna-se membro da companhia do rei, chegando à posição de maior presença na corte real, sendo adquirida sob a promessa de que iria lutar para promover a submissão da Islândia à Noruega. Neste momento, utilizou de tamanho prestígio para promover seus próprios projetos na Islândia (Langer, 2015). Portanto, sua educação em Oddi, suas conexões com a corte e o acúmulo de prestígio são aspectos ligados à produção intelectual de Snorri. Para Langer (2015), seu envolvimento político o colocava em uma boa posição para promover seus interesses intelectuais particulares por meio da escrita. Não é por menos, então, que tamanha habilidade de Snorri para a escrita é considerada por muitos como excepcional. Seu conhecimento acerca das tradições orais e o modo como atuavam culturalmente é demonstrado ao longo de sua Edda, como, por exemplo, no modo como encaixou, em sua narrativa, referências poéticas e mitológicas advindas de outro material, a Edda Poética. Contudo, Frog (2009) comenta que, ao longo de sua obra, Snorri não apresenta interesse em meramente registrar e documentar de forma sistemática poemas inteiros que existiam originalmente como fenômenos da oralidade (com exceção, talvez, do Háttatal), mas sim em citar esses poemas de acordo com a relevância que trariam para a semântica e a métrica de seu texto, de modo a preencher essa necessidade típica da escrita. 32 II. III Resumo e tradução do material O objetivo, neste momento, é oferecer uma tradução resumida do Prólogo da Edda em Prosa e em seguida de seu primeiro capítulo, a ser analisado nesta monografia, o Gylfaginning. Longe de nossa intenção verdadeira ter a pretensão de estar oferecendo uma tradução rigorosa, crítica e sistematizada: trata-se apenas de um esforço para tornar este material mais acessível para uma primeira leitura, já que não existem, até o momento, traduções sérias e acadêmicas da Edda em Prosa para o português. Além disso, o leitor poderá se beneficiar desta disponibilidade da obra traduzida e resumida aqui quando, no capítulo seguinte, abordarmos alguns símbolos e arquétipos, pois poderá voltar ao material em questão e relê-lo em sua fonte. Desta forma, ficará mais acompanhar, juntamente da discussão dos símbolos, sua ocorrência no material primário. A tradução resumida que aqui consta foi feita baseada na tradução do islandês para o inglês feita por Arthur Gilchrist Brodeur, via Dover Publications. Optamos, assim como este primeiro tradutor, por manter a obra dividida em subcapítulos, conforme consta no original. Também nos esforçamos para que a estrutura gramatical e sintática fosse mantida simples, em frases curtas, preservando a pontuação da maneira como foi escrita pelo autor primeiro. Desta forma, as frases de cunho simples, a pontuação e a repetição foram mantidas com tanta fidelidade quanto possível à escrita original. 33 II. IV Tradução resumida do prólogo Snorri Sturluson inicia o prólogo narrando que no começo Deus criou céu e inferno e todas as coisas que faziam parte deles, até que, por último, criou dois seres da raça humana: Adão e Eva, de quem todas as raças se derivaram. Depois, seusfilhos foram se espalhando e se multiplicando até povoarem a Terra. Contudo, conforme o tempo foi passando, as raças humanas foram se tornando diferentes umas das outras em natureza, pois enquanto umas eram boas e acreditavam no que era justo, outras cederam à luxúria do mundo, desrespeitando os comandos de Deus. Por essa razão, Deus afogou o mundo e todos os seres vivos que nele existiam, com exceção daqueles que estavam na arca com Noé. Após essa inundação, oito humanos continuaram vivos e foram eles que repovoaram a terra, e as raças humanas deles derivaram. No entanto, aconteceu conforme acontecera antes: quando a Terra tornou-se cheia de pessoas e habitada por muitos, toda a sorte de seres humanos começaram a amar a ganância, a riqueza e a falsa honra, negligenciando o culto a Deus. Como era de se esperar, o domínio do mal chegou a tal ponto que as pessoas não mais nomeavam Deus, e dessa forma, ninguém mais poderia contar a seus filhos sobre os poderosos milagres e maravilhas Dele. O nome de Deus, portanto, se perdeu, e em nenhuma parte do mundo era possível de ser encontrado algum homem em que se reconhecessem os traços de seu Criador. Mesmo assim, Deus não deixou de oferecer presentes aos homens: concedeu- lhes a riqueza e a felicidade para que pudessem gozar de uma vida prazerosa; Ele também aumentou sabedoria, para que conseguissem compreender todos os assuntos terrenos. Com essa sabedoria os homens foram capazes de reconhecer que a Terra tinha certa vida suportada por uma natureza própria dela mesma, e então concluíram que ela era extremamente antiga e igualmente poderosa, ela alimentava tudo o que nela vivia e 34 também pegava para si tudo o que morria. Dessa forma, deram a ela um nome e traçaram o número de gerações que já haviam nela vivido. Aprenderam também algo importante com seus anciões: que muitas centenas de anos já haviam se passado desde que essa mesma Terra existia, assim como o mesmo sol e as mesmas estrelas no céu, mas que, porém, a duração dessas últimas não era igual, já que algumas tinham vida mais longa que as outras. Por meio desses conhecimentos é que certos pensamentos começaram a ser instigados nos homens, como, por exemplo, a ideia de que haveria algum governante das estrelas do céu, alguém que ordenasse o curso das coisas de acordo com seu desejo e sua vontade, e que, portanto, deveria ser alguém muito forte e cheio de poder. Também acreditavam que se ele era capaz de prolongar ou diminuir o curso dos principais elementos da natureza, que então ele deveria ter começado a existir antes mesmo do que as estrelas do céu, e perceberam que, se ele era capaz de governar o curso dos corpos celestiais, então ele também governava o brilho do sol, o orvalho do ar, os frutos da Terra e tudo o que dela brotasse, e também os ventos e as tempestades dos mares. Contudo, os homens não sabiam onde era seu reino, mas acreditavam, a partir daquele momento, que Ele governava todas as coisas na terra e no céu, bem como os ventos que vinham do mar. Então, decidiram dar nomes a todas essas coisas que existiam. Essa crença dos homens mudou de variadas maneiras conforme iam se espalhando mundo afora, separando-se uns dos outros e suas línguas foram se modificando. Todas as coisas, portanto, eram compreendidas e discernidas pelos homens de acordo com a sabedoria terrena, pois o entendimento do espírito não foi dado a eles. No entanto, uma coisa eles sentiam: que tudo era criado a partir da mesma essência. 35 A segunda parte do prólogo nos conta sobre a divisão do mundo em três partes: Ao sul a África, a parte quente e intensamente exposta ao sol; do oeste ao norte a Europa, cuja parte mais ao norte é tão fria que nenhuma grama cresce do chão e nenhum homem suporta habitar; e do norte ao extremo leste, descendo até o sul está a Ásia, onde as frutas da Terra crescem mais, e onde há também ouro e jóias. Há também o centro do mundo, e assim como a terra lá é amável e melhor em todos os quesitos do que em outras partes do mundo, assim são os homens que vivem lá e que foram favorecidos com boas características, tais como a sabedoria, a força física, a beleza e todos os tipos de conhecimento. Conforme narra a terceira parte do prólogo, próxima ao centro do mundo foi feita a melhor das moradas, chamada Tróia. Ela era muito mais gloriosa do que as outras, tendo sido feita com muito mais habilidade e excedendo tanto em luxúria quanto em riqueza, coisas que haviam lá em abundância. Lá existiam doze reinos, cada um com seu rei, mas todos governados pelo Grande-Rei. Havia, dentre eles, um rei chamado Múnón, que se casou com a filha do Grande-Rei, chamada Tróán, e tiveram um filho chamado Trór, que nós conhecemos por Thor. Ele era de uma constituição bela e seu cabelo era mais bonito do que ouro. Aos vinte anos de idade ele assassinou seu pai adotivo e esposa, pegando para si o reino da Trácia, que hoje nomeamos Thrúdheim. Depois, Thor se aventurou mundo afora, tendo ido tão longe quanto os quatro cantos da Terra, vencendo, sozinho, as lutas contra todos os gigantes e também contra um Dragão (o mais poderoso dos dragões), assim como muitas outras bestas. Na parte mais norte de seu reino ele encontrou Síbil, que nós conhecemos por Sif, a profetisa, e se casou com ela. O primeiro filho deles foi Lóridi, que teve uma longa linhagem de descendentes chegando até Vóden (ou seja, Odin). Odin era um homem conhecido por sua sabedoria e por seus grandiosos feitos. Possuía o dom da clarividência, assim como sua esposa, Frigg. Por meio desse dom, 36 Odin tomou conhecimento de que na parte do norte do mundo seu nome seria exaltado e glorificado acima de todos os outros reis. Odin, acompanhado de muitas pessoas, se aprontou para viajar fora do reino onde estava rumo ao norte, e durante o caminho coisas gloriosas foram acontecendo, de forma que coisas igualmente gloriosas começaram a serem ditas sobre ele e seus companheiros, que começaram a ser tomados mais por deuses do que por humanos. A quarta e última parte do prólogo narra o fim da aventura de Odin. Ele passou por outros lugares e fez deles sua morada por um tempo, não sem antes povoá-los com sua linhagem, que viria a fundar os reinos da Saxônia, o Império Franco e a Jutlândia. Por fim, decidira migrar mais ao norte, para um lugar chamado Suécia, onde o Rei Gylfi governava. Quando o rei soube da chegada desses homens da Ásia, que por isso eram chamados de Æsir partiu de encontro a eles. Uma vez juntos, Gylfi propôs uma oferta: mesmo estando Odin dentro de seu reino, seria concedido a ele todo o poder quanto ele alegava ter. Dessa forma, instaurou-se tamanho bem-estar que, em quaisquer terras em que eles morassem havia sempre paz e entendimento, e, portanto, as pessoas passaram a acreditar que havia sido a chegada de Odin que causara tudo isso, pois percebiam que ele e seus companheiros eram diferentes dos outros, tanto em sabedoria quanto no seu senso de justiça. Odin optara por estabelecer lá uma cidade chamada Sigtún, onde estabeleceu chefes assim como havia feito em Tróia, e também delegou doze homens para serem os juízes das pessoas, fazendo com que elas obedecessem e respondessem às leis daquela terra, leis essas que Odin adotou conforme as de Tróia, de acordo com os costumes de lá. Após esse feito, Odin foi mais ao norte, até onde o mar o fizesse parar. Lá ele colocou seu filho Sæmingr como rei do que seria, então, o território da Noruega. Por fim, ao longo dos tempos os Æsir escolheram mulheres daquela terra para serem suas esposas, assim como algumas para casarem com seus filhos. Essas famílias 37 multiplicaram-se e tornaram-se muitas, de modo que seus descendentes espalharam-se pela região da Saxônia até o extremo norte do continente e ao leste da Ásia. 38 II. V Tradução resumida do Gylfaginning I O Rei