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Valores no esporte Brasília, 2013 © 2013 Fundação Vale. Todos os direitos reservados. Coordenação: Setor de Ciências Humanas e Sociais da Representação da UNESCO no Brasil Redação e organização e revisão pedagógica: Luciana Marotto Homrich Revisão técnica: Fábio Otuzi Brotto Revisão editorial: Unidade de Publicações da Representação da UNESCO no Brasil Ilustração: Rodrigo Vinhas Fonseca Projeto gráfico: Crama Design Estratégico Diagramação: Unidade de Comunicação Visual da Representação da UNESCO no Brasil Valores no esporte. – Brasília: Fundação Vale, UNESCO, 2013. 42 p. – (Cadernos de referência de esporte; 10). ISBN: 978-85-7652-164-8 1. Educação física 2. Esporte 3. Jogos Olímpicos 4. Doping 5. Brasil 6. Material didático I. Fundação Vale II. UNESCO Esta publicação tem a cooperação da UNESCO no âmbito do projeto 570BRZ3002, Formando Capacidades e Promovendo o Desenvolvimento Territorial Integrado, o qual tem o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade de vida de jovens e comunidades. Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização. As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo desta publicação não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites. Esclarecimento: a UNESCO mantém, no cerne de suas prioridades, a promoção da igualdade de gênero, em todas suas atividades e ações. Devido à especificidade da língua portuguesa, adotam-se, nesta publicação, os termos no gênero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inúmeras menções ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados no masculino, eles referem-se igualmente ao gênero feminino. Fundação Vale Representação da UNESCO no Brasil Av. Graça Aranha, 26 – 16º andar – Centro SAUS Qd. 5, Bl. H, Lote 6, 20030-900 – Rio de Janeiro/RJ – Brasil Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar Tel.: (55 21) 3814-4477 70070-912 – Brasília/DF – Brasil Site: www.fundacaovale.org Tel.: (55 61) 2106-3500 Fax: (55 61) 3322-4261 Site: www.unesco.org/brasilia E-mail: grupoeditorial@unesco.org.br facebook.com/unesconarede twitter: @unescobrasil Valores no esporte Cadernos de referência de esporte Volume 10 Sumário Prefácio ............................................................................................................................................... 7 1. Introdução ...................................................................................................................................... 8 2. O Movimento Olímpico, o olimpismo e a educação olímpica .............................................. 11 2.1. O papel do esporte ...................................................................................................................................... 14 2.2. Possibilidades de contribuições dos valores olímpicos e de uma educação olímpica ....... 15 3. Fair play .......................................................................................................................................... 21 3.1. Conceitos básicos ......................................................................................................................................... 21 4. Contextualizando a dopagem .................................................................................................... 26 5. A educação olímpica e sua contribuição para os programas de esporte ........................... 32 6. Considerações finais ..................................................................................................................... 36 Bibliografia ......................................................................................................................................... 38 7 Valores no esporte Prefácio O Programa de Esportes da Fundação Vale, intitulado Brasil Vale Ouro, busca promover o esporte como um fator de inclusão social de crianças e adolescentes, incentivando a formação cidadã, o desenvolvimento humano e a disseminação de uma cultura esportiva nas comunidades. O reconhecimento do direito e a garantia do acesso da população à prática esportiva fazem do Programa Brasil Vale Ouro uma oportunidade, muitas vezes ímpar, de vivência, de iniciação e de aprimoramento esportivo. É com o objetivo de garantir a qualidade das atividades esportivas oferecidas que a Fundação Vale realiza a formação continuada dos profissionais envolvidos no Programa, de maneira que os educadores sintam-se cada vez mais seguros para proporcionar experiências significativas ao desenvolvimento integral das crianças e dos adolescentes. O objetivo deste material pedagógico consiste em orientar esses profissionais para a abordagem de temáticas consideradas essenciais à prática do esporte. Nesse sentido, esta série colabora para a construção de padrões conceituais, operacionais e metodológicos que orientem a prática pedagógica dos profissionais do Programa, onde quer que se encontrem. Este caderno, intitulado “Valores no esporte”, integra a Série Esporte da Fundação Vale, composta por 12 publicações que fundamentam a prática pedagógica do Programa, assim como registram e sistematizam a experiência acumulada nos últimos quatro anos, no documento da “Proposta pedagógica” do Brasil Vale Ouro. Composta de informações e temas escolhidos para respaldar o Programa Brasil Vale Ouro, a Série Esporte da Fundação Vale foi elaborada no contexto do acordo de cooperação assinado entre a Fundação Vale e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) no Brasil. A série contou com a participação e o envolvimento de mais de 50 especialistas da área do esporte, entre autores, revisores técnicos e organizadores, o que enriqueceu o material, refletindo o conhecimento e a experiência vivenciada por cada um e pelo conjunto das diferenças identificadas. Portanto, tão rica quanto os conceitos apresentados neste caderno será a capacidade dos profissionais, especialistas, formadores e supervisores do Programa, que atuam nos territórios, de recriar a dimensão proposta com base nas suas próprias realidades. Cabe destacar que a Fundação Vale não pretende esgotar o assunto pertinente a cada um dos cadernos, mas sim permitir aos leitores e curiosos que explorem e se aprofundem nas temáticas abordadas, por meio da bibliografia apresentada, bem como por meio do processo de capacitação e de formação continuada, orientado pelas assessorias especializadas de esporte. Em complemento a esse processo, pretende-se permitir a aplicação das competências, dos conteúdos e dos conhecimentos abordados no âmbito dos cadernos por meio de supervisão especializada, oferecida mensalmente. Ao apresentar esta coletânea, a Fundação Vale e a UNESCO esperam auxiliar e engajar os profissionais de esporte em uma proposta educativa que estimule a reflexão sobre a prática esportiva e colabore para que as vivências, independentemente da modalidade esportiva, favoreçam a qualidade de vida e o bem-estar social. Fundação Vale Representação da UNESCO no Brasil 8 Caderno de referência de esporte 1. Introdução O esporte é um dos grandes aliados da educação de crianças e adolescentes. Por meio dele, valores éticos e morais, como a socialização, a cooperação, a solidariedade, a disciplina, o espírito de equipe e tantos outros, fundamentais para a formação integral de uma pessoa, podem ser trabalhados e desenvolvidos. A busca de uma melhor compreensão do esporte como marco social para as crianças e os adolescentes, aliada às ideias da Carta Olímpica1, aos valores e à realidade esportivaé um princípio para o desenvolvimento de uma abordagem pedagógica acerca do esporte contemporâneo. Em 2005, uma declaração oficial de Kofi Annan, o secretário-geral das Nações Unidas à época, indicou que “pessoas de todas as nações amam esporte: seus valores – fair play (jogo “limpo” ou honesto), cooperação, busca pela excelência – são universais”. Em documento orientado à campanha Esporte para o Desenvolvimento e a Paz (2005), Annan afirmou que “o esporte é linguagem universal”. Na melhor das hipóteses, ele une as pessoas, não importa qual a sua origem, situação, crença religiosa ou status econômico. Ao participar de esportes ou ter acesso à educação física, os jovens podem ter prazer, mesmo quando aprendem os ideais do trabalho em equipe e da tolerância. Adolf Ogi (2005), assessor especial do secretário-geral à época, reforçou a posição anterior de que “o esporte, com suas alegrias e conquistas, suas dores e derrotas, suas emoções e desafios, é um meio incomparável para a promoção da educação, saúde, desenvolvimento e paz”. Indicou, ainda, que o esporte ajuda a demonstrar, na busca pelo aperfeiçoamento da humanidade que, nesse meio, há mais questões que unem do que questões que dividem. Afinal, pergunta-se: qual é o papel do esporte no desenvolvimento humano? Para trabalhar essa questão, parte-se do pressuposto de que praticar uma atividade física não é apenas importante, mas é necessário para um crescimento sadio e para o desenvolvimento humano, independentemente da modalidade ou da dimensão esportiva escolhida. 1 No site do Comitê Olímpico de Portugal, encontra-se a versão em inglês da Carta Olímpica, em vigor desde 8 de julho de 2011. Esse é o documento de base para o Movimento Olímpico, e estabelece os princípios fundamentais do olimpismo, das regras e dos textos de aplicação adotados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Disponível em: <http://www.comiteolimpicoportugal.pt/olimpismo/carta-olimpica>. Francês e inglês são as línguas oficiais da Carta; entretanto, ela foi traduzida para o alemão, o espanhol, o russo e o árabe. 9 Valores no esporte Especialistas de diversas áreas, especialmente da educação física, têm apontado os benefícios da atividade esportiva na infância, e também alertam para o aspecto demasiadamente competitivo, muitas vezes imputado a essa prática. No entanto, por acreditar que o esporte favorece o desenvolvimento humano, ele pode ser considerado como importante elemento da cultura, com relevância nos programas educativos, mas também como um elemento de comparação, seleção e competitividade, que conduz, em certas circunstâncias, a excessos, submetendo as crianças, durante a atividade esportiva, a assumir responsabilidades de adultos para as quais elas podem não estar preparadas. Em complemento ao caderno 3 desta série, intitulado “Crescimento, desenvolvimento e maturação”, de acordo com Todt (2001), não existe, necessariamente, uma relação direta entre o crescimento e a maturação biológica de uma criança com o desenvolvimento orientado pelo calendário ou por sua idade cronológica, pois a puberdade começa em diferentes idades, em diferentes indivíduos, mesmo naqueles do mesmo sexo. Assim, uma criança ou adolescente participante de um campeonato realizado nos moldes de um campeonato adulto, estará competindo com outras da mesma idade cronológica, mas de diferentes idades biológicas, ou seja, a idade que realmente corresponde à fase de crescimento e aprendizagem em que se encontra. Nota-se, assim, que o esporte pode tornar-se inadequadamente seletivo, uma vez que beneficia as crianças com crescimento acelerado ou com maior idade biológica em detrimento das demais. Esse fato vem, consequentemente, ao encontro das conclusões apontadas por estudos realizados em vários países, conclusões que, invariavelmente, são as mesmas: “só uma percentagem muito reduzida de campeões em idade jovem chega a campeão na idade de altos rendimentos” (MARQUES, 1997, p. 23). Assim, faz-se necessário referendar um dos princípios fundamentais2 da Carta Olímpica, que estabelece que um dos objetivos do Movimento Olímpico é educar a juventude por meio do esporte praticado sem qualquer tipo de discriminação e dentro do espírito olímpico, o que exige compreensão mútua, amizade, solidariedade e fair play. Nesse contexto, ao compreender o esporte como um fenômeno socialmente construído, subentende-se que ele pode contribuir para a saúde, a educação, a socialização e a construção da imagem corporal dos seus participantes, assim como da imagem do país representado. A valorização da imagem corporal trouxe ao esporte um novo conceito que o trata com proporções espetaculares a partir da segunda metade do século XX (TURINI; DaCOSTA, 2002, p. 17). Essa visão do esporte obteve um crescimento inesperado com a demanda evolutiva dos meios de comunicação de massa3, que passaram a transmitir via satélite imagens que exaltavam toda a beleza performática dos atletas e, de acordo com o quantitativo de medalhas e títulos conquistados, a imagem positiva ou negativa do país que esses atletas representavam. 2 Princípio 6 da Carta Olímpica mencionada anteriormente. 3 Meios de comunicação de massa são os jornais e as revistas de circulação, televisão, rádio, internet, cinema etc., por meio dos quais ocorre a disseminação de informações, reunidas em um sistema denominado mídia, que atinge ao mesmo tempo uma grande quantidade de receptores. Para ambas as situações ou áreas anteriormente mencionadas com as quais o esporte pode contribuir, deve existir comprometimento e dedicação dos profissionais e participantes envolvidos, de modo que tenham clareza e consciência das relações estabelecidas nesse meio e dos fenômenos socioculturais implícitos no decorrer do processo da sua constituição e construção histórica. Para tanto, parte-se da compreensão de que a competição, como meio de educação, deve ter um sentido mais amplo do que ser apenas um evento em que equipes se confrontam, em que uns ganham e outros perdem, em que uns são premiados e outros não. Tem-se clareza de que o esporte, em uma visão ampla e mais abrangente, quando orientado para o rendimento, não está no nível do esporte profissional, nem os professores que dirigem as equipes devem ser considerados treinadores, mas, acima de tudo, educadores. Esse deve ser o ponto de vista do verdadeiro educador dessa área: trabalhar o esporte em suas aulas como um complemento importante das outras atividades que fazem parte do dia a dia dos participantes, pensando em seu futuro como seres humanos e não como corpos ou máquinas capazes de reproduzir perfeitamente os movimentos específicos de determinada modalidade esportiva. Mesmo quando se trabalha com o esporte de rendimento dentro das aulas de esportes, o professor deve ter a oportunidade de salientar aspectos como a lealdade e o respeito por si mesmo e pelo outro, independentemente de se estar lidando com um adversário naquela ocasião. Para melhor entender e contextualizar essas questões faz-se necessário referendar o debate do movimento esportivo que está relacionado aos princípios ditados por Pierre de Coubertin e pelos pedagogos do século XIX, sem se preocupar em refazer um discurso adaptado à função social e à evolução de algumas práticas que apresentam características diferentes e até antagônicas às postuladas inicialmente. A abordagem a seguir foi elaborada nesse sentido. 10 Caderno de referência de esporte 11 Valores no esporte Durante todo o século XX, a sociedade ocidental e o esporte passaram por inúmeras transformações. Foi na sociedade aristocrática europeia que surgiu o termo fair play, difundido posteriormente pelo barão Pierre de Coubertin, idealizador dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. O fairplay defendido por Coubertin representa a honra e a lealdade, o respeito pelos outros e por si próprio, e reflete o pensamento a respeito das práticas esportivas da aristocracia inglesa dos séculos XVIII e XIX4, estando, portanto, repleto dos ideais e princípios do comportamento cavalheiro (do inglês gentleman) característicos daquela sociedade. Apesar de grande resistência encontrada na França, em 1892, durante a sessão da Associação Francesa de Esportes Atléticos na Universidade de Sorbonne, o barão de Coubertin disseminou, por meio de uma palestra, a ideia da restauração dos Jogos Olímpicos. O olimpismo moderno foi concebido por Pierre de Coubertin em 1894, no âmbito do Congresso Atlético Internacional de Paris. A partir disso, Pierre de Frédy, barão de Coubertin (1863-1937), passou a ser reconhecido como pai dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, por ter restituído, 16 séculos depois da sua extinção, o que hoje é conhecido como a maior festa do mundo esportivo. Amante dos esportes e admirador dos métodos de pedagogia adotados por Thomas Arnold, na Inglaterra, Coubertin lançou a ideia de reviver a antiga tradição grega, por meio da qual esperava unir os povos. Ainda em 1894, após a realização do Congresso, apoiado pelo norte-americano William Sloane, pelo inglês Charles Herbert e contando com a presença de representantes de 15 países, criou-se o Comitê Olímpico Internacional (COI), que mais tarde, em 1915, foi definitivamente estabelecido em Lausanne, Suíça, possuindo todos os direitos sobre o símbolo, a bandeira, o lema, o hino e os Jogos Olímpicos até hoje. Dois anos mais tarde, com a participação de 14 países, 88 atletas estrangeiros e 123 atletas gregos, realizava-se em Atenas, na Grécia, a primeira disputa dos Jogos Olímpicos (Olimpíadas) da Era Moderna. Em 1914, a bandeira olímpica apresentada por Coubertin no Congresso de Paris foi adaptada. Os cinco anéis entrelaçados, presentes na bandeira, representam a união dos cinco continentes e o encontro de atletas e ideais de todo o mundo nos Jogos Olímpicos. O chamado Movimento Olímpico é constituído pela ação concertada, organizada, universal e permanente, exercida pela autoridade suprema do COI, e por todos os indivíduos e entidades inspiradas pelos valores do olimpismo. Esse movimento estende-se aos cinco continentes e 2. O Movimento Olímpico, o olimpismo e a educação olímpica 4 Como estudioso da pedagogia educativa, orientado pelo mestre Thomas Arnold, na Escola de Rugby na Inglaterra, o barão de Coubertin trabalhou em prol de dois grandes objetivos: implantar, na França, a língua inglesa e a prática privada de esportes sem finalidade de competição, como era praticado na Inglaterra. atinge o seu ponto culminante na reunião de atletas de todo o mundo durante os Jogos Olímpicos, o que justifica o seu símbolo oficial constituído pelos cinco anéis interlaçados. Desde o seu renascimento, com interrupções apenas durante as duas Guerras Mundiais, os Jogos Olímpicos têm sido realizados de quatro em quatro anos, com a participação crescente de atletas e representantes mundiais do esporte. Em 1896, em Atenas, os registros indicam a presença de representantes de 13 países, com um total de 285 atletas. Em 1972, em Munique, os números foram de 121 países e 8.500 atletas. Na última edição dos Jogos Olímpicos, em agosto de 2012, em Londres, Inglaterra, 40 anos depois, um total de 23 países foi representado por 11.028 atletas, sendo que 257 atletas entre esses eram da delegação brasileira. Se, por um lado, esse crescimento representou a vitória do ideal olímpico moderno, por outro lado, provocou, no mundo dos esportes, uma série de problemas que os estudiosos atribuem ao próprio gigantismo dos Jogos. Com o tempo, tornou-se cada vez mais difícil organizá-los, pelo altíssimo investimento financeiro que representam e pelo prestígio político que passaram a conferir aos países com mais vitórias e medalhas conquistadas. Associado a isso, há a presença da dopagem (doping) e de outros meios ilícitos nas competições esportivas. O objetivo do olimpismo consiste em colocar o esporte a serviço do desenvolvimento harmonioso do ser humano, tendo em vista a promoção de uma sociedade pacífica e que preserve a dignidade humana. Na opinião de Tubino (2007), o Movimento Olímpico (ou olimpismo) é a manifestação suprema do esporte internacional; envolve toda a ética esportiva e é a principal referência esportiva que objetiva a paz mundial. No contexto dos registros efetivos, o olimpismo tem como documento fundamental a Carta Olímpica. Esse documento regula todos os procedimentos das entidades olímpicas, inclusive do COI e dos Comitês Olímpicos Nacionais. As principais manifestações do olimpismo são, obviamente, as Olimpíadas (também chamadas de Jogos Olímpicos de Verão) e os Jogos Olímpicos de Inverno. No entanto, a sua principal missão, desde Coubertin, consiste em fomentar e expandir a ética esportiva conhecida como espírito olímpico, que é representado por uma diversidade de símbolos, emblemas e rituais: os anéis olímpicos, o lema citius, altius, fortius (“mais rápido, mais alto, mais forte”), os mascotes, a bandeira olímpica, os juramentos etc. Esse conteúdo ético, acompanhado da amplitude político-cultural do olimpismo, fazem do Movimento um dos mais importantes da contemporaneidade. A Carta Olímpica resume os princípios fundamentais do olimpismo e define a organização e o funcionamento do Movimento Olímpico. Com base nela, cabe destacar, a seguir, os princípios do olimpismo: a) O olimpismo é uma filosofia de vida que exalta e combina, de forma equilibrada, um conjunto de qualidades do corpo, da vontade e do espírito. Aliando o esporte à cultura e à educação, o olimpismo visa a criar um estilo de vida fundado no prazer do esforço, no valor educativo do bom exemplo e no respeito pelos princípios éticos universais. b) O propósito do olimpismo é de colocar o esporte a serviço do desenvolvimento harmonioso do ser humano, com vistas a promover uma sociedade pacífica e empenhada na preservação da dignidade humana. c) O Movimento Olímpico consiste na ação concertada, organizada, universal e permanente de todos os indivíduos e entidades que são inspirados pelos valores do olimpismo, sob a autoridade suprema do COI. 12 Caderno de referência de esporte 13 Valores no esporte d) A prática do esporte é um direito do homem. Todo e qualquer indivíduo deve ter a possibilidade de praticar esporte, sem qualquer forma de discriminação e de acordo com o espírito olímpico, o qual requer o entendimento mútuo, o espírito de amizade, de solidariedade e de fair play. A estrutura, a administração e a gestão do esporte devem ser controladas por organizações esportivas independentes. e) Toda a forma de discriminação relativa a países ou pessoas, com base em raça, religião, política, sexo ou outro, é incompatível com a pertença ao Movimento Olímpico. f ) Pertencer ao Movimento Olímpico exige o respeito à Carta Olímpica e o reconhe- cimento pelo COI. Segundo informações divulgadas no portal do Comitê Olímpico Brasileiro5 (COB), recentemente reformulado, de acordo com a Carta Olímpica, o Comitê Olímpico Internacional (COI), as Federações Internacionais dos Esportes (FIs) e os Comitês Olímpicos Nacionais (CONs) devem trabalhar juntos para promover esse movimento olímpico. Unidas, essas entidades devem contribuir para a construção de um mundo melhor pautado em uma consciência democrática, humanitária, cultural e ecológica por meio da prática esportiva. Conforme informações disponibilizadas em seu site oficial6 e na cartilha “Mundo olímpico”7, o olimpismo é uma filosofia de vida que utiliza o esporte como instrumento para a promoção da paz, da união, do respeito por regras, adversários e diferenças culturais, étnicas e religiosas. Sua base é formada pela combinação entreesporte, cultura e meio ambiente, e seu objetivo consiste em contribuir para a construção de um mundo melhor, sem qualquer tipo de discriminação, encarando o esporte como um direito de todos. Tem como ideal a participação em massa, a educação, a integração cultural e a busca pela excelência por meio do esporte. Seus valores têm por base a excelência, a amizade e o respeito, considerando-se ainda a compreensão mútua, a igualdade, a solidariedade e o fair play (jogo limpo) como princípios fundamentais do olimpismo. Esses são pressupostos que devem ser aplicados para além do esporte, no dia a dia e na vida de cada um de seus participantes. Nessa perspectiva, para o COB, o barão Pierre de Coubertin teria recriado os Jogos Olímpicos da Antiguidade com o intuito de propagar esses valores. Além do caráter ideológico da iniciativa do Movimento Olímpico, ele acreditava que a realização da competição era necessária para incentivar a integração entre as nações e seus povos – uma tendência crescente no fim do século XIX. De acordo com Barbosa e outros, o barão Pierre de Coubertin procurou difundir o Movimento Olímpico dentro de uma filosofia de reforma social, baseada no valor educacional do esporte (ideal olímpico) (BARBOSA et al. apud REPPOLD FILHO, 2009). Nessa direção, o COI criou estratégias que, entre outras metas, visam a promover os valores olímpicos. Entre essas estratégias, encontram-se programas educacionais de valores olímpicos que, segundo documento do COI (2008), foram construídos em uma base sólida, na qual se sustentam as seguintes ideias: a criação de bancos de dados interativos e a promoção de valores olímpicos de excelência, amizade e respeito. 5 Disponível em: <http://www.cob.org.br/movimento-olimpico>. 6 Disponível em: <http://www.cob.org.br/buscar?q=olimpismo>. 7 Disponível em: <http://www.cob.org.br/uploads/midias/2012/08/24/downloads/Wnt7r8zHvYLg4F3RjN8255fb77.pdf>. Entretanto, cabe destacar que o movimento esportivo8, em termos mundiais, encontra- -se em profunda crise de mudança. Problemas relativos à corrupção, a dopagem, à exploração do trabalho infantil, à chamada economia subterrânea, à mercantilização e à violência, entre outros, comprometem e denigrem a imagem do esporte moderno. Com isso, é necessário pensar sobre o papel do esporte no contexto da vida humana, sob pena de ele se transformar definitivamente em uma simples forma de alienação das massas, em sociedades que caminham tendencialmente para a perda de princípios e de valores. 2.1. O papel do esporte Em 2008, Noleto destacou o papel do esporte no processo de formação e de desenvolvimento humano, destacando a seguinte ideia: “Quando você dá uma bola a um menino, incute nele um sentido e uma direção”. Para Noleto (2008), essa simples frase, dita por um professor de educação física, resume os efeitos positivos que as atividades esportivas exercem na formação das crianças e dos jovens. Além de integrá-los – bem como as suas comunidades –, a oferta de atividades esportivas, artísticas e culturais ajuda na socialização e na reconstrução da cidadania. A atividade esportiva contribui para o desenvolvimento de competências cognitivas, afetivas, éticas, estéticas, de relação interpessoal e de inserção social. A distribuição de papéis, o convívio com as regras, a relação estabelecida entre a vitória e o fracasso e, por fim, a rivalidade e a cooperação, cultivam valores e comportamentos condizentes com as próprias bases democráticas sobre as quais se fundamentam a sociedade contemporânea. Nesse sentido, sem perder de vista suas dimensões tradicionais, o esporte é também reconhecido, atualmente, como essencial para a cidadania, o respeito aos direitos humanos, a inclusão social e o combate à violência, sendo um fator que pode contribuir decisivamente para a formação de uma cultura de paz e de não violência, na perspectiva do objetivo mais geral das Nações Unidas e para o desenvolvimento, tendo como paradigma a sustentabilidade. Essa trajetória de mudanças em relação ao esporte vem sendo percorrida de forma gradativa, mas constante. De acordo com Tubino e Maynard da Silva, “o esporte, como um dos fenômenos mais marcantes da transição do século XX para o século XXI, teve, na Carta Internacional de Educação Física e Esporte (UNESCO, 1978), o seu marco de mudança de paradigma” (TUBINO; MAYNARD, 2006). Até então restrito ao conceito do esporte de rendimento, o esporte passou a ser compreendido como um direito de todos, expandindo-se para abranger o esporte na escola, o esporte-lazer e o de desempenho, sendo incluído no sistema educacional e na vida social. Para Noleto (2008), essa nova perspectiva proporciona ao esporte um caráter muito mais abrangente, fortemente associado ao desenvolvimento sustentável, com ênfase na inclusão social. A Organização das Nações Unidas defende que o esporte pode 14 Caderno de referência de esporte 8 “Os movimentos esportivos continentais/regionais são aqueles movimentos que compreendem as diversas manifestações concentradas em continentes ou regiões na área do esporte. Os principais eventos desses movimentos são os Jogos, como os Jogos Pan-Americanos, os Jogos Centro-Americanos e do Caribe etc., além de congressos científicos e outros eventos localizados regionalmente (Jogos Mediterrâneos, por exemplo). Nesse contexto, o aumento ininterrupto do movimento esportivo mundial se deve ao surgimento de novas modalidades esportivas principalmente nas correntes esportes aventura/na natureza/radicais e esportes derivados de outros esportes. No Brasil, para que o campo social do esporte tenha uma evolução compatível com a aceleração do movimento esportivo internacional, será necessário considerar o quadro mundial em grande aceleração. Não há dúvida de que existe um progresso visível no esporte brasileiro, mas esta [sic] melhoria ainda está distante das possibilidades brasileiras de progresso no setor” (TUBINO, 2010). 15 Valores no esporte desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento de pessoas e de países, não apenas na complementação de políticas públicas de educação e de saúde, mas também na promoção do desenvolvimento pessoal e humano e na propagação de uma cultura de paz.9 Essa percepção levou as Nações Unidas a adotarem, em 2003, uma resolução intitulada “O esporte como um meio para promover a educação, a saúde, o desenvolvimento e a paz” (Sport as a Means to Promote Education, Health, Development and Peace), que se tornou o documento-base para a definição do ano de 2005 como o Ano Internacional do Esporte e da Educação Física. A prática de esportes constitui um direito universal, positivado em diversos instrumentos internacionais. Devido ao seu potencial para o desenvolvimento individual e coletivo, da mesma forma, é componente essencial para uma educação de qualidade. Por outro lado, sua inobservância erige barreiras ao fortalecimento do tecido social. Ciente disso, a UNESCO foi designada como agência-líder para a promoção da educação física e do esporte. No Brasil, a Organização tem se debruçado sobre o tema com especial afinco, inserindo-se em uma estratégia integrada voltada para a promoção do desenvolvimento humano e social (NOLETO, 2008, p. 34). 2.2. Possibilidades de contribuições dos valores olímpicos e de uma educação olímpica Entende-se que o olimpismo deve ser capaz de permitir que as gerações passadas estabeleçam um diálogo com as gerações atuais e futuras. O desenvolvimento sustentável dos territórios propõe um diálogo racional entre aqueles que transmitiram um legado esportivo, aqueles que momentaneamente o detêm e aqueles que, no futuro, irão recebê-lo. Se houver uma quebra em um dos elos desse diálogo, comprometer-se-á o desenvolvimento humano pretendido. Nesse domínio, o princípio olímpicoaqui defendido diz que “mais importante do que vencer é participar”, o que subverte completamente os ditames do esporte de alto rendimento, da quantificação de resultados, do recorde, do espetáculo, do profissionalismo precoce e de dirigentes que veem o olimpismo e os Jogos Olímpicos somente como instrumentos de promoção pessoal, e em que os atletas, principais atores envolvidos, são o que menos interessam. Para reforçar esse ideal, a educação olímpica, idealizada e consolidada na atualidade, caracteriza-se por um conjunto de atividades pedagógicas e de caráter multidisciplinar e transversal, tendo como eixo integrador os valores olímpicos (REPPOLD FILHO et al., 2009). Segundo Bechara, na obra de Reppold Filho e outros, Educação olímpica é o processo de educar para a vida, utilizando a prática esportiva como agente de promoção de saúde, socialização e cidadania, transmitindo sólidos valores morais de cooperação e solidariedade, ao mesmo tempo em que oportuniza o crescimento e o desenvolvimento do esporte, e consequentemente, de atletas (REPPOLD FILHO et al., 2009, p. 130). Considerando-se ainda esses autores, a lógica do processo de educação olímpica admite que uma base esportiva maior e mais consistente possibilitará que mais praticantes do esporte cheguem ao topo, ou seja, alcancem os índices e resultados 9 Essa ideia foi desenvolvida no documento intitulado “Esporte para o desenvolvimento e a paz: em direção à realização das Metas de Desenvolvimento do Milênio” (ONU, 2003). 16 Caderno de referência de esporte para representar seus países nos grandes eventos esportivos, como é o caso das Olimpíadas. Essa lógica vem sendo trabalhada pela Fundação Vale, na perspectiva do Programa Brasil Vale Ouro, uma vez que: a) entende o esporte a partir de suas três dimensões – educacional, de participação e de rendimento; b) entende que o ingresso dos participantes no Programa deve ocorrer por meio do esporte educacional (esporte-formação), estruturado como educação permanente em iniciação aos esportes (modalidades desenvolvidas no âmbito do Programa), criando oportunidades para o aprendizado da cultura de práticas esportivas que, associada à esfera ou dimensão do esporte de participação, torna possível o processo de seleção dos praticantes para o esporte de rendimento; c) entende que o esporte é um fenômeno social que necessita de integração e equilíbrio entre suas três dimensões ou manifestações mencionadas anteriormente; d) o aprendizado do esporte integra e socializa os participantes, criando oportunidades para a prática de valores morais de cooperação e solidariedade. Nesse sentido, o olimpismo deve ser direcionado ao desenvolvimento humano, respeitando os pressupostos defendidos no novo conceito de desenvolvimento humano da Fundação Vale (2013b), com referência ao pensamento de Amartya Sen (2008) segundo o qual “o desenvolvimento é, na verdade, um tremendo compromisso com as possibilidades da liberdade”. A liberdade dos indivíduos, que lhes confere a possibilidade de realizar as suas escolhas pessoais, organizar as suas vidas de forma independente, opinar sobre a organização política em que vivem, escolher quem os governa entre várias outras hipóteses, falar e associar-se sob seu arbítrio, lançar iniciativas econômicas autônomas; todos esses aspectos, em conjunto, são constitutivos da dignidade humana como valor intrínseco e indiscutível. A dignidade humana implica, por isso, que cada ser humano seja o detentor das capacidades e dos poderes de definir a sua própria vida naquilo que ela tem de essencial. Assim, a afirmação do potencial de cada indivíduo depende dessa esfera de ação própria e autônoma, sem intromissões e limitações, para que lhe permita ser útil a si mesmo e à comunidade em que vive. Como diz Sen, “uma maior liberdade reforça a capacidade das pessoas para ajudarem a si mesmas e também para influenciarem o mundo, sendo tais capacidades, fulcrais para o processo de desenvolvimento” (SEN, 2008). Com isso, entende-se que a ampliação das oportunidades de escolha dos indivíduos na sua trajetória de vida, bem como das suas comunidades, é condição primordial para a interação do ser humano com o mundo e assim, permite sua participação consciente nas construções coletivas que realmente contribuem para o desenvolvimento humano e social. Nesse sentido, de acordo com Fundação Vale, O principal objetivo da utilização de uma nova perspectiva de desenvolvimento humano para se pensar os objetivos dos programas e ações da Fundação Vale está em entendê-los como uma estrate ́gia estruturada intertemporalmente para a promoça ̃o da autonomia e do bem comum das pessoas, por meio de intervenções territoriais de natureza local (FUNDAÇÃO VALE, 2013b). 17 Valores no esporte Esse processo de desenvolvimento vem ao encontro do entendimento que as Nações Unidas têm de desenvolvimento humano, pois supõe muito mais do que o mero crescimento econômico, normalmente expresso pelo Produto Interno Bruto (PIB) per capita. A perspectiva ampla e plural que subjaz ao quadro conceitual do processo de desenvolvimento humano alia a expansão dos mercados ao desenvolvimento das oportunidades sociais, e realça as liberdades, tais como os direitos democráticos, as garantias de segurança, as ocasiões de cooperação e outras, como elementos indissociáveis desse mesmo processo. Por isso, como reafirma Amartya Sen: Os direitos políticos, incluindo a liberdade de expressão e debate, são não só fulcrais10 para induzir respostas sociais às necessidades econômicas, mas também essenciais para a conceitualização das próprias necessidades econômicas (SEN, 2008). Dito de outra forma, a democracia política, com as suas diversas expressões imanentes, é inextricável11 da resolução dos problemas e das necessidades econômicas de qualquer sociedade moderna. E o olimpismo, ao estabelecer como seus valores constitutivos a dignidade humana, a construção de sociedades de paz, e o desenvolvimento harmonioso do ser humano, com o respeito por princípios éticos universais, não pode deixar de acompanhar os movimentos e os apelos internacionais que exprimam a conformidade com a observância desses valores, rejeitando as formas de opressão exercidas sobre indivíduos e povos. Nesse contexto, o olimpismo encontra-se do lado da liberdade e contra a tirania, do lado da dignidade do ser humano e contra a opressão. Subentende-se que o Movimento Olímpico e, consequentemente, o COI como autoridade olímpica, encontram-se do lado da liberdade, em respeito a esse princípio ético universal fundamental. No entanto, faz algum tempo que se acompanha que o pensamento da vitória a qualquer preço, culminando com a utilização de meios ilícitos (tais como a dopagem, a manipulação genética e os processos de naturalização, entre outros), tem desconsiderado os princípios do jogo limpo. Reconhece-se aqui um possível produto estabelecido pela influência do marketing e da mídia, que pressionam as entidades de representação do esporte e os atletas pela obtenção de melhores resultados. A orientação adequada durante todo o processo de preparação e, consequentemente, no dia da competição, é extremamente importante para o melhor desempenho dos participantes durante a atividade esportiva, durante o processo de desenvolvimento humano e durante a vida social como um todo. Vale ressaltar que o ideal é que todo aluno possa ter acesso às atividades esportivas de forma educacional, com base em princípios como participação, cooperação, interação etc., e que não pense em ser um esportista ou atleta bom e correto apenas no dia da competição ou do jogo: ele deve ter essa prática em seu dia a dia. O espírito esportivo abrange o respeito às regras, aos adversários, aos colegas, aos treinadores e ao público. Envolve treinamento exaustivo e dedicação constante, muitas vezes sem seesperar nada em troca. 10 No sentido de fundamentais e centrais. 11 No sentido de que não se pode desenredar ou desemaranhar. 18 Caderno de referência de esporte Para isso, parte-se do entendimento de que, quando pautada por valores e pela ética, a competição inspira o esportista à superação e à cooperação. As pessoas tendem a compartilhar suas estratégias e a perceber que podem ganhar juntos, independentemente da possibilidade de serem vencedoras ou perdedoras em determinada disputa. Assim, para ganhar, não necessariamente o outro precisa perder. Essa afirmação encontra respaldo na definição de competição segundo a qual ela é um encontro social entre dois ou mais indivíduos no qual existe um embate consciente por um objetivo comum que tende a estabelecer a supremacia de um dos lados (SPARKES apud FERREIRA, 2000, p. 97). Outra definição de competição utilizada no âmbito do esporte está na comparação do desempenho de uma pessoa com algum padrão já existente, com outra pessoa ou com um grupo de pessoas na presença de pelo menos um indivíduo que conheça os critérios para essa comparação e possa avaliar o processo. Esse padrão pode ser um resultado pessoal, um recorde ou uma obtenção de vitória sobre um adversário ou uma equipe (DE ROSE JR., 2002, p. 69). Na primeira definição, percebe-se a presença de um parâmetro que permite a comparação dos resultados obtidos para se alcançar um objetivo comum, enquanto que a segunda destaca de forma mais evidente que o objetivo da competição é a busca da vitória. Stigger (2002) também nos auxilia a entender que a quantificação e a busca do recorde expressam claramente as principais características incorporadas pela sociedade moderna ao esporte. A primeira exprime a necessidade de medir os feitos esportivos por meio de determinada pontuação, como a diferença de gols no futebol, ou de pontos no voleibol, além de medidas de tempo e distância em outros esportes como o atletismo, por exemplo. A segunda soma a tendência de quantificar à vontade de alcançar a vitória, de modo a enfatizar a comparação e progressão do rendimento. Vale a pena destacar que, por meio da busca do recorde, há competição mesmo que não exista encontro direto entre os participantes em determinado lugar ou tempo, fato comum na natação, no atletismo, entre outras modalidades (STIGGER, 2002). Destaca-se que, associada à primeira definição de competição apresentada (SPARKES apud FERREIRA, 2000), a valorização extrema da vitória sobre os oponentes dá lugar ao prazer em participar da atividade, sem se abster da lógica da modalidade em questão, que geralmente se configura na busca da superioridade no placar. Dessa forma, existe o desejo pela vitória e a sua constante busca, mas esta participação efetiva é regulada pelo respeito aos companheiros de time, bem como aos parceiros do time adversário, pois sem eles é impossível vencer. No entanto, essa questão que, muitas vezes, passa despercebida, sobre os reflexos que essa ênfase exacerbada na competição acarreta na construção de signos ou significados internos aos alunos, reforçando a indicação de que o “espírito” do esporte foi deturpado em seu percurso histórico, resultando na busca quase que irracional12 por resultados a qualquer custo ou preço. 12 O sentido de irracional no texto refere-se a uma busca “a qualquer preço”, mesmo que os padrões da racionalidade humana devam ser extrapolados. Um exemplo disso é o fato de um esportista chegar a vomitar por exigir esforço demasiado de seu organismo para finalizar uma prova a qualquer custo. Para desmistificar o caráter maligno da competição para o meio educacional, é importante considerar a afirmação de Ferraz a respeito disso. Para ele, [...] a competição em si não é boa ou má, ela é o que fazemos dela. Além disso, especificamente em relação à competição esportiva, pode-se encontrar efeitos negativos em quaisquer idades, dependendo das condições em que é realizada e de seu contexto (FERRAZ apud DE ROSE JR., 2002, p. 37). O esporte é um dos fenômenos sociais de maior alcance, e pode-se caracterizá-lo como globalizante. Tem aceitabilidade em todas as culturas e etnias, além de ser político, como um fim e como um meio. Existem leis e normas que regulam a prática do esporte para a população em geral, mas, na maioria das vezes, não são colocadas em prática. Há um abismo entre o que está escrito e o que existe na realidade. Assim, nem tudo o que o esporte ensina é positivo e correto. “Cavar” um pênalti para ganhar o campeonato, fazer uso de ciclos de anabolizantes para ficar maior, mais forte e mais rápido, valer-se da federação para beneficiar o próprio clube, são algumas estratégias utilizadas por aqueles que veem o esporte como negócio e não se importam com o papel pedagógico que ele pode oferecer e exercer sobre os indivíduos e sobre uma sociedade. Por isso, pergunta-se: o que se pretende ensinar quando é mostrado para aqueles que encontram ídolos e modelos no esporte e, ao mesmo tempo, presenciam atitudes desonestas na prática? É inegável que os feitos sobre-humanos de grandes atletas e equipes inspiram as pessoas. No entanto, e quando se depara com comportamentos esportivos contraditórios à condição humana? Ou quando atitudes são deixadas de lado em função de uma paixão clubística? Ou ainda, quando seleções nacionais fazem “corpo mole” para cruzar com um adversário teoricamente menos expressivo no decorrer de um campeonato? Diante desses fatos, que tipo de valor pode ser agregado para as crianças, adolescentes, jovens e demais espectadores do esporte? Acredita-se que o esporte tem muito a ensinar e que seja capaz de fazê-lo, desde que utilizado como ferramenta digna e lícita, seja no meio escolar ou fora dele. Na prática de uma modalidade esportiva, é possível aprender virtudes, valores e verdades, conhecendo, fazendo, refletindo e sentindo. É possível aprender habilidades sociais que podem ser generalizadas para a vida, como tolerância à frustração, empatia em relação ao próximo, busca por objetivos comuns e individuais, disciplina, respeito à diversidade e às diferenças, superação, cooperação, autoconhecimento etc. A competição, por sua vez, é o combustível de qualquer modalidade esportiva e pode ser realizada de maneira leal, honesta e saudável. Ela não precisa ser predatória, desumana ou imoral, como se verifica em muitos aspectos da vida em sociedade. A competição deve exacerbar a meritocracia, deve ser prazerosa e compreendida como algo natural no cotidiano das pessoas. Baseado nisso, pode-se dizer que a forma como o professor insere esse valor nas atividades esportivas, bem como a postura assumida frente ao fenômeno competitivo, tem grande importância no momento das aulas. Esse posicionamento frente à competição fica evidente no momento de apontar acertos e erros, ou de corrigi-los, bem como na forma de cobrar melhor empenho e desempenho dos participantes do Programa Brasil Vale Ouro. A Fundação Vale (2013a) entende que a pedagogia da cooperação13 pode ser uma alternativa para evitar esses problemas em relação à competição exacerbada, além da possibilidade de estimular a convivência harmoniosa por meio da cooperação. 19 Valores no esporte 13 Sobre o assunto, ver o caderno de referência 12 desta mesma série, intitulado "Pedagogia da cooperação", de autoria de Fábio Otuzi Brotto e Denise Jayme de Arimatéa. De acordo com Brotto (2001), uma das principais características dos jogos cooperativos é a necessidade de superar desafios de modo conjunto, ou seja, a ação de um jogador está condicionada ao êxito de outros jogadores nas suas respectivas ações. Por isso, joga-se de forma cooperativa por um mesmo objetivo final. Nas atividades, joga-se pelo prazer em participar e colaborar com a equipe e não para vencer o oponente. Assim, ao invés de alunos excluídos daprática, o que ocorre é a promoção da participação efetiva de todos envolvidos nela. Dessa forma, os jogos cooperativos procuram desenvolver nos participantes a confiança para encarar as situações adversas, por meio da diminuição da pressão da competição, ao mudar o foco do fracasso ou do sucesso individual para as conquistas do coletivo. Walker (1987), citado por Brotto (2001), ao apontar diferenças marcantes dos jogos cooperativos com relação aos jogos competitivos, afirma que os primeiros têm a dimensão coletiva do divertimento e do alcance da vitória, enquanto que nos segundos apenas alguns se divertem e alcançam a vitória, enquanto que outros sofrem com o mau desempenho e saem como perdedores. Afirma, ainda, que, nos jogos cooperativos, há participação de todos, independentemente do nível de habilidade; não há divisão do grupo por gênero, o que sugere aceitação das diferenças individuais. Há também o estímulo para que o indivíduo aprenda a compartilhar, confiar e a solidarizar-se com os outros, de modo a desejar o êxito do próximo. As contradições encontradas nos jogos competitivos com relação a esses quesitos consistem na exclusão de indivíduos menos hábeis e na divisão entre meninos e meninas, reforçando o preconceito. Há estímulo do individualismo, do egoísmo e da desconfiança, além do desejo do fracasso do adversário (BROTTO, 2001). Para Favaretto, Vaz e Pretto (2004), esse processo tem origem na maneira como são repassados os valores sobre derrota, vitória e competição, entre outros, que definirão quais signos ou significados os alunos – e a sociedade – assimilam como próprios. No sentido de aprofundar esse debate, o fair play e a dopagem são temas de grande relevância e abrangência no processo de reflexão e de construção dos valores do e no esporte14. Apresentam-se relacionados ao contexto mais amplo de entendimento da prática esportiva e das escolhas do ser humano, para superar seus limites individuais e garantir seu reconhecimento social diante das exigências olímpicas15 nacionais e internacionais. 20 Caderno de referência de esporte 14 Essa distinção é apresentada pela professora Marta Gomes da Universidade Gama Filho (RJ) (DaCOSTA et al., 2007, p. 15). 15 Nesse tipo de competição, os códigos ou sentidos vigentes são pautados nas competições oficiais, de modo a supervalorizar a vitória e a desconsiderar os participantes que não vencem, o que culmina com a exclusão dos que não apresentam bons resultados. Os objetivos desse tipo de evento são destoantes dos objetivos e da função da escola (REVERDITO et al., 2008). 21 Valores no esporte Ao retomar alguns itens elencados nos tópicos anteriores, pode-se perceber como o conceito de fair play está relacionado à prática pedagógica do esporte, quando é pensada a partir do jogo e dos ideais de uma educação olímpica contemporânea. O Manifesto do Fair Play (CÂMARA MUNICIPAL DE OEIRAS, 2000), um dos principais documentos esportivos do século XX, estimula a promoção do fair play em todos os âmbitos em que o esporte se manifesta: esporte de alto rendimento, esporte de participação, esporte de inclusão social e esporte na escola. O fair play tem sido considerado um dos principais valores do esporte moderno, ao orientar a conduta dos participantes para o respeito às regras, aos árbitros, aos adversários, e aos princípios da igualdade e da não violência.16 3.1. Conceitos básicos O Movimento pelo Fair Play compreende todas as manifestações, ações e entidades que defendem e protegem o exercício do fair play nas práticas esportivas; as principais são relacionadas a seguir: a) a ação do Comitê Olímpico Internacional (COI) e da Academia Olímpica Internacional (AOI); b) a ação do Comité International pour le Fair Play17 (CIFP); c) a ação das Federações Esportivas Internacionais; d) as ações e manifestações europeias pelo fair play; e) a ação efetiva do Panathlon Internacional; f ) a ação da Foundation of Olympic and Sport Education18 (FOSE); g) a ação da Câmara Municipal de Oeiras19 (Portugal); h) ações e campanhas organizadas por organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com o Manifesto do Fair Play (COMITÉ INTERNATIONAL POUR LE FAIR PLAY, 1976 apud TUBINO, 1985), esse valor é entendido como uma forma de ser do esportista, baseada no respeito a si mesmo e que implica honestidade, lealdade, atitude firme e digna diante de um comportamento desleal; respeito aos colegas de time; respeito aos adversários, vitoriosos ou vencidos, com a consciência de que ele é o companheiro indispensável a quem os demais se unem em camaradagem 3. Fair play 16 Para Kolyniak Filho (2007), a violência, considerada um fenômeno mundial, resulta de múltiplas determinações, sendo a violência no esporte uma das suas manifestações dentro da multiplicidade de enfoques. Educação familiar, educação escolar, meios de comunicação social, instabilidade política e social, fatores genéticos, características neurofisiológicas, difusão do uso de drogas e ideologias são exemplos de fatores que causam a instauração e a manutenção da violência. Para além das manifestações violentas no âmbito da prática esportiva em si, na atualidade ocorrem manifestações de violência entre grupos de torcedores e destes em relação a pessoas não relacionadas aos eventos esportivos. Nesse quadro, destacam-se os confrontos entre torcedores – que resultam em ferimentos graves e mesmo em mortes, não raro de pessoas que não fazem parte das torcidas –, e a depredação e saque de bens e serviços públicos e privados. 17 Em tradução livre, é o Comitê Internacional para o Fair Play (CIFP). 18 A Fundação para a Educação Olímpica e Esportiva (em tradução livre), entidade grega não governamental, sediada em Atenas e dedicada à divulgação dos valores do olimpismo, tornou-se importante referência para os temas a serem abordados em um programa de educação olímpica, e é responsável pela obra “Be a Champion in Life: international teacher’s resource book” (2000) (REPPOLD FILHO et al., 2009, p. 179). 19 A Câmara Municipal de Oeiras, cidade pertencente ao distrito de Lisboa (Portugal), é uma organização governamental responsável por um dos programas pioneiros e mais difundidos de promoção do espírito esportivo no mundo. 22 Caderno de referência de esporte esportiva; respeito às autoridades locais (árbitros e dirigentes) e respeito positivo, expresso pela constante vontade de colaborar com todos os envolvidos na atividade ou no jogo. Parte-se do entendimento de que alguns conceitos básicos do fair play são: o respeito às regras, o respeito ao árbitro e a aceitação de suas decisões, o respeito ao adversário, o desejo de igualdade, e a dignidade (não violência). Aqui, destaca-se também o papel dos pais, dos treinadores e dos atletas profissionais na busca da prática do jogo limpo e honesto. O fair play possibilita que os esportistas guardem uma distância adequada nas situações críticas de competição, mantendo condições competitivas iguais e uma atitude digna na vitória e na derrota (TUBINO; SILVA, 2006). Nesse sentido, presume-se que o indivíduo possa receber uma formação ética e moral respaldada nos valores da honra, da lealdade e do respeito pelos outros e por si próprio, que indique que, para competir, o atleta não necessita fazer uso de outros meios que não a própria capacidade para superar a si mesmo e aos outros. Para Biliatti (s.d.), pode-se afirmar que os valores do fair play foram referência para a prática esportiva durante muito tempo, mesmo que por vezes tenham sido transgredidos. Dessa forma, pode-se perceber que essa expressão, conforme indicado anteriormente, tem uma forte origem aristocrática, caracterizada pela riqueza e pelo poder que os aristocratas detinham na sociedade inglesa da época. Fica evidente que o barão de Coubertin,organizador do Movimento Olímpico contemporâneo, foi fortemente influenciado pelos princípios da aristocracia inglesa, incorporando ao seu ideário olímpico a noção do comportamento cavalheiresco no esporte. Logo, o conceito de jogo limpo reflete o sentimento dessa época em relação ao esporte e, portanto, está repleto dos ideais e princípios característicos daquela sociedade. A expressão fair play compartilha com o termo olimpismo uma diversidade de interpretações e de significados. O senso comum a traduz como espírito esportivo ou jogo limpo, mas sem contemplar o cerne da questão que é a elucidação do conceito. Para Katia Rubio (2001), o fair play presume uma formação ética e moral do atleta que pratica determinada modalidade e se relaciona com os demais competidores, e que esse atleta não fará uso de outros meios que não a própria capacidade para superar os oponentes. Nessas condições, não se admitem formas ilícitas que objetivem a vitória, o suborno ou o uso de substâncias que melhorem o desempenho. De acordo com Tavares (1999a), o fair play, como conjunto de valores normativos do comportamento individual e coletivo no ambiente das competições atléticas, reflete a construção de um ambiente cultural específico; ou seja, por mais que tenha ocorrido uma universalização dos valores esportivos atuais, é preciso contextualizar, do ponto de vista cultural, as transformações que eles sofreram ao longo do século XX, desde que foram formulados por Pierre de Coubertin. Apesar de ser caracterizado por uma abordagem normativa e conservadora do comportamento esportivo, o fair play serviu durante longo tempo como orientação para os protagonistas dos espetáculos esportivos. Assim como o conceito de amadorismo20 foi abolido ou esquecido no olimpismo, assistiu-se igualmente a uma 20 O amadorismo é tanto uma afirmação do desprendimento dos atletas em relação a qualquer tipo de interesse que não exclusivamente a prática esportiva, quanto à capacidade moral de realizar um combate respeitando as regras que o definem. O termo é utilizado de forma antagônica a profissionalismo (RIBEIRO, 2008). 23 Valores no esporte mudança no que se refere ao fair play. Tavares (1999b) diz que essa transformação deve-se ao fato de que o esporte vem sofrendo “deslocamentos de sentido” nos últimos 30 anos, o que aponta para uma possível relativização dos valores tradicionais ligados à prática esportiva, entre eles o fair play. Partindo da importância que o fenômeno esportivo adquiriu na atualidade, Portela (1999) afirma ser prudente considerar o esporte como um dos agentes de formação de códigos éticos e de condutas morais. Sua contribuição ao pensamento e ao comportamento ético do indivíduo torna o fair play o fio condutor da transmissão de valores. Isso quer dizer que ele pode ser aceito como a ideia de se educar o ser humano para a reciprocidade e para o respeito à diversidade, igualmente desenvolvendo o conceito de semelhança, o que permite a identificação com o outro, a percepção das necessidades do oponente, e o entendimento de que o vencedor e o vencido relacionam-se em um lapso temporal denominado momento. O Código de Ética Esportiva elaborado pelo Conselho da Europa (1996) ressalta que o fair play vai além de um simples comportamento e que significa muito mais do que o simples respeito às regras: abrange as noções de amizade, de respeito pelo outro e de espírito esportivo; representa um modo de pensar que é essencial para toda atividade esportiva e humana. Além de atuar na delimitação de regras, regulamentos e códigos, o fair play atuará sempre contra a dopagem, a violência – tanto física quanto verbal –, a desigualdade de oportunidades, a comercialização excessiva e a corrupção, sendo entendido como uma aprendizagem de comportamentos para a própria vida. Segundo Gonçalves, o espírito esportivo constitui uma noção difícil de definir. Não é, contudo, difícil reconhecer algumas dimensões da questão: lealdade, honestidade, aceitação das regras, respeito pelos outros e por si próprio, igualdade de oportunidades [...] tantos são os elementos associados à ideia de espírito desportivo (GONÇALVES, 1996). Para essa autora, bem como para a Carta sobre o Espírito Desportivo (La Régie de la Securité dans les Sports du Québec, 1984), o fair play identifica-se e interage com o conceito de espírito esportivo, que é explicado pelas atitudes dos praticantes e se manifestando por meio dos seguintes aspectos: a) respeito pelas regras; b) respeito pelos árbitros e aceitação de suas decisões; c) respeito pelo adversário; d) desejo de igualdade; e) dignidade; f ) mesmo sem nunca deixar de lutar pela vitória. 24 Kroll aponta que, mesmo que todos soubessem o que significa o espírito esportivo, dificilmente alguém poderia propor uma definição que merecesse aprovação universal (KROLL apud GONÇALVES, 1988). Martens corrobora esse pensamento, na medida em que afirma que o “espírito esportivo é algo de que julgamos conhecer o sentido, mas que consideramos difícil definir com exatidão” (MARTENS apud GONÇALVES, 1988). Apesar da diferença contextual observada entre esses autores, é possível perceber uma unidade na definição de fair play, pois para todos ele representa o mesmo ideal, o de uma conduta ética para com o esporte e em relação aos demais envolvidos nessa prática. Por isso, pode-se dizer que o espírito esportivo abrange tudo que diz respeito ao esporte, desde os testes realizados em laboratórios até técnicas diferentes empregadas por um atleta para levar vantagem nas competições. Tomando o espírito esportivo como um conceito mais amplo e que também faz parte do desenvolvimento humano, pensa-se que ele deve transcender o campo esportivo e fazer que as pessoas que expressam tal virtude nas práticas esportivas mantenham, na sua vida em sociedade, as mesmas atitudes. No entanto, o esporte está sujeito a direcionamentos de acordo com intenções externas manifestadas pela sociedade vigente, como, por exemplo, a intenção de transformá-lo em mais uma mercadoria a serviço da sociedade capitalista, adquirindo sempre novos significados. Em outras palavras, o esporte é um jogo de significados intrínsecos, mas que se tornam extrínsecos de forma variada no tempo e no espaço (PEIL, 2000). Em outras palavras, o esporte é feito por homens com vontade e intenção próprias que, para manter-se no meio esportivo, estão sujeitos às influências da sociedade e da época em que vivem. Para Rufino e outros (2005), o esporte no século XIX se caracterizava em grande parte pelo amadorismo, pela diversão, pela união entre as pessoas, e era muito utilizado como um passatempo. O cavalheirismo era enaltecido, a ética predominava, e a formação moral e corporal dos participantes não possuía aparato científico quanto ao seu planejamento e execução; o lucro não era significativo e não tinha tanta influência como na contemporaneidade. Devido à fundamentação científica, levando-se em consideração os valores capitalistas do rendimento, da autopromoção e do lucro, também encontrados no âmbito do esporte atual, passou-se a aceitar a intervenção da ciência como meio de ampliar as oportunidades de vencer a todo custo. A utilização de substâncias proibidas (doping ou, em português, dopagem) para se alcançar um alto desempenho, a mídia, a política, a agressividade, a competitividade, a estética, podem ser indicados como fatores influentes da prática esportiva contemporânea. Caderno de referência de esporte 25 Valores no esporte Nesse contexto, a defesa do fair play no esporte começou com a restauração do Movimento Olímpico em 1984, em Paris, na França, pelo barão Pierre de Coubertin, que constituiu os pilares da ética esportiva do final do século XIX. A exacerbaçãodo esporte de alto rendimento ou de desempenho, apesar de ir contra os ideais do fair play, acaba por despertar nas entidades, na população e nas autoridades nacionais e internacionais a força necessária para reagir e tomar atitudes contra os meios ilícitos que permeiam o esporte atual. Essas ações e movimentos podem ser observados no contexto histórico contemporâneo. Como indica Tubino (2006), em 1973 o Comitê Internacional Provisório dos Troféus Fair Play Pierre de Coubertin se transformou no Comité International pour le Fair Play (CIFP) que, entre 1975 e 1976, editou o Manifesto do Fair Play21, documento no qual foi apresentado seu conceito e estabelecidas as responsabilidades correspondentes. Cabe, portanto, aos profissionais envolvidos na prática esportiva, pensar e colocar em prática soluções para “frear” o declínio pedagógico do espírito esportivo na sociedade atual. Tais soluções devem incluir a revisão do processo de gestão e administração esportiva mundial, a elaboração de novas regras, novos incentivos a atitudes de fair play e a promoção de uma educação desde a infância voltada para a ética (RUFINO et al., 2005). Nesse sentido, o esporte tem a qualidade e o poder de conferir valores e normas à sua prática, auxiliando na formação cultural e social dos indivíduos. Entretanto, é preciso repensar que valores têm sido difundidos pelo esporte e se eles estão de acordo com o contexto social que se pretende construir. Os valores devem ser enfatizados por meio de uma postura ética em relacionamentos interpessoais. Segundo Rufino e outros (2005), no esporte, esse parâmetro é trabalhado por meio do respeito mútuo, da honestidade, do cavalheirismo, do respeito pelas regras, ou seja, por meio do fair play. Vê-se que a contribuição do esporte para o pensamento e para o comportamento ético do indivíduo também se torna de suma importância para sua formação, sendo que o fair play pode ser o fio condutor da transmissão dos valores que orientam a aquisição dessa conduta ética, por meio da atual educação olímpica. Devido ao fato de os valores estarem passando por mudanças no comportamento de cada indivíduo, a identificação de atitudes antiéticas nos jovens atletas é de vital importância para se entender melhor o processo pelo qual eles tomam suas decisões em situações esportivas e do seu dia a dia. 21 A última edição do manifesto encontra-se disponível, em inglês e em francês, no site do CIFP (INTERNATIONAL FAIR PLAY COMMITTEE, 2010). A versão em português do manifesto pode ser encontrada no site do Centro Esportivo Virtual, disponível em: <http://cev.org.br/biblioteca/manifesto-sobre-o-fair-play/>. A crítica mais severa que se faz ao esporte é que ele teria assumido os valores capitalistas, procurando cada vez mais o lucro e o rendimento a qualquer preço. Nessa busca frenética pela vitória, a ética adquire um caráter duvidoso, pois os fins justificam os meios; assim, Peil (2000) cita a dopagem como um exemplo dessa distorção. O esporte caminha mais lentamente no sentido da evolução científica e tecnológica, como mostra Souza. Para ele, a ciência também passa a ser incorporada ao processo de produção do esporte e, por consequência, da educação física, com o objetivo de torná-los mais eficientes. Com isso, todas as fases do processo de desenvolvimento do esporte passam a ser analisadas cientificamente, e todas as técnicas são propostas com base em conhecimentos empiricamente “corretos” e verificáveis (SOUZA, 1993, p. 127). Bertolo (2004) mostra que, em 2003, o tempo na prova dos 100m rasos do atletismo aumentou, após a intensificação da fiscalização e da descoberta de novos tipos de dopagem, o que indica que esse aumento no tempo dos competidores pode estar relacionado à menor utilização de dopagem. Isso mostra que se faz necessária uma maior conscientização dos praticantes esportivos acerca da importância do fair play para o esporte, uma maior fiscalização por parte dos órgãos reguladores do esporte e um maior incentivo às atitudes de jogo limpo. Conforme Rufino e outros (2005), atualmente, existe a dopagem genética, que não ocorre pela injeção, no corpo, de hormônios ou outras substâncias, mas sim pela transformação dos genes responsáveis pelas habilidades atléticas de uma pessoa. Portanto, deveria ser proposta uma reflexão por parte das organizações esportivas para que se pare de pensar apenas em métodos tradicionais de dopagem, e que se passe a debater um novo código de ética para o esporte. Como mencionado anteriormente, no mundo do esporte contemporâneo, os atletas são submetidos a um círculo vicioso de conquistas de títulos e medalhas, independentemente da forma ou do que for necessário fazer para que isso aconteça. Vencer a qualquer preço, por vezes, requer superar os limites físicos do ser humano. O aumento do uso de substâncias ou métodos proibidos, destinados a melhorar artificialmente o desempenho esportivo, motiva uma intensa ação de combate por parte de autoridades nacionais e internacionais. Aqui, o objetivo é evitar a ocorrência de uma vantagem desleal de um competidor sobre os demais, além de preservar os aspectos éticos e morais do esporte e, acima de tudo, a saúde do praticante. Entre os meios ilícitos utilizados no esporte, a dopagem é o mais preocupante, pelo fato de evoluir constantemente, dificultando sua fiscalização e detecção. Ribeiro e Puga (2006) reconhecem a dopagem como a negação dos valores intrínsecos e implícitos do esporte, como por exemplo: a ética, o fair play, a honestidade e, por que não dizer, a própria saúde, segundo o Código Mundial Antidoping (CMAD). 26 Caderno de referência de esporte 4. Contextualizando a dopagem 27 Valores no esporte A nova ordem internacional no combate e prevenção à dopagem, com o advento do CMAD, é reflexo da evolução experimentada pelo ser humano no domínio de novas tecnologias e da crescente tomada de consciência ética para o respeito aos princípios fundamentais da Carta Olímpica, especificados anteriormente. Assim, a dopagem é a antítese do esforço próprio, do bom exemplo, do respeito aos princípios éticos, do espírito de amizade, do fair play e do próprio espírito esportivo. Mais precisamente, é a distorção do ideário do esporte que conduz à utilização de substâncias ou métodos proibidos, que deturpa completamente aquele espírito esportivo inicialmente compreendido como a essência do olimpismo. De acordo com o breve histórico apresentado na obra de Ghorayeb e Neto (1999), no Brasil, o processo de combate à dopagem teve início por meio da Deliberação nº 5, de 18 de janeiro de 1972, do Conselho Nacional de Desportos (CND), que definiu doping como a ministração ou o uso de agentes estranhos ao organismo, ou de substâncias fisiológicas em quantidade anormal, capazes de provocar no atleta, no momento da competição, um comportamento positivo ou negativo, sem correspondência com sua capacidade orgânica ou funcional (GHORAYEB; NETO, 1999). Essa legislação foi revogada pela Portaria nº 531, de 10 de julho de 1985, do Ministério da Educação, que definiu doping como “a substância, o agente ou o meio capaz de alterar o desempenho do atleta por ocasião de competição desportiva” (BRASIL, 2004). No ano de 1967, foi constituída a Comissão Médica do Comitê Olímpico Internacional, que organizou o “Regulamento antidopagem do COI”, cuja primeira aplicação ocorreu na III Competição Desportiva Internacional, na Cidade do México, no mesmo ano e, posteriormente, nos Jogos Olímpicos de Verão e de Inverno, realizados respectivamente na Cidade do México e em Grenoble, na França, em 1968. Em 1999, as autoridades do esporte a partir do COI e autoridades públicas, na ocasião da realização da Conferência Mundial do Doping no Esporte, em Lausanne,na Suíça, projetaram como resultado concreto a criação da Agência Mundial Antidoping (World Anti-Doping Agency). De acordo com o artigo primeiro do Código Mundial Antidoping da WADA, a dopagem é definida como a verificação de uma ou mais violação das normas antidopagem enunciadas nos artigos 2.1 a 2.8 do presente código22. A Agência Mundial Antidoping (AMA, ou WADA, na sigla em inglês) divulga anualmente a lista de substâncias e métodos proibidos. Os esteroides são as drogas mais comuns. Além deles, a lista inclui o uso de estimulantes, hormônios, diuréticos, narcóticos e maconha, e a utilização de métodos proibidos, como transfusão de sangue ou do doping genético. O CMAD, publicado pela WADA, também descreve os diferentes tipos de controle e relaciona as substâncias e os métodos proibidos ou restritos. Aprovado em 2003 pelo Movimento Olímpico e por governos dos cinco continentes, o código foi revisado em 2007, em Madri, na Espanha, e é atualizado anualmente desde então. O último CMAD emendado entrou em vigor em 1º de janeiro de 2009, e pode ser consultado, nas suas versões em espanhol e em inglês, no portal do Ministério do 22 A versão em português desse código encontra-se disponível em: <http://www.wada-ama.org/rtecontent /document/world_anti-doping_code_version3_port.pdf> Esporte.23 O responsável pela área de dopagem no COB desde 1976 é o dr. Eduardo Henrique de Rose. Professor titular de medicina do esporte, ele já visitou mais de 90 países nos cinco continentes como especialista. É presidente da Comissão Médica da Organização Desportiva Pan-americana (ODEPA), responsável pela coordenação das operações antidoping por parte da Comissão Médica do COI e integrante do Conselho da WADA. A área de controle de dopagem do COB publicava regularmente uma cartilha com dados e orientações para atletas – e para toda a comunidade esportiva – sobre o uso de medicamentos no esporte. Sua última versão de 2010 (nona edição) oferecia a lista de substâncias e métodos proibidos pela Agência Mundial Antidoping24, entre outras informações importantes. Por isso, aqueles profissionais que, de alguma forma, participam ativamente do esporte de alto rendimento, como atletas, treinadores e médicos especializados, devem buscar constante atualização para evitar o uso acidental de medicações que possam ocasionar uma infração da regra antidoping. Nesse processo de organização e controle da dopagem, o Brasil, por meio do Ministério do Esporte (ME), adotou as seguintes providências: a) criou e constituiu a Comissão de Combate ao Doping, no âmbito do Conselho Nacional de Esporte (CNE) (Portaria ME nº 101, de 29 de julho de 2003)25; b) introduziu a dopagem no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (Resolução CNE nº 1, de 23 de dezembro de 2003) (CBJD, 2009); c) instituiu normas básicas de controle de dopagem nas partidas, provas ou equivalentes do esporte de rendimento, de prática profissional e não profissional (Resolução CNE nº 2, de 5 de maio de 2004) (BRASIL, 2004), as quais apresentam a lista de substâncias e métodos proibidos na prática esportiva para o ano de 2012 (Resolução CNE nº 33, de 28 de dezembro de 2011) (BRASIL, 2011); d) constituiu a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), por meio do Decreto nº 7.784, de 7 de agosto de 2012 (art. 14), como parte da estrutura regimental do Ministério do Esporte, em substituição a Agência Brasileira Antidoping (ABA), criada pelo COB para atender às exigências do Código Mundial Antidoping. Essa mudança encontra-se em conformidade com as regras e as convenções internacionais sobre a matéria, atendendo às exigências da WADA. A ABCD é responsável pela implementação da política nacional de combate à dopagem, em conformidade com as regras e as convenções internacionais, possibilitando o aporte de mais recursos do governo federal, de forma a viabilizar possíveis avanços no controle da dopagem no país. O Brasil foi o primeiro país a assinar o Código Mundial Antidoping, originado na Conferência Mundial sobre Doping no Esporte, em março de 2003 em Copenhague (Dinamarca), onde foi aprovada a Declaração de Copenhague. Na sequência, ratificou a Convenção Internacional contra o Doping no Esporte, 28 Caderno de referência de esporte 23 Disponível em: <http://www.esporte.gov.br/conselhoEsporte/legislacaoDocumentos.jsp>. 24 Para acessar a Agência Mundial Antidoping (em inglês, World Anti-Doping Agency – WADA), ver o link: <http://www.wada-ama.org/en/>. 25 Disponível em: <http://www.esporte.gov.br/conselhoEsporte/legislacao/portaria101.jsp>. 29 Valores no esporte apresentada em 2005 durante a 33ª Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 18 de dezembro de 2007, integrando-se ao grupo de 138 países unidos em um esforço supranacional para promover o fair play e o direito a competições transparentes e honestas, contra atitudes antidesportivas, assim como instituir no direito internacional o CMAD. A atuação da UNESCO no campo da dopagem coincide com esses movimentos. A Carta Internacional de Educação Física e do Esporte de 1978 (UNESCO, 2012) e a Convenção Internacional contra o Doping no Esporte (UNESCO, 2005) já manifestavam a posição dessa Organização no sentido de promover os valores humanos, éticos e de solidariedade presentes no esporte, de modo a contribuir para a construção da paz mundial. Isso se deve ao entendimento de que a educação física e o esporte são elementos essenciais da educação ao longo da vida, pelo simples fato de se acreditar que o esporte aproxima pessoas de diferentes grupos sociais e culturais, bem como de espaços geográficos, independentemente de suas religiões e ideologias. Entre as tarefas da UNESCO no âmbito da sua missão, encontra-se a de promover a expansão e a melhoria da qualidade da educação, entendida como direito fundamental do indivíduo e instrumento essencial para uma política de diálogo entre os cidadãos e os Estados. O lema Educação para Todos implica o combate às discriminações no acesso ao ensino e à educação contínua ao longo da vida, como meio de melhorar a adaptação às transformações do mundo atual.26 Da mesma forma, esse movimento antidopagem vem desbravando fronteiras nacionais e internacionais, com o enfoque educacional característico da UNESCO. Para sensibilizar e mobilizar a sociedade brasileira sobre o tema dopagem no esporte, a UNESCO no Brasil, juntamente com a Associação dos Empreendedores Amigos da UNESCO, desenvolveu a campanha denominada Jogo Limpo, que tem como objetivo atingir, além do público direto, a sociedade em geral, salientando a importância do jogo ético. Nesse sentido, destacam-se os vídeos gravados para fins de divulgação dessa campanha27, bem como da campanha específica de jovens contra a dopagem28, ambas disponibilizadas no portal da UNESCO e no YouTube. Na luta constante contra a dopagem, a UNESCO também relembrou esportistas de outras gerações que são exemplos de ética, de superação e de jogo limpo, quando, em 2012, por meio de divulgação na sua rede social (Facebook), ex-atletas vincularam sua imagem ao movimento idealizado pela UNESCO. Assim, depois de Jacqueline Silva, embaixadora da UNESCO, homenageou-se o campeão Lars Grael, medalhista olímpico em Seul e em Atlanta. Além disso, para quem gosta de histórias em quadrinhos, recomenda-se a protagonizada pelo sr. Rattus Holmes, que investiga mais um caso de dopagem junto às redes sociais da UNESCO, como forma de incentivar o debate e a construção dos valores sobre esse tema29. 26 Mais informações podem ser encontradas no portal da UNESCO, na área de Educação, disponível em: <http://www.unesco.pt/cgi-bin/educacao/educacao.php>. 27 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=4OnF3L9bk7Y
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