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CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ – USJ GLÁUCIA DE SOUZA CORRÊA “DESENHEI MINHA MÃE DE ROSA, SÓ QUE ELA É PRETA, SÓ QUE PRETO NÃO PODE”: Algumas discussões sobre a diversidade étnico-racial na Educação Infantil. São José 2009 2 GLÁUCIA DE SOUZA CORRÊA “DESENHEI MINHA MÃE DE ROSA, SÓ QUE ELA É PRETA, SÓ QUE PRETO NÃO PODE”: Algumas discussões sobre a diversidade étnico-racial na Educação Infantil. Relatório de Pesquisa elaborado como requisito para aprovação na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II do Centro Universitário Municipal de São José – USJ. Prof. MSc Regina Ingrid Bragagnolo. São José 2009 3 GLÁUCIA DE SOUZA CORRÊA “DESENHEI MINHA MÃE DE ROSA, SÓ QUE ELA É PRETA, SÓ QUE PRETO NÃO PODE”: Algumas discussões sobre a diversidade étnico-racial na Educação Infantil. Trabalho de Conclusão de Curso elaborado como requisito final para a aprovação no Curso de Pedagogia do Centro Universitário Municipal de São José - USJ. Avaliado no dia: 08 de Julho de 2009 por: Prof. MSc. Regina Ingrid Bragagnolo. Orientadora Prof. MSc. Evandro Brito. Membro Examinador Prof. MSc. Raquel Barbosa. Membro Examinador 4 Agradecimentos É com muita alegria que dedico este trabalho aos meus pais, Maria e Francisco que sempre me apoiaram, e com muito amor e carinho se esforçaram para que eu pudesse ter uma educação de qualidade. Agradeço também a um companheiro muito especial, meu esposo José Victor, que não só, esteve presente durante esta caminhada, como também empenhou muito esforço para que eu pudesse alcançar meus objetivos. Agradeço aos(as) educadores(as) que contribuíram em muito para minha formação, em especial a professora Regina, à qual sempre se dedicou muito em suas orientações. 5 Anjos Negros (Shirley Pimentel de Souza) […] Chega! A negritude dá seu grito de desabafo! As crianças negras querem anjos da guarda negros. O povo negro quer magia negra. O povo negro quer cultura negra! Repudiamos sua prepotência, Repudiamos sua divisão racial, Repudiamos sua aquarela racista. Queremos anjos negros! Faremos um “bem negro”. Somos povo negro! 6 RESUMO A diversidade étnico-racial é um assunto que precisa ser constantemente problematizado nas Instituições de Educação Infantil, pois, se as reflexões sobre as diferenças forem iniciadas, logo que as crianças ingressarem neste espaço de interação, tornar-se-á mais fácil desconstruir o mito da supremacia racial branca na sociedade. Neste sentido, através deste estudo, busquei investigar: Quais as relações étnico-raciais estabelecidas entre educadores e crianças no cotidiano de um grupo da Educação Infantil? Esta pesquisa, teve como objetivo principal, analisar como as crianças e professoras da Educação Infantil interagem com a diversidade étnico-racial. Com a finalidade de alcançar este propósito, realizei uma pesquisa qualitativa, por meio de estudos etnográficos, que me possibilitaram uma aproximação significativa com os sujeitos pesquisados. Estive presente no campo, dez dias, por cerca de três horas e trinta minutos diários. Durante estas observações, fiz uso do diário de campo, para coletar os dados, e foi possível constatar que, em muitos momentos, as crianças afro-descendentes são invisibilizadas no espaço educacional e têm uma cumplicidade maior quando se relacionam com seus pares, do que quando interagem com crianças de outras etnias. Palavras-chave: Diversidade étnico-racial. Educação Infantil. Crianças. ABSTRACT The racial ethnic diversity is a subject that constantly needs to be discussed in the upbringing education institutions, since if the reflections on the differences are initiated as soon as children approach to this sort of interaction, this will become easier to deconstruct the myth of the white race supremacy in society. Accordingly, through this study, I sought: What are the ethnic racial relations between teachers and children in their daily school life in an upbringing education group? Since this research had the main goal of analyzing how children and teachers interact with themselves, having in mind the racial ethnic diversity. In order to achieve this purpose, the qualitative research was conducted through an ethnographic study. So, I had to be closer to the subject studied in the field for ten days, that is to say, about, there hours and thirty minutes daily, so as to collect data. As a result, it was possibly noticed that most of the time, the Afro descendants children are blocked in the school environment when they approach to their peers more than they have to be in touch with children from other races. Keywords: racial ethnic diversity; upbringing; children. 7 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO......................................................................................................8 2. PROBLEMÁTICA.................................................................................................10 3. PROBLEMA DE PESQUISA................................................................................14 4. OBJETIVOS...........................................................................................................14 4.1 Objetivo Geral......................................................................................................14 4.2 Objetivos Específicos...........................................................................................14 5. JUSTIFICATIVA...................................................................................................15 6. NEGROS E EDUCAÇÃO......................................................................................18 7. CRIANÇA E EDUCAÇÃO INFANTIL................................................................ 25 8. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS........................................................... 32 8.1 Os Participantes.................................................................................................... 33 8.2 Instrumento de Coleta de Dados...........................................................................35 8.3 Situação Ambiente................................................................................................36 8.4 Organização, Tratamento e Análise de Dados..................................................... 38 9. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS............................................................40 9.1 Educadores(as) e as situações que envolvem a diversidade étnico-racial............40 9.2 Crianças afro-descendentes e a relação com seus pares.......................................48 9.3 As crianças afro-descendentes e suas relações com crianças de outras etnias..... 58 10. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................65 11. REFERÊNCIAS...................................................................................................69 12. APÊNDICES........................................................................................................74 13. ANEXOS..............................................................................................................84 8 1. INTRODUÇÃO Racismo, preconceito e discriminação, questões que afligem constantemente a vida dos cidadãos afro-descendentes no Brasil. O “pré-conceito” racial está muito presente na sociedade brasileira, trata-se de um estigma que foi construído historicamente e que está tão arraigado na sociedade que é uma tarefa árdua desconstruí-lo.Mas, por que existe preconceito? O que faz com que uma pessoa se sinta superior ou inferior à outra pela diferença existente na cor da pele? Como desmistificar esse “mito”da supremacia racial branca? Muitos autores (MUNANGA 1988 e 2005, GOMES 2003, ROSEMNBERG, 1998), têm focado suas pesquisas na diversidade étnico-racial atrelada à educação. Porém, somente no ano de 2003 foi sancionada a Lei 10639/03, que reconhece a cultura negra como cultura brasileira, e torna “obrigatória” a inclusão da história da África e dos Afro-brasileiros no currículo do Ensino Fundamental e Médio. No entanto, acredito que o preconceito e a discriminação são aprendidos desde que os seres humanos estabelecem suas primeiras interações sociais. Sendo a Instituição de Educação Infantil um espaço destinado à interação e humanização das crianças pequenas, em muitos momentos, pode ser um espaço onde as relações de discriminação e preconceito podem aparecer. Mas como desconstruir esses estigmas com as crianças? Perante a questões relacionadas à diversidade racial em minha prática como educadora, lancei-me a pesquisar sobre a diversidade étnico-racial na Educação Infantil. Desse modo, este estudo aborda o percurso de minha pesquisa, bem como, propõe um debate das questões relacionadas à diversidade étnico-racial na infância com base nos registros feitos no diário de campo. Nesse sentido, por meio da problemática, inicio esta pesquisa, contextualizando as questões e reflexões que me fizeram optar pela pesquisa relacionada à diversidade étnico-racial. Posteriormente, na justificativa, busco ressaltar a importância de se pesquisar a diversidade étnica na infância, partindo do pressuposto que os profissionais que atuam nesta modalidade devem incorporar as questões raciais ao cuidar e educar de forma a abranger outra dimensão: a dimensão do humanizar. Em seguida, apresento o problema de pesquisa, bem como, os objetivos desta investigação. Logo, inicio o referencial teórico, que norteou esta pesquisa a partir do capítulo intitulado “Negros e educação”, onde faço um apanhado de algumas questões 9 históricas relacionadas aos afro-descendentes e à educação. No capítulo seguinte, intitulado “Criança e Educação Infantil”, abordo discussões acerca da infância e das Instituições de Educação Infantil atreladas ao tema central desta pesquisa. Após esse respaldo teórico sobre o tema, descrevo, nos procedimentos metodológicos, a trajetória da pesquisa, apresentando os participantes, o instrumento para a coleta de dados e as sensações e sentimentos construídos na ida ao campo de pesquisa. Na análise dos dados obtidos em campo, proponho uma discussão sobre os registros feitos no diário de campo. Para isso, foi necessário subdividir este capítulo em três sub-capítulos: � “Educadores(as) e as situações que envolvem a diversidade étnico- racial”, onde são problematizadas as posturas dos(as) educadores(as) com relação à diversidade étnico-racial; � “Crianças afro-descendentes e a relação com seus pares”, onde abordo as relações estabelecidas entre as crianças afro-descendentes durante as brincadeiras; � “As crianças afro-descendentes e suas relações com crianças de outras etnias”, onde realizo um debate sobre as interações existentes entre as crianças afro- descendentes e as crianças de outras etnias. Ao final, são feitas conclusões baseadas nos conceitos encontrados nos referenciais teóricos atrelados às percepções sobre as questões raciais observadas no campo de pesquisa. 10 2. PROBLEMÁTICA As relações estabelecidas no cotidiano educacional são muito significativas na vida das crianças e muitas delas necessitam serem repensadas. Vivenciando o dia-a-dia de uma Instituição, como profissional da Educação Infantil, comecei a refletir sobre as relações étnico-raciais estabelecidas neste contexto. Diante de questões que expressavam preconceito1 racial em um grupo de Educação Infantil onde as crianças têm cerca de cinco ou seis anos, a professora sentiu a necessidade de desmistificar as relações de preconceitos existentes no ambiente educacional e em muitos segmentos da sociedade. Segundo a professora, todo início de ano ela apresenta às crianças vários temas para ver qual é o mais adequado para desenvolver o projeto, e em uma destas situações, resolveu passar um filme chamado “KIRIKOU” 2. Trata-se da história de uma tribo africana onde todos os seus personagens são negros. Kirikou nasce nesta tribo e começa a sofrer muitos preconceitos por ser muito pequeno, porém, é muito inteligente e forte, ao final, as pessoas percebem que devem respeitá-lo. As crianças se envolveram com a história, e as problematizações acerca da diversidade racial começaram a partir deste momento. No grupo, havia alguns problemas quanto à aceitação das crianças negras, de acordo com o depoimento de uma mãe negra, seu filho chorava muito em casa porque seus irmãos são brancos e ele desejava ser como os irmãos. Houve outro caso em que uma mãe branca disse a seu filho que não deveria conversar com uma das colegas por que ela era negra e a criança contou a professora. Situações essas que a motivaram a desenvolver planejamentos acerca da diversidade étnico-racial, e a diferença foi o principal objetivo do seu projeto. Refletindo sobre o assunto, cabe a indagação: Como os educadores infantis vêm trabalhando a diversidade com as crianças? A diversidade étnico-racial é algo muito presente nas salas de aula ou nas Instituições de Educação Infantil por se tratarem de características que nos constituem enquanto pessoas. Todavia, é um tema pouco trabalhado pelos educadores. Compreendendo isto, a Secretaria Municipal de Educação de São José ofereceu a alguns 1 Para Souza (2005, p.2) [...] o preconceito é o primeiro passo para uma atitude discriminatória [...] o individuo preconceituoso se prende a uma determinada opinião numa posição dogmática que o impede de ter acesso a um conhecimento mais fundamentado [...] 2 Kirikou é um filme, tipo desenho animado, dirigido por Michel Ocelot, produzido no ano 2000. A história se passa em uma tribo africana, o personagem principal é muito estigmatizado e mostra a todos que não devemos ter preconceitos. 11 educadores da Rede, a possibilidade de frequentarem um curso intitulado: “Programa de Diversidade étnico-racial”, o qual tive a oportunidade de participar de alguns encontros onde foi enfatizada a importância de o (a) professor(a) mudar sua postura perante este assunto, sendo que, já faz seis anos, desde a homologação da Lei 10639/03, e quase nada foi efetivado em relação ao tema. A Lei 10639/03 busca reconhecer a cultura negra, como cultura brasileira e ressalta a obrigatoriedade de se trabalhar a história da África, do povo africano e a contribuição dos negros para a formação da sociedade brasileira. Esta Lei reconhece uma igualdade nas contribuições culturais de negros e brancos para a formação da cultura brasileira, e, a partir daí, sugere que, sejam repensados o passado e a história do Brasil que vem sendo contada nas Instituições Educativas. Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro- Brasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e políticas pertinentes à História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira. (BRASIL, 2003).Essas duas experiências trouxeram-me alguns questionamentos sobre o tema diversidade étnico racial relacionado à Educação Infantil: Como trabalhar a diversidade racial com as crianças? Por que é tão difícil encontrar histórias infantis que tratem desse assunto? Por que as princesas e príncipes dos contos de fada são sempre brancos? Como a criança negra constrói sua imagem e sua auto-estima desde a Educação Infantil se em tudo o que a cerca há um padrão de beleza branco? Por meio de pesquisa bibliográfica foi possível perceber que já existem muitos estudos vinculados a este tema, um deles, publicado no ano de 2006, que se trata da dissertação de mestrado de Gisely Pereira Botega que investigou a influência das relações raciais na construção do autoconceito das crianças negras. Por meio desse trabalho, a autora mostra que na população pesquisada há dificuldades de relacionamento entre as crianças negras e brancas, sendo que, as crianças negras, procuram estar sempre entre negros. Quando há alguma intervenção do professor sobre as questões raciais, ele busca sempre proferir um discurso de que todos são iguais e não de que as diferenças devem ser respeitadas. 12 Há, na Educação, uma importância muito grande em levar em conta a singularidade de cada criança, no entanto, se as crianças forem consideradas todas como iguais, novamente será reconstruída a idéia de um padrão de criança desejado. Nilma Lino Gomes (2003), em uma de suas pesquisas, diz que a escola acaba criando um padrão de beleza (estético) e uniformiza as crianças, sendo que, quando a menina negra passa a frequentar a escola, ela precisa passar por um ritual para prender seus cabelos todos os dias, pois estes são motivos de chacota. Será que por esses mesmos motivos, na maioria das vezes, os meninos negros possuem os cabelos raspados? Dessa forma, qual a percepção/sentimento que essas crianças têm do corpo negro e do cabelo crespo? Ângela Maria dos Santos (2003) em seu livro “Vozes e Silêncios do Cotidiano Escolar”, resultado de sua dissertação de mestrado, centra sua pesquisa nas interações estabelecidas entre os alunos e a constituição das relações discriminatórias. A autora salienta que quando a criança sofre preconceito, sente-se intimidada e envergonhada com baixa auto-estima, fatores que, muitas vezes, tornam-se um problema de aprendizagem. Muitas vezes, ser negro, remete-se a feiura e os colegas põem apelidos uns nos outros, utilizando esteriótipos negativos, comparando-os com animais. [...] as cenas que aparentam uma relação harmoniosa entre os alunos mostram que existe um limite para a interação entre alunos negros e não negros. A qualquer momento, seja em situações de tensão ou não a relação de cordialidade se rompe. Então a cor ou outros atributos físicos dos colegas são utilizados como recurso para ofensas raciais que, na realidade, não se dirigem a um indivíduo, marca na individualidade o sentimento racista em relação a um grupo. (SANTOS, 2003 p.29). Alguns dos(as) professores(as) que participaram desta pesquisa não percebem discriminação entre os alunos, como se houvesse uma convivência harmoniosa com relação às questões étnico-raciais, eles afirmaram intervir, quando existe situações de preconceito, no entanto, a pesquisadora, durante suas observações, não percebe isto. Então, Santos (2003), ressalta a necessidade de uma reeducação das relações étnico- raciais. A diversidade étnico-racial é um tema tão polêmico e temido pelos educadores que me instigou a curiosidade em pesquisá-lo. Observando realidades muito diferenciadas em crianças de uma turma de Educação Infantil, que um menino de quatro anos, em uma atividade, deveria descrever suas características físicas, disse à professora: ─ Ah, eu sô negão, e tenho o cabelo assim enlolado e o olho malon! 13 O garoto se descreveu com convicção, falando sobre sua identidade que o marca como diferente. Já, a mãe de uma menina do mesmo grupo, também com quatro anos, traz relatos de que, em casa, ela questiona por que tem essa cor, por que as amigas são brancas e ela não, sendo que, em alguns momentos, já chorou por desejar ser como as amigas. Então começo a me questionar: Quais as relações étnicas raciais estabelecidas entre educadores e crianças no cotidiano de um grupo da Educação Infantil? 14 3. PROBLEMA DE PESQUISA Quais as relações étnicas raciais estabelecidas entre educadores e crianças no cotidiano de um grupo da Educação Infantil? 4. OBJETIVOS 4.1 Objetivo Geral: Analisar como as crianças e professoras da Educação Infantil interagem com a diversidade étnico-racial. 4.2 Objetivos Específicos: -Identificar como os educadores mediam as situações cotidianas que envolvem a diversidade étnico-racial. - Verificar como o grupo de crianças afro-descendentes da Educação Infantil estabelece relações com seus pares. - Caracterizar como as crianças afro-descendentes estabelecem relações com crianças de outras etnias. 15 5. JUSTIFICATIVA Há tempos, na história do Brasil, que um de seus capítulos vem sendo omitido, a história da cultura afro-brasileira e dos afro-descentes, porém, com a homologação da LEI 10639/03, esse assunto eclodiu nas discussões entre educadores. Contudo, percebo em minhas experiências diárias, que se trata mais da preocupação em atender a um currículo, do que realmente a Lei se propõe a abordar. É possível imaginar aqui, quantas discussões foram travadas, quantas pessoas sofreram, quantos movimentos foram feitos até que esta Lei chegasse a ser homologada. E isso resolveu o problema? Não, pois a diversidade étnico-racial é um tema muito discutido no âmbito educacional, mas, muitas vezes, perpassam-se apenas discussões, como se fosse algo que está na “moda educacional”, no entanto, as atitudes são poucas. Muitos educadores parecem temer o assunto da diversidade, omitindo seu papel, quando se deparam com situações relacionadas ao tema no ambiente educacional. Munanga (2005), afirma que os educadores: Na maioria dos casos, praticam a política de avestruz ou sentem pena dos “coitadinhos”, em vez de uma atitude responsável que consistiria, por um lado, em mostrar que a diversidade não constitui um fator de superioridade e inferioridade entre os grupos humanos, mas sim, ao contrário, um fator de complementaridade e de enriquecimento da humanidade em geral; e por outro lado, em ajudar o aluno discriminado para que ele possa assumir com orgulho e dignidade os atributos de sua diferença, sobretudo quando esta foi negativamente introjetada em detrimento de sua própria natureza humana. (MUNANGA, 2005, p.15) Nesse sentido, qual o papel das Instituições de Educação Infantil na vida das crianças? No meu entendimento, enquanto professora auxiliar de uma Instituição de Educação Infantil, a creche, tem uma função social que tem como foco o desenvolvimento e o conhecimento das crianças através do cuidar e do educar. Mas, o que compreende este cuidar e educar? Segundo Cerisara (1999 p.16 -17) [...] as instituições de educação infantil tem uma especificidade que as torna diferentes da família e da escola e que devem, devido a especificidade da faixa etária de suas crianças, desenvolver atividades ligadas ao cuidado e à educação dessas crianças. [...]. Conseguir concretizar esta concepção em práticas educativas ainda constitui um desafio para os educadores da área. Este desafio está acima de tudo estreitamente ligado às relações creche – famílias, que precisam ser enfrentadas urgentemente no sentido de explicitar qual é o papel que estas duas instituições devem ter no atual contexto histórico, a fim de que as professoras de educação infantil e as famílias – pais e mães das crianças - possam assumir suas responsabilidadescom maior 16 clareza de seus papéis que, mesmo sendo complementares um em relação ao outro, são diferentes e devem continuar sendo. Acredito que atrelado a este cuidar e educar está o humanizar, que faz com que nos tornemos cidadãos, capazes de respeitar o outro, sem nenhuma forma de discriminação3. Cuidar e educar na perspectiva da humanização, problematizando as questões que tenham uma relevância social para a vida. Eloísa Candal Rocha, referindo- se sobre as diretrizes pedagógicas da Educação Infantil nos aponta a importância de que: O desenvolvimento das experiências educativas [...] depende de uma organização pedagógica cuja dinâmica, ou se preferirem, metodologia, se paute na intensificação das ações das crianças relativas aos contextos sociais e naturais, no sentido de ampliá-los e diversificá-los, sobretudo através das interações sociais, da brincadeira e das mais variadas formas de linguagem e contextos comunicativos. Consideramos essas as formas privilegiadas pelas quais as crianças expressam, conhecem, exploram e elaboram significados sobre o mundo e sobre sua própria identidade social. [...]Enquanto construção social, a infância deve ser reconhecida em sua heterogeneidade, considerando fatores como classe social, etnia, gênero, religião como determinantes da constituição das diferentes infâncias e de suas culturas. (ROCHA, 2008, p.2-3) Sendo assim, por que há uma resistência tão grande dos educadores com relação à diversidade étnico-racial? Será a falta de conhecimento ou suporte teórico? Uma dificuldade em dar visibilidade a essas questões que historicamente foram esquecidas? Será o padrão eurocêntrico4 que prevalece ainda? Existem poucas pesquisas que dão visibilidade a diversidade étnico-racial na Educação Infantil. Por meio de investigação feita no site da ANPED5, considerado referência para pesquisas educacionais, realizei um mapeamento nos grupos de trabalho 07 (Educação de Crianças de 0 a 6 anos) e 21 (Afro-brasileiros e Educação) os quais mostraram que, desde a vigésima segunda reunião anual, foram publicados apenas quatro artigos que citam o tema, mas não o aprofundaram. Ao analisar o livro, “O que você pode ler sobre o negro” (LIMA, ROMÃO e SILVEIRA, 1998), do núcleo de estudos negros, que trata-se de um guia de referências bibliográficas sobre a questão dos negros, pude perceber que dentre todas as referências 3 Souza (2005), considera que a discriminação pode ser originada do preconceito, sendo que se trata de um tratamento diferencia,l conferido a certos membros de certos grupos. 4 Ao fazer uso da expressão eurocentrico refiro-me a teoria que coloca a Europa e sua cultura como o “centro do mundo”, como modelo, padrão para os demais povos e culturas. 5 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. www.anped.org.br Acesso em: 03/10/2008. 17 ali contidas, apenas uma delas aborda especificamente a Educação Infantil,o texto de Ronilda Ribeiro: Ação educacional na construção do novo imaginário infantil sobre África, mais uma vez, evidenciando a falta de pesquisas sobre o assunto. Nesse sentido, são necessárias pesquisas que tratem deste assunto para que os educadores possam visualizar, com uma clareza maior, como estão acontecendo estas relações raciais no interior da creche. É de extrema importância que desde a Educação Infantil as crianças negras não fiquem em um campo de invisibilidade, procurando se reconhecer em um padrão embranquecido de beleza. É preciso mostrar às crianças que não há uma cultura negra e uma cultura branca, há sim, a cultura brasileira que é composta por uma diversidade muito grande, que vai além da negra e da branca, e isto faz com que surjam diversos tipos de música, de dança, de culinária, diversos modos de vestir e diversos tipos de beleza e nenhum deles deve se sobrepor ao outro. 18 6. NEGROS E EDUCAÇÃO O foco principal deste capítulo é investigar a maneira pela qual a história e cultura afro-descendentes vem sendo abordadas no contexto educacional brasileiro e como isto contribui para a perpetuação do preconceito e da discriminação. Nesse sentido, buscarei abordar a Lei 10.639/03 e possíveis avanços após a sua homologação. A discriminação, preconceito, racismo são questões que afligem a sociedade brasileira, porém, atingem principalmente a população negra, isso ocorre por tratar-se de um grupo étnico que vem sofrendo um processo de desqualificação desde o século VX. Sendo que falsos ideais de superioridade da raça branca foram disseminados naquela época e ainda estão presentes na sociedade atual. (Santos, 2002). Portanto, cabe-me perguntar: Qual o imaginário social presente no cotidiano da Educação Infantil, referente a essas questões de preconceito e discriminação racial? Serão a discriminação, o preconceito e o racismo atos conscientes de quem o exerce? Ou serão atitudes que se arraigaram ao longo de séculos naqueles que não refletem sobre o que é realmente ser humano? Quais as justificativas dos cidadãos da sociedade atual para ainda praticarem o preconceito dito “racial”? O preconceito racial faz parte da história de um Brasil que tentou durante anos ficar ofuscado, por ter se abordado a discussão da democracia racial, contudo, não passaram apenas de aparências. Para Guimarães (2006, p. 269), a democracia racial confere o período em que: O Brasil teria sido percebido historicamente como um país onde os brancos tinham uma fraca, ou quase nenhuma, consciência de raça onde a miscigenação era, desde o período colonial, disseminada e moralmente consentida; onde os mestiços, desde que bem-educados, seriam regularmente incorporados às elites; enfim, onde o preconceito racial nunca fora forte o suficiente para criar uma “linha de cor”. Mas, como pode um país com tantas disparidades sociais entre brancos e negros afirmar que vive em democracia racial? Está muito evidente e várias pesquisas6 já confirmaram as desigualdades socioeconômicas que existem entre brancos e afro- descendentes em nosso país. Nesse sentido, é pertinente fazer um resgate histórico do nascimento dos ideais que foram fortes influenciadores no surgimento do preconceito. 6 Refiro-me principalmente as pesquisas de Delma Silva (1999) e Petrônio Domingues (2005) que serão citadas ainda neste capítulo. 19 Conforme Santos (2002), durante o século XV houve muitas “descobertas” e a partir delas, alguns pensadores começaram a repensar sobre as verdadeiras origens da humanidade. Uma das principais discussões que acontecia sob a ótica da teologia, era em torno dos povos recém-descobertos, dentre eles, os negros africanos. Existiam aqueles que defendiam a idéia de que eram seres humanos comuns, já, outros, afirmavam que eram “bestas”. Em quaisquer das hipóteses para conquistarem sua dignidade, estes povos deveriam se converter ao Cristianismo. O que me conduz ao pensamento, de que, já neste momento, desejou-se sobrepor o Cristianismo às crenças dos povos africanos. Durante o século XVII, os filósofos iluministas romperam com ideais teológicos e começaram a investigar sob a ótica da razão os povos não-europeus. Sendo assim, subdividiam-se em monogenistas: Os que acreditavam que os fatores causadores das diferenças eram a variação nos alimentos, clima e hábitos. E polígenistas, que atribuíam as diferenças às origens. Mas ambos consideravam a raça branca como superior às demais (SANTOS, 2002). Mais tarde, os darwinistas fundamentados nos princípios de evolução da espécie e de seleção natural, acreditavam que haveria uma raça pura que eliminaria as raças mais fracas. Nesse sentido, defendiam que o preconceito era favorável à evolução, pois este mantinha as populações separadas. Dessa forma,torna-se evidente pensar que estas idéias favoreceram em muito a escravidão, bem como, o surgimento e perpetuação do preconceito. (SANTOS, 2002). O Brasil foi um dos últimos países a acabar com a escravidão, e isso ocorreu, porque não foi mais possível suportar um sistema escravocrata, visto que já haviam algumas revoltas em muitas fazendas e havia também uma preocupação muito grande de que ocorresse um “enegrecimento” no país, sendo assim, libertaram-se os escravos como se fosse um presente à população negra, e buscaram-se imigrantes com a finalidade de suprir a mão-de-obra e de miscigenar a população. Com o fim da escravidão, os negros ficaram à margem da sociedade sem oportunidade de trabalho, sendo vistos como vadios, preguiçosos, e por aí seguem os rótulos que foram designados à população negra até a sociedade atual. (Santos, 2002). Porém, há muito tempo que esta história dos negros vem sendo omitida nas escolas. A história do Brasil contada durante toda a Educação Básica aborda a chegada dos portugueses, o Brasil Império, Independência do Brasil, Brasil República, tudo isso mostrando as benevolências que os portugueses trouxeram para cá. Mas, e os negros? 20 Onde ficam nessa história? Os negros eram “apenas” os escravos, não cabem nessa história de elites, que o Brasil aprendeu nas escolas, onde, durante muito tempo até os dias atuais, estes foram retratados como escravos. Munanga (2005, p.16) afirma que, “Todos, ou pelo menos os educadores conscientes, sabem que a história da população negra quando é contada no livro didático é apresentada apenas do ponto de vista do “Outro” e seguindo uma ótica humilhante e pouco humana”. Age-se muitas vezes como se os negros não possuíssem cultura, história, como se fossem apenas os escravos que aqui foram explorados, fazendo assim, com que a sociedade tenha um sentimento de “piedade” dos mesmos. Essa questão presente na nossa história dita, revela a invisibilidade da cultura e os cidadãos negros atualmente. Hoje, há a necessidade de as escolas separarem, na história, o enfoque do escravismo remetendo-se à cultura do negro. Nos registros da história do Brasil, os afro-descendentes ainda ocupam a periferia, o enfoque é centrado no navio negreiro, omitindo a nossa ancestralidade, pois se a mesma fosse enfocada com justiça, nossas crianças e jovens haveriam de dissociar a nossa história da história dos vencidos, haveriam de perceber que a prática do escravismo se deu no Brasil e em outros países como a Grécia e a Suécia, onde a escravidão foi branca. O escravismo é um fato na história econômica da humanidade. E essa informação ajudaria a desvelar os mitos acerca desse sistema produtivo como a compreensão de senso comum de que só os negros foram escravizados. (SILVA, 1999, p.101). A ausência das discussões sobre a cultura e história dos negros na escola faz com que a população negra não se sinta legitimada neste espaço, não o reconheça como sendo seu, e faz com que cresça o preconceito das outras crianças diante das crianças negras. Mas como evitar que aconteça o preconceito e a discriminação na escola? Como surgiu o preconceito contra os negros? Poucos educadores trabalham com esta ótica de desconstruir o que está posto pela história e pela sociedade, dessa forma, Machado (2002), ao se referir sobre o preconceito aponta que: Esse se constituiu na formação do estado brasileiro, e podemos afirmar que a escravidão que atingiu tanto indígenas quanto africanos e perdurou entre estes últimos em nosso país por cerca de 300 anos, é uma das principais responsáveis por isso. Com o processo de conquista do território americano e africano, aliado à escravidão, essas populações passaram a ser consideradas como seres sem alma, inferiores, sendo preciso inseri-los no processo civilizatório “superior” europeu, partir da adesão de padrões culturais e de comportamento. Em fins do século XIX, no contexto do processo de abolição, a maioria absoluta da população era composta de negros. O discurso veiculado no período defendia que eles eram os responsáveis pelos males da nação, sendo, portanto, necessário miscigenar a 21 população que com o passar dos tempos iria se tornar “branca”: era preciso tornar o povo brasileiro homogêneo. Nesse contexto, reafirmaram-se os preconceitos e estereótipos no sentido de inferiorizar as populações de origem africana no que diz respeito ao padrão estético, moral e cultural. Os aparelhos de reprodução ideológica e as instituições oficiais, incluindo a escola, atribuem ao negro adjetivos e estereótipos como: feio, mau, sem razão, instintivo e sem moral. O resultado disto é que alguns negros acabam reproduzindo uma rejeição de si próprios, passando a aderir e reproduzir os padrões culturais e de comportamento do dominador, nesse caso, de brancos descendentes de europeus. (MACHADO, 2002, p.23). Nesse sentido, é necessário que as Instituições Educacionais, e os educadores tenham uma concepção de história e cultura brasileiras que enfoque a diversidade existente no Brasil. Não é possível apenas separar a cultura e a história dos “brancos” da cultura e a história dos negros. É fundamental evidenciar a heterogeneidade da qual o Brasil é composto: índios, negros, brancos, orientais, bugres e outros mais. Nilma Lino Gomes (2003), ressalta que: [...] se a ênfase na discussão da cultura no campo educacional se restringir ao simples elogio às diferenças ou ficar reduzida aos estudos do campo do currículo e da cultura escolar, corremos o risco de não explorar toda a riqueza que tal inflexão pode nos trazer. A cultura, seja na educação ou nas ciências sociais, é mais do que um conceito acadêmico. Ela diz respeito às vivências concretas dos sujeitos, à variabilidade de formas de conceber o mundo, às particularidades e semelhanças construídas pelos seres humanos ao longo do processo histórico e social. (GOMES, 2003, p. 75). Conscientizar, através do discurso, torna-se algo inviável, hoje se discute que é preciso trabalhar a identidade de cada um, partindo da sala de aula e, assim, evidenciar a cultura e a descendência dos educandos, aliando-a à história brasileira. As Instituições de Educação devem ter como foco primordial, compreender os alunos como seres singulares que pertencem a culturas coletivas. Tendo em vista que a individualidade faz parte de uma coletividade, de um grupo cultural, racial, étnico, econômico e regional. Sendo assim, é fundamental estimular a criança ao autoconhecimento, motivando-a a conhecer e reconhecer sua identidade. (ROMÃO, 2001). Cabe ressaltar a importância de que o educando consiga identificar-se, reconhecer- se no espaço escolar. Muitas vezes são trabalhadas inúmeras figuras ilustres da história, mas alguma delas é negra? É necessário significar estas figuras e apresentá-las às crianças. Nos livros didáticos como o negro é representado? Em muitas escolas brasileiras, o livro didático e de literatura são os principais recursos do educador, porém, muitas vezes, estes possuem conteúdos e imagens errôneas, que consciente ou 22 inconscientemente são internalizados pelos educandos. Até pouco tempo atrás não haviam imagens de negros nos livros didáticos, pois grande parte destes livros traziam um ideal de beleza eurocêntrico. Quando estas imagens apareciam, eram utilizadas, remetendo-se aos escravos, pobres, excluídos socialmente. Sendo assim, quando a figura do negro estava presente, este acabava sendo caracterizado por um estereótipo que o “diminuía”. Paulo Silva (2006), ao considerar um trabalho feito por PINTO (1981) onde o autor analisou livros de leitura do período compreendido entre 1941 a 1975 afirma que: Os personagens brancos, nos textos e nas ilustrações, eram apresentados como representantes da espécie. Muito mais freqüentes que negros (e indígenas), constavam em quase a totalidade de posições de destaque. Ospersonagens brancos muitas vezes estavam inseridos em contexto familiar, ao contrário dos personagens negros. Enquanto os personagens brancos foram retratados em inúmeros tipos de atividades ocupacionais, dentre as quais as de maior prestígio e poder, os negros foram apresentados em número muito limitado, sempre nas funções mais desvalorizadas socialmente. Os personagens brancos apresentaram maiores possibilidades de atuação e autonomia, em comparação com os negros que, prevalentemente, foram personagens sem possibilidade de atuação na narrativa, em posição coadjuvante ou como objeto da ação do outro. (SILVA, 2006 p.4) Hoje em dia, após muitas discussões, já é possível visualizar a presença do negro em alguns livros didáticos. Alguns autores, como Ana Célia Silva (2002), apontam que estas transformações da representação social do negro, nos livros didáticos, aconteceram principalmente depois da Constituição de 1988, que assinala a discriminação racial como crime e após a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais em 1998. Um outro fator a ser considerado é que algumas editoras, como a FTD, advertiam para a não-veiculação de estereótipos discriminatórios. Ao mencionar alguns livros publicados pela mesma editora, após a década de 90, a autora afirma que: Neles, os personagens aparecem, ilustrados com status econômico de classe média, com constelação familiar, crianças praticando atividades de lazer, em interação com crianças de outras raças/etnias, com nome próprio, sem aspecto caricatural e freqüentando a escola; adultos negros exercendo funções e papéis diversificados, descritos como cidadãos, interagindo com pessoas de outras raças/etnias sem subalternidade, entre outras transformações. (SILVA, 2002, p.4). Uma preocupação que contempla os educadores e estudiosos da diversidade ainda é o fato de que os números das pesquisas relacionadas à situação social (econômica ou socioeconômica) dos afro-descentes são complexas, estão em situação de 23 vulnerabilidade pelo fato de encontrarem-se nas periferias, nos bolsões de pobreza. Petrônio Domingues (2005, p.165) afirma que: De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% são negros. De 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, 70% são negros (idem). Na área da educação, a situação do negro não é menos calamitosa. Do total dos universitários, 97% são brancos, sobre 2% de negros e 1% de descendentes de orientais (idem). Delma Silva (1999), ao referir-se ao Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 1996 relata que as disparidades de possibilidades entre negros e não-negros de ingressarem e manterem-se na escola são grandes, visto que: [...] os afro-descendentes com mais de 25 anos representam 68,8% da população, são analfabetos. [...] a probabilidade de entrar na escola para os brancos é de 85%, contra 65% para os afro-descendentes. A probabilidade de ingressar na segunda fase do ensino elementar – 5ª a 8ª séries – é de 55% para os brancos, diante de 40% para “pretos” e 44% para pardos. A probabilidade de um “branco” que completou o primeiro grau chegar ao segundo grau – atual ensino médio – é de 57%, enquanto que as probabilidades para um “preto” ou um “pardo” recaem para 36% e 46%, respectivamente. (SILVA, 1999, p.104) Nesse sentido, é perceptível que os cidadãos negros enfrentem maiores dificuldades de acesso e permanência na escola, “[...] assim como freqüentam escolas de pior qualidade, redundando em maior índice de reprovação e atraso escolar do que aquele observado entre os brancos [...]”. (ROSEMBERG, 1998, p.79). Muitas vezes, isso, é consequência da discriminação e preconceito existentes no âmbito educacional. Estes números nos mostram que ainda existem na sociedade preconceito, discriminação que fazem com que o negro sinta-se inferior, e acarretam na situação econômica do mesmo, o que ocasiona o fracasso e a evasão escolar. Não precisamos ser profetas para compreender que o preconceito incutido na cabeça do professor e sua incapacidade em lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos livros e materiais didáticos e às relações preconceituosas entre alunos de diferentes ascendências étnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado. O que explica o coeficiente de repetência e evasão escolar altamente elevado do alunado negro, comparativamente ao do alunado branco. (MUNANGA, 2005, p.16) Como pode um educador menosprezar a capacidade de um aluno pela cor da pele? Infelizmente, ainda há um preconceito muito grande incutido na cabeça de alguns 24 educadores que acabam afetando diretamente os alunos, que são responsabilizados por um fracasso que não lhes pertence, que faz parte do ranço discriminatório que ainda é muito forte na sociedade brasileira e da má-formação dos educadores que não se dispõem a trabalhar com a diversidade, como se esta, não existisse. Gonçalves (2007), aponta em sua pesquisa que a justificativa das professoras para o baixo rendimento apresentado pelos alunos negros, está centrada nos próprios alunos e nos seus familiares. Dessa forma, torna-se mais fácil para o professor culpabilizar o aluno do que desconstruir seus próprios preconceitos. Em busca de maior igualdade social, após muitos anos, o movimento negro existente na sociedade brasileira conquistou a Homologação da Lei 10639/03. Para Dias (2005), durante as discussões das LDBs 4.024/61 e 5.692/71, as propostas para intervir na exclusão social dos negros foram as mínimas, este movimento começou a aparecer após a Constituição de 1988. [...] em 1987 deflagra-se movimento intenso de discussão das propostas de uma nova LDB. A discussão da LDB cruza-se com outros movimentos e, no caso em análise, a questão de raça nas LDBs tem dois importantes marcos impulsionadores: o Centenário da Abolição, em 1988, e os 300 Anos da Morte de Zumbi dos Palmares, em 1995. O movimento social negro atua intensamente no Centenário da Abolição da Escravatura. Ocorrem eventos no Brasil inteiro, são publicadas pesquisas com indicadores sociais e econômicos demonstrando que a população negra está em piores condições que a população branca, comparando-se qualquer indicador: saúde, educação, mercado de trabalho, entre outros. Constroem-se com isso novos argumentos para romper com a idéia de que todos são tratados do mesmo modo no Brasil. (DIAS, 2005, p. 54). Na tentativa de melhorar as condições sociais da população negra, no sentido de não haver mais discriminação, trabalhando nas escolas a diversidade cultural brasileira, a identidade cultural das crianças, valorizando-as e desmistificando a história “tradicional” do Brasil, foi sancionada a Lei 10639/03. Segundo Dias (2005): [...] um dos primeiros atos do governo Lula foi sancionar um projeto de lei apresentado pelos deputados federais Ester Grossi (educadora do Rio Grande do Sul) e Ben-Hur Ferreira (oriundo do movimento negro de Mato Grosso do Sul), ambos do PT. A lei, que modifica o artigo 26, foi sancionada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva e pelo ministro Cristovam Buarque em 9 de janeiro de 2003. A lei no 10.639 altera a lei no 9.394/96 nos seus artigos 26 e 79, e torna obrigatória a inclusão no currículo oficial de ensino da temática “História e Cultura Afro-brasileira”. Após a homologação dessa Lei ampliaram-se as discussões sobre a diversidade étnico-racial nas escolas, pois os educadores que trabalham a partir do Ensino 25 Fundamental têm como “obrigação” abordar este tema durante suas aulas. Mas de que maneira isto vem sendo feito? É preciso quebrar as barreiras do preconceito existente na sociedade, nas escolas e nos educadores, para que os cidadãos negros não sejam mais excluídos da históriae da educação brasileira. Para tanto, é preciso trabalhar a diversidade desde a Educação Infantil. 7. CRIANÇA E EDUCAÇÃO INFANTIL A educação das crianças pequenas é, sem sombra de dúvida, um tema que muito interessa aos pedagogos, acredito que é indispensável que educadores e pesquisadores de infâncias tenham bem clara as concepções de infância, criança e Educação Infantil. Dessa forma, neste capítulo proponho-me a contextualizar a Educação Infantil em uma perspectiva histórica, até os dias atuais, abordando as concepções de criança e infância que permeiam as discussões entre pedagogos, aliando-as ao tema central de minha pesquisa sobre a diversidade étnico-racial. A Educação Infantil é uma etapa muito importante da Educação Básica, pois serve de base ao desenvolvimento do ser, valorizando-o e criando oportunidades para o seu desenvolvimento, enquanto criança e sujeito de direitos. Sendo assim, Rocha (2008, p.2) afirma que: […] reafirma-se o reconhecimento da especificidade da educação infantil como primeira etapa da educação básica, cuja função sustenta-se no respeito aos direitos fundamentais das crianças e na garantia de uma formação integral orientada para as diferentes dimensões humanas (lingüística, intelectual, expressiva, emocional, corporal, social e cultural). Tal função realizando-se através de uma ação intencional orientada de forma a contemplar cada uma destas dimensões como núcleos da ação pedagógica ou campos de experiência educativa. As crianças são sujeitos sociais que participam ativamente da cultura e da história, sendo que esta é a concepção de criança presente na sociedade atual. Durante muito tempo, foram compreendidas “como um vir a ser, tábula rasa, rastro vergonhoso da nossa natureza corrupta e animal, inocência em forma humana, ou seja, as crianças são, neste caso, Outros como fonte de todo mal, cabendo à educação regular e dominar, a sua natureza corrupta.” (OLIVEIRA, 2004, p.182). 26 Ao pensar a infância, considero importante tratar de uma construção social que aconteceu ao longo dos tempos. Sabe-se que não há uma única infância ou uma única forma de experienciar esta fase da vida, sendo que as crianças não vivenciam a infância todas da mesma maneira, pois participam de diferentes culturas e criam e recriam suas próprias culturas. Rocha (2008, p. 3) afirma que: “Enquanto construção social, a infância deve ser reconhecida em sua heterogeneidade, considerando fatores como classe social, etnia, gênero, religião, como determinantes da constituição das diferentes infâncias e de suas culturas.” As primeiras preocupações com as crianças surgiram no final do século XVII e início do século XVIII, com os pensamentos de Jean Jacques Rousseau, foi ele quem destacou a necessidade de se enxergar a criança em seu mundo próprio com suas especificidades pertencendo ao adulto compreendê-la e respeitá-la. Nesse momento, a criança passou a existir como objeto de afeto e desenvolvimento para a sociedade. É preciso ter consciência clara de que não existe uma forma única de ser criança ou uma infância universal, para poder olhar os sujeitos que corporizam esta categoria e suas múltiplas formas de vivê-la, indo além dos conceitos sedimentados no nosso meio social. Na tentativa de quebrar tais paradigmas, busca-se um modo de ver e pensar as crianças com auxilio do Terceiro Olho, aquele que domina os conhecimentos científicos e que prima por perceber o intelecto e conjugá-lo com a alma humana (a visão interior e a inspiração intuitiva). […] É igualmente preciso modelar esse olhar de forma que se consiga perceber as infâncias e os sujeitos que compõem esta categoria social de maneira diversa e instável, e que se revelam como algo que encarna a aparição da alteridade. (OLIVEIRA, 2004, p.188-189). Ao reconhecer que a infância precisa ter um cuidado “especial”, surgem, então, no período da Revolução Industrial, as creches. Segundo Kuhlmann (2005), neste período, as mulheres deixam seus lares para entrar no mercado de trabalho, as creches e pré-escolas nascem com o objetivo de evitar um aumento na mortalidade infantil e cuidar das crianças em um ambiente extra familiar. Sabe-se que no Brasil conviveram e convivem diferentes infâncias: a infância dos curumins, que foram catequizados para se tornar cristãos, e a infância dos moleques e molecas negros que pertenciam aos sinhozinhos e às sinhazinhas brancas, isto é uma história de desigualdades sociais, de dificuldades, mas também uma história de brincadeiras e reconhecimento social. Aqui, a educação e o cuidado das crianças pequenas iniciou-se no mesmo momento em que aconteceu a urbanização, a industrialização, a divulgação do discurso médico-higienista, a transformação na organização da família e a criação da República. […] As primeiras creches brasileiras surgiram como um mal necessário procurando atenuar a mortalidade 27 infantil, divulgar campanhas de amamentação, atender as mães solteiras e realizar a educação moral das famílias. (BARBOSA, 2006, p 82-83) De acordo com Kuhlmann (2005), até a década de 80, as Instituições de Educação Infantil, tinham caráter assistencialista, priorizavam o “cuidar”, os aspectos de higiene pessoal e saúde física, os aspectos pedagógicos não eram obrigatórios, deixando a cargo do professor utilizá-los ou não. Já, na década de 90, compreende-se que o cuidado e a educação devem caminhar juntos. Na verdade, o que acontecia nesta época é que a educação era proporcionada de acordo com as classes sociais, onde as crianças de baixa renda recebiam um atendimento que priorizava os cuidados básicos com o corpo; já, as crianças de famílias mais favorecidas economicamente, faziam parte de uma Educação Infantil com perspectivas para a escolarização. Mas, Ana Beatriz Cerisara (1999), ressalta que mesmo estas Instituições, tendo abordagens diferentes (assistencialista e educativa), ambas tinham caráter educativo. Sendo que uma priorizava os aspectos de higiene da classe mais pobre; e a outra, voltava-se para a escolarização da elite. Após muitas discussões, a necessidade de uma educação menos hierarquizada fez com nascesse a idéia do cuidar e educar de maneira indissociável. Educar e cuidar é a expressão usada para representar que, na Educação Infantil, não se pode separar o cuidado da educação, um está totalmente atrelado ao outro. Porém, muitos educadores, atualmente, ainda conseguem dissociar em suas práticas o que é cuidado, e o que é educação. O que evidencia que eles ainda compreendem a criança como um ser incompleto. Essa dicotomização entre as atividades com um perfil mais escolar e as atividades de cuidado, revelam que ainda não está clara uma concepção de criança com sujeito de direitos, que necessita ser educada e cuidada, uma vez que ela depende dos adultos para sobreviver e também pelo fato de permanecer muitas vezes de 10 a 12 horas diárias na instituição de educação infantil. (CERISARA, 1999, p. 16). A criança enquanto sujeito de direitos, ativo na sociedade, deve ter no espaço da Instituição de Educação Infantil, possibilidades para a manifestação de suas múltiplas linguagens. É extremamente importante que estas Instituições sejam agradáveis, estimulantes, acolhedoras e que as crianças sintam prazer em estar nestes locais, pois é nesse ambiente que os pequenos passam a maior parte do seu tempo. O espaço da Educação Infantil deve oportunizar as interações entre as crianças de diversas faixas 28 etárias, liberdade para se expressar, criar, dançar, movimentar, cantar e, finalmente, desenvolver-se integralmente da melhor forma possível. As crianças a sua moda compreendem o mundo que os cerca. Portanto, são sujeitos completos em si mesmos, que pensam se expressam criativamente e criticamente sobre o espaço institucional onde são cuidadas e educadas. São sujeitos conscientes desua condição e situação e se expressam de múltiplas formas. (BATISTA, CERISARA, OLIVEIRA, RIVERO, 2004, p.3) Martins Filho (2006), chama-nos atenção para a importância dos processos de socialização existentes na creche, ressaltando a necessidade de buscar uma linguagem comum às crianças, estabelecendo laços de confianças entre o adulto e a criança. Esta relação favorece a construção da cultura de pares, sendo que a presença do adulto é de fundamental importância, principalmente, se este procura potencializar as manifestações culturais dessas crianças como algo a ser considerado e ampliado. É imprescindível que os educadores de Educação Infantil rompam com seu olhar adultocêntrico e coloquem as crianças como sujeito principal nas relações estabelecidas no interior das creches, pois como ressaltam Batista, Cerisara, Oliveira, e Rivero (2004, p.2), “uma Pedagogia da Infância e, mais precisamente, uma Pedagogia da Educação Infantil teria como um de seus princípios, buscar a voz das crianças pequenas sobre sua vida, vivida no contexto das Instituições de Educação Infantil.” Parafraseando Rocha (2008), é possível afirmar que uma pedagogia da infância precisa ter como foco principal, os processos com os quais as crianças irão constituir seus conhecimentos, considerando-as como seres humanos concretos e reais, que perpassam por diferentes interações sociais e culturais, que também constituem suas infâncias. Muitas crianças passam a maior parte de suas infâncias dentro das creches, sendo que chegam a ficar nesses espaços doze horas diárias. Conscientes disso, os professores de Educação Infantil devem proporcionar espaços e tempos para as brincadeiras, e considera-las como um dos eixos principais do trabalho pedagógico. Através do brincar, a criança cria e recria possibilidades de conhecimentos por meio das relações que estabelece com a sociedade e com seus pares. Agostinho (2005), afirma que: […] as crianças estão dizendo a todo tempo que querem um lugar onde possam brincar, sozinhas, acompanhadas de outras crianças ou dos adultos. Por meio das suas cem linguagens nos disseram cem vezes cem que querem um espaço que lhes garanta o direito à brincadeira. As crianças no seu brincar vão indicando que gostam muito de estar entre seus pares, em 29 pequenos grupos e em espaços circunscritos […] (AGOSTINHO, 2005, p.66-67). Através dessas brincadeiras, as crianças revelam suas culturas e seus modos de interagir com a sociedade, manifestando assim, suas identidades sociais e indicando ao educador o que deve contemplar em seu trabalho pedagógico. Muitas são as mediações existentes entre as crianças e a sociedade na sua constituição, a mídia, através de desenhos infantis, filmes, músicas, enfim, dos artefatos culturais é uma importante mediadora nos modos como as crianças brincam. Para Brougère (2004, p.95): A brincadeira oferece uma compensação ao status real de dependência da criança, que é a tradução de um desejo de independência por meio de imagens positivas do mundo adulto ou, pelo menos, consideradas como tais pela criança. A imagem do futuro responde a um desejo presente. É no presente da infância que nasce a expressão do futuro. O brinquedo possibilita à criança criar e sair de sua “infância” para experienciar o mundo adulto, o mesmo autor ressalta que, através deste brincar, elas podem ter vivências adultas, sem correr risco algum. Um brinquedo que possibilita isso, constantemente, são as bonecas Barbie que, segundo Brougère (2004, p.103), sua “beleza, sucesso, riqueza, popularidade tornam a Barbie atraente, despertam o desejo de se projetar e brincar”. A questão é, que muitas vezes, esse tipo de brinquedo acaba transmitindo à criança o desejo de um ideal distante de sua realidade, ou que supervalorizam coisas secundárias como a beleza, por exemplo. Atualmente, observo que há um culto à beleza muito grande, há um padrão de beleza pré-estabelecido, onde as pessoas precisam se “encaixar” nesse padrão para se sentirem belas, e acabam assim, acatando ou reforçando a idéia de um padrão eurocêntrico. É possível atualmente observar que nunca houve tantas mulheres com seus cabelos extremamente lisos, ou seja, a moda da escova definitiva. Um outro exemplo voltado diretamente para o cotidiano das crianças são novamente as bonecas Barbie, estas são veneradas, principalmente pelas meninas. No grupo de crianças com o qual trabalho, as meninas têm verdadeira adoração por esta boneca, levam para o CEI a Barbie princesa, Barbie butterfly, Barbie castelo de diamantes, uma infinidade de bonecas com roupas e cabelos diferentes uns do outros, porém, nunca apareceram com nenhuma Barbie negra. Estas já se encontram no mercado, mas são poucas e difíceis de serem encontradas. Sendo assim, cabe-me perguntar: Como a criança negra da 30 Educação Infantil irá se identificar, e reconhecer, se a maioria dos brinquedos comercializados transmitem um ideal de beleza embranquecido? Observo que, em pleno século XXI, ainda perpetua a idéia de supremacia branca, dessa forma, reafirmando o preconceito e as desigualdades sociais. Estes, ainda assolam as relações existentes em nossa sociedade, em certos lugares, de forma escancarada, e, em outros, de maneira mais sutil, em que acabam por gerar um sofrimento ético- político7. Sendo que os indivíduos que agem de maneira preconceituosa pouco falam, mas demonstram em seus atos e olhares um preconceito tão agressivo quanto aquele onde os indivíduos sofrem agressões físicas. Geralmente as formas de discriminação existentes nas escolas não são escancaradas, pois as pessoas se julgam como alheias de qualquer tipo de preconceito, mas, discriminam o outro. Cavalleiro (2003), diz que muitas vezes os professores não sabem como lidar com a diversidade racial entre as crianças e com seus próprios preconceitos, dessa forma, acabam sendo omissos através do silêncio. Há a pressuposição de que não existe racismo por parte dos educadores, sendo assim, prevalece o silêncio, não se fala em racismo nas escolas e salas de aula, porém, os professores ocultam suas atitudes preconceituosas visto que, estas, são condenáveis do ponto de vista da educação. Esse silêncio frente à discriminação acaba facilitando e reforçando atitudes discriminatórias no espaço educacional e, consequentemente, em outros âmbitos sociais. Sendo assim, quando a vítima do preconceito é a criança, o problema é bem mais grave, pois sua auto-estima fica comprometida, o que acaba repercutindo em várias esferas de sua vida. Silva (1998), diz que a auto-estima está diretamente ligada aos sentimentos de êxito, fracasso, vergonha, enfim, as percepções que a pessoa tem de si, porém, os fatores sociais têm uma grande importância na formação destas percepções. Os educadores precisam estar atentos aos possíveis problemas que a discriminação racial pode provocar às crianças, pois ela interfere diretamente na sua identidade. Nas Instituições Educacionais, a discriminação às crianças negras acontece na maioria das vezes por meio dos estereótipos, criados pelas outras crianças ou pelos próprios educadores. Para Cavalleiro (2003), os estereótipos dão origem ao estigma, que ao ser atribuído ao indivíduo negro, dificulta suas relações sociais e lhes impõe a 7 A autora Bader B. Sawaia afirma que: “O sofrimento ético-político é gerado por práticas econômicas, políticas e sociais que variam de acordo com as variáveis dominantes (uma ou mais de uma) no processo de exclusão social: raça, gênero, idade e classe. A força do sofrimento pode ser tão intensa que chega ao limite da recusa da vida ou morte em vida.” (SAWAYA, 2003). 31 característica de desacreditado. Os estereótipos podem ter relação direta na construção da identidade da criança, pois ela ouve, e internaliza aquilo como sendo uma verdade aseu respeito ou de seu grupo étnico. Nesse sentido, a mesma autora acredita que a constituição da identidade é o resultado das percepções que temos de nós mesmos, que advém da percepção que temos de como os outros nos vêem. Berger e Luckmann, (1976 apud, Cavalleiro 2003, p.103), definem identidade como sendo “[...] formada por processos sociais. Uma vez cristalizada é mantida, modificada, ou mesmo remodelada pelas relações sociais. Os processos sociais implicados na formação e conservação da identidade são determinados pela estrutura social.” A sociedade acaba reforçando este preconceito, pois ainda existe a idéia de embranquecimento cultural da população. Conforme aponta Machado (2002), era necessário miscigenar o povo para que houvesse um predomínio da cultura e da população branca. Este ideal foi um forte propagador do preconceito no Brasil. Sendo assim, Silva (1998), ressalta que a educação como um processo contínuo é o caminho mais viável para reverter esta percepção que a sociedade tem acerca dos cidadãos negros, que influencia diretamente em sua auto-estima. Com o intuito de estabelecer no ambiente escolar, relações que sejam contra as ideologias que reforçam a discriminação racial, é preciso instaurar novas formas de relações entre crianças negras, brancas e afro-descendentes, romper com velhos discursos eurocêntricos, promover situações de diálogo e de questionamentos para que todos possam ter o conhecimento de si no encontro com o diferente, com a diversidade, reafirmando a idéia de que todos somos diferentes em nossas particularidades. (SOUZA, 2005). 32 8. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS A diversidade étnico-racial é um tema que vem instigando a curiosidade de muitos pesquisadores das áreas humanas e sociais. Esta pesquisa tem como foco, estudar as relações estabelecidas entre as crianças da Educação Infantil sobre as diferenças étnico-raciais. Sendo assim, trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativa, em que o fenômeno é impossível de ser medido, este estudo é de cunho descritivo, onde os fenômenos observados foram registrados. Segundo MINAYO (1994, p. 21-23), a pesquisa qualitativa: […] responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. […] Essa corrente teórica como o próprio nome indica, coloca como tarefa central das ciências sociais a compreensão da realidade humana vivida socialmente. Uma das maneiras de saber como as crianças se relacionam e pensam é observando suas brincadeiras, suas interações com seus pares, pois por meio dessas, que elas revelam grande parte dos conceitos que já constituíram sobre si mesmas, sobre a sociedade, sobre as pessoas, enfim, sobre o ambiente que as cerca cotidianamente. Dessa forma, para realizar uma pesquisa com crianças foi preciso que a pesquisadora se inserisse diretamente no ambiente que as crianças convivem, e passasse a fazer parte deste grupo. Acredito que a maneira mais viável para executar este trabalho por meio das aproximações à perspectiva etnográfica. André (1995), ressalta que, para um estudo ser caracterizado como etnográfico, deve usar técnicas de pesquisas que estejam ligadas à etnografia, como, a observação participante, podendo utilizar entrevistas informais e a análise de documentos. A pesquisadora, ao realizar seu trabalho de campo, deve interagir com o objeto pesquisado, sendo que a sua permanência prolongada no campo é fundamental durante a coleta e análise de dados. Esta deve estar sempre atenta ao que está ocorrendo no processo, retratando a visão pessoal dos interlocutores. Foi importante, neste tipo de pesquisa, que os participantes ou eventos fossem observados em sua forma mais “natural” possível, para que a posterior descrição dos dados seja mais próxima à realidade. 33 8.1 Os Participantes Os participantes envolvidos nesta pesquisa são compostos por um grupo de vinte crianças, com cerca de quatro a cinco anos. É organizado por uma professora e uma professora auxiliar de uma Instituição de Educação Infantil, localizada na Grande Florianópolis. Os integrantes do processo foram escolhidos de acordo com a disponibilidade dos educadores em contribuir com a pesquisa. Quando os sujeitos principais das pesquisas são as crianças, deve-se ter alguns cuidados a fim de preservá-las, sendo assim, neste trabalho não, serão divulgados os nomes verdadeiros dos pequenos, e sim, nomes fictícios. Conforme Kramer (2002), a divulgação dos nomes das crianças nas produções acadêmicas é algo complexo, pois ao mesmo tempo em que as pesquisas consideram as crianças como autores sociais de sua história, há que preservá-los, e muitas vezes, isso ocorre através do anonimato. Em respeito às crianças, por tratar de um tema que poderia vir a expô-las, optei por não fazer uso de imagens fotográficas nesta pesquisa, e apenas usar suas narrativas, não se trata de mantê-las no anonimato, mas sim, de preservá-las. Sônia Kramer, ao se referir a pesquisas com crianças, ressalta que: Quando trabalhamos com um referencial teórico que concebe a infância como categoria social e entende as crianças como cidadãos, sujeitos da história, pessoas que produzem cultura, a idéia central é a de que as crianças são autoras, mas sabemos que precisam de cuidado e atenção. Elas gostam de aparecer, de ser reconhecidas, mas é correto expô-las? Queremos que a pesquisa dê retorno para a intervenção, porém isso pode ter conseqüências e colocar as crianças em risco. (KRAMER 2002, p.42). É perceptível que as relações existentes entre as crianças e educadores(as), no interior das Instituições de Educação Infantil, perpassam por inúmeras questões presentes na estrutura social, mas que neste espaço possuem uma outra dimensão por se tratar de um espaço educativo. Dessa forma, foram realizadas dez observações no espaço da creche, onde as crianças desenvolvem suas atividades diárias, brincadeiras e interações entre o grupo e adultos presentes. Um pré-requisito fundamental para alcançar os objetivos desta pesquisa foi que neste grupo tivessem indivíduos negros. Pois o foco principal das observações foram as interações entre as crianças com as diferenças étnico-raciais e as mediações feitas pelos adultos nestas ocasiões. Em um primeiro contato com o grupo, tive a impressão de que 34 havia cinco crianças negras no grupo, mas, na segunda observação, isso me gerou várias dúvidas: Comecei novamente a observar o grupo de crianças, fiquei pensando, não há cinco crianças negras nesta turma. São morenas? São negras? São afro- descendentes? Como fazer essa classificação? Isso me trouxe muitas angústias como pesquisadora, tenho muito receio de ser tendenciosa e acabar fazendo a minha classificação em relação às crianças. (Diário de Campo 13/04/2009). Vale ressaltar que na turma existem quatro crianças e a professora auxiliar que através das características fenotípicas (cor da pele, formato do nariz e dos lábios) possibilitam-me dizer que são afro-descendentes. Dentre elas Graziela8, que é morena clara, tem o nariz achatado e arredondado, cabelos crespos e os lábios grossos. Henri, é moreno escuro, tem o nariz um pouco achatado, cabelos pretos e raspados, não são muito curtos, mas não chegam a formar cachos. Mariana, que tem a pele escura, os cabelos cacheados nas pontas, o nariz achatado e os lábios grossos. Jonatan, tem a pele morena escura, cabelos raspados, nariz achatado e lábios grossos. Mesmo estes sujeitos sendo afro-descendentes, não é um sinônimo de que são negros. O ser negro, considerar-se,reconhecer-se negro, é algo muito subjetivo, ou seja, somente quem pode declarar que um indivíduo é negro, é ele próprio, e este sentimento de pertencimento pode ser chamado de negritude. Munanga (1988), esclarece que a negritude nasceu há algum tempo, de um sentimento de frustração dos intelectuais negros, isso ocorreu por não terem encontrado no Humanismo Ocidental, todas as dimensões de sua personalidade, ou seja, não foram tão reconhecidos quanto os intelectuais brancos, devido ao preconceito existente. Nesse sentido, a negritude é uma reação, uma defesa do perfil cultural do negro. Porém, há vários autores que abordam esta questão da negritude dentre eles: Césaire (apud, MUNANGA, 1988, p.44), que define a negritude inicialmente como sendo: [...]o simples reconhecimento do fato de ser negro, a aceitação do seu destino, de sua história de sua cultura. Mais tarde Césaire irá redefini-la em três palavras: identidade, fidelidade, solidariedade. A identidade consiste em assumir plenamente com orgulho, a condição de negro, em dizer, cabeça erguida: sou negro. [...] A fidelidade repousa numa ligação com a terra mãe, cuja herança deve, custe o que custar, demandar prioridade. A solidariedade é o sentimento que nos liga secretamente a todos os irmãos negros do mundo, que nos leva a ajudá-los e a preservar nossa identidade comum. 8 Os nomes utilizados para me referir às crianças são fictícios. 35 Dessa forma, é possível compreender a negritude como um conceito amplo e subjetivo. Sendo que os sujeitos principais desta pesquisa são crianças pequenas, não é possível afirmar que são crianças negras, pois estas precisam primeiramente se reconhecerem como negras, para que a sociedade possa vir a assim denominá-las. Durante as observações feitas no campo, pude observar através das narrativas9 das crianças, que mesmo sendo elas, crianças pequenas, Henri, Mariana e Jonatan reconhecem seu pertencimento étnico-racial e o valorizam, podendo ser assim considerados como negros. Já, Graziela, em momento algum, falou sobre o seu pertencimento étnico-racial, o que me permite me referir a ela apenas como afro- descendente e não como uma criança negra. Vale ressaltar que em se tratando de crianças, é importante desde a Educação Infantil abordar estas questões com os pequenos, valorizando a auto-estima e criando oportunidades de reflexão a cerca de seu pertencimento étnico-racial e se assim desejarem, tornar-se-ão cidadãos negros. 8.2 Instrumento de Coleta de Dados A perspectiva etnográfica é comumente utilizada nas pesquisas onde as crianças são o foco, e requer observação participante, ou seja, a interação direta com o sujeito pesquisado. Sendo assim, foi por meio das observações participantes que busquei realizar minha investigação acerca da diversidade étnico-racial na Educação Infantil. A técnica de observação participante se realiza através do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos. O observador, enquanto parte do contexto da observação, estabelece uma relação face a face com os observados. Nesse processo, ele, ao mesmo tempo, pode modificar e ser modificado pelo contexto. A importância dessa técnica reside no fato de podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, uma vez que, observados diretamente na própria realidade, transmitem o que há de mais imponderável e evasivo na vida real. (CRUZ, 1994, p.59). Como tratam-se de observações participantes para a coleta de dados foi utilizado como fonte de registros, o diário de campo, que se deu a partir de um protocolo de observações, onde foram anotadas todas as observações feitas. As narrativas das crianças durante suas brincadeiras, interações com os adultos e com seus pares, e manifestação de suas múltiplas linguagens, que foram eixos norteadores do protocolo. 9 Essas narrativas serão apresentadas e discutidas no capítulo de análise. 36 A fim de direcionar focos para as observações e registrar os dados mais relevantes, estabeleceu-se algumas categorias principais que compuseram o protocolo de observações no campo, são elas: • Interação das crianças negras com o grupo de crianças brancas. • A relação das crianças negras com seus “pares”. • A relação do adulto com as crianças negras e demais etnias. • Situações cotidianas que envolvam a diversidade étnico-racial. • Como as crianças significam a diversidade étnico-racial. • Brinquedos, literatura infantil e diversidade étnico-racial. Estas observações foram realizadas no mês de abril, do ano de 2009, sendo que, foram feitas, dez observações, onde a permanência no grupo de crianças foi de três horas e trinta minutos, cada uma. Nesse tipo de pesquisa, principalmente em Educação Infantil, o ato de documentar através de registros é muito importante, deve-se registrar o que se vê e o que se ouve. Gandini (2002, p.152), afirma que “através da observação e da escuta atenta e cuidadosa as crianças, podemos encontrar uma forma de realmente enxergá-las e conhecê-las. Ao fazê-lo, tornamo-nos capazes de respeitá-las pelo que elas são e pelo que elas querem dizer”. 8.3 Situação Ambiente O ambiente no qual as observações foram realizadas é uma Instituição de Educação Infantil, localizada na Grande Florianópolis, e que não será divulgada o nome neste trabalho para se preservar a identidade dos sujeitos envolvidos na pesquisa. O primeiro contato com a Instituição foi realizado através da coordenadora pedagógica, que foi muito atenciosa em apresentar dados relativos à Instituição, mostrar o espaço físico da mesma e fazer contato com as professoras, a fim de mediar a escolha do grupo de crianças disponível e com as características fundamentais para a realização desta pesquisa. No primeiro contato, o acolhimento por parte da Instituição me possibilitou algumas expectativas em imaginar como seria este grupo, como as crianças me receberiam, enfim, fiquei ansiosa em logo iniciar as observações. Na primeira observação, a primeira sensação de ir a campo, como pesquisadora, foi bastante confusa, pois tive a impressão de que professoras me viram como uma 37 estagiária e não como pesquisadora, queriam logo saber se eu “daria aulas”. Em um primeiro momento, as crianças se calaram frente à minha chegada, não fizeram nenhum comentário sobre minha presença ali, entre eles. Entretanto, alguns minutos depois, a professora disse para eu me apresentar, e as crianças continuaram sem me questionar, mas observei que muitos exibiam um belo sorriso e um olhar misto, entre a timidez e a curiosidade. O que me fez ter a sensação de estar sendo bem acolhida, porém, ainda permaneci com a insegurança de desvendar o que seus olhares estavam revelando. Em uma situação bastante semelhante ao se referir a uma etnografia com crianças, Ferreira (2004, p.43), cita momentos como esse, como sendo travo do silêncio e relata que: “É no confronto com esses <<não>> olhares, não sabendo ainda como os interpretar, que é sentida a primeira perplexidade: seriam eles de ausência de interesse ou de tímida curiosidade face a minha presença?” No segundo dia, quando retornei a campo, as dúvidas começaram a surgir, “Você aqui de novo?” ,“Por que você voltou?” Para as crianças, isso também se torna um processo confuso, pois querem saber o que eu estou fazendo lá. Expliquei que também estudo, vou a uma “escola” como eles, mas que estou estudando para ser professora e, por isso, passaria um tempo lá, observando para ver como é ser professora. Mas acredito que para eles seja um tanto quanto estranho ter alguém na sala que não é a professora e não é criança. Sobre isso Manuela Ferreira (2002), diz que
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