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Jean de Menezes Severo Com a palavra, a Defesa JEAN DE MENEZES SEVERO COM A PALAVRA, A DEFESA © 2017 - Editora Canal Ciências Criminais Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos do autor (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004. Direção Editorial Bernardo de Azevedo e Souza Conselho Editorial André Peixoto de Souza Diógenes V. Hassan Ribeiro Fábio da Silva Bozza Fauzi Hassan Choukr Fernanda Ravazzano Baqueiro Maiquel A. Dezordi Wermuth Capa e projeto gráfico CreativeTeam.co Diagramação Caroline Joanello Impressão e acabamento Gráfica Evangraf Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S498c Severo, Jean de Menezes Com a palavra, a defesa / Jean de Menezes Severo. – Porto Alegre : Canal Ciências Criminais, 2017. 63 p. ISBN 978-85-92712-02-0 1. Direito Processual Penal. 2. Defesa (Processo Penal). 3. Júri - Brasil. 4. Tribunal do Júri - Brasil. I. Severo, Jean de Menezes. II. Título. CDD 341.4321 Bibliotecária Responsável: Elisete Sales de Souza (CRB 10/1441) ÍNDICE Introdução 7 1 Recordar é viver: meu primeiro júri como estagiário! 11 2 A primeira condenação no júri o advogado jamais esque- ce: ela lhe fere a alma! 13 3 Pelos filhos, ela matou: uma história para o dia das mães 17 4 Por amor, ele matou: uma história para o dia dos pais 25 5 As 48 horas do Júri que parou uma cidade 31 6 E até feitiço tive que enfrentar naquele júri! 39 7 O júri, um rap e um absolvição em Plenário 43 8 Advotráfico: a linha tênue que separa o ofício da advoca- cia criminal e o crime 49 9 Quando David, o matador de gigantes, foi a júri 53 10 Ele não gostava de advogados criminalistas... até seu filho ser preso 57 Considerações finais 61 INTRODUÇÃO Com a palavra, a Defesa. São vários os advogados que desabam ao ouvir essa fundamental frase quando proferida pelo juiz-presidente do Tribunal do Júri, após a manifestação oral do Ministério Público, para que o defensor apresente sua tese defensiva perante o Conselho de Sentença. E aqui utilizo a palavra “desabam” literalmente, sem medo al- gum da crítica. Ao longo das centenas de júris que assisti e em que atuei, não foram raras vezes em que até o mais preparado profissional, o mais reconhecido, aquele com o mais notável saber jurídico, simplesmente permaneceu inerte, sem reação alguma, sem saber o que fazer, após lhe ser concedido o direito de responder à acusação. Por outro lado, muitos advogados com menor expressão, com menos preparo intelectual ou saber jurídico mais modesto são capa- zes de verdadeiras façanhas, podendo até mesmo ser chamados de milagres no trabalho profissional realizado durante o Plenário. Ou, como alguns dizem, a batalha travada entre acusação e defesa. Não estou aqui a desmerecer aquele colega que prossegue com seus estudos, mas sim os parabenizo, pois advogar exige constante dedicação. Porém, meu foco é a ausência de preparo desses profissionais para exercer com toda a plenitude o ofício do Tribunal do Júri, essa secular instituição que, apesar das críticas habituais, permanece firme e forte, recebendo tratamento constitucional por parte de nos-so ordenamento jurídico. São muitos os aspectos que distinguem a atuação profissional perante o Tribunal do Júri em relação à nossa prática diária de realizar audiências, atender clientes ou peticionar na comodidade do escritório. Fazer a saudação inicial ao juiz, aos jurados, ao colega do Parquet e aos demais presentes, portar-se adequadamente ante o 7 Conselho de Sentença ou utilizar todo o tempo disponível à réplica são alguns deles. Alguns colegas limitam-se a poucos minutos de fala, sem reba- ter à altura cada acusação feita. Tratam-se de exigências específicas do Plenário e que podem significar a absolvição do acusado, mesmo quando o caso parecer impossível, quando todas as provas acusatórias forem firmes. Porém, como todos nós sabemos, o Tribunal do Júri pode absolver o mais culpado dos réus, tendo em vista a sobera-nia de seus votos. Quem não lembra da primeira audiência que fez sozinho, sem acompanhamento do advogado mais experiente do escritório ao seu lado? O frio na barriga, o nervosismo, o medo de que algo pudesse sair errado, trazendo consigo a desconfiança do cliente? Agora, pen- sem nessas mesmas sensações multiplicadas várias vezes quando se trata do Tribunal do Júri, quando o que está sob julgamento é a vida de um homem e o mais emblemático dos crimes: o homicídio. O Tribunal do Júri não vai ser extinto tão cedo em nosso ordenamento, ao mesmo tempo em que os Promotores de Justiça se manterão altamente técnicos e profissionais, pois atuam em dezenas de júris ao longo do ano, ao passo que um advogado faz apenas al- guns júris no mesmo período. A competência adquirida pela experiência, portanto, é descomunal e, infelizmente, opera-se em desfavor do acusado, o débil do processo penal que enfrenta todo o poderio da máquina estatal de persecução penal. A resposta, penso eu, encontra-se nas faculdades de Direito, que poderiam dedicar mais espaço à formação prática de seus alunos, como futuros advogados e não simples bacharéis em Ciências Jurídicas e Sociais. O Tribunal do Júri possui índice de condenação acima dos 80% no país inteiro. Em algumas cidades ultrapassa os 90% de condenações, certamente pela falta de preparo dos defensores, que pouco ouviram falar sobre o Tribunal do Júri durante a graduação. Assim, creio que as faculdades deveriam dedicar mais atenção a esta instituição, não se limitando ao ensino das leis que a regem, mas sim desenvolvendo competências técnicas específicas à atuação em 8 plenário, especialmente a oratória, a fim de formar um profissional mais completo ao pleno exercício de nosso nobre ofício: ser a voz daqueles que não podem se defender. 9 10 1. RECORDAR É VIVER: MEU PRIMEIRO JÚRI COMO ESTAGIÁRIO! Eu lembro que era verão; que a faculdade estava bem no come- cinho; que eu fazia estágio pro bono; que eu era muito pobre; que só tinha grana para o ônibus, mas eu estava muito feliz, pois iria fazer meu primeiro júri ao lado de um grande advogado criminalista. Eu ainda nem tinha a carteira de estagiário, mas tinha uma vontade muito grande de aprender e de um dia me tornar um bom advogado de defesa. Eu ligava todos os dias para o escritório do Dr. Antônio Prestes do Nascimento com o intuito de saber quando ele faria um júri, logo, eu poderia ajudá-lo no plenário, podendo realmente aprender a arte de advogar “no crime”. Recordo-me que eram férias e janeiro se pas-sou sem nenhum júri. No entanto, eu não desisti. Lembro que naquela época os celulares eram muito caros e eu obviamente não tinha um, portanto, deslocava-me diariamente ao telefone público para fazer uma ligação ao Dr. Prestes para saber se iria ocorrer um júri. Então, no começo de fevereiro, após mais uma destas tantas chamadas, ele respondeu: Vem cedo amanhã! Vai ter júri. Naquela noite eu não dormi. Engraxei meus sapatos; passei mi- nha camisa com todo cuidado; dei uma vassourada rápida no meu único (e surrado) terno e me postei bem cedo para o escritório do professor. Sabia que aquele dia minha vida iria começar a mudar. Algo no meu coração dizia: Chegou a tua hora. As coisas vão melhor! Cheguei ao escritório localizado na Rua Vicente de Paula Dutra, atrás do Foro Central de Porto Alegre. De cara fui recebido com um chimarrão novinho feito pelo professor. Ele já foi me entregando os autos e me explicando a tese defensiva. Estava elétrico, em “estado de júri”. Iria fazer a defesa de dois réus acusados de homicídio tri- 11 plamente qualificado. Ambos acusados de pertencerem a uma das principais quadrilhas de tráfico de entorpecentes naquela época. A “peleia” não iria ser fácil. Eu estava uma pilha de nervos mesmo, ainda que não fosse falar nada. Só de estar ali jáera um sonho realizado. Minha incumbência era a de levar os livros, servir água e trocar a lâminas do projetor enquanto o Dr. Prestes apresentava sua defesa. Naquela época não tínhamos toda essa tecnologia. A coisa era bruta mesmo e “no talen-to”, como dizia meu mestre Prestes. O juiz presidente era o Dr. Nereu Giacomolli, que depois foi De-sembargador no TJ/RS e meu professor na PUCRS. Considero o Prof. Nereu o maior processualista penal do país, mas ele não gosta deste elogio, pois é um homem muito humilde. Todavia, na minha modesta opinião, ele o é. Nunca vou me esquecer que, ao final do júri, o Prof. Nereu me saudou e elogiou o meu trabalho. Bah, que emoção! Foi um caso difícil, brigado mesmo. Naquele dia, eu tive a certeza de que seria advogado de defesa. Apaixonei-me pelo plenário e vendo toda a luta daqueles homens (promotor e advogado), compreendi o que é ser um ADVOGADO. Os réus foram absolvidos. Fiquei numa baita alegria e ainda ganhei um dinheirinho pela ajuda feita em plenário. Eu estava feliz e já me sentia um advogado. Participar daquela absolvição apenas fortaleceu ainda mais mi- nha convicção de me tornar advogado criminalista. A DEFESA NÃO PARA! 12 2. A PRIMEIRA CONDENAÇÃO NO JÚRI O ADVOGADO JAMAIS ESQUECE: ELA LHE FERE A ALMA! O advogado criminalista deve ter a sensibilidade de antever o resultado do julgamento no qual participa como principal prota- gonista; na trincheira da defesa, portanto, não devemos pleitear o absurdo. Não é possível requerer uma absolvição inviável. Existem, sim, causas indefensáveis e que não merecem nosso patrocínio, mas esteja preparado, meu querido rábula, para conhecer a dor da condenação de um cliente perante o Tribunal do Júri quando se tem a plena convicção que aquele acusado deveria ter sido absolvido e que ele mereceu nossa defesa, nossa luta em plenário. Quando se defende, não se julga. Não fazemos um juízo de valor sobre a conduta do acusado. Nós apenas discutimos se ele praticou o fato ou não, se o fato é delituoso ou não e, principalmente, de-monstramos as razões que levaram o réu a praticar aquele fato e se, no passado, o acusado pode ter sido um opressor. Hoje, no júri, ele é um oprimido e deve ter tido seus motivos que o levaram a cometer aquela ação proibida repassados aos jurados, com a maior verdade e precisão possível. Nós, advogados, somos apenas um instrumento que faz chegar ao Conselho de Sentença os fatos ocorridos no passado. Somos máquinas do tempo e pela mão guiamos o jurado ao local exato do crime no momento em que ele ocorreu e assim explicamos melhor os motivos que levaram o acusado a agir daquela maneira. Era meu décimo júri e até ali eu só havia conhecido o gosto doce da vitória, da absolvição, a alegria de mandar o réu sair dali do plenário e voltar a trabalhar e, principalmente, cuidar de sua família. Não conhecia a angústia de sair da sala secreta e dizer: Tu foste condenado a uma dezena de anos na prisão. Na faculdade não nos ensinam isso e como seria bom se ensi- nassem. 13 Não era um júri impossível de ser vencido. Uma absolvição era bem viável. Estava diante de uma causa justa, na minha modesta opinião de advogado iniciante e apaixonado pela tribuna do júri popular. Meu cliente estava sendo acusado pelo Ministério Público de ter cometido um duplo homicídio, triplamente qualificado. Ele fora denunciado de ter levado a óbito o vizinho e seu filho em uma tarde de um domingo, dia de GreNal, numa vila pobre da capital do Rio Grande do Sul. Porém, aquele homicídio começou a ser consumado trinta dias antes daquele trágico domingo. As esposas da vítima e do réu, que dividiam o mesmo terreno invadido, haviam discutido por um espaço a mais no varal de roupas que ficava no pátio à disposição de todas as famílias que ali residiam. A vítima, que estava em casa, tomou as dores da esposa e ofendeu a mulher do réu e veio a jogar suas roupas ao solo, sendo este o estopim para aquele duplo homicídio triplamente qualificado. Que loucura! Um homicídio começar assim, por causa de roupas no varal! Mas, na maioria das vezes, é sempre assim: por roupas no varal, por um veículo colocado na vaga errada, por uma inocente briga de crianças… Nós somos seres humanos e não somos tão ra-cionais quanto esperamos. Não raras vezes resolvemos mal situações do cotidiano que poderiam ser findadas com uma simples conversa. À noite, quando o acusado regressou da lida do seu ofício de pedreiro, a esposa lhe contou o ocorrido e implorou que o réu nada fizesse, que pensasse nos filhos e que o fato já havia passado. O acusado aceitou os argumentos e naquele dia nada fez. Contudo, a se-mente da discórdia já estava plantada na alma do pobre homem. Depois que a esposa contou a respeito da briga, o cliente parou de cumprimentar todos que residiam na casa da vítima e olhares ameaçadores começaram a surgir de ambos os lados, mas sem nenhuma ameaça velada até aquele domingo de GreNal. (Fico às vezes pensando: se vítima e réu torcessem pelo mesmo time, aquele homicídio talvez não tivesse ocorrido, mas quis o destino que cada um torcesse por um time diferente, o que foi fatal para aquela tragédia dominical). 14 O jogo se iniciava às 16 horas e ambos os lados começaram o aquecimento cedo, à base de pinga e cerveja, aguardando aquele jogo fatídico. Na hora da partida, vítima e réu já estavam “loucos”. Bastou um gol para que as provocações começassem, palavras des- conexas, gritos de provação de ambos os lados e todo o resto. Veio, então, o gol de empate, mais uma rodada de trago e, por fim, o gol da vitória do time da vítima, que foi inventar de comemorar na frente da casa do acusado, que foi suficiente para que o autor fosse até o quarto e pegasse seu revólver trinta e oito, que estava sobre o guarda-roupa, disparasse duas vezes contra a vítima e o restante das balas do tambor contra o filho da vítima, que contava com apenas dezesseis anos na época. Ambos tombaram ao chão mortos naquele final de jogo. O acusado foi preso em flagrante e seu júri ocorreu cerca de um ano e meio depois. Defendi-o de graça, mas com a mesma força e ânimo habituais. Sou apaixonado pelo que faço e confesso que o dinheiro é o que menos conta em minha profissão. Infelizmente, realizei o júri para fazer apenas o plenário com a instrução já findada. No entanto, tinha convicção da absolvição do acusado. Trabalhei como nunca naquele júri. A Promotora de Justiça foi perfeita em sua acusação. E mulher, quando dá para ser boa acusa- dora em plenário do júri, sai da frente! Ela foi à réplica. Eu à tréplica. Debates findados. Fomos à sala secreta. Um voto sim. Um não. Um sim. Um não. Outro voto não. Um sim e, por fim, o último voto um sim, que veio a condenar o réu por 4×3. Confesso que, a partir dali, não sentia mais o chão, o ar faltou. Lembro que a condenação foi de pouco mais de vinte anos de reclusão. O caminho da sala secreta que se fazia em poucos segundos até o salão do júri, transformou-se em longos quilômetros. O olhar do acusado me perguntando: E aí, doutor? Ainda não me sai da memória, dia triste, e por mais louco que possa parecer, fui consolado pelo meu próprio cliente. Disse ele: Ninguém faria melhor doutor. Chorei. Foi um golpe duro naquele humilde advogado. Depois das palavras de conforto, o réu apenas pediu que não o abandonasse e que fizesse todos os recursos possíveis e 15 que cuidasse de sua execução criminal. Assisti-o até sua progressão de regime. No entanto, sempre terei na memória aquela derrota tão sofri- da, ainda mais por um “placar” tão apertado. Alguma coisa devo ter feito errado, alguma coisa deixei passar. Algum jurado deve ter fica- do fora da minha atenção. Nunca vou saber o que aconteceu, mas, depois daquele dia, passei a ser mais vigilante, a fim de eu não viesse a passar por aquela experiência novamente. Depois daquele júri, mais três condenações vieram. Porém, dezenas de absolvições me acompanharam nestes anos e me acalmam a alma, demonstrando que estou no caminho certo e que nunca vou me acostumar a terum réu condenado. Perder nunca é bom, mas é necessário. 16 3. PELOS FILHOS, ELA MATOU: UMA HISTÓRIA PARA O DIA DAS MÃES As mulheres; sou fã das mulheres. Além de muito mais inteli- gentes do que nós homens, possuem um coração de ouro maior que o mundo. Logo que me formei em Direito e comecei a atuar como criminalista, chamava-me a atenção na fila do presídio a grande quan-tidade de mulheres nas filas para visitar filhos, pais, avós, sobrinhos, maridos. Essas filas são compostas quase que, na sua totalidade, por mulheres que não abandonaram seus entes que erraram; que deram um passo em falso na vida. Lá estão essas mulheres, idosas ou jovens, suportando horas a fio na fila do presídio, com suas sacolas, com meias nos pés tendo o chinelo surrado como proteção, pois não podem ingressar na casa prisional com sapatos. Essas mulheres são a esperança daqueles que estão reclusos. Uma vez, um cliente me confidenciou que só suporta o cárcere porque sabe que lá fora tem alguém lhe esperando. Não tenho dúvida de que as mulheres dão de 10×0 em nós homens, por isso, têm o meu maior respeito e a minha admiração. Pois bem, feita a introdução da importância das mulheres em nossas vidas, quero contar a vocês, meus amigos leitores, um júri fantástico em que tive a oportunidade de trabalhar já faz tempo. Ainda não tinha tantos cabelos brancos, bem como pesava muito quilos a menos, mas a vontade de absolver era a mesma de hoje; o empenho e a luta em plenário são iguais quando defendo; não julgo; dou a minha vida na defesa do meu cliente em plenário; saio de mim; ul-trapasso meus limites, não sei fazer diferente. Conheci dona Maria da Conceição já no presídio. Uma jovem senhora dos seus quarenta anos na época. Estava presa preventivamente há mais de um ano aguardando o plenário do júri. Acusação: homicídio triplamente qualificado. Havia matado o marido, um poli- 17 cial aposentado. Não tinha antecedentes: mulher extremamente tra- balhadora e querida por todos no bairro. Uma doceira de mão cheia. O presídio não era lugar para aquela criatura. Fui nomeado pelo juiz, muito meu amigo, para fazer aquele plenário. Lembro que ele meu falou: Este júri foi feito pra ti! Acreditei na causa e mergulhei no processo. Maria casou ainda muito moça; tinha um casal de filhos pequenos; passou muito trabalho na vida até conhecer Z. A vítima acolheu Maria em sua casa, deu-lhe abrigo e assumiu seus filhos. No entanto, Z tinha um monstro guardado dentro de si que despertava sempre após o primeiro gole. Z era respeitado no bairro. Um policial linha-dura “das antigas”, que gostava de contar suas histórias de abuso de autoridade nas rodas de bar. Um homem grande e forte, com mais de um metro e noventa de altura e 150 quilos. Um verdadeiro tanque que, quando enfurecido, ninguém segurava. No início da relação com Maria, Z foi uma pessoa doce e dedicada, mas, com o passar dos anos, a verdadeira face daquele homem começou a ser desnudada. Primeiro veio um empurrarão, um tapa, as surras constantes em Maria e nos filhos. Naquela época, não existia Lei Maria da Penha e Z usava seu poder econômico para prender Maria, que não tinha ninguém neste mundo além dos filhos. Maria estava encurralada, não tinha para onde ir. Dez anos tinham se passado, mas a gota da água foi quando Maria pegou Z de surpresa se masturbando enquanto espiava, pelo buraco da fechadura, a enteada, agora adolescente, tomando banho. Maria xingou Z que, no mesmo instante, aplicou-lhe uma surra e ainda lhe falou: A casa é minha! Não se mete! Maria então começou a procurar outro local par morar. O dinheiro da venda dos doces não era suficiente para alugar um imóvel, pagar as contas e criar os filhos, mas ela estava decidida: não iria compartilhar o mesmo teto com aquele homem. Os filhos concor-daram plenamente. Os três estavam prontos para ganhar o mundo. Infelizmente, Z descobriu o plano de Maria e, naquela noite, aplicou uma surra de tirar sangue nos três “fujões”. Gritos podiam ser ouvi- 18 dos a distância, mas nenhum vizinho teve a coragem de ajudar aque- la senhora e seus filhos. Eles apanharam (e muito) naquela noite. No outro dia, Z levantou sorridente e debochado, perguntado aos três se ousariam a ir embora. Maria respondeu que não e que tudo seria como era antes. Inclusive, informou a Z que no jantar iria preparar um arroz com galinha, prato que Z adorava, bem como iria servir uma ambrosia dos deuses, tudo para zelar pela paz do casal. A noite caiu e Z já chegou todo “botecado”. Maria dissimulou bem, dizendo que tudo estava certo. Serviu um prato reforçado para Z que comeu pouco e fora deitar completamente vencido pela ca- chaça. Maria tinha pedido para os filhos dormirem em uma amiga e, quando Z caiu no sono, ela não perdeu tempo e aplicou-lhe mais de trinta facadas. O quarto, antes branco, tornou-se vermelho do sangue de Z. Após o ocorrido, Maria ligou para a polícia e se entregou, tendo sido presa em flagrante e encaminhada ao presídio feminino. Lá ela permaneceu recolhida durante um ano até a realização de seu júri. O júri de Maria foi um verdadeiro divisor de águas na minha vida como advogado criminalista. Caro leitor, aconselho que, se não acreditas em Deus, em religiosidade, na força da fé e até mesmo no sobrenatural, nem continue a ler este texto, pois será perda de tempo para ti. Agora, se acreditas que somos grãos de areia neste universo infinito e que, sim, existem situações inexplicáveis, que não conse- guimos encontrar resposta, leia até o fim. Até hoje me arrepio com o que aconteceu em plenário naquele dia. Assumi a defesa de Maria da Conceição para realizar apenas o plenário do júri a pedido de um magistrado muito meu amigo, como disse antes. Dona Maria havia matado seu marido com mais de uma dezena de facadas e foi denunciada por homicídio triplamente qualificado. Um crime terrível e de difícil defesa frente ao modo que foi executado: vítima dormindo, não esboçando nenhuma condição de defesa. A condenação era certa, apenas esperando o número de anos que deveria cumprir pena na cadeia. 19 Cheguei cedo ao foro naquele dia. Passei a noite estudando os autos e conversando comigo mesmo, buscando argumentos que pu- dessem diminuir a pena daquela pobre mulher. Dona Maria, uma figura doce e querida por todos no bairro; uma mulher humilde, mas que tirava de si para auxiliar o próximo. Esta mulher, no seu júri, conseguiu unir católicos, evangélicos e umbandistas. O plenário es- tava “tomado”. Minha tese defensiva era desclassificação de homicídio triplamente qualificado para homicídio simples e buscar o reconhecimento de alguma privilegiadora. Na minha cabeça de jovem advogado recém-formado, tudo estava pronto, mas em instantes eu iria compreender na prática que algumas coisas na vida simplesmente não possuem explicação! Antes de iniciar o julgamento, como é de praxe, fui conversar mais uma vez com dona Maria. Ela estava agarrada a um terço de madeira, tranquila, serena. Não podia pensar naquela doce senhora condenada e comecei a explicar para ela como iria trabalhar; que se- ria melhor pedir uma desclassificação para um crime menos grave e com pena menor para que em breve ela fosse solta, progredindo para um regime semiaberto. Dona Maria parecia não prestar atenção, apenas sorria. E com este sorriso veio a seguinte frase: Vou sair solta, Doutor. O senhor vai me absolver. Tentei explicar mais uma vez da dificuldade do pedido absolutório, da pena alta que era uma condenação por homicídio qualificado, mas ela não dava bola. Com uma voz suave me disse: Tu vais me absolver, doutor. O senhor está muito bem acompanhado. Na hora, confesso que até me irritei. Poxa, eu tentando explicar minha tese de defesa, extremamente preocupado com uma provável condenação, e a ré nem dando bola, rindo e falando coisas sem nexo. Até pensei que Dona Maria tinha sido medicada, mas não, meus ami-gos, ledo engano. Dona Maria estava certa sobre o que estava por vir. Ainda me tira o fôlego e faz marejar meus olhos lembrar deste caso,mesmo com tantos anos e júris que vieram depois. Foram ouvidas testemunhas de acusação e de defesa, mas o mais impressionante foi o interrogatório daquela jovem senhora. Fa- 20 lou com suavidade tudo o que sofria no casamento, do amor pelos filhos, pelos amigos, do seu trabalho social, da importância da cari- dade na evolução do homem… Resumindo, a acusada deu uma aula de humanidade, de fé e de amor ao próximo. Até eu mesmo me perguntei: Como alguém assim de tão bom coração poderia ter cometido um crime tão brutal? Como advogado, eu estava satisfeito com aquele interrogatório. Dona Maria inegavelmente impressionou o Conselho de Sentença positivamente. Agora, era tudo comigo! O Ministério Público foi implacável na acusação. Um prato cheio para um Promotor inquisidor como aquele. Falou que o interrogatório da ré havia sido ensaiado, que a ré se tratava de uma assassina fria, psicopata, sem sentimentos, que nem ao menos chorava no júri, que voltaria a matar novamente se fosse posta em liberdade. Foi difícil ouvir aquele monte de absurdos durante a etapa acusatória, mas logo a Defesa falaria e tudo iria mudar, inclusive na minha própria vida como ser humano e como advogado. Terminada a acusação, o Promotor de Justiça pediu a condenação de Maria por homicídio qualificado. Fomos para o intervalo de almoço. Eu não consegui comer nada. Estava em “estado de júri”, louco para começar minha defesa. Na volta, fui mais uma vez falar com dona Maria. Passar-lhe uma palavra de fé, de esperança e mais uma vez ouvir da própria: Tu não estás sozinho. Deixa o teu coração falar. Hoje vou ficar com meus filhos novamente! Confesso que segurei o choro. Estava morrendo de pena daquela senhora que confiava tanto em mim. Nem eu acreditava em uma absolvição. Saí da conversa cabisbaixo, mas não deixei transparecer para ela. Apenas disse que faria meu melhor e me retirei para o plenário. A Susepe trouxe dona Maria ao plenário para que prosseguisse o julgamento. Ela sentou-se na minha frente e o juiz-presidente pro-feriu a seguinte frase: Com a palavra, a Defesa. Levantei-me para iniciar a saudação e um suador começou a to- mar conta deste advogado. Senti que meus lábios tremiam, achei que iria travar, o que seria uma tremenda vergonha para um advogado 21 tribuno, mas me veio à mente as palavras de dona Maria (Deixa o teu coração falar). Segui sua orientação, esqueci as técnicas jurídicas e todo o resto, e falei com meu coração. Coloquei abaixo o plenário com uma força descomunal. Não sa-bia, até aquele júri, a força que tinha meu tom de voz. Apresentei a prova, as condições que faziam a defesa requerer, sim, a absolvição da ré. Mudei a tese de defesa em plenário: de desclassificação sustentei a inexigibilidade de conduta diversa. Falei como nunca e, durante o julgamento, algumas palavras que não costumo usar no meu dia a dia surgiam e eu as aplicava em plenário. Era como se eu tivesse em terceira pessoa, sendo conduzido por alguém. Ao final, emocionado, eu chorei e pedi a absolvição daquela acusada. Pedi uma chance de vida àquela mulher e me retirei do plenário, pois achei que iria des-maiar depois daquela total entrega à causa. Fui ao banheiro, lavei o rosto, acalmei os ânimos e voltei ao o plenário. Ele estava calado, sentia as pessoas me olhando. Uns preocupados, outros me achando um louco, a sessão estava suspensa e dona Maria com a mesma paz no semblante. Eu estava feliz com meu trabalho, mas não recordava com absoluta clareza tudo que ha- via falado. Meu coração estava calmo, sereno, com o sentimento de missão cumprida. Na volta do intervalo, o promotor resolveu não ir à réplica e fomos para a sala secreta decidir, enfim, o destino de dona Maria. Os jurados proferiram seu veredicto: ABSOLVIÇÃO, com absolutos 7×0, inapeláveis e imutáveis. Mais uma vez o pranto tomou o meu rosto. Sou chorão mesmo, mas foi um choro de alegria, de alívio. Na volta do plenário, o juiz anunciou a decisão absolutória. Foi uma festa. Abracei dona Maria e disse: Vai para casa cuidar dos teus filhos e ser feliz. Ela me respondeu: Eu tinha certeza que tu irias me absolver desde a primeira vez que te vi no presídio. Obrigada, doutor. Nunca mais vou lhe esquecer. Ah! E doutor, foi bonito ver vocês dois falando em minha defesa. Não perguntei mais nada para Maria, nem quem eram os dois a quem ela se referira. Apenas sei que, daquele dia em diante, deixei 22 meu coração falar. E muitas e muitas absolvições se sucederam e se sucedem ainda hoje. Procurei também me aprofundar mais na religiosidade e ficar mais próximo de Deus. Depois daquele júri, muito mudou em minha vida para melhor, e uma prova clara disso é eu es-tar escrevendo estas palavras para vocês e estar perto de vocês, meus amigos leitores, contando como naquele dia “nós dois” absolvemos dona Maria. 23 24 4. POR AMOR, ELE MATOU: UMA HISTÓRIA PARA O DIA DOS PAIS Conheci “O” no Presídio Central de Porto Alegre, atendendo a um pedido de um colega que atuava apenas na área cível. Ele me pediu que fizesse o júri daquele senhor de meia idade que se encontrava preso há mais de um ano. Crime: ter matado com cinco tiros no rosto o abusador de seu filho que contava com dez anos na época dos fatos. Gosto de contar este caso em sala de aula, pois ainda me emociona muito. Meus alunos são testemunhas oculares do que es-tou dizendo. “O” era natural do Paraná. Pedreiro de mão cheia que, ainda jovem, veio residir no Rio Grande do Sul, onde se casou com uma gaúcha e constituiu família. Por ser um homem muito honesto e trabalhador, não lhe faltavam clientes. Sua vida estava indo muito bem, até acontecer aquele terrível fato que mudou tudo, transformando o bom homem em mais um cliente do Presídio Central. “O“ chegou do trabalho tarde da noite, como fazia todos os dias. Contudo, aquele dia foi diferente. Voltou para casa e encontrou os três filhos e a esposa chorando. Logo perguntou o que havia acontecido à esposa e ela lhe respondeu aos prantos: O fulano do andar de cima mexeu com o nosso pequeno! “O” escutou tudo calado, sem derramar uma lágrima ou esboçar qualquer reação. Consolou os filhos, a esposa e disse que tomaria uma providência. Saiu cedo de casa sem falar com ninguém e, por volta do meio-dia, já havia retornado ao lar, calado e com um olhar de colocar medo em qualquer um. Por volta das duas da tarde, sumiu. Já era de madrugada e to- dos estavam preocupados quando, por volta de três da manhã, cinco disparos de arma de fogo acordaram todos os moradores do condo- mínio onde ele morava. Sua esposa teve um mal pressentimento e 25 relatou de forma imediata ao filho mais velho: Teu pai matou aquele estuprador! Dito e feito. “O” havia disparado cinco tiros, todos no rosto do vizinho abusador. Ficara de tocaia por quase dez horas, apenas aguardando a chegada daquele sujeito que havia molestado seu filho mais novo. “O” entregou-se à polícia no mesmo instante e foi preso em flagrante delito por homicídio duplamente qualificado e poderia ser condenado a uma pena de doze a trinta anos. “O” matou “mal”: um júri aguardava-lhe e eu iria fazer sua defesa junto ao tribunal popular. Para variar, eu assumi o caso na fase de plenário. Pela primeira vez na vida, fui ao encontro do Promotor logo antes do júri para lhe contar em detalhes o acontecido. Ele me disse que pediria a condenação, inclusive com as qualificadoras, eis que esta “história” da violência sexual não estava bem contada. Inclusive, sequer ocorrência policial existia nos autos. Tudo era verdade. “O” não quis esperar pela justiça oficial do Estado e decidiu sozinho fazer a sua com as próprias mãos. “O” confidenciou-me que faria tudo novamente, do mesmo modo ou até pior, já que havia ficado sabendo que esses processos de violência sexual demoravam por demais da conta. Além disso, não existiam sinais da violência contra o menino. O abuso não consistiu em ato diverso à conjunção, mas sim outras nojeiras praticadas por um marginal contra uma pobre criança. O júri foi realizado em uma cidadeda grande Porto Alegre. Não havia testemunhas presenciais, filmagens ou qualquer outro tipo de prova; apenas o laudo cadavérico apontando os cinco disparos no rosto daquele pederasta que, por sinal, ficou com a face completamente desfigurada. Todo júri é difícil, todavia, uns nos marcam mais que os outros, e este júri do meu amigo “O” foi fantástico. Existe uma diferença muito grande quando vamos a plenário defender um réu primário, de bons antecedentes e residência fixa e mais: aquele réu era um homem bom, trabalhador, honesto e não poderia sair daquele júri 26 condenado, mas quem julga são os jurados; eu apenas teria que ir ao meu limite físico e mental porque, talvez assim, eu tivesse alguma chance naquele processo com tão poucas provas favoráveis à defesa. Resumindo: tínhamos a palavra do réu, consistente no relato de que uma criança (seu filho caçula) havia sido molestada, mas sem uma prova material robusta. Meu cliente havia “matado mal”. Ficou de tocaia esperando a vítima e desferiu diversos disparos de arma de fogo na face do de cujus. Antes do júri, tentei argumentar alguma coisa com o Promotor de Justiça, que me informou de plano que iria sustentar a acusação de homicídio qualificado. Nos meus cálculos, a pena iria superar os 15 anos; uma sanção muito severa para aquele homem bom que su- cumbiu de ódio quando sob do abuso do filho. O Ministério Público havia arrolado a viúva como testemunha, e eu três testemunhas abonatórias. Realmente era um processo de poucas provas, que se decidiria na argumentação da Defesa e do Parquet. Confesso que é isso o que me fascina no júri: através da nossa oratória podemos fazer justiça, salvar um homem. Certa feita, ouvi dizer que Deus fala através dos grandes oradores e por vezes me pego pensando nisso. Plenário cheio. Comarca pequena da grande Porto Alegre e eu um “guri de bosta” que recém havia me formado e com uma baita responsabilidade daquelas nas mãos: defender um homem que pro- tegeu a família. A causa era justa, mas complexa. Eu me recordo que ainda não utilizava beca no júri. Tinha um terninho de linho branco surrado que me dava muita sorte e lá estava eu, um rábula diplomado com seu terninho branco pronto para defender um homem, uma família. Recordo-me do nervosismo. Eu estava muito tenso; não falava com ninguém. O processo estava absorvido em minha alma, no meu coração, porém uma surpresa iria ajudar e muito a defesa daquele homem. E a ajuda partiu de onde jamais poderíamos esperar, qual seja: a palavra da esposa da vítima. Se o Promotor soubesse o que aquela moça falaria, não a teria arrolado como testemunha acusatória. 27 Ela foi a primeira testemunha a ser ouvida. Era uma jovem senhora de aparência humilde, judiada pela vida dura, ficou com dois filhos pequenos para criar, fato este que o Promotor utilizou e muito no julgamento. Contudo, era uma mulher de caráter e de persona-lidade, principalmente quando perguntada pelo Ministério Público se a vítima já teria abusado de uma criança ou tentado abusar de alguém. A resposta veio através de um choro compulsivo e aquilo despertou uma imensa curiosidade no Conselho de Sentença e eu pensei: aí está nossa absolvição. Um copo de água foi servido para aquela senhora que novamente, perguntada se seu marido já teria abusado de alguém, respondeu que não sabia, porque a vítima era um homem bruto, que a agredia constantemente e que sua família não falava mais com ela há anos porque um sobrinho, também criança, havia o acusado de ter-lhe “passado a mão”. Na época, ela defendera o ex-marido, mas no dia do júri não sabia de mais nada. Rompera com seus pais e irmãos em defesa dele, mas percebia que poderia ter se enganado. Com um depoimento daqueles, era para o Promotor, com o per-dão da palavra, “ter enfiado a viola no saco” e ter pedido, de imedia-to, a absolvição daquele senhor. Mas não, o que se viu foi um Promotor vaidoso e arrogante, cujo único objetivo era condenar aquele pobre homem. Tentara de todos os modos desqualificar o acusado, porém não contava o membro do Ministério Público que eu, apesar de muito jovem, já havia participado de dezenas de júris auxiliando um grande advogado e, quando chegasse minha fala, aquele tribunal iria tremer. E tremeu. Não só pelos pulos que eu dava (e olha, sou pesado), mas também porque meu peito iria explodir se não defendesse aque- le homem de bem com toda a força, com toda a energia que aquele processo merecia. Pedi a absolvição sustentando a tese de inexigibilidade de conduta adversa. Falei do quão bom pai de família era aquele trabalhador. Falei da dor que tomou conta da sua alma e o “cegou”. Argumentei que aquele homem jamais voltaria a delinquir (como nunca voltou). Argumentei que a própria esposa da vítima em plenário havia in- 28 formado não saber se o ex-marido era um abusador. Falei que esses criminosos são silenciosos e mortais como cobras e que, certamente, tinham feito e fariam outras vítimas, ficando impunes. Eu pedi licença ao juiz-presidente da sessão e levei aquele ho- mem, que estava preso, recluso por muito tempo, bem próximo aos jurados e pedi que o absolvessem. “O” era um ser humano como qualquer um de nós, que estava brutalizado pelo cárcere e que pedia apenas uma chance aos seus semelhantes. “O” foi às lagrimas fren- te àquela situação. Naquele momento, ele era um homem oprimido pelo Estado e que só queria seguir em frente. Implorei aos julgadores que o mandassem para casa cuidar dos filhos e trabalhar. O Promotor não foi à replica, o que impediu a defesa de ir à tréplica. Meu coração parecia que iria sair da boca na sala secreta durante a votação dos quesitos. Ao final, o Conselho de Sentença absolveu aquele trabalhador. Recebi muitos elogios, até mesmo do membro do Ministério Público, por aquela defesa. Saí logo do plenário e deixei a família comemorando. Eu sabia que havia sido importante naquela defesa, mas, ao mesmo tempo, sabia que naquele julgamento os méritos não eram meus. Senti que Deus falou por mim durante o julgamento e a obra foi Dele, e não deste rábula diplomado! 29 30 5. AS 48 HORAS DO JÚRI QUE PAROU UMA CIDADE Sexta-feira, 4 de março de 2016. Eu e meu colega, Dr. Gustavo Nagelstein rumamos para a cidade de Dom Pedrito (RS). Quase sete horas de viagem. Saímos de Porto Alegre às 23h, com previsão de chegada às 6h de sábado. O júri estava marcado para o dia 7 de mar- ço, segunda-feira, às 9h da manhã. Resolvemos chegar dias antes do julgamento para nos instalarmos no hotel e assim ficarmos completamente concentrados no processo, que possuía mais de cinco volumes. Meu colega já trabalhava no processo desde o ano de 2007, quando aconteceu o fato: a morte de um jovem após a final da Copa Libertadores da América, disputada entre o Grêmio e o Boca Juniors. No agregado, deu 5×0 para os argentinos, para tristeza da metade azul do Rio Grande do Sul e felicidade da metade vermelha (na qual me incluo com todo orgulho). A vítima, após consumir uma quanti-dade considerável de álcool, começou a provocar torcedores do time derrotado, com palavras ofensivas e gestos intimidadores. Agressões contra a vítima ocorreram, vindo ela a falecer. Foi ins-taurado o respectivo inquérito policial para apuração das prováveis autorias; alguns suspeitos foram ouvidos e posteriormente presos; o processo teve sua instrução findada; réus foram impronunciados e outros pronunciados; depois de quase dez anos, é marcado o júri, um julgamento que parou a cidade, quase que com transmissão ao vivo do plenário. Apenas quatro acusados foram pronunciados. Nossa defesa defendeu dois destes réus, os demais foram defendidos por outros com-petentíssimos advogados, ou seja, estávamos todos no mesmo barco enfrentando um julgamento midiático de alto grau de dificuldade. Eu, pessoalmente, ainda não tinha tido um contato maior com os acusados, por isso, decidimos chegar mais cedo na cidade para conhecer melhor os acusados e estudar com mais profundidade a prova dos autos. 31 Sábado à noite, 5 de março.Após passarmos o dia preparando os detalhes do julgamento, fomos convidados para jantar na casa de um dos acusados. Aceitamos prontamente, assim poderíamos conversar melhor com ele e explicar nossa ideia defensiva, bem como lhe transmitir uma palavra de fé e de força. Chegando lá, fomos tratados com o maior carinho possível por toda a família do acusado; pessoas maravilhosas nos receberam de portas abertas, com um jantar digno dos Deuses e, devido a este tratamento acolhedor, começo a me afeiçoar ainda mais com aquela família. Um fato que me chamou muito a atenção foi o olhar do acusado para nós defensores. Ele, enquanto nos olhava, ficava com seus olhos marejados de água, como que pedindo ajuda. Isso me feriu a alma, ainda mais quando, na hora do jantar, o acusado teve uma crise copiosa de choro ao ver o filho ainda criança brincar. Gente, segurei-me naquele momento para não desabar em lágrimas. Lembrei-me da denúncia do Ministério Público: homicídio triplamente qualificado, ou seja, uma pena que poderia variar de 12 a 30 anos de reclusão. Retornamos do jantar ao hotel. Mal consegui dormir naquela noite. Pela manhã, o outro acusado nos pede para almoçarmos em sua residência. Iríamos conversar com o réu e seus familiares tam- bém para explicarmos como a defesa atuaria naquele processo. Fo- mos recebidos do mesmo modo que a primeira família do outro réu: com muito carinho e amizade, a tristeza e o medo também estavam presentes naquele acusado que não conseguia sequer sorrir; a família estava tensa, triste e angustiada. Eu e meu colega éramos suas únicas esperanças. De volta ao hotel, minha cabeça não parava de pensar no julgamento. Faltavam menos de vinte e quatro horas para seu início. Na cidade só se falava nisso; inclusive, previsões de tempo de condenação para os réus eram feitas nos bares da cidade. Ambos os réus eram primários, de bons antecedentes, com residência fixa e trabalho lícito. Passados dez anos do fato, esperando o julgamento em liberdade, nunca mais foram acusados de qualquer 32 ilícito penal. Ambos eram casados, com filhos menores para sustentar. Nossa missão era das mais difíceis, não pelas condições pessoais dos réus e sim pela pressão midiática que assolava a cidade. Era um júri quase que impossível de se pleitear uma absolvição ou outro resultado favorável à defesa. Domingo, 6 de março. Na volta do maravilhoso almoço servido na casa de um dos acusados, eu e Gustavo retornamos ao estudo dos autos. Tratava-se de um processo com muitos volumes e toda a atenção era necessária. Conhecer o processo de “capa a capa” é fundamental e aqui não seria diferente. Confesso aos amigos que nesta noite anterior ao júri não preguei o olho. A ansiedade de iniciar os trabalhos falou mais alto. Antes destes julgamentos rumorosos, tudo deve ser pensado, cada vírgula, cada palavra que vai ser proferida no plenário do júri. Até o advogado mais experiente sofre desse mal chamado “estado de júri”. Não se explica do “estado de júri”, apenas se sente. Segunda-feira, 7 de março. Logo cedo, de posse do chimarrão preparado com todo capricho, rumamos ao fórum de Dom Pedrito, em uma de nossas mais difíceis missões em nossas carreiras na ad- vocacia criminal: não deixar aqueles dois acusados ser condenados a uma pena de reclusão de 12 a 30 anos. Ao chegar, deparamo-nos com os demais colegas advogados que dividiram aquela arena conosco: os doutores Andrei Zenkner Schmidt e Luiz Bulcão. Depois de nos cumprimentarmos, iniciamos nosso trabalho antes mesmo do começo do júri e nossa estratégia se mos-trou acertada ao final do julgamento. Havia grande sintonia entre os advogados que estavam trabalhando neste processo e isso, sem dú-vida, foi essencial para o resultado que sairia apenas na madrugada da quarta-feira. Nos julgamentos do Tribunal do Júri no qual há mais de um acusado, o tempo para os debates horais é de 2h30min para a Acusação e para a Defesa, isto é, são duas horas e meia que devem ser bem dis-tribuídas entre ambos os réus e seus defensores. Se forem quatro pronunciados, mantém-se o mesmo tempo, portanto, cada defesa dispõe de apenas pouco mais de 30 min para se manifestar. Uma defesa no 33 Tribunal do Júri de meia hora, 30 minutos, 1800 segundos é o máxi- mo de tempo que tínhamos para realizar esta “Missão Impossível” na distante Comarca de Dom Pedrito. Cada segundo era preciso, por isso era vital que trabalhássemos em completa sintonia, para que um não atrapalhasse o outro, o que poderia estragar completamente nossa estratégia defensiva, previa-mente combinada. Ao todo, éramos quatro defensores e tínhamos decidido o papel de cada um naquela tarefa digna de um Hércules moderno; quem iniciaria os debates e quem os encerraria. Tudo deveria ocorrer em perfeita sincronia. Jurados sorteados, dúvidas dirimidas e o júri se iniciava. Quero deixar meus cumprimentos ao Juiz-presidente, Dr. Luis Felipe, que conduziu os trabalhos de forma brilhante, sendo imparcial com as partes (Defesa e Ministério Público) e enérgico quando necessário. O Poder Judiciário do Rio Grande do Sul está muito bem serviço em ter um magistrado deste quilate em seus quadros funcionais. O primeiro dia foi destinado à oitiva das testemunhas de Acusação e de Defesa, nesta ordem, obrigatoriamente. Ao todo, mais de 20 testemunhas haviam sido arroladas, sendo cinco de acusação e cinco de defesa (de cada acusado). O que mais chamou a atenção de todos foi que cada testemunha de Acusação dava uma versão diferente dos fatos. Em nenhum momento houve segurança na produção da prova testemunhal no sentido de se apontar os culpados e sua participação nos fatos. Nota-se que este processo, no entender defensivo, foi muito malconduzido na fase da investigação. A autoridade policial preocu- pou-se mais com os holofotes midiáticos do que com a efetiva solu- ção do caso. Não sou eu que afirmo isso, mas sim as provas dos autos. Todos os depoimentos apontam para diferentes direções, como se as testemunhas tivessem assinado tais depoimentos sem os terem lido. Exemplo das reais intenções do delegado responsável foi orde- nar que os suspeitos desfilassem, algemados, pelo meio da cidade, aos olhos de todos, estando cada um deles em um carro diferente; uma carreata da tragédia humana. As sirenes das viaturas foram liga- 34 das na máxima potência para que fizessem o maior barulho possível e chamassem a atenção de todos, assim como as janelas, que foram escancaradas, para que as faces dos suspeitos ficassem bem visíveis. Naquela cidade o crime não ficava impune; havia o sentimento de “dever cumprido”. Essa era mensagem do delegado. Meus caros leitores, não adianta: quando o inquérito policial é malconduzido, certamente isso irá atrapalhar o trabalho do Promotor de Justiça. Uma má investigação resulta em uma má acusação em qualquer processo. Embora seja advogado de Defesa, não nego que o Ministério Público e a Polícia possuem importante função no zelo da Segurança Pública, mas, para isso, é preciso que façam um bom trabalho de investigação, respeitando-se as garantias dos suspeitos a fim de não se anular todo o processo. Naquele dia do plenário, durante a leitura dos depoimentos prestados em sede policial, era visível que alguma coisa “não chei- rava bem”. A oitiva das testemunhas acabou na segunda-feira à noi- te, adentrando na madrugada de terça-feira. Retornamos exaustos para o hotel. Mais um dia havia sido vencido e continuaria logo pela manhã. Mais uma noite mal dormida. O processo estava pronto, na ponta da língua; só queria que amanhecesse logo. A defesa estava pronta para falar! Terça-feira, 8 de março. Os trabalhos começaram com o interrogatório dos réus. Todos os acusados falaram com muita verdade e emoção, afinal de contas, eles estavam próximos de decidir suas vidas e a de seus familiares. Havia um clima de muita emoção no ar e logo à tarde iriam começar os debates. Estávamos todos em “estado de júri”; concentração pura antes da derradeira fala acusatória. Os debates começaram logo depois do almoço.Aqui, antes de tudo, venho cumprimentar os Promotores que atuaram neste feito; excelentes plenaristas e oradores, ambos muito educados para com a Defesa. Realizaram um trabalho limpo, leal, e muito bem feito, o que dificultava ainda mais a nossa missão, que já era difícil. Ao fim daqueles 150 min, a acusação pediu aos jurados que os quatro acusados fossem condenados por homicídio triplamente qualificado. Susten- 35 tou o Ministério Público que os réus agiram em coparticipação, por isso, pleiteou a pena máxima a todos os envolvido. Com a palavra, a Defesa. A primeira manifestação foi do Dr. An-drei Schmidt, que defendeu seu constituído, assim como os demais acusados, pois, como já referi, todos se encontravam na mesma situação. Jamais vi defensores de réus diferentes trabalharem de uma maneira tão harmônica em plenário. O Dr. Andrei foi simplesmente brilhante em sua defesa, um verdadeiro e letal sniper: preciso, técnico, cirúrgico, um tribuno como poucos que eu vi na vida. O segundo a entrar em campo foi o Dr. Luiz Bulcão, advogado da região e que conhecia o processo como ninguém. Não esperava menos do Dr. Bulcão, nada além daquela brilhante defesa junto ao plenário. Se seu antecessor foi mais técnico, coube ao Dr. Bulcão a tarefa de trabalhar com este processo de modo familiar aos jurados, aproximando-o da realidade dos autos, isto é, fazendo com que os acusados deixassem de ser pessoas estranhas, mas sim membros daquela comunidade da qual todos faziam parte. Terminado seu papel, assumiu sua vaga o Dr. Gustavo Nagelstein, meu colega de escritório e um irmão que a vida me deu, filho do maior tribuno do Rio Grande do Sul, Dr. Mathias Nagelstein. De-fendíamos dois dos réus. O Dr. Gustavo Nagelstein herdou do seu querido velho a mesma força e elegância na atuação em plenário. Ele simplesmente deu um show na defesa dos nossos constituídos; que orgulho trabalhar ao lado deste amigo. Também não posso esquecer o trabalho realizado pelo meu co- lega Tapir, que ficou na retaguarda, atento a tudo o que acontecia no plenário, principalmente vigiando as falas do Ministério Público e da Defesa. Tapir estava mergulhado nos autos. Quando precisávamos saber de qualquer informação, perguntávamos para ele que, de maneira rápida, fornecia-nos tudo. Obrigado, Tapir índio velho, como o chamava nas aulas do Mestrado. Todos nós, defensores, somados às assistentes do Dr. Bulcão, tivemos a mesma importância no plenário. Foi um time que trabalhou com uma harmonia nunca vista! Por fim, coube a mim encerrar a Defesa. Deixei o velho coração falar, pedi apenas a Deus me ajudasse a defender aqueles meninos da 36 melhor maneira possível e guiasse meus passos naquele júri tão difícil. Os debates encerraram-se depois das onze da noite daquela ter-ça-feira. A Acusação não foi à tréplica, o que demandaria mais duas horas para cada lado, estendendo o julgamento para o dia seguinte. A votação dos quesitos na sala secreta foi um momento de puro mistério. Ali tudo seria decidido. Era necessário que os jurados tivessem compreendido corretamente as nuances de nossos argumentos defensivos. A votação do primeiro quesito foi tranquila. Os jurados reconheceram a materialidade do delito, ou seja, que se tratava de uma morte violenta, não natural. A votação do segundo quesito tam-bém não apresentou problemas. A autoria foi facilmente imputada a todos os acusados pelos jurados. O fundamental era o quesito número 3: houve dolo dos acusados na morte da vítima? Isto é, o homicídio é fruto da vontade dos réus? Resultado: O júri acreditou em nossa tese defensiva. Nossos clientes não tiveram a intenção de causar a morte da vítima. Não houvera homicídio, isto é, uma morte proposital, premeditada, mas sim um acidente, uma fatalidade da vida. Buscamos a desclassificação para lesão corporal seguida de morte, o que ocorrera no caso, com o intuito de afastar a competência do Tribunal do Júri, portanto, cabendo ao juiz de direito da vara criminal a prolação da sentença. Mas, para que isso ocorresse, era necessário que Conselho de Sentença acreditasse na ausência desse dolo de matar. Então, o juiz-presidente começou a abrir os votos do terceiro quesito. “Sim”, “sim”, “sim”… Começamos com um 3×0 a favor da acusação, isto é, os denunciados tiveram a intenção de matar. O tempo parou, o coração gelou, ficamos sem qualquer reação. Então, veio o quarto voto. “Não”. A faísca da esperança se acendeu. Depois outro “não” e o sexto voto… “Não”. O quadro estava 3×3. A faísca se transformou em chama e estava pronta para arder quando do 7º voto. O juiz-presidente abriu o voto final: NÃO! Outra palavra diversa de “alívio” não poderia descrever aquela sensação, aquele sentimento. Acredito que não há injustiças no Tribunal do Povo. Sua compre- 37 ensão, seu sentimento de justiça, sua consciência não é distinta da do mais respeitado ministro do Supremo Tribunal Federal. Jurados erram, assim como os juízes togados, mas o sentimento de justiça é o mesmo. Encerrada a votação, todos nós, (juiz, promotores, advogados) voltamos para o plenário que estava lotado, apesar do adiantado da hora, pois já passava da uma da manhã. Era o momento de proferir o veredicto a todos: acusados e população. Toda a cidade estava na espera. Todos se levantaram para ouvir a decisão. Os quatro réus perfilaram-se diante do magistrado e ouviram com serenidade o veredicto: que haviam sido absolvidos da acusação de homicídio qualificado, mas ainda responderiam pela acusação de lesão corporal seguida de morte, ficando a seu encargo a prolação final da sentença, com a determinação das respectivas penas. Os quatro acusados sentiram como se tivessem renascido de novo diante desse veredicto, pois tinham plena ciência do peso da acusação e das penas que teriam que cumprir caso fossem condenados por homicídio qualificado. Até o trânsito em julgado da decisão, poderiam prosseguir em liberdade, usufruindo, agora, com mais vi-gor, essa nova chance que a vida lhes dera. E a sensação de ter sido corresponsável por essa vitória é de difícil descrição. Assim encerrou-se mais um dia na vida profissional deste rá- bula diplomado que vos escreve. Mais um júri feito com todo empenho. Termino esta história deixando meu mais fraterno obrigado aos meus queridos colegas: Andrei, Tapir, Gustavo e Bulcão. Nunca vou esquecer este processo. Mais de dois dias de um júri que parou uma cidade: Dom Pedrito. Também deixo minhas estimadas palavras ao maior de todos nós e que, por motivos de saúde, não pôde nos acompanhar e pre- senciar o fim desta jornada, começada por ele anos atrás: Dr. Mathias Nagelstein. Tenho certeza que ele deve estar muito orgulhoso pelo nosso trabalho e pela perpetuação de seu legado através de seu filho e colega, Gustavo. 38 6. E ATÉ FEITIÇO TIVE QUE ENFRENTAR NAQUELE JÚRI! Eu defendia uma família, e estes são os piores júris que temos para fazer. Senão bastasse ter que defender mais de um réu, todos eram familiares (pai, filha e filho) e a acusação era de homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, meio que dificultou a defesa da vítima e emboscada). Algo bem tenso. Eu tinha total ciência que deveria fazer meu melhor naquele julgamento e mesmo assim talvez não fosse obter êxito na demanda. Faltando menos de 48 horas para o julgamento, recebo uma ligação desesperada da mulher e mãe dos réus; a única da família que estava solta e que não havia sido denunciada. A senhora estava transtornada ao telefone e dizia: Doutor, preciso me encontrar com o senhor urgente! Agora! Expliquei para ela que tinha outros compromissos e que poderíamos conversar no outro dia, mas não ela insistiu de uma forma que até me assustou. Marquei então um horário bem no final da tarde. Eu estava simplesmente “moído”. Havia feito três audiências e ter que voltar ao escritório para atender no final da tarde, início de noite, era quase que um castigo. Aguardei a senhora, que foi pontual, e que, ao me olhar, já disse de cara: Doutor, temos um problema! O senhor tem que se cuidar parao júri. Perguntei: Como assim me cuidar? Vão tentar me matar? Ela disse: Não, vão tentar lhe calar. A família da vítima contratou a mãe de santo mais cara do estado para fazer com que o senhor não consiga falar no júri. Doutor, pagaram R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) para a mãe de santo lhe calar no júri. Puxa vida! Estou bem cotado no mercado. Cinquenta barões para me calar… Comecei a rir, no entanto, a senhora prontamente me alertou: Doutor, não brinca com isso. Ela é poderosa. Todos estão 39 falando no bairro que o senhor não vai fazer este júri. E agora doutor? Minha família vai ser condenada. E começou a chorar copiosamente. Ofereci um copo de água para a senhora e pedi que se acalmasse. Falei que estava preparado para o júri; que a minha religião era fazer o bem; que não acreditava que mal algum fosse me acontecer naquele júri; que tinha convicção que iríamos fazer um júri bem feito e que, ao final, teríamos um excelente resultado. Sempre fui adepto do pensamento positivo, mas sem criar falsas ilusões. Aquela história, ainda que fantástica para mim, não era estranha ao bairro. Trata-se de uma comunidade humilde, religiosa, com adeptos de várias crenças (cristãos, evangélicos, espíritas, ateus, umbandistas e afins). Havia vários terreiros de candomblé na região e possuía clientes de todas as crenças, mas o valor me deixou um pouco surpreso sim. Muitas vezes ouvi histórias de famílias, inclusive de clientes meus, que queriam ajudar no processo colocando um feitiço no promotor e no juiz envolvidos, levando o nome deles para seus guias espirituais. Noutras vezes, havia uma guerra de macumbas, isto é, a família da vítima lançando feitiços contra os acusados e vice-versa. Podia não acreditar nessas histórias, mas, quando se trata de questões de fé, todo cuidado é pouco para não magoar ninguém. Com ou sem feitiço, o júri estava marcado. Havia um processo. Provas. Testemunhas. Vítimas. Acusados. Promotor. Juiz. Advogado. E era nisso que eu deveria me preocupar a partir daquele momento. Na realidade, a prova que o Ministério Público possuía era fraca, mas sua acusação estava fortemente vinculada, também, ao tráfico de entorpecentes. A soma comum: morte e drogas. Todavia, não existia uma apreensão de tóxicos e/ou armas nos autos. Tudo não passava de mais um homicídio por brigas banais, sendo que meus clientes não estavam nem de perto envolvidos naquela situação. Mas todos sabem como funciona o jogo: um ouviu falar uma coisa, outro disse quer eram inimigos e assim o delegado concluiu o inquérito, apontou a autoria e remeteu ao Judiciário, que, por sua vez, comprou a ideia, vindo a pronunciar os réus por homicídio triplamente qualificado. Uma vergonha. 40 Após conversar com a senhora naquela noite, fui para casa pensando naquilo. Puxa, não cobrei nem dez por cento do que a mãe de santo cobrou. Acho que estou na profissão errada. Vejam só: 50 mil reais para que eu não fizesse o júri. Meu “passe” estava bem valori-zado na cidade. Segui para minha casa, afinal de contas, um grande júri se aproximava e eu já me encontrava em “estado de júri”. Chegou o dia do plenário. Auditório completamente tomado pelas duas famílias. A mãe e esposa dos meus clientes estava transtornada: Doutor, o senhor se preparou bem? Procurou uma ajuda espiritual? Eu disse que sim e encerrei o assunto. Fui para o plenário com “sangue nos olhos”, como é meu estilo de trabalho. O Promotor realizou seu trabalho nas duas horas e meia que tinha para acusar de forma magistral e pediu a condenação dos três acusados. Um intervalo de quinze minutos foi feito para que então a Defesa iniciasse seus trabalhos. Chegou o momento tão esperado: Com a palavra, a Defesa! Esperei alguns segundos e nisso me veio na cabeça o que a senhora havia me dito: que eu não conseguiria falar. Sorri, pedi proteção aos espíritos de luz e naquele dia fiz o me- lhor júri da minha vida. Desgastei-me muito. Saí do plenário na cadeira de rodas e absolvi os três num 5×2 fantástico. Bah, que alegria! Que júri! Ver os três réus sendo soltos no final foi extraordinário. A família da vítima não acreditava e decidiu se retirar do plenário sem causar nenhum transtorno. Eu fui para a enfermaria e tomei soro. Fiquei derrubado fisicamente daquele plenário, mas meu coração es-tava em festa. Mais uma absolvição e desta vez até com feitiço feito! Mas, meus leitores, não existe feitiço que derrube um profissional bem preparado e que ama a sua profissão. O negócio é não se “encucar” e estudar o processo a fundo, conhecendo os autos de “capa a capa”, porque, dessa maneira, nada pode te impedir de realizar um brilhante trabalho. Se até mesmo Deus é por nós, quem será contra nós? 41 42 7. O JÚRI, UM RAP E UM ABSOLVIÇÃO EM PLENÁRIO O rap entrou na minha vida no início dos anos 90, quando escutei pela primeira vez Domingo no Parque dos Racionais MC’s. Aquela batida e, especialmente, a letra mexeram comigo. Via minha realidade sendo rimada naquela música e nunca mais consegui me afastar do rap, que uma vez me ajudou a absolver uma família inteira em um júri que fiz no Rio Grande do Sul. Posso dizer que minha vida e o Tribunal do Júri se confundem. Tudo o que eu tenho devo ao Plenário, que me trouxe até aqui próximo a vocês leitores. Sempre digo quando faço um júri: O Tribunal do Júri é a minha casa e nela só entra quem eu quero! Portanto, meu amigo Promotor, tenha certeza que sua vida não será fácil quando eu estiver na defesa de um acusado, afinal de con- tas, o que você está disposto a fazer para condenar alguém? Eu estou pronto a deixar a minha vida em Plenário quando estou na defesa e não são raras as vezes que deixo a arena em cadeiras de rodas, tamanho o castigo físico que eu próprio me submeto quando estou atu-ando. Quem já assistiu a um júri meu sabe do que eu estou falando. Sempre digo aos estudantes e jovens advogados que esqueçam o cabelo penteado quando estiverem fazendo um júri, pois o cabelo vai descabelar; também tenham certeza que a beca que usam vai amar-rotar, pois é assim o júri, um palco de emoções onde você, advogado, está sendo analisado por todos. E não se iludam: somente o réu que você defende e sua família é que estão assistindo, rezando e torcendo para que você faça um bom trabalho, pois o resto (plateia, juiz e Promotor e demais espectadores), tenham certeza, estão torcendo para que você se dane em plenário. Assim é o jogo, portanto, vão se acostumando desde já. O maior conselho que posso dar a vocês estudantes é que assistam muitos júris antes de fazer o seu primeiro. Assistam a júris com 43 os grandes advogados, porque assim vocês aprendem como fazer um; assistam a júris com os advogados razoáveis, categoria a qual me incluo, e assistam a júris com os advogados ruins, pois assim vocês aprendem como não fazer. Quando acadêmico, participei de mais de 200 júris auxiliando um grande advogado criminalista e hoje já realizei mais de 80 júris, com uma média de absolvição altíssima, mas não gosto de falar mui-to em vitórias e derrotas no plenário; o Tribunal do Júri é um local triste onde duas famílias estão sofrendo. Uma perdeu alguém quan-do do homicídio e outra vai perder alguém pela condenação. Sempre digo que no Tribunal do Júri não existe espaço para sorrisos; o clima é tenso e sombrio e você, advogado, será levado ao seu limite, tanto físico quanto mental. Feitas essas considerações iniciais, reporto-me para o ano de 2013, quando fiz um júri na grande Porto Alegre. Havia quatro réus, todos da mesma família, acusados de homicídio duplamente qualificado, tráfico e associação ao tráfico de entorpecentes. Meus amigos, aquela missão não seria fácil, pois qualquer Promotor razoável certamente iria gastar boa parte de sua fala focando-se nos crimes de tráfico de drogas e associação. Você, meu estudante dileto, deve saber que o Tribunal do Júri também aprecia quaisquer outros delitos conexos aos crimes de sua competência, assim os juízes “leigos”, que de leigos não têm nada, também iriam dar um veredictosobre os delitos de tráfico e associação, razão pela qual o Parquet bateria forte no tráfico. Gente, o jurado é pai, mãe, filho, tio, avó, avó etc e nenhum deles quer ver aquele réu que está sendo julgado vendendo “bagulho” para seus entes queridos. Resultado: condenação pesada no tráfico, na associação e no homicídio. O prato principal do cardápio acaba virando a sobremesa e vice-versa. Aquele processo possuía mais de duas mil páginas. Réus presos cautelarmente há mais de um ano e meio, o que sempre me faz lembrar o art. 5º, LXXVIII da CF/88, que garante ao acusado a duração razoável do processo. Será razoável o réu ficar preso um ano e meio de forma cautelar esperando julgamento? Sem sentença condenató-ria? Não sei. Faça você o seu próprio julgamento. 44 Voltando para o nosso caso: não possuía uma grama sequer de maconha ou de cocaína apreendida; não existia revolver calibre 32 apreendido; a vítima havia sido assassinada por dois indivíduos em uma motocicleta, ambos de capacete. Logo, era impossível apurar a autoria. O que levou os réus a plenário foi um inquérito mal feito, conduzido por um delegado que mais se preocupava em apontar possíveis suspeitos para assim se livrar de mais um expediente e também dar entrevistas para o jornal local. Então, o que havia nos autos? Depoimentos desconexos e um volume inteiro de degravações de interceptações telefônicas e men- sagens de celular que não incriminavam ninguém. É importante eu falar a vocês que assumi este processo apenas para realizar o plenário, como quase sempre acontece. Talvez um dia eu consiga fazer um júri assumindo o caso desde a delegacia, pois assim poderia trabalhar com mais tranquilidade. Eu estava defendendo uma família (pai, filho, filha e genro). A filha, com apenas 19 anos de idade, que vou chamar de L, tinha uma “habilidade”, qual seja: fazer letras de funk. E não é que a criatura me faz um “bonde” e a letra desse bonde vai parar nas degravações dos autos? E pior: o Promotor, que não é bobo nem nada, em plenário faz toda sua réplica em cima desse “maldito” bonde. A letra é impublicável. Fala de armas, drogas, ostentação, descer a bundinha até o chão e essas coisas todas que estamos acostumados a ouvir diariamente em nossas rádios. Porém, meus amados leitores, um bonde, mesmo os muito ruinzinhos, quando lido por um Promotor de Justiça, toma proporções gigantescas no plenário do júri. É condenação pura! Lembro que no final o promotor sorriu e disse: Esses marginais não respeitam nada, zombam, fazem hinos em favor das drogas, do sexo, da morte. Eles não temem nada e relatam suas atividades delituosas em letras de música, se isso der pra chamar de música, afinal de contas, eles não respeitam nada! Quando ele terminou a sua fala, até eu concordava com a Acusação e queria condenar os quatro acusados, de tão bom que ficou o trabalho do Promotor em plenário. E na réplica, no “frigir dos ovos”, achei que, por um instante, tudo estaria perdido. Mas, socorri-me de um dos mandamentos do advogado, qual seja: PENSA! 45 E pensei nas valiosas lições de uma das maiores lendas de plenário que este país já conheceu: o mito Evandro Lins e Silva. O mestre já dizia que, para se sair vitorioso em um júri, o advogado não pode saber apenas as letras jurídicas; precisa ter cultura, saber um pouco de tudo. E, com meu pouco saber, pensei e encarei a réplica com toda fé e coragem que Deus me deu. Renovei a saudação a todos, em especial ao Promotor de Justiça e de cara lhe falei: Como cantor de funk, Vossa Excelência é um excelente Promotor de Justiça. Ele me deu um sorrisinho amarelo, mas no fundo sabia: Aí vem bomba e este gordinho é doido! Dirigi-me aos jurados e pedi-lhes sua máxima atenção. Pedi- lhes licença para declamar um poema, já que o Promotor havia cantado um funk. No entanto, avisei que só iria declinar o nome do poeta ao final daquela declamação e iniciei meu trabalho, protegido por São Ivo, protetor dos advogados e lhes disse: Um homem na estrada recomeça a sua vida Sua finalidade: a sua liberdade Que foi perdida, subtraída E quer provar a si mesmo que realmente mudou Que se recuperou e quer viver em paz Não olhar para trás, dizer ao crime: nunca mais! Pois sua infância não foi um mar de rosas, não Na FEBEM, lembranças dolorosas, então Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim Muitos morreram sim, sonhando alto assim Me digam quem é feliz, quem não se desespera Vendo nascer seu filho no berço da miséria Um lugar onde só tinham como atração O bar e o candomblé pra se tomar a benção Esse é o palco da história que por mim será contada Um homem na estrada. 46 Quando terminei a declamação, podia se ouvir o barulho das asinhas das moscas batendo ao ar. O silêncio era profundo. Declamei com emoção, com força e sinceridade. Muitos no Plenário choraram naquele momento; vi os olhos dos jurados marejados de lágrimas e tomados pela emoção que tomou conta do ambiente. Isso é o júri e ao final lhes indaguei: Vossas Excelências se emocionaram ao ouvir este poema, não é? Pois bem, Excelências, o que eu acabei de declamar não é um poema. É, sim, uma letra de rap dos Racionais MC’s lá do Capão Redondo, comunidade pobre de São Paulo. Vossas Excelências emocionaram-se em escutar um rap, portanto não condenem esta família por gostar de funk! Resultado: réus absolvidos. Assim é o júri. Uns amam, outros odeiam. Eu sou um apaixonado pelo júri e respeito aqueles que não gostam desta instituição, mas uma coisa é inegável: não existe local onde o advogado é mais advogado do que no Plenário do Júri. 47 48 8. ADVOTRÁFICO: A LINHA TÊNUE QUE SEPARA O OFÍCIO DA ADVOCACIA CRIMINAL E O CRIME Este foi um daqueles casos que nos marcam como profissional e que podem passar muitos e muitos anos sem que esqueçamos dos detalhes. Conheci P. em um júri que realizamos no Rio Grande do Sul. Eu defendia um réu e ele outro acusado. Até ali, nunca tínhamos nos visto ou trabalhado juntos. Conhecemo-nos no plenário do júri e de cara simpatizei pelo colega. P. havia se formado há pouco, assim como eu. Ao final da noite, depois de um longo julgamento, nossos clientes foram absolvidos, o que realmente nos deixou extremamente felizes, afinal de contas, éramos dois jovens advogados iniciando na seara criminal, e conseguir uma absolvição pelo Conselho de Sentença nunca foi fácil. Após o trabalho bem feito, decidimos beber para comemorar. Ao final daquela noite, quase madrugada, despedimo-nos, trocamos car-tões e prometemos nos encontrar novamente para mais uma rodada de cerveja e para colocar os assuntos em dia. Fiquei exatamente um ano sem vê-lo, até que, certo dia, estou chegando ao foro de Alvorada, na região metropolitana, e percebo a chegada de uma linda caminhonete Land Rover, de cor prata, zero quilômetro, e adivinhem quem estava na “boleia” daquela nave: o meu amigo P. Confesso que na hora fui tomado por dois sentimentos: o primeiro de alegria em reencontrar meu brother e o outro foi de vergonha, eis que ainda continuava com meu velho carro a tiracolo. Contudo, P. nem deu bola pra isso e veio em minha direção aos gritos: Jean, meu parceiro de júri, quanto tempo! Que bom te encontrar novamente. Ficamos mais uns minutos de papo e combinamos um café após minha audiência, já que P. apenas iria fazer carga de um processo junto ao foro. Combinamos o café em uma cafeteria que fica 49 dentro de um supermercado na cidade de Alvorada, conversamos, e de curioso perguntei para P.: E os processos como andam? E o que é aquele carro meu irmão? Teu escritório deve estar bombando! P. me respondeu de maneira curta: Estou advogando apenas para um cliente e graças a Deus as coisas estão dando certo. P. mudou de assunto e continuamos nossa prosa por mais algum tempo. Percebi também que P. usava um Rolex Daytona no pulso. Não quis perguntar se era original para não parecer “recalcado e invejoso”, mas é que adoro relógios e dizem que são a “joia” do homem. Por fim, despedimo-nos. Ao entrar no meu velho carro pensei comigo mesmo: Bah, tô nessacorreria também e nem ao menos consigo trocar meu carro. Será que estou fazendo as coisas certas? Dei uma risada e continuei minha volta a Porto Alegre no meu carrinho velho, mas quitado, ouvindo um bom e velho Bezerra da Silva. Um belo, dia estou atendendo no meu escritório e visualizo uma dezena de chamadas de um mesmo telefone no meu celular. Ao ter-minar o atendimento, retornei a ligação, já que poderia ser algum cliente precisando dos meus serviços. E, para minha surpresa, do outro lado da linha era meu colega P., dizendo: Velho, preciso falar contigo urgente! Onde você está? Passei o endereço do escritório a P. e, em menos de uma hora, ele estava lá. No entanto, P. não possuía o mesmo sorriso nos lábios dos encontros anteriores e um abatimento tomava conta do meu amigo. Na hora em que P. me ligou, achei que queria ajuda em um processo. Já me imaginava também dirigindo meu zero quilômetro, todavia, para minha surpresa, quando ele se sentou em minha frente, começou a chorar e do bolso tirou uma cópia de uma denúncia: ele havia sido denunciado pelos crimes de tráfico de drogas e associação ao tráfico juntamente com seus ex-clientes. Pior: estava sendo ameaçado juntamente com seus familiares por aqueles que até há pouco tempo defendia. Aquilo caiu como uma bomba no meu colo. Pedi que P. me con-tasse tudo, afinal de contas, eu iria defendê-lo naquela situação. P. me 50 contou que ficou conhecendo aqueles clientes através de um ex-cu- nhado seu que os defendia há pouco mais de um ano. Que eles realmente eram traficantes; que usavam estabelecimentos comerciais de fachada para traficar e lavar dinheiro, tais como bares e uma revenda de veículos; que sabia de tudo; que realizava os flagrantes quando aconteciam prisões nesses locais e defendia os proprietários dos ba-res e da revenda em outros processos por crimes por tráfico; que havia abandonado todos seus clientes para defender aquelas pessoas, já que eles se sentiam mais seguros quando estavam na presença de P., pois é muito cômodo para um traficante contar com a presença de um advogado ao seu lado 24 horas por dia. P. me contou que havia combinado um (elevado) valor mensal para defender aquelas pessoas, fora outros benefícios, como um belo carro ou um relógio, por exemplo. No entanto, seus clientes nunca lhe pagavam o combinado. Apesar das somas serem significativas, nunca o montante que haviam acertado era acertado. Essa diferença gerou uma discussão entre ambos, vindo a causar uma ruptura entre P. e seus clientes, justamente na época em que todos foram denunciados conjuntamente. O conto de fadas de P. se transformou em uma verdadeira história de terror. Ameaças terríveis foram feitas a P. caso ele delatasse o “esque- ma”, assim como ameaças à sua família que, depois de descobrir o ocorrido, virou-lhe as costas prontamente. P. ficou completamente sozinho e isolado, sem ter a quem recorrer para ajuda. Agora, o “advogado de bandido” vinha pedir ajuda à Polícia, que fez pouco caso de seu problema, ironizando e achando graça. P. estava desesperado, até se lembrar do seu “velho parceiro de júri”. A denúncia foi muito mal elaborada. O Ministério Público foi afoito na confecção da peça, que era extremamente genérica, impu- tando P. apenas por ser ele advogado dos demais corréus, mas sem indicar sua participação individualizada na quadrilha. Essa denúncia caótica facilitou meu trabalho. Ao final do processo, P. foi absolvido por ausência de provas. Essa pequena história tem um único propósito: servir de lição. Estudantes e jovens advogados, aprendam: advogado criminalista 51 atende apenas no seu escritório e não na casa de clientes. Honorários somente em dinheiro e fazer contrato de honorários é indispensável! No dia que saiu a sentença, P. me esperava em frente ao pré- dio onde morava. Deu-me um forte abraço, cheio de lágrimas. Toda aquela história não durou mais do que seis meses, pois o Parquet não recorreu da decisão. Estava absolvido, porém, não tinha mais carro, cliente, perdera tudo e o afastamento da família era o que mais lhe doía. Foi embora, sem dizer para onde ia, pensando em recomeçar do zero em qualquer outro lugar. Anos depois, fiquei sabendo que P. recomeça sua vida no Nor- deste, onde tinha sido aprovado em um concurso público e constituído nova família, mas nunca mais reatara com a sua antiga. Todo ano, mandame uma cesta de presente com um cartão como forma de agradecimento. Esse processo serviu-me para ser um advogado melhor, pois realmente aprendi o que todos os mais velhos insistem em nos aconse-lhar, mas nós, jovens, insistimos em não dar ouvidos: dinheiro não é tudo na vida, principalmente se advogado na causa criminal. Dinheiro é consequência de trabalho duro, dedicação e reconhecimento e não causa primeira. Desde que me formei, mal tirei férias. E quando me dei ao luxo de descansar, foram poucos dias, sempre com a cabeça no escritório. Ainda não comprei meu Porsche; a maior riqueza que tenho na vida é o amor da minha esposa e filhos, o respeito dos meus clientes e o carinho dos amigos. Talvez esses sejam os maiores honorários que um advogado venha a receber na vida, pois o resto é apenas dinheiro. Não foi fácil escrever este texto. Muitas lembranças vieram à tona. Pedi autorização a P. que na hora concordou com esta publica- ção, com uma única ressalva, que quando eu encontrasse sua mãe lhe dissesse: seu filho P. morre de saudades da senhora e busca um dia conseguir um possível perdão. 52 9. QUANDO DAVID, O MATADOR DE GIGANTES, FOI A JÚRI Vou contar a história de um júri em que tive a honra de trabalhar em favor de um jovem acusado de tentativa de homicídio duplamente qualificado, delito esse cometido em uma pequena e próspera cidade do interior do Rio Grande do Sul. Se não me falha a memória, esse foi meu júri de número 03: plenário bastante difícil no qual tive a honra de trabalhar contra um excelente Promotor de Justiça e um renomado advogado criminalista gaúcho, que atuou na assistência da acusação. Um dia memorável onde a defesa triunfou mais uma vez. Davi é nosso cliente, nosso réu. Jovem de classe média alta de uma cidade muito rica do nosso Rio Grande do Sul, filho exemplar, estudante dedicado que cometeu apenas um erro em sua vida, qual seja, gostar de uma jovem cujo namorado era um verdadeiro pitboy: rico, baderneiro e violento da localidade. Essa história é uma daquelas que parece ter saído da Sessão da Tarde, mas não, meus leitores, se trata de mais um drama da vida real. Neste júri, como quase todos em que atuei, fui contratado ape- nas para fazer o plenário. Infelizmente, quem cuidou da instrução processual foi um colega civilista, um parente da família. E deixar um civilista fazer a defesa em um processo-crime é quase o mesmo que deixar um cardiologista substituir um traumatologista. Não dá! A lógica processual é completamente diferente, e um dos motivos que fizeram Davi ir a júri foi a falta de defesa especializada durante a instrução, bem como o fato de, à época, o Promotor da cidade ser bem “chegado” da família da vítima. Meu caminho e o de Davi se cruzaram por acaso. Eu ainda não tinha realizado nenhum júri no interior do Estado como advogado constituído e, por um golpe do destino, discursei em uma loja, na 53 qual também estavam presentes o tio e padrinho de Davi, que ti- nham vindo do interior prestigiar o aniversário do estabelecimento. Naquele dia, falei bonito, alto, forte, com o coração, levando alguns “manos” às lágrimas. Ao final, fui procurado pelo tio de Davi, que me parabenizou pelas palavras e principalmente pelo modo com que eu havia me expressado. Disseme então: Quando tu falas parece que todos te escu-tam! É incrível! Logo me perguntou se eu era advogado criminalista e começou a me contar a triste história do afilhado, e tudo o que estava acontecendo em desfavor daquele jovem. Davi gostava de uma bela jovem da cidade que já tinha pre- tendente ou “ficante”. Procurava apenas se aproximar da menina, emprestando livros, CD’s etc,
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