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1 A PERMANÊNCIA DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO A vontade criadora do Direito é equiparada por Schmitt à figura do Poder Constituinte Originário, desenvolvida pela primeira vez por Syés, na França pós- revolucionária. Todavia, com Schmitt ela adquire contornos peculiares, em meio à teorização por ele empenhada. O Poder Constituinte figura como determinação soberana, envolvida em uma ordem concreta, que delibera sobre a criação do Direito. Encontra sua legitimidade precisamente nesse seu caráter soberano, apoiado no substrato axiológico sobre o qual se funda. Não obstante, a grande diferença verificada em Schmitt é a inexistência de uma total autonomização do Direito criado em relação ao poder que cria, de modo a submetê- lo. “Así como una disposición orgánica no agota el poder organizador que contiene autoridad y poder de organización, así tampoco puede la emisión de una Constitución agotar, absorber y consumir el Poder constituyente. Uma vez ejercitado, no por ello se encontra acabado y desaparecido el Poder constituyente. La decisión política implicada en la Constitución no puede reobrar contra su sujeto, ni destruir su existência política. Al lado y por encima de la Constitución, sigue subsistiendo esa voluntad. Todo auténtico conflicto constitucional que afecte a las bases mismas de la decisión política de conjunto, puede ser decidido, tan solo, mediante la voluntad del Poder constituyente mesmo. También las lagunas de la Constitución – a diferencia de las oscuridades y discrepâncias de opinión de las leyes constitucionales en particular – pueden llearse, tan solo, mediante um acto del Poder constituyente; todo caso imprevisto, cuya decisión afecte a la decisión política fundamental, es decidido por Él”. (SCHMITT, 1992, p. 94-95). Cabe aqui mencionar uma distinção feita pelo jurista alemão entre Lei Constitucional e Constituição propriamente dita. A Constituição é a forma de governo e de organização política de um povo, materialmente existente, instituída pela vontade corporificada no Poder Constituinte. A Lei Constitucional é a expressão imperfeita e fenomênica desta, à qual encontra- subordinada, cujas normas jurídicas visam tão somente à estabilização destinada a viger em uma ambiência de normalidade. Feita essa diferenciação, faz-se relevante atentar para o fato de que, para Schmitt, a Lei Constitucional, noutras palavras, a Constituição Formal, é modificável a qualquer tempo por sua vontade instituidora. Vale dizer, tendo como base uma democracia, tomados os representantes ou o mandatário soberano identificado com o povo, esses podem modificar a qualquer tempo a Constituição Formal. Vê-se, pois, que não faz sentido se falar de cláusulas pétreas à luz do pensamento de Carl Schmitt. Inobstante, a Constituição material é imodificável. Se ela representa as formas políticas concretamente adotadas por um povo mediante uma decisão soberana, a decisão posterior que a modifique não está alterando-a, mas sim decidindo sobre a configuração de uma nova Constituição. Isto posto, a alteração da Constituição material é impossível, e aqui cabe uma ressalva quanto à primeira assertiva que fizemos: uma reforma da Lei Constitucional pode também representar a decisão sobre uma nova ordem constitucional material, desde que repercuta na disposição concreta da conformação da unidade política de um povo. Assim, a análise da teoria do Poder Constituinte schmittiana permite a enunciação de uma primeira conclusão: o poder constituinte permanece sempre vivo, podendo atuar a qualquer tempo através decisão sobre a alteração da Lei Constitucional, ou mesmo por intermédio da instauração de uma nova ordem material. Tal se justifica, no aspecto formal, pelo raciocínio segundo o qual o compromisso assumido para consigo mesmo não é de observância obrigatória, eis que o mesmo ente que se compromete é livre para se descompromissar a qualquer tempo. Qual seja, não faz sentido estabelecer em uma Lei Constitucional limites à sua modificação, pois tal lei, sendo obra do povo, não pode vincular esse mesmo povo, impedindo uma decisão soberana que desfaça tais convenções. Nessa altura, surge uma relevante questão. Poder-se-ia objetar, contra Schmitt, que a vontade não é capaz de por si só criar o Direito, pois do não-jurídico não pode surgir o jurídico. Ora, tal questão guarda notória dependência com o que se entende por Direito e, considerando-se que em Schmitt esse é primariamente vislumbrado como uma decisão soberana envolvida e originária por/de uma ordem, percebe-se a falta de razoabilidade da objeção. Contudo, a exata compreensão do poder jurígeno da vontade exige uma retomada de alguns pontos da teoria política desse autor, a partir da qual se tornará mais clara a concatenação lógica desse raciocínio.
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