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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/350814106 DESIGUALDADE E DISCRIMINAÇÃO: UM OLHAR SOBRE O MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO SOB A ÓTICA DA INTERSECCIONALIDADE Inequality and discrimination: a look at the Brazilian labor .... Article · April 2019 CITATIONS 0 3 authors, including: Sayonara Grillo Coutinho Silva Federal University of Rio de Janeiro 28 PUBLICATIONS 8 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Sayonara Grillo Coutinho Silva on 12 April 2021. The user has requested enhancement of the downloaded file. https://www.researchgate.net/publication/350814106_DESIGUALDADE_E_DISCRIMINACAO_UM_OLHAR_SOBRE_O_MERCADO_DE_TRABALHO_BRASILEIRO_SOB_A_OTICA_DA_INTERSECCIONALIDADE_Inequality_and_discrimination_a_look_at_the_Brazilian_labor_market_from_the_point_of_vie?enrichId=rgreq-edb3e747ea3376531e47e3e6b00a76aa-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzM1MDgxNDEwNjtBUzoxMDExNzUxOTg2NDE3NjY1QDE2MTgyMzE4Nzk1MTU%3D&el=1_x_2&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/?enrichId=rgreq-edb3e747ea3376531e47e3e6b00a76aa-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzM1MDgxNDEwNjtBUzoxMDExNzUxOTg2NDE3NjY1QDE2MTgyMzE4Nzk1MTU%3D&el=1_x_1&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Sayonara-Silva?enrichId=rgreq-edb3e747ea3376531e47e3e6b00a76aa-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzM1MDgxNDEwNjtBUzoxMDExNzUxOTg2NDE3NjY1QDE2MTgyMzE4Nzk1MTU%3D&el=1_x_4&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Sayonara-Silva?enrichId=rgreq-edb3e747ea3376531e47e3e6b00a76aa-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzM1MDgxNDEwNjtBUzoxMDExNzUxOTg2NDE3NjY1QDE2MTgyMzE4Nzk1MTU%3D&el=1_x_5&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/institution/Federal-University-of-Rio-de-Janeiro2?enrichId=rgreq-edb3e747ea3376531e47e3e6b00a76aa-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzM1MDgxNDEwNjtBUzoxMDExNzUxOTg2NDE3NjY1QDE2MTgyMzE4Nzk1MTU%3D&el=1_x_6&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Sayonara-Silva?enrichId=rgreq-edb3e747ea3376531e47e3e6b00a76aa-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzM1MDgxNDEwNjtBUzoxMDExNzUxOTg2NDE3NjY1QDE2MTgyMzE4Nzk1MTU%3D&el=1_x_7&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Sayonara-Silva?enrichId=rgreq-edb3e747ea3376531e47e3e6b00a76aa-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzM1MDgxNDEwNjtBUzoxMDExNzUxOTg2NDE3NjY1QDE2MTgyMzE4Nzk1MTU%3D&el=1_x_10&_esc=publicationCoverPdf DESIGUALDADE E DISCRIMINAÇÃO: UM OLHAR SOBRE O MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO SOB A ÓTICA DA INTERSECCIONALIDADE Inequality and discrimination: a look at the Brazilian labor market from the point of view of intersectionality Revista de Direito do Trabalho | vol. 199/2019 | p. 133 - 161 | Mar / 2019 DTR\2019\23946 Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva Doutora em Ciências Jurídicas. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio. Professora associada da Faculdade Nacional de Direito e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Coordenadora do grupo Configurações Institucionais e Relações de Trabalho – CIRT-UFRJ. Desembargadora do Trabalho (TRT-1ª Região). sayonara@direito.ufrj.br Bárbara Ferrito Mestranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGD/UFRJ. Integrante do Grupo de Pesquisa Configurações Institucionais e Relações de Trabalho – CIRT/UFRJ. Juíza do Trabalho (TRT-1ª Região). ferrito.ufrj@gmail.com Luana Angelo Leal Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista PIBIC-UFRJ-CNPq, integrante do Grupo de Pesquisa Configurações Institucionais e Relações de Trabalho – CIRT/UFRJ. luana.angelo.11@gmail.com Área do Direito: Trabalho Resumo: Para tratar de conformação do mercado de trabalho sob as perspectivas dos marcadores de raça, classe e gênero utiliza-se como chaves de leitura os conceitos de interseccionalidade e divisão sexual do trabalho. Pelo primeiro, promove-se o estudo integrado dos diversos marcadores de vulnerabilidade, diante da constatação de que há trabalhadoras sob a influência de múltiplas discriminações. Pelo segundo, considera-se, como Kergoat, que o mercado de trabalho parte de uma separação artificial, quanto à hierarquia e valoração, dos trabalhos realizados por homens e mulheres, gerando uma repartição de tarefas conforme o sexo. As mulheres negras colocam-se, então, como verdadeiro paradigma à teoria da divisão sexual do trabalho, já que o legado da escravidão não lhes poupou das tarefas manuais e braçais. O artigo reflete sobre como o direito atua e serve como instrumento de combate à discriminação, adotando Wandelli e Moreira como marco conceitual. Com esse exercício, que se vale de fontes primárias e secundárias sobre o mercado de trabalho brasileiro, bem como de revisão bibliográfica, busca-se entender quais são os instrumentos do Direito no combate à discriminação da mulher no mercado de trabalho, considerando o corte de raça, classe e gênero. Palavras-chave: Interseccionalidade – Divisão sexual do trabalho – Discriminação Abstract: In order to study the conformation of the labor market under the perspectives of the markers of race, class and gender, the concepts of intersectionality and sexual division of labor are used as reading keys. The first one promotes the integrated study of the various vulnerability markers, in view of the fact that there are workers under the influence of multiple discriminations. By the sexual division of labor, the concept of Kergoat, according to which the labor market is based on an artificial separation, regarding the hierarchy and valuation, of the work done by men and women, generating a distribution of tasks according to the sex. However, is important to consider that black women are a true paradigm for the sexual division of labor theory, since the legacy of slavery did not spare them manual and forceful tasks. The article reflects on how law acts and serves as an instrument to combat discrimination, adopting as a conceptual trace the notion of discrimination brought by Wandelli and Moreira. With this exercise, Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 1 which uses analysis of the data provided by the mentioned research, as well as a bibliographical examination, it is possible to understand what are the law's instruments in the fight against women's discrimination in the labor market, considering the trace of race, class and gender Keywords: Intersectionality – Sexual division of labor – Discrimination Sumário: 1.Introdução - 2.Feminismo e interseccionalidade - 3.Divisão sexual do trabalho - 4.A segregação das mulheres negras no mercado de trabalho - 5.Desigualdades, discriminação e direito - 6.Conclusão - 7.Referências 1.Introdução A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece diretrizes vinculantes de seu programa dirigente e normativo. Como ordem política, o Estado Democrático destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem-estar, a igualdade, o desenvolvimento e a justiça, como valores supremos, afirma o preâmbulo constitucional, de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. A democracia, portanto, relaciona-se diretamente com os valores da fraternidade e da recusa aos estigmas que fundam preconceitos e transbordam em discriminação e exclusão. Às vésperas da comemoração dos 30 anos da Constituição, o momento convida ao balanço da igualdade proposta e exige reflexão. Distantes a fraternidade, a justiça, o desenvolvimento e a liberdade, afasta-se a sociedade da democracia. Os efeitos dessa desigualdade não são, porém, suportados igualmente por todos os brasileiros. Os estigmas e preconceitos, as diferenciações e as intolerâncias afetam de modo desproporcional os integrantes das classes populares, as pessoas em situação de vulnerabilidade e, quando marcadas pelo gênero oupela cor ou raça, essa disparidade aumenta sobremaneira. As desigualdades que permanecem conformando o mercado de trabalho brasileiro, não obstante o conjunto de medidas legislativas antidiscriminatórias, constitui-se na temática deste artigo, que se propõe a examinar aspectos de nossa sociedade do trabalho, sob as perspectivas dos marcadores de raça, classe e gênero. Para cumprir esse propósito, inicialmente examina-se as perspectivas teóricas do feminismo e interseccionalidade, estabelecendo um marco conceitual, bem como a noção de divisão sexual do trabalho. Fixadas as premissas analíticas, na seção 4, denominada “segregação das mulheres negras no mercado de trabalho”, analisam-se dados empíricos que permitem descrever a conformação do mercado de trabalho da mulher negra no Brasil e sua vulnerabilidade estrutural. A seguir, expõe-se as normas jurídicas que pretendem combater as desigualdades e as discriminações existentes (seção 5). A partir de uma perspectiva interdisciplinar, promove-se revisão bibliográfica e pesquisa exploratória, com a utilização de fontes secundárias para descrever a estrutura do mercado de trabalho brasileiro e com levantamento legislativo. Utilizam-se as fontes fornecidas pelo Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe, realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas da UERJ, que consiste em uma sistematização dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE) entre os anos de 2011 a 2015 (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017), bem como dados empíricos sobre emprego doméstico no Brasil, sistematizados em pesquisa realizada no âmbito dos Programas de Pós-graduação em Economia e em Políticas Públicas da UFRGS (VIECELI; WUNSCH; STEFFEN, 2017) e sobre mercado de trabalho da mulher pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2018) Com esse exercício, é possível superar uma visão estática do combate à discriminação, para perceber a fluidez desse conceito, bem como as distintas situações que um mercado de trabalho marcado por seu signo gera. Assim, a análise teórica das ideias interseccionais permite um exame preciso dos dados obtidos nas pesquisas, desaguando Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 2 em uma observação apurada dessa conformação desigual do mercado. 2.Feminismo e interseccionalidade Gênero, sexo, feminismo, patriarcado e dominação masculina. Todas palavras de um dicionário tão antigo, mas que tem ganhado as manchetes na atualidade. As opressões de gênero têm sido, a cada dia, noticiadas, rechaçadas e, quer-se crer, superadas. Esse processo não é de hoje, em que pese o chamado “movimento feminista”, como se apresenta hodiernamente, tenha ganhado forma na segunda metade do século XX. Para manter essa roda da evolução em movimento, é preciso tentar compreender em que medida o gênero influencia as relações sociais, entre as quais a relação de trabalho. Nesse sentido, o feminismo deve ser entendido de forma ampla, como movimento coletivo que, partindo do reconhecimento de opressões estruturais contra as mulheres, percebe que esse desenho de relação não decorre da natureza (FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, 2009, p. 144), mas das forjas sociais. Esse movimento, mais do que somente militância, necessita também de uma base teórica e crítica, que se proponha a revisitar todas as relações sociais, a fim de identificar os traços patriarcais existentes. A seara laboral não poderia permanecer imune a esse reexame. Assim, percebe-se que o movimento feminista e as teorias feministas têm muito a contribuir com o mapeamento de condições e soluções para as opressões vividas pelas mulheres nas relações de trabalho. Para que esse diálogo, direito do trabalho e feminismo, seja possível, indispensável perceber um pouco do caminho da luta das mulheres, por meio das chamadas diversas ondas feministas1. Inaugurando as ondas, tem-se o chamado feminismo liberal, do século XIX, que tomou conta dos Estados Unidos e da Europa, centrando-se basicamente na luta pela extensão do direito ao voto às mulheres. Encabeçado pela classe média burguesa desses centros, o movimento é considerado extremamente conservador, na medida em que não rompe com a subordinação, mas apenas com algumas condições geradas pela opressão estrutural que, muitas vezes, sequer era reconhecida. Com o início da I Guerra Mundial, o movimento perdeu sua força, mas obteve importantes vitórias após o fim do conflito, com o reconhecimento do direito ao voto em diversos países do Norte. Com a satisfação do principal item da pauta feminista, a mobilização se arrefeceu até a publicação do livro O segundo sexo, por Simone de Beauvoir, que inovou ao trazer uma abordagem interdisciplinar da subordinação das mulheres. A segunda onda feminista eclode nos Estados Unidos da década de 1970, em meio aos movimentos sociais dos negros e a liberação sexual. Nessa fase, são estudadas três vertentes teóricas feministas: feminismo liberal de segunda geração, feminismo radical e feminismo socialista ou marxista. Chamada de segunda geração do feminismo liberal, mais do que uma mera atualização das ideias liberais encabeçadas pelas teóricas da primeira onda, se buscava a igualdade como valor central, sendo a liberdade mera consequência, com reivindicação de medidas redistributivas. Entendia-se, assim, que as relações sociais desiguais poderiam ser corrigidas, a fim de alcançarem a igualdade substancial. O feminismo radical, por outro lado, centra seus estudos nas diversas formas de opressões vividas pelas mulheres nas relações sociais, em especial as sexuais. Entende que a violência atinge todos os contextos da vida, sendo, pois, caracterizada por uma estrutura social chamada de patriarcado que se traduz no poder dos homens sobre as mulheres (DELPHY, 2009, p. 173). O uso do termo patriarcado se popularizou, na medida em que, além de dar conta do sentido das demais opções, tais como dominação masculina, falocracia e androcentrismo, indica a existência de uma estrutura apta a funcionar sem cessar, acionável até pelas próprias mulheres (SAFFIOTI, 2004, p. 100-101). Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 3 Finalmente, encerrando essa onda do feminismo, temos a influência das teorias de Marx e do socialismo, que buscavam a adoção de um sistema dual ou do duplo sistema (BELTRÁN; MAQUIEIRA; ALVARÉZ; SÁNCHEZ, 2008, p. 117) de análise, a fim de considerar capitalismo e patriarcado como sistemas de opressão que trabalham conjuntamente. A grande crítica ao feminismo socialista repousa na constatação de que o patriarcado apresenta-se como uma força de violência contra a mulher muito anterior historicamente ao capitalismo, não sendo possível atrelar a existência dos dois a um mesmo período. Para os objetivos desse trabalho, essa corrente tem grande influência, na medida em que permitiu a visualização da divisão sexual do trabalho e também da exploração do trabalho doméstico de forma gratuita pelo sistema capitalista, trazendo luz às relações invisibilidades sob estudo. Finalmente, a última onda feminista abarca as linhas teóricas do feminismo cultural ou da diferença e feminismo pós-estruturalista. O feminismo cultural tem como um de seus expoentes Carol Gilligan e seus estudos sobre a ética diferenciada entre homens e mulheres, no campo principalmente da psicologia. Homens e mulheres teriam respostas diferenciadas para a solução de conflitos éticos. A grande crítica feita ao feminismo cultural refere-se ao seu potencial essencializante da mulher, que reduz o papel das estruturas sociais como criadoras do gênero, entendido como “institucionalização social das diferenças sexuais” (OKIN, 2008, p. 306). Para encerrar, o feminismo pós-moderno ou pós-estruturalista busca superar as dicotomias racionalistas, em especial os dualismos cartesianos que moldam o pensamento atual e são hierarquizados e sexuados em detrimento da causa feminista.Coloca-se em questão as diversas formas de universalização da mulher, a fim de visualizar a pluralidade de experiências femininas (BELTRÁN; MAQUIEIRA; ALVARÉZ; SÁNCHEZ, 2008, p. 249). Não seria possível encerrar uma análise, ainda que rápida, sobre as diversas faces do feminismo, olvidando as contribuições do feminismo negro. Para isso, interessante perceber que as mulheres negras permaneceram muito tempo sem representação dentro do próprio movimento feminista, dada a diferença das experiências que viviam, que incluíam, por exemplo, a luta pela abolição da escravidão. Apesar do nome, o feminismo negro não se pretende um movimento de mulheres negras, mas um movimento de mulheres que, diferentemente dos demais, considere também as perspectivas das mulheres negras. Nessa vertente, um conceito fundamental para pesquisas atuais sobre discriminação foi cunhado por Kimberle Crenshaw: interseccionalidade (CRENSHAW, 2004). Partindo de vivências pessoais, a autora percebe que algumas pessoas não sofrem a influência de um único fator de discriminação, mas de vários. Para trabalhar essa ideia, Crenshaw usa a ilustração de uma via de rolamento com diversos cruzamentos. Cada uma das vias que se cortam é um marcador de vulnerabilidade e, no que pese haver pessoas em cada uma dessas ruas, algumas estão localizadas exatamente no cruzamento de diversos marcadores. Para essas, não existem discriminações apartadas ou somadas, mas entrecruzamento entre os fatores, em especial, gênero, raça e classe. Bárbara Smith fala em sobreposição de grupos e simultaneidade de opressões (SMITH, 1983, p. xxxiv). Com esse conceito, é possível fugir à tentação de hierarquizar as opressões, como por vezes defendido pelas feministas marxistas. Ina Kerner (2009, p. 46) trabalhou o conceito de interseccionalidade, a fim de permitir a sua harmonização com as diversas formas de análise da discriminação. Assim, reconheceu que existem casos nos quais a mera soma de fatores é suficiente para explicar o fenômeno, ao passo que outros exigem, de fato, um exame da relação entre os fatores. Heleieth Saffioti (2004, p. 115) traz a ideia de nó para tratar do entrelaçamento das discriminações, explicando que o gênero está enovelado pelos marcadores de raça e classe. A ideia de nó frouxo trazido pela autora permite certa mobilidade dos Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 4 componentes discriminatórios (SAFFIOTI, 2004, p. 125). Ao lado da noção de interseccionalidade de Crenshaw e nó de Saffioti, tem-se a noção de consubstancialidade. Indicando unidade de substância, Danièle Kergoat procura utilizá-la, em prejuízo da ideia de interseccionalidade, por perceber que o foco não seria a intersecção da discriminação, mas a confluência das relações sociais que fabricam categorias discriminatórias, diante das propriedades em comum apresentadas (KERGOAT, 2016, p. 22). Entre esses conceitos, parece mais adequado ao fim proposto pelo trabalho a ideia inicial de interseccionalidade, nos moldes pensado por Creenshaw. Diferente da noção de consubstancialidade, a interseccionalidade coloca-se como conceito mais simples, capaz de abarcar diversas situações, sem exigir a similitude de propriedades ou substância, como aquela noção parece fazer. Assim sendo, feita essa digressão teórica, é possível, partindo-se de uma perspectiva interseccional, ingressar no estudo do fenômeno da divisão sexual do trabalho, a fim de selar os referenciais sobre os quais serão feitas as análises do mercado de trabalho, nos moldes propostos. Apesar de ter sido cunhado na década de 1970, o conceito mantém sua relevância e atualidade, em que pese as diversas modificações sociais enfrentadas pelas trabalhadoras e trabalhadores. 3.Divisão sexual do trabalho A conceituação de qualquer instituto implica em um ato de diferenciar o que ele é daquilo que não é. Assim, mais importante talvez do que a determinação do que efetivamente é trabalho, foi a demarcação do que não era trabalho. Martinez Veiga (1995, p. 15) nos explica que, na Espanha, a primeira lei a tratar de matéria laboral, mais especificamente sobre acidente de trabalho, trouxe uma conceituação legal que excluiu boa parte das modalidades de trabalho da época, ao exigir elementos como habitualidade, conta alheia etc. Igualmente, prossegue o autor, a mulher foi excluída dessa conceituação de trabalho, na medida em que caracterizava como trabalho aquilo que os homens faziam. A exclusão da mulher não foi direta, mas oblíqua, por meio do conceito de trabalhador como aquele que realiza uma atividade manual fora do domicílio, suprimindo, pois, o trabalho doméstico (MARTÍNEZ VEIGA, 1995, p. 20). Esse corte teve por base, também, outra dicotomia existente na sociedade, que se refere à cisão entre os espaços públicos e privados, muito abordada pelas feministas radicais. Às mulheres foi designada a esfera doméstica como local de atuação, na medida em que, no âmbito público, estavam estruturalmente subordinadas aos homens, na figura do pai, irmão, marido ou filho. Assim, enquanto o homem exercia suas atribuições no espaço público, tratando de economia e política, às mulheres couberam os deveres de cuidado e reprodução. É bem verdade, porém, que essa cisão desconsiderou as experiências de parte das mulheres, mais especificamente, das mulheres negras, como se verá mais adiante. Nada obstante, a pertinência da dicotomia ainda é indispensável para entender a assunção atual do trabalho reprodutivo pelas mulheres em geral, o que não obsta o reconhecimento da existência de modos diferenciados de integração das mulheres negras ao mercado de trabalho. Vale trazer as palavras de Susan M. Okin, para quem: "Nós não podemos entender as esferas “públicas” – do estado do mundo do trabalho ou do mercado – sem levar em conta o fato de que são generificadas, o fato de que foram construídas sob a afirmação da superioridade e da dominação masculina e de que elas pressupõem a responsabilidade feminina pela esfera doméstica (OKIN, 2008, p. 320)." Essa cisão entre espaços público e privado, trabalho e não trabalho, contribuiu para o que se convencionou chamar de divisão sexual do trabalho. Segundo Danièle Kergoat, a Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 5 divisão sexual do trabalho se acomoda a partir de dois princípios basilares, quais sejam: a) o princípio da separação, segundo o qual há um trabalho próprio das mulheres e um trabalho próprio dos homens; e b) o princípio da hierarquia, informando que o trabalho próprio do homem tem valor superior ao próprio das mulheres (KERGOAT, 2009, p. 67). Esses princípios partem da essencialização da mulher, na medida em que entendem que as diferenças biológicas determinam, ou ao menos influem, em suas possibilidades no mercado de trabalho. A fenda conforme valor e espécie de trabalho gera infindáveis repercussões nas carreiras das mulheres. O teto de cristal, a brecha salarial, a exclusão setorial, o assédio, todos esses fenômenos partem da ideia de que existem trabalhos que não devem ser desenvolvidos pelas mulheres e os que podem ser executados por elas, e que possuem menor valor. Valor aqui não necessariamente econômico. Para quem crê que há certo exagero nessa afirmação, basta pensar na recente manifestação de caminhoneiros que parou o País em maio de 2018. Quantas mulheres foram vistas na manifestação? Quantas mulheres motoristas de caminhão autônomas existem? De fato, trata-se de um ramo do mercado de trabalho altamente masculinizado. Sem entrar na análise das causas desse fenômeno, é interessante hoje perceber que ainda existem atividades econômicas nas quais as mulheres são excluídas, o que demonstra a atualidade do tema. Por outro lado, em setores laborais nos quais a presença das mulheres é mais intensa há uma menor valorização salarial, e naqueles em que a maior parte das ocupantes é de mulheres negras há uma maior precariedade em termosde conquistas de direitos, acesso e efetivação, demonstráveis por meio de dados empíricos analisados na seção a seguir. 4.A segregação das mulheres negras no mercado de trabalho A partir de um olhar interseccional é possível perceber que, assim como o gênero, raça e classe também moldam o mercado de trabalho, mormente no Brasil, que possui baixo índice de mobilidade social. O resultado dessa cisão é apresentado muitas vezes como natural, dado e imutável e não como uma construção social, produto da estrutura preconceituosa existente. O termo “negro” no presente estudo é utilizado como gênero para abranger “pretos” e “pardos”, que podem ser estudados conjuntamente, dada a semelhança de seus resultados na pesquisa analisada. Esclarecida a terminologia, é preciso tratar da origem do conceito de “raça”, criado inicialmente pelos racialistas para entender as distinções físicas entre os grupos humanos, atrelando-os a aspectos morais, conforme a cultura. No século XIX, com o surgimento das teorias políticas e desenvolvimento da Biologia, o termo “raça” ganhou aspecto social e político, sendo utilizado para separar os povos entre superiores e inferiores, de modo a naturalizar a exploração dos últimos pelos primeiros (SANTOS, 2002, p. 50-51). A cientificidade do século XIX foi o meio pelo qual as diferenças físicas foram utilizadas como critério evolutivo da humanidade, dando uma aparente explicação científica para a exploração e criando o racismo por meio de um processo de naturalização das desigualdades (SANTOS, 2002, p. 52-53). Sendo assim, os europeus apagaram as particularidades dos povos africanos, reduzindo-os a apenas “negros” pelo processo de racialização (MONSMA, 2013). Apesar do cunho extremamente negativo atrelado ao termo “raça” durante séculos, sua utilização ainda é importante, não como remanescência de uma sociedade hierarquizada, mas sim como um marcador social, justamente para possibilitar a obtenção de dados específicos sobre a condição da população negra, de modo a atestar e combater a desigualdade social no país. Uma vez superada a disparidade racial, não será mais necessário utilizar esse termo (ALMEIDA; LIBÂNIO; OSÓRIO, 2005, p. 8). Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 6 Aqui, vale a pena perceber que a própria noção de divisão sexual do trabalho, no que pese sua importância, pode ser criticada, na medida em que se prende a uma visão europeia e ocidental sobre o trabalho da mulher, vendo-o como condicionado ao âmbito doméstico, com tardia inserção no mercado de trabalho. Generaliza, pois, as formas de trabalho que são destinadas às mulheres, como se essa categoria fosse uniforme, apagando, assim, as opressões raciais que atingiram as mulheres negras muito antes da inserção das mulheres brancas no mercado de trabalho. Isso porque a escravidão2 deixou um legado de exploração sobre os corpos negros, não poupando as mulheres negras que, vistas como propriedade assim como os demais escravos, não podiam furtar-se aos trabalhos nas lavouras, além das opressões de gênero compartilhadas com as mulheres brancas (DAVIS, 2016, p. 17-19). Logo, as mulheres negras sempre foram afetadas pela dupla jornada, uma vez que lhe cabiam tanto a economia pública quanto a economia doméstica – essa, inclusive, enquanto realizada dentro do próprio lar tinha significado completamente diferente para as escravas, conforme Angela Davis: "É verdade que a vida doméstica tinha uma imensa importância na vida social de escravas e escravos, já que lhes propiciava o único espaço que podiam vivenciar verdadeiramente suas experiências como seres humanos. Por isso – e porque, assim como seus companheiros, também eram trabalhadoras –, as mulheres negras não eram diminuídas por suas funções domésticas, tal como acontecia com as mulheres brancas. Ao contrário dessas, aquelas não podiam ser tratadas como meras “donas de casa” (DAVIS, 2016, p. 29)." Ademais, a autora também aponta que “a questão que se destaca na vida doméstica das senzalas é a da igualdade sexual” (DAVIS, 2016, p. 30), eis que os trabalhos domésticos realizados pelas mulheres não eram definidos como inferiores, sendo compartilhado pelos homens negros. Isso corrobora com a afirmação feita anteriormente de que as mulheres negras são um verdadeiro paradigma à teoria da divisão sexual do trabalho, porque sua estruturação social ocorreu de forma diversa. Essa característica não pode ser apagada por uma aparente neutralidade racial que, na verdade, oculta outras formas de opressão. Portanto, a ideia de que o espaço público (e consequentemente do trabalho) era destinado aos homens, não se adequa à realidade das mulheres negras no período da escravidão – com subsequente impacto na atualidade, no que pese servir de instrumento de análise para aceitação dos encargos domésticos pelas mulheres hoje. Fica evidente, pois, a importância da interseccionalidade no exame dessas diversas estruturas, que afetam os indivíduos de forma diferenciada. Dessa forma, o mito da fragilidade feminina que influenciou o desenvolvimento de uma legislação falsamente protetiva, que equiparava o trabalho da mulher com o trabalho do menor – algo que deveria ser excepcional em razão da vulnerabilidade do agente (ERMIDA URIARTE, 2006, p. 116) – se justifica, em grande medida, a partir do exame do ingresso das mulheres brancas no mercado de trabalho, visto que a força de trabalho das mulheres negras não era algo excepcional na economia da escravidão. Aliás, sequer se poderia dizer que as escravas eram poupadas por proteção à maternidade, eis que “aos olhos de seus proprietários, elas não eram realmente mães; eram apenas instrumentos que garantiam a ampliação da força de trabalho escrava” (DAVIS, 2016, p. 19). Apesar de transcorrido mais de um século das opressões descritas, seus impactos ainda reverberam nos dias atuais, como pode ser percebido pela análise de diversos estudos que se propõem a esquematizar os dados de pesquisas censitárias para comparar os resultados da população negra com os resultados da população branca, o que, em todos os casos, evidencia a disparidade social entre as raças, com notória precariedade atrelada aos negros. Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 7 O Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas – GEMAA, da UERJ, publicou recentemente importante Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe que sistematiza dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios realizada pelo IBGE entre os anos de 2011 a 2015 (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017). O cruzamento das informações a seguir descritas demonstra uma conformação desigual do mercado de trabalho em desfavor da mulher negra no Brasil. Inicialmente, apresenta-se o percentual dos grupos de cor (conforme autodeclaração) ao longo do período analisado. Os resultados apontam que negros (pretos e pardos) representam 55% da população brasileira, o que nos faz perceber que, quando o termo “minoria” lhes é aplicado, não se trata de minoria numérica, mas sim minoria na relação de poder ou representação (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 5-6). Nesse ponto, falar em vulnerabilidade parece fazer mais sentido. Acerca da distribuição racial dos níveis de escolaridade por grupos de cor (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 7-8), cumpre destacar a maior presença dos negros nas categorias de ausência de instrução (9% frente a 4% dos brancos) até o ensino médio incompleto (8% frente a 5% dos brancos), ou seja, os mais baixos níveis de escolaridade, enquanto os brancos são maioria nas categorias de ensino superior incompleto (8% dos brancos frente a 5% dos negros) e ensino superior completo (19% dos brancos frente a apenas 7% dos negros), ou seja, os maiores níveis de formação. Já os dados relativos a ensino médio completo apresentam estreita proximidade entre brancos (33%) e pardos (32%), com distanciamentodos pretos (30%). Aqui já podemos perceber a primeira disparidade social da população negra, que permite unir os recortes de raça e classe, uma vez que a defasagem de formação reduz as oportunidades de ascensão no mercado de trabalho. Ainda na temática educacional, a indicação do tempo médio de estudo dos grupos raciais (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 8-9) confirma a resposta demonstrada anteriormente, na medida em que aponta resultado também favorável aos brancos, que possuem médias entre 9 e 10 anos de estudo, enquanto os negros possuem médias de 7 a 8 anos3. Corrobora-se, pois, com isso a explicação para a estratificação social brasileira, a partir do exame do acesso ao ensino. Acerca da divisão dos grupos de cor em níveis de renda (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 9-10), o resultado expõe que negros são a maioria entre as faixas de ausência de rendimento (1% frente a 0% dos brancos) até renda de meio a um salário mínimo (35% e 34% frente a 26% dos brancos), enquanto brancos são maioria entre as faixas de um a dois salários mínimos (32% frente a 27% dos pretos e 25% dos pardos) até mais de cinco salários mínimos (7% frente a 2%). Esse dado também permite realizar um recorte de classe na sociedade brasileira, visto que há nítida defasagem de renda entre negros e brancos, situando os primeiros nas camadas inferiores. No que tange à média de renda familiar per capta por grupos de cor (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 10-11), o resultado também é favorável aos brancos, visto que esses possuem rendas muito superiores a dos negros durante todo o período analisado, com diferenças variando entre R$ 493,00 (2011) a R$ 684,00 (2015). Uma importante observação feita no relatório trata da perpetuação da desigualdade social, na medida em que houve aumento de renda para ambos os grupos de cor com manutenção da diferença salarial, que se mostrou contínua e crescente ao longo do período analisado: média de 80% de defasagem em benefício da população branca. Ademais, é possível perceber que o distanciamento entre as classes aumenta, na medida em que se alcança o topo da escala dessa categorização (2017, p. 11-12). O estudo do Grupo GEMAA também aponta uma pequena diminuição na diferença entre o nível de escolaridade dos grupos de cor ao longo dos anos (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 12-13) – elaborada por meio da razão da média de escolaridade dos brancos e negros –, reduzindo de uma diferença de 125% (2011) para Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 8 ainda chocantes 121% (2015). No entanto, quando a análise diz respeito à diferença de renda – elaborada por meio da razão da média de renda dos brancos e negros –, o resultado mostra-se praticamente constante ao longo do período analisado (181% em 2011 e 180% em 2015). Isso nos leva a constatação de que apenas o aumento do nível de escolaridade dos negros não é suficiente para elevar seus níveis de renda, eis que possuem outros obstáculos para romper a estratificação social e as desigualdades de classe. A distribuição racial das ocupações por classe social, segundo o GEMAA, indica que, no ano de 2015, brancos eram maioria nas atividades com maiores rendimentos e mais escolaridade, enquanto os negros mantinham a liderança nas atividades com menor remuneração e qualificação, trabalhos manuais e serviço doméstico (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 13-14). Conforme o dado anteriormente analisado, esse resultado não pode ser automaticamente atrelado ao fato de que brancos têm uma maior média de escolaridade, visto que, na sociedade brasileira, outros fatores são responsáveis por inibir a ascensão da população negra. O Relatório destaca como esse dado é uma evidência da divisão racial do trabalho, visto que os brancos são maioria entre as atividades de profissionais de nível alto e trabalhos de escritório não-manuais , enquanto os negros são maioria entre trabalhadores manuais (qualificado ou não), com expressivo destaque no serviço doméstico e trabalho rural. Não é possível passar despercebida a desproporção da representação da população preta e parda nos serviços manuais não qualificados e no serviço doméstico, o que pode ser um indicativo da persistência de estruturas decorrentes do período da escravidão4, uma vez que essa foi a principal forma de inserção das mulheres negras no mercado de trabalho pós-abolição, gradativamente retirando as famílias negras da miséria em que foram inseridas (VICELI, WÜNSCH, STEFFEN, 2017, p. 56-57). Inclusive, cabe apontar que a transferência dos trabalhos domésticos para as mulheres negras viabilizou, muitas vezes, a inserção das mulheres brancas no mercado de trabalho (VICELI, WÜNSCH, STEFFEN, 2017, p. 53). Uma importante pesquisa na temática da conformação do emprego doméstico no Brasil é o estudo de Viceli, Schneider e Monteiro (2017), realizado a partir dos dados do Sistema Pesquisa de Emprego e Desemprego. Nele, verifica-se, quanto ao perfil das trabalhadoras domésticas, que, em 2013, as mulheres representavam 95% da categoria e, entre elas, 66% eram negras, o que corrobora a tese da segregação ocupacional das mulheres negras (VICELI; SCHNEIDER; MONTEIRO, 2017, p. 101). Igualmente interessante é a idade média dessas trabalhadoras que, em 2013, variou entre 39 e 47 anos, com notória tendência de envelhecimento da categoria, visto que, em 1996, a média era de 28 a 36 anos. Os autores apontam alguns fatores para justificar esse resultado: “o aumento da escolaridade da população (mormente entre as mais jovens) e a diminuição do desemprego, que levaria às mulheres, principalmente as mais jovens, a buscarem oportunidades de trabalho em outros setores mais valorizados” (VICELI; SCHNEIDER; MONTEIRO, 2017, p. 101). Por fim, os autores obtêm um dado acerca do crescimento do emprego do doméstico com o aumento da escolaridade (VICELI; SCHNEIDER; MONTEIRO, 2017, p. 102), o que pode ser justificado pela desigualdade no acesso à educação – relembrando o dado anteriormente analisado sobre a diferença de nível de formação entre brancos e negros – e permanência dos homens na recusa ao próprio serviço doméstico, concentrando toda ou a maior parte da demanda nas mulheres, o que faz com que aquelas que têm a possibilidade de ascender academicamente deleguem suas tarefas domésticas a outras mulheres que não detém tal possibilidade, perpetuando a segregação ocupacional das mulheres negras. O relatório também apresenta a distribuição racial por classe social no ano de 2015 Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 9 (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 15), conforme a detenção ou não de propriedade, autoridade e qualificação. O resultado mais uma vez é favorável aos brancos, visto que são maioria entre os possuidores (detêm os três bens) e os não destituídos (detêm apenas um dos três), enquanto os negros são maioria entre os não possuidores – aqueles que não detêm quaisquer desses bens. A partir de uma análise da média de renda familiar per capta por raça/cor e classe social (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 16), conforme os marcadores indicados anteriormente, é possível perceber, mais uma vez, que a desigualdade social entre as classes cresce proporcionalmente ao acúmulo de capital, visto que, enquanto a defasagem entre brancos e negros despossuídos é de aproximadamente R$270,00, a distância entre brancos e negros possuidores atingem a marca dos R$1.260,00 – em ambos os casos os brancos possuem maior renda per capta. Acerca da taxa de desemprego por grupo de cor (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 17), essa atinge majoritariamente os negros, com uma média de diferença de 2% ao longo de todo o período. Isso pode ser reflexo dos dados anteriormente abordados, como o menor nível de formação e tempo de estudo, mas também mostrar-se como consequência de práticas discriminatórias,como abordaremos posteriormente. O exame da taxa de mobilidade social entre os grupos de cor (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 18-19) considera apenas os homens, diante do suposto tardio ingresso das mulheres no mercado de trabalho brasileiro5. Esse dado aponta que homens brancos da classe alta têm mais chance de permanecer em sua classe social do que homens negros. No entanto, os negros apresentam menor chance de ascensão social do que aqueles, o que evidencia uma grave continuidade e perpetuação das desigualdades sociais. A média de renda familiar per capta por raça/cor e gênero (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 20) enfileira-se ao lado das demais evidências acerca da manutenção das desigualdades sociais no país, visto que a diferença de renda entre a camada mais alta (homens brancos) para a camada mais baixa (mulheres negras) cresce ao longo do tempo, a despeito do aumento de renda de todas as categorias. Mais uma vez destaca-se que quanto maior a renda, maior a desigualdade, de modo que essa é uma constante nos dados apresentados pelo relatório, passando de R$547,00, em 2011, para R$759,00, em 2015. Esse dado pode ser compreendido, como elucida Guimarães (2012), pelo fato de que, com o aumento da escolaridade, crescem as possibilidades de promoções e exercício de funções de direção, para os quais as mulheres encontram obstáculos de ascensão (GUIMARÃES, 2012, p. 198), nos moldes da hierarquização da divisão sexual do trabalho, apresentado por Kergoat (2009), na medida em que o trabalho do homem é dotado de maior credibilidade nos estereótipos sociais, o que facilita a escalada a cargos de chefia; e, pelo princípio da separação, segundo o qual chefiar, gerir e dirigir não seriam aptidões “naturais” das mulheres. Percebe-se que, a despeito da inserção tardia das mulheres brancas no mercado de trabalho, elas apresentam resultados muito semelhantes aos dos homens brancos (mesmo que ainda inferiores), o que faz notar a importância das críticas à universalidade da categoria “mulher”, bem como a relevância da variável raça e da adoção de uma ótica interseccional para o enfrentamento desse objeto. Acerca da média de escolaridade por raça/cor e gênero (LEÃO; CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2017, p. 20-21), apesar dos índices mais elevados serem das mulheres brancas, isso não é suficiente para concedê-las a maior renda. Possível concluir, então, que, apesar da extrema importância do acesso à educação, esse não é, por si só, suficiente e determinante a ascensão social de alguns grupos. Nessa linha, a contrario sensu, não é possível entender os níveis de formação e tempo de estudo como a única justificativa para o abismo da desigualdade social racial brasileira. Trata-se de um fenômeno multicausal, decorrente da construção da sociedade brasileira a partir da Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 10 inserção desigual dos negros no mercado de trabalho, gerando impactos até os dias atuais, o que justifica, por exemplo, a edição do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010). Esses dados podem ser complementados pela análise do Relatório Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil, elaborado pelo IBGE (IBGE, 2018). Nesse relatório, apresenta-se a análise dos dados referentes à disponibilidade do tempo, por meio do estudo sobre o uso do tempo para realização de tarefas domésticas e de cuidado, não remunerados. As mulheres continuam dedicando mais tempo a essas tarefas do que os homens, alcançando uma diferença de 73%, na medida em que as mulheres trabalhavam 18,1 horas, número que sobe para 18,6, no caso de mulheres negras, contra 10,5 horas dos homens (IBGE, 2018). Ao contrário do índice das mulheres, os indicadores dos homens não apresentam variação, quando feito recorte de cor, raça ou região. Isso é interessante, na medida em que, se na socialização do negro, a igualdade dos afazeres domésticos na comunidade de escravos era a usual, houve clara assimilação do modelo do homem branco nesse ponto, nas sociedades atuais. Essa dificuldade diante da falta de disponibilidade sobre seu próprio tempo, compele as mulheres a procurar formas alternativas de inserção no mercado de trabalho. Essa é a justificativa encontrada no Relatório para explicar a diferença na adoção do contrato de trabalho a tempo parcial, na medida em que 31,3% das mulheres negras são afetadas por essa espécie contratual, contra 25% das mulheres brancas, 11,9% dos homens brancos e 16% dos homens negros (IBGE, 2018). Tal inserção desigual no mercado de trabalho pode ser entendida como resultado do que Adilson José Moreira (MOREIRA, 2017, p. 136) conceitua como “discriminação estrutural”, uma vez que não é possível uma análise afastada da dimensão coletiva da discriminação, que, superando o aspecto psicológico individual, perceba que existem processos sociais que se alinham para formar estruturas de exclusão. Nesse sentido, Silvio Almeida (ALMEIDA, 2018, p. 34-40) aponta a importância de entender esse conceito, não como algo imutável ou justificador das condutas individuais de racismo e discriminação, mas considerando que seu combate deve buscar alterar a forma como a sociedade é estruturada, fomentando ações antirracistas e de promoção de igualdade. Se passados os trinta primeiros anos de Constituição de 1988, como reflexão inicialmente proposta, a sociedade brasileira permanece com forte segregação e hierarquização, segundo vetores de classe social, gênero e raça, é necessário examinar de quais instrumentos normativos se dispõe para superar tais desigualdades. Sob a perspectiva interseccional, como pensar a relação entre desigualdades e direito, mormente na seara laboral? 5.Desigualdades, discriminação e direito A desigualdade é tema consubstancial ao Direito do Trabalho, que, ao reconhecer a posição diferenciada dos sujeitos na estrutura econômico-produtiva, atua buscando minorá-las por meio de compensações normativas equalizadoras. Embora as políticas do trabalho recentes promovam forte inversão principiológica, com alterações legislativas que acabam por engendrar mais desigualdade e estabelecer diferenciações jurídicas (SILVA, 2017), o sistema internacional de direitos humanos e o constitucionalismo democrático contemporâneo persistem afirmando os princípios da igualdade formal e igualdade material como fundantes da ordem jurídica. Com o constitucionalismo social, as novas categorizações jurídicas abrem espaço para políticas afirmativas que buscam superar desigualdades específicas, permanecendo proscritas as distinções negativas. A Constituição brasileira estabelece que a redução das desigualdades sociais e regionais é um objetivo fundamental da República (art. 3º, inciso III), para o que cabe a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, instituindo cláusula geral de vedação de toda e qualquer forma de discriminação (artigo 3º, inciso IV, CRFB). Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 11 Decorrente da complexidade da dialética dos conflitos político-sociais e das transformações culturais, em 1988, o movimento feminista obteve o reconhecimento da igualdade formal entre os sexos, avançando no reconhecimento de direitos às mulheres. As trabalhadoras domésticas, no entanto, foram reconhecidas como titulares de parcela dos direitos fundamentais garantidos aos empregados em geral, até a reforma promovida pela Emenda Constitucional 72, em 2013. No campo do trabalho, a tutela antidiscriminatória avançou sensivelmente. A Constituição determina a adoção de políticas afirmativas para preservação do mercado de trabalho da mulher (art. 7º, XX, CRFB), ao mesmo tempo em que veda que a situação familiar, o estado civil, o sexo e a gravidez sejam fatores de diferenciação negativa (art. 7º XXX, Lei 9.029/1995, e art. 373-A CLT), não podendo ser utilizados para prejudicar a aquisição, manutençãoou extinção da relação de emprego. Vedam-se diferenciações infundadas a partir dos aspectos relacionados à idade, à cor, à deficiência, à natureza do trabalho (artigo 7º, IV, incisos XXX, XXXI, XXXII e XXXIV, da CRFB), aos quais se acrescem na ordem infraconstitucional às relacionadas à origem, à raça (Lei 9.029/1995), à religião, à opinião política, à ascendência nacional (Convenção 111 OIT), à participação sindical e representativa (Convenções 98 e 135 da OIT) e à condição de migrantes (art. 3º, incisos II, IV, IX, X e XI, da Lei 13.445/2017). A eleição dos fatores para a definição de uma situação como discriminatória, ou não, envolve quatro aspectos fundamentais, como destaca Leonardo Wandelli: (a) existem fatores reputados relevantes para determinados fins, estabelecendo-se uma suspeição sobre tal classificação a exigir uma fundamentação mais justificada quando da eleição de tais critérios, mas que não há vedação absoluta de que a classificação seja usada de modo juridicamente válido; (b) a ausência de indicação legislativa de um marcador não obsta que tal fator seja compreendido como violador do princípio da discriminação, mormente diante do artigo 3º, inciso IV, da CRFB; (c) a proibição de discriminação não se restringe ao fator ou à finalidade nela prevista; (d) que a discriminação juridicamente vedada não se limita às derivadas de preconceito, abrangendo os casos também em que há um desvalor às pessoas (2013, p. 137-147). Há condutas envolvendo os marcadores de gênero e raça, sancionadas no campo penal relacionadas ao preconceito, ao racismo e à misoginia. A propagação de ódio ou de aversão às mulheres pela internet, o menosprezo ou discriminação à condição de mulher, a violência praticada contra a mulher por razões da condição de sexo feminino (Leis 13.642/2018; 13.104/2015), bem como a injúria racial, consistente na ofensa à honra individual, relacionando aspectos concernentes à raça, cor, etnia, religião ou origem (Código Penal) e o racismo voltado à ofensa de uma coletividade de indivíduos (Lei 7.716/1989) são exemplos de condutas antijurídicas criminalizadas e que, portanto, envolvem atos de discriminação direta, intencional e dolosa. Da mesma forma, a Lei 7.716/1989 tipifica como crime impedir promoção funcional, deixar de conceder equipamentos necessários ao empregado em igualdade de demais condições com os demais trabalhadores, obstar por motivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, a aquisição de benefícios profissionais, bem como estabelecer tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, sendo vedada a exigência de aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências nos processos de recrutamento e seleção. Contudo, se a natureza da sanção penal exige a intencionalidade da conduta do agente, as reparações cíveis e trabalhistas, a rigor, prescindem de avaliação sobre a vontade de discriminar. Faz cinquenta anos que o Brasil internalizou a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, e introduziu em nosso ordenamento jurídico a proteção contra discriminações diretas e indiretas (cf. Decreto 62.150/1968). As referências do direito norte-americano às medidas de impacto desproporcional ( disparate impact doctrine) para configuração de discriminação entre nós são compreendidas a partir do conceito de discriminação indireta contido na referida Convenção, envolvendo as práticas, atos ou políticas cujos efeitos diferenciam Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 12 negativamente e de modo indevido, embora originalmente não previstos, não desejados ou não intencionalmente realizados. As normas aparentemente neutras podem acentuar ou reforçar a exclusão social, pois reiteram as assimetrias de poder já existentes, observa José Adilson Moreira: "[...] se os conceitos de igualdade de oportunidades e de justiça simétrica nos ajudam a compreender a lógica de funcionamento da discriminação direta, as noções de igualdade de resultados e justiça distributiva oferecem elementos importantes para analisarmos o tipo de discriminação em questão (MOREIRA, 2017, p. 105)." A apuração estatística dos resultados diferenciados das regras neutras, gerais e abstratas, por vezes necessária para qualificá-las como discriminatórias, a partir do conceito de discriminação indireta, opera em um marco de deslocamento do ato para sua consequência. Em sentido assemelhado, o giro paradigmático ocorrido no campo da teoria da responsabilidade civil e dos danos extrapatrimoniais, que deixa de ser uma responsabilização decorrente da culpa causada, passa a se configurar como direito decorrente dos danos sofridos. A discriminação indireta é, também, juridicamente rechaçada. Sua aplicação adequada requer uma interpretação que não a limite, com requisitos indevidos de intencionalidade e de arbitrariedade. O alerta é necessário, a nosso juízo, pois mesmo no âmbito da discriminação indireta, campo que afasta a exigência de intencionalidade, o processo de aplicação de sanções e avaliação das condutas patronais permanecem envoltos na distinção entre atos arbitrários e não arbitrários. Há que se reconhecer que os intérpretes da norma participam de sua construção, e esses majoritariamente incluem-se dentro da comunidade que pratica discriminações inconscientes, relacionadas às posições de privilégio, à cultura partilhada, decorrentes de modos de socialização excludentes. As práticas invisíveis ao direito, os privilégios e as desvantagens dos grupos socialmente discriminados são fatores que compõe a trama da discriminação, que engenham dinâmicas psicológicas internalizadas e não reconhecíveis muitas vezes pelos próprios indivíduos, o que, aliados aos estereótipos negativos construídos, principalmente sobre pessoas negras, geram automatismo na discriminação (MOREIRA, 2017, p. 19). Os estereótipos, como modelos mentais que dirigem a percepção humana, decorrem de valores culturais construídos e assimilados por todos, expressam a internalização de valores e códigos no processo de socialização, gerando dimensões inconscientes no psiquismo, que sustentam marginalizações e reprodução de discriminações, ainda que haja uma consciência que os rejeite (MOREIRA, 2017, p. 40-44). Assim, uma cognição adequada da discriminação do ponto de vista do Direito do Trabalho precisa superar a análise das condutas em sua dimensão exclusivamente intersubjetiva ou relacional, como é usual em casos de apreciação judicial de assédio ou dano moral, no qual se diferenciam as ações patronais pela universalidade ou distinção, voltadas a impor tratamento desvantajoso ou excludente a determinados indivíduos em comparação a outros. Sabe-se que a ideia de vedação de tratamento desfavorável que nucleia o conceito de discriminação direta está no coração do princípio da isonomia no campo do direito do trabalho, já que explicita a violação de um dever jurídico dos empregadores, que é o do tratamento simétrico. A noção de diferenciação infundada decorre dessa compreensão de que a não discriminação é uma faceta do princípio da igualdade e que se revela em casos específicos a partir de critérios normativos anteriormente fixados (WANDELLI, 2013, p.129). A incompletude da doutrina majoritária sobre discriminação é criticada por Adilson José Moreira, que sublinha a premissa nela contida de racionalização das condutas humanas, de modo a conceber a discriminação como desvio padrão e, portanto, possuidora de uma dimensão comportamental e não institucional (2017, p. 102). Para o autor, que realiza um importante mapeamento teórico das concepções e conceitos de discriminação, a Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 13 discriminação é um fenômeno multicausal, coletivo e estrutural. O sexismo e o racismo, por sua vez, são sistemas multicausais de opressão. Uma adequada compreensão da discriminação,portanto, deve salientar suas dimensões coletivas, estruturantes e multidimensionais, afirma Moreira, que realiza uma consistente diferenciação das noções fundamentais para sua compreensão, tais como preconceito, estereótipo, branquitude, privilégio social,6 microagressões e dos tipos e facetas da discriminação. A teoria da discriminação organizacional é importante para a compreensão dos desafios da inclusão nas empresas por salientar que as desvantagens sociais do mercado de trabalho nem sempre decorrem de práticas discriminatórias, mas sim de preferências pelos pertencentes ao mesmo grupo social fundadas em estereótipos. A cultura institucional cria perfis genéricos, a partir de valores e características dominantes (MOREIRA, 2017, p. 125), gerando exclusões, diferenciações e processos de assimilação, que interferem diretamente no comportamento individual e obsta a expressão das identidades plenas dos integrantes dos grupos socialmente discriminados. Por sua vez, as perspectivas institucionais, estruturais e intergeracionais destacam outros aspectos da discriminação. A dimensão coletiva da discriminação institucional é sublinhada por Moreira (2017) como expressão da “forma como as instituições sociais atuam para promover a subordinação” (2017, p. 132) e o controle social sobre um grupo, envolvendo “uma série de políticas e procedimentos que possibilitam na reprodução do aspecto estrutural da discriminação” (2017, p. 134), sejam de caráter ideológico, sistêmico, procedimental ou estrutural. A teoria intergeracional auxilia na compreensão dos aspetos históricos, estruturais e sistêmicos da discriminação, relacionados ao funcionamento das instituições sociais, e se alimenta também da desigualdade reiterada pela presença/ausência de herança para grupos sociais privilegiados e discriminados. A ausência de patrimônio a ser transmitido pela família provoca uma dependência maior dos negros ao salário, diminuindo suas possibilidades de escolarização e contribuindo para a reprodução das desigualdades (MOREIRA, 2017, p. 140). E a dimensão estrutural legitima-se pelas ideologias sociais, resultante de um processo histórico de acumulação, de manutenção e de reprodução do sistema de discriminações e de privilégios, que estabelece desvantagens materiais aos integrantes de grupos marginalizados. Diante de tal compreensão contemporânea, o sistema normativo de combate à discriminação volta-se não somente ao enfrentamento das discriminações individualizadas, adquirindo uma dimensão coletiva e institucional. Desde a Convenção 111 da OIT, o Brasil comprometeu-se a formular e aplicar uma política nacional para promoção da igualdade de oportunidade e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com a finalidade de eliminar todos os modos de discriminação (IGREJA, 2011, 2014). Em 2010, foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial, que distribui entre estado e sociedade o dever de garantia da igualdade de oportunidades a todos os cidadãos, independentemente da etnia ou da cor da pele, firmado a partir de diretriz político-jurídica de inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial e de valorização da igualdade étnica. Para consecução de seus objetivos, o estatuto determina a modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e a promoção de ajustes normativos que aperfeiçoem o combate à discriminação, em suas manifestações individuais, institucionais e estruturais. As instituições públicas e organizações privadas e empresariais estão vinculadas, pois, aos deveres estabelecidos na Lei 12.288/2010, que instituiu o Estatuto para garantir a efetivação da igualdade de oportunidades à população negra e o combate à discriminação. Todavia, as regras que estabelecem obrigações de fazer às empresas privadas são praticamente inexistentes.7 Estabelecem-se conceitos normativos relacionados à discriminação racial ou étnico-racial, desigualdade racial e desigualdade de gênero ou raça. Reconhece-se que, além da discriminação, a desigualdade racial ocorre quando há uma “situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 14 bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica” (artigo 1º, parágrafo único, inciso II, Lei 12.288/2010). Ainda que de modo insuficiente, a dimensão intersecional da desigualdade está presente do Estatuto, que reconhece a existência de uma assimetria que amplia a distância entre mulheres negras e outros segmentos da sociedade (artigo 1º, parágrafo único, inciso II, Lei 12.288/2010). Como já examinado, a perspectiva trazida pela teoria da interseccionalidade revela uma importante faceta da discriminação que atinge as mulheres negras diante da convergência de fatores de exclusão, de sistemas de opressão a que estão submetidas. Por discriminação interseccional, portanto, podem ser designadas as "[...] formas como vetores específicos de discriminação confluem para formar uma vivência social particular construída a partir das formas como racismo e sexismo restringem simultaneamente as oportunidades de um grupo social (MOREIRA, 2017, p. 113)." Para o autor, a discriminação interseccional possui um caráter estrutural – desvantagem material decorrente da menor chance de acesso ao trabalho que alimenta a violência e a dependência – e um caráter político – invisibilização das demandas, dificuldade de mobilização das mulheres negras. Da análise do mercado de trabalho e do direito laboral incidente sobre a profissão com maior número de mulheres negras no Brasil, a de doméstica, e sobre as condições laborais desiguais estabelecidas para as trabalhadoras terceirizadas, maioria na área de asseio e conservação, consideradas atividades meio ou periféricas, é possível observar que a discriminação interseccional possui também um caráter jurídico, que se expressa na ambiguidade do próprio sentido do direito. Esse, ao regular certas formas de contratação ou deferir proteção a um tipo específico de trabalhador, institucionaliza as desigualdades. Como afirmado no início do artigo, as legislações laborais inaugurais optaram, para proteger alguns trabalhadores, por excluir diversos outros e outras do abrigo criado. O Direito assume essa natureza dúplice, que, ora protege, ora estrutura desigualdades (SILVA, 2017), manifestando, no caso das trabalhadoras negras, o caráter excludente das leis trabalhistas (MARTINEZ, 1995, p. 18). Por sua vez, a dimensão política da diferenciação a que estão submetidas as mulheres, em particular as mulheres negras, implica diretamente em limitações à democracia, à capacidade representativa e à plena expressão para formação das regras do direito e das políticas públicas, reproduzindo um ciclo de opressão e a manutenção de estruturas de poder. Esse é um dos grandes déficits que permanece mesmo depois de trinta anos de Constituição. E sem dúvida, um grande desafio para as próximas décadas. Invisibilizadas e sem voz, as mulheres negras seguem no mercado de trabalho lutando contra as mazelas da escravidão que as acompanham desde o século XIX. Nada obstante, é possível ver algumas vitórias no campo jurídico, aqui já retratadas. Conceitos como interseccionalidade e discriminação indireta, e também estrutural, são chaves de leitura indispensável para a superação não apenas da discriminação e, com essa, das desigualdades retratadas nas pesquisas. 6.Conclusão Os dados analisados na pesquisa demonstram o que o imaginário social já percebe: mulheres negras sofrem desvantagens no mercado de trabalho, mantendo-se marginais em matéria de renda, qualidade de emprego e acesso à educação. É a incapacidade de se superar essa situação que gera assombro e perplexidade. No ano do trigésimo aniversário da Constituição Federal, as desigualdades e discriminações não arrefeceram. Sem dúvida, contribuiupara essa ineficácia a tutela universalizante trazida pela Constituição, que avançou em seu tempo para estabelecer um padrão normativo Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 15 baseado unicamente no gênero, mas que é insuficiente por olvidar as intersecções de vulnerabilidade existentes na sociedade. A mulher que se pretende igual ao homem na Constituição não abarca, em certa medida, a realidade histórica e atual das mulheres negras, que possuem obstáculos diferenciados em sua integração social. Nesse sentido, sentem-se os impactos da escravidão na segregação ocupacional da população negra até a atualidade, conforme demostrou a análise do Relatório, visto que atua na maioria nos serviços manuais e não qualificados, especialmente no trabalho doméstico. A isso são agregadas as opressões de gêneros, que fazem com que as mulheres negras sejam situadas nos mais baixos níveis da estratificação social brasileira, com séria dificuldade de ascensão, dadas as interações das opressões de gênero, raça e classe. Assim, podemos perceber um ciclo de manutenção das desigualdades raciais na sociedade brasileira, visto que a população negra está economicamente situada nas camadas mais baixas, inserida em postos de trabalho mais precários e mal remunerados, com maior dificuldade de acesso à formação. Nada obstante, é possível ver alguns avanços teórico-normativos nessa temática. A edição do Estatuto da Igualdade Racial demonstra a constatação da situação diferenciada de inserção social experimentada por negros e, especificamente, negras. E deve ser considerada uma vitória, mormente em um cenário de parca representatividade da mulher negra no Congresso Nacional. No campo teórico, novos conceitos dão nome à experiências vividas por essa camada da população e auxiliam na busca do entendimento das raízes, causas e efeitos da desigualdade consolidada na sociedade. A partir da ideia de interseccionalidade, bem como de discriminação indireta e estrutural, é possível analisar de forma mais nítida os fenômenos sociais e obstáculos que o mercado de trabalho impõe às mulheres negras. Superar requisitos como o de intencionalidade e arbitrariedade da discriminação é ponto crucial para iniciar uma estratégia de combate que foque mais nos efeitos da discriminação, do que na conduta do suposto agente discriminador. Os avanços são lentos e conquistados arduamente. Em um cenário que indica endurecimento das leis do mercado, com redução de direitos dos trabalhadores, pensar na mulher negra trabalhadora é imaginar o sujeito que sofrerá o maior influxo da marginalização causada por essas espécies de medidas. Mais um motivo para que a inclusão igualitária da mulher negra no mercado de trabalho torne-se pauta nos debates nas universidades, tribunais e centros de decisão em geral. Reconhecer a persistência das desigualdades não implica ignorar os avanços que foram feitos. É preciso falar sobre a mulher negra, ouvi-la e, principalmente, vê-la. Visibilizar seus conflitos, dilemas e obstáculos, reconhecer sua posição particular, como vulnerável submetida ao duplo sistema de opressão que envolve raça e gênero, sem esquecer da possibilidade de agregação de outros. O artigo pretendeu trazer luz a essas realidades ainda desconhecidas, pouco estudadas, mas urgentes. 7.Referências ALMEIDA, Guilherme Assis de; LIBÂNIO, José Carlos; OSÓRIO, Rafael Guerreiro. Relatório do Desenvolvimento Humano: racismo, pobreza e violência. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2005. 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Trabalho e Direito. Estudos contra a discriminação e o patriarcalismo. Bauru: Canal 6 editora, 2013. p. 117-174. 1 Já se tornou lugar comum a ressalva ao termo ondas feministas, uma vez que passa a noção de evolução do pensamento feminista, com superação de uma onda pela seguinte. Assim como as chamadas gerações de direitos humanos, o termo onda aqui tem apenas uma função didática de permitir uma análise de um momento ou movimento específico, não havendo relação de hierarquia entre as categorias (SANTOS, 2016, p. 113). 2 Apesar de não ser objeto desse estudo, a estruturação da sociedade brasileira, a partir de uma experiência colonial, toca, em certa medida, à modelagem de mercado de trabalho que se discute aqui. 3 Nesse dado os resultados de pretos e pardos são idênticos. 4 O presente trabalho não abordou a teoria da colonialidade do poder, visto que excedia o recorte temático proposto para apresentação no evento. No entanto, é importante que se registre minimamente a relevância da abordagem sobre os impactos das relações coloniais na criação de uma naturalização de hierarquias sociais, associando os conceitos de raça e divisão do trabalho. 5 Essa visão que foi anteriormente criticada no presente artigo, dada a forma como as mulheres negras inseriram-se no mercado de trabalho. 6 “Privilégio é qualquer título, sanção, poder, vantagem ou direito garantido a um indivíduo por pertencer a um grupo ou grupos cujas características são representadas como ideais”, em geral a do homem branco heterossexual, explica José Adilson Moreira, que indica como os privilégios são mecanismos de exclusão, pois garantem a permanência de vantagens aos grupos sociais majoritários (2017, p. 146-147). O conceito de branquitude, por sua vez, refere-se a um padrão cultural, uma modalidade de representação cultural que se torna uma referência universal pela invisibilidade e normalização de condutas, concorrendo para a reprodução da discriminação institucional (MOREIRA, 2017, p. 153). 7 Entre as políticas de inclusão da população negra no mundo do trabalho, por medidas afirmativas estabelecidas no Capítulo V do Estatuto da Igualdade Racial, destacamos os artigos 39, 40, 41 e 42, a seguir transcritos por sua importância: “Art. 39. O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas. § 1º A igualdade de oportunidades será lograda mediante a adoção de políticas e programas de formação profissional, de emprego e de geração de renda voltados para a população negra. § 2º As ações visando a promover a igualdade de oportunidades na esfera da administração pública far-se-ão por meio de normas estabelecidas ou a serem estabelecidas em legislação específica e em seus regulamentos. § 3º O poder público estimulará, por meio de incentivos, a adoção de iguais medidas pelo setor privado. § 4º As ações de que trata o caput deste artigo assegurarão o princípio da proporcionalidade Desigualdade e discriminação: um olhar sobre o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da interseccionalidade Página 19 de gênero entre os beneficiários. § 5º Será assegurado o acesso ao crédito para a pequena produção, nos meios rural e urbano, com ações afirmativas para mulheres negras. § 6º O poder público promoverá campanhas de sensibilização contra a marginalização da mulher negra no trabalho artístico e cultural. § 7º O poder público promoverá ações com o objetivo de elevar a escolaridade e a qualificação profissional nos setores da economia que contem com alto índice de ocupação por trabalhadores negros de baixa escolarização. Art. 40. O Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat) formulará políticas, programas e projetos voltados para a inclusão da população negra no mercado de trabalho e orientará a destinação de recursos para seu financiamento. Art. 41. As ações de emprego e renda, promovidas por meio de financiamento para constituição e ampliação de pequenas e médias empresas e de programas de geração de renda, contemplarão o estímulo à promoção de empresários negros. Parágrafo único. O poder público estimulará as atividades voltadas ao turismo étnico com enfoque nos locais, monumentos e cidades que retratem a cultura, os usos e os costumes da população negra. Art. 42. O Poder Executivo federal poderá implementar critérios para provimento de cargos em comissão e funções de confiança destinados a ampliar a participação de negros, buscando reproduzir a
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