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História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo Maringá 2010 editora da universidade estadual de maringÁ Reitor Prof. Dr. Décio Sperandio Vice-Reitor Prof. Dr. Mário Luiz Neves de Azevedo Diretor da Eduem Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado Editor-Chefe da Eduem Prof. Dr. Alessandro de Lucca e Braccini ConselHo editorial Presidente Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado Editor Associado Prof. Dr. Ulysses Cecato Vice-Editor Associado Prof. Dr. Luiz Antonio de Souza Editores Científicos Prof. Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima Profa. Dra. Ana Lúcia Rodrigues Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva Prof. Dr. Clóves Cabreira Jobim Profa. Dra. Eliane Aparecida Sanches Tonolli Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik Prof. Dr. Eliezer Rodrigues de Souto Prof. Dr. Evaristo Atêncio Paredes Profa. Dra. Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso Prof. Dr. João Fábio Bertonha Profa. Dra. Larissa Michelle Lara Profa. Dra. Luzia Marta Bellini Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado Profa. Dra. Maria Suely Pagliarini Prof. Dr. Manoel Messias Alves da Silva Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima Prof. Dr. Raymundo de Lima Prof. Dr. Reginaldo Benedito Dias Prof. Dr. Ronald José Barth Pinto Profa. Dra. Rosilda das Neves Alves Profa. Dra. Terezinha Oliveira Prof. Dr. Valdeni Soliani Franco Profa. Dra. Valéria Soares de Assis equipe téCniCa Projeto Gráfico e Design Marcos Kazuyoshi Sassaka Fluxo Editorial Edneire Franciscon Jacob Mônica Tanamati Hundzinski Vania Cristina Scomparin Edilson Damasio Artes Gráficas Luciano Wilian da Silva Marcos Roberto Andreussi Marketing Marcos Cipriano da Silva Comercialização Norberto Pereira da Silva Paulo Bento da Silva Solange Marly Oshima Maringá 2010 História e conHecimento História medieval i: das invasões bárbaras ao feudalismo José Carlos Gimenez Jaime Estevão dos Reis (Organizadores) 4 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) História medieval I: das invasões bárbaras ao feudalismo / José Carlos Gimenez, Jaime Estevão dos Reis, organizadores.-- Maringá : Eduem, 2010. 126p. 21cm. (História e Conhecimento; n.4). ISBN 978-85-7628-249-5 1. História medieval – Estudo e ensino. 2. Idade média – Estudo e ensino. 3. Cruzadas. 4. Feudalismo. I. Gimenez, José Carlos, org. II. Reis, Jaime Estevão, org. CDD 21. ed. 909.07 H673 História e ConHeCimento Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331 Revisão Gramatical: Jeanette Cnop Edição, Produção Editorial e Capa: Carlos Alexandre Venancio Júnior Bianchi Eliane Arruda Copyright © 2010 para o autor Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edição 2010 para Eduem. Endereço para correspondência: eduem - editora da universidade estadual de maringá Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário 87020-900 - Maringá - Paraná fone: (0xx44) 3011-4103 / fax: (0xx44) 3011-1392 http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br 3 Sobre os autores Apresentação da coleção Apresentação do livro CapÍtulo 1 Introdução ao estudo da história medieval Jaime Estevão dos Reis CapÍtulo 2 Alta idade média: as invasões bárbaras e a organização dos reinos germânicos Verônica Ascênsio Ipólito CapÍtulo 3 Os francos: merovíngios e carolíngios Silvia Maria Amâncio CapÍtulo 4 O ocidente na idade média central: as cruzadas José Carlos Gimenez CapÍtulo 5 O feudalismo Jaime Estevão dos Reis > 5 > 7 > 9 > 11 > 31 > 47 > 63 > 95 umárioS 5 JAIME ESTEVÃO DOS REIS Professor de História Medieval da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestre e Doutor em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis). Integra o Laboratório de Estudos Antigos e Medievais – LEAM, do Departamento de História da UEM. JOSÉ CARLOS GIMENEZ Professor de História Medieval da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestre em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis), Doutor em História, Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), coordenador do Laboratório de Estudos Antigos e Medievais – LEAM/UEM. SILVIA MARIA AMÂNCIO Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestre em História Política e Movimentos Sociais (UEM). Integrante do Laboratório de Pesquisa em Política e Movimentos Sociais (UEM). VERÔNICA KARINA IPÓLITO Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestre em História Política e Movimentos Sociais (UEM). Integrante do Laboratório de Pesquisa em Política e Movimentos Sociais (UEM). obre os autoresS 7 A coleção História e Conhecimento é composta de 42 títulos, que serão utiliza- dos como material didático pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatura em História, Modalidade a Distância, da Universidade Estadual de Maringá, no âmbito do sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB), que está sob a responsabilidade da Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES). A utilização desta coleção pode se estender às demais instituições de Ensino Su- perior que integram a UAB, fato que tornará ainda mais relevante o seu papel na for- mação de docentes e pesquisadores, não só em História mas também em outras áreas na Educação a Distância, em todo o território nacional. A produção dos 42 livros, a qual ficou sob a responsabilidade da Universidade Estadual de Maringá, teve 38 títulos a cargo do Departamento de História (DHI); 2 do Departamento de Teoria e Prática da Educação (DTP); 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE); e 1 do Departamento de Letras (DLE). O início do ano de 2009 marcou o começo do processo de organização, produção e publicação desta coleção, cuja conclusão está prevista para 2012, seguindo o cro- nograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Num primeiro momento, serão impressos 294 exemplares de cada livro para atender à demanda de material didático dos que ingressaram no Curso de Graduação em História a Distância, da UEM, no âmbito da UAB. O traço teórico geral que perpassa cada um dos livros desta coleção é o compro- misso com uma reconstrução aberta, despreconceituosa e responsável do passado. A diversidade e a riqueza dos acontecimentos da História fazem com que essa reconstru- ção não seja capaz de legar previsões e regras fixas e absolutas para o futuro. No entanto, durante a recriação do passado, ao historiador é dado muitas vezes descobrir avisos, intuições e conselhos valorosos para que não se repitam os erros de outrora. No transcorrer da leitura desta coleção percebemos que os livros refletem várias matrizes interpretativas da História, oportunizando ao aluno o contato com um ines- timável universo teórico, extremamente valioso para a formação da sua identidade intelectual. A qualidade e a seriedade da construção do universo de conhecimento desta coleção pode ser tributada ao empenho mais direto por parte de cerca de 30 organizadores e autores, que se dedicaram em pesquisas institucionais ou até mesmo presentação da ColeçãoA História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 8 em dissertações de mestrado ou em teses de doutorado nas áreas específicas dos livros que se propuseram a produzir. Esta coleção traz um conhecimento que certamente marcará positivamente a for- mação de novos professores de História, historiadores e cientistas em geral, por meio da Educação a Distância, o qual foi fruto do empenho de pesquisadores que viveram circunstâncias, recursos, oportunidades e concepções diferentes, temporal e espacial- mente. Como corolário disso, seria justo iniciaros agradecimentos citando todos aqueles que não poderiam ser nominados nos limites de uma apresentação como esta. Roga- mos que se sintam agradecidos todos aqueles que direta, indireta ou mesmo longin- quamente, quiçá os mais distantes ainda, contribuíram para a elaboração deste rico rol de livros. Além do agradecimento, registramos também o reconhecimento pelo papel da Rei- toria da UEM e de suas Pró-Reitorias, que têm contribuído não apenas para o êxito desta coleção mas também para o de toda a estrutura da Educação a Distância da qual ela faz parte. Agradecemos especialmente aos professores do Departamento de História do Cen- tro de Ciências Humanas da UEM pelo zelo, pela presteza e pela atenção com que têm se dedicado, inclusive modificando suas rotinas de trabalho para tornar possível a maioria dos livros desta coleção. Agradecemos à Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aper- feiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), e ao Ministério da Educação (MEC) como um todo, especialmente pela gestão dos recursos e pelo empenho nas tramitações para a realização deste trabalho. Outrossim, agradecemos particularmente à Equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe técnica. Despedimo-nos atenciosamente, desejando a todos uma boa e prazerosa leitura. Moacir José da Silva Organizador da coleção 9 O presente livro pertence à coleção dos livros de História para a coleção História e Conhecimento, a qual será utilizada inicialmente pelos alunos matriculados em cursos superiores a distância ofertados no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB) e pelo Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá (UEM). No primeiro capítulo, Introdução ao estudo da História Medieval, Jaime Estevão dos Reis faz uma revisão bibliográfica acerca do conceito de Idade Média e da forma como os intelectuais do Renascimento, da Reforma, do Iluminismo, do Romantismo e das novas correntes historiográficas contemporâneas entendem esse importante período da História Ocidental. Na sequência, o professor discute sobre a periodização da Idade Média. Trata-se um tema que também suscita controvérsias, uma vez que as datas que determinam o início e fim daquele período estão, muitas vezes, relacionadas à própria postura teórica que os historiadores adotam para explicá-la, ou seja, os acontecimentos econômicos, políticos, religiosos e culturais. O capítulo apresenta também indicações de fontes referentes aos três períodos da historia medieval: Alta Idade Média, Idade Média Central e Baixa Idade Média. No segundo capítulo, Alta Idade Média: as invasões bárbaras e a organização dos reinos germânicos, Verônica Ascênsio Ipólito apresenta uma discussão em torno do conceito de bárbaro, as características das invasões e dos povos germânicos, bem como as relações entre romanos e germânicos. No terceiro capítulo, Os francos: merovíngios e carolíngios, Silvia Maria Amâncio discute a singularidade do reino franco em relação a outros povos germânicos, a construção do reino merovíngio e a sua decadência diante do reino carolíngio. Por fim, o capitulo oferece uma discussão sobre a elevação do reino carolíngio à condição de império, cujo ápice se deu com a figura de Carlos Magno, e a decadência, com a divisão do território entre os seus descendentes. No quarto capítulo, O Ocidente na Idade Media Central: as cruzadas, José Carlos Gimenez apresenta, numa perspectiva cronológica, a origem, o desenvolvimento e a decadência das cruzadas. Trata-se de um tema tradicional e de suma importância para o conhecimento sobre a Idade Média. Por meio de seu estudo e das fontes selecionadas podemos entender as diferentes motivações que levaram às cruzadas, pois elas fazem parte das grandes transformações na economia, na política, na religião e na mentalidade pelas quais a sociedade medieval estava passando. presentação do livroA História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 10 No quinto capítulo, O feudalismo, também escrito por Jaime Estevão dos Reis, propõe-se uma discussão sobre o conceito e o debate historiográfico em torno daquele regime, que se confunde com a própria Idade Média; todavia, refere-se especificamente à realidade política, social, econômica e cultural entre os séculos XI e XIII. Além do debate sobre o conceito de feudalismo, o capítulo também discute a importância do feudo e seus múltiplos empregos como base material que intercede nas relações de suserania-vassalagem (nobreza) e senhorio-servidão (senhores e camponeses). E, por fim, o capitulo realiza uma discussão sobre as estruturas e o funcionamento do feudalismo. No final de cada capitulo os autores apresentam extratos de fontes que permitem ao aluno realizar uma discussão mais reflexiva a respeito do contexto histórico em questão, bem como obter um maior entendimento da sociedade da época, seus valores culturais, sua organização econômica e política. Para isso, é preciso questionar sobre a especificidade (natureza) dos documentos, as circunstâncias em que foram produzidos, seu autor, a finalidade de sua existência, entre outras indagações, de maneira que se possa “fazer falar” tais documentos. Jaime Estevão dos Reis José Carlos Gimenez Organizadores 11 Jaime Estevão dos Reis o ConCeito de idade média A historiadora francesa Regine Pernoud, em seu livro Pour en finir avec le Moyen- Age1, publicado no final da década de 1970, ao refletir sobre o conceito de Idade Média o faz iniciando por narrar um acontecimento inusitado. Ao acompanhar seu sobrinho de 7 ou 8 anos à escola, e ao assistir, juntamente com ele, à lição de História, relata o seguinte diálogo entre a professora e os alunos: “Professora: Como se chamavam os camponeses, na Idade Média? Classe (em coro): Chamavam-se servos. Professora: E que é que eles faziam? Que é que eles tinham? Classe: Tinham doenças. Professora: Que doenças, Jerônimo? Jerônimo (sério): Peste. Professora: Que mais, Emanuel? Emanuel (entusiasmado): Cólera! Professora: Vocês sabem muito bem a lição de História. Passemos à Geografia” (PERNOUD, 1978, p. 6). Mais de 30 anos se passaram desde que a conceituada medievalista relatou o ocorri- do, e apesar dos progressos das pesquisas e publicações na área de História Medieval, não é raro nos depararmos com expressões que reproduzem tal desconhecimento acerca da Idade Média. Expressões do tipo: “Esta é uma mentalidade medieval” ou “Não estamos mais na Idade Média” são comuns na linguagem popular e às vezes apa- recem no cenário acadêmico, especialmente entre os não historiadores. Alain Minc, ao analisar as transformações ocorridas na Europa oriental após a que- da do muro de Berlim e as rivalidades regionais decorrentes da implosão do comunis- 1 Literalmente, Para pôr fim à Idade Média. Existem duas edições em português desta obra, ambas com títulos completamente diferentes: PERNOUD, R. O mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1978; e PERNOUD, R. Idade Média: o que não nos ensinaram. Rio de Janeiro: Agir, 1994. Introdução ao estudo da história medieval 1 História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 12 mo, afirma que a Europa estaria iniciando uma “Nova Idade Média” (MINC, 1994)2. O consultor de planejamento e marketing Roberto Antonio Pitella publicou um pequeno livro que é digno de nota, A empresa medieval: o fracasso ao alcance de todos nós (1995). Nessa obra, em forma de sátira o experiente profissional dá conselhos (in)úteis para quem quiser falir sua empresa em pouco tempo. Bastaria agir “à maneira medie- val”, sobretudo no tocante ao atendimento aos clientes. O termo medieval assume aí uma conotação pejorativa, na medida em que se torna sinônimo de atraso, displicên- cia, obscurantismo, faltade criatividade, etc. Qual a origem dessa visão negativa em relação à Idade Média? Na verdade, esse “conceito”, ou melhor, esse preconceito tem raízes históricas. Ele nasceu já no fim do período medieval. Foram os renascentistas os primeiros a esboçarem uma visão dis- torcida em relação ao medievo. O humanista italiano Francesco Petrarca (1304-1374), admirador da Antiguidade Clássica, referia-se ao período transcorrido entre o fim do Império Romano e a sua época como tenebrae. Petrarca manifestava certo desprezo inclusive pela cultura de seu tempo. Recusou um exemplar da Divina Comédia, de Dante Alighieri, enviada a ele por Boccaccio (1313-1375). Admirava especialmente os escritores latinos, como Cícero, Virgílio, Tito Lívio, Sêneca e Horácio. Quanto mais se aprofundava na cultura clássica maior era o inconformismo com o saber de seu tempo: Vivo, mas indignado, porque o destino me reservou os séculos mais tristes e os piores anos. Deveria ter nascido antes ou muito tempo depois, pois houve e haverá, depois, um tempo mais feliz; o que existe no meio é sórdido. Em nosso tempo só se vê confluir a torpeza; uma sentina de males nos torna enfermos; o talento, a virtude e a glória têm abandonado o mundo, e, em seu lugar, reinam a fortuna, a volúpia e a desonra (PETRARCA apud RUIZ GÓMEZ, 1998, p. 47). Portanto, o que existia “no meio”, ou seja, no intervalo de tempo entre a Antiguida- de e um futuro “feliz” era a Idade Média, obscura e tenebrosa. A idéia de “tempo médio” presente em Petrarca foi claramente definida por Giovan- ni Andréa dei Bussi (1417-1475), bispo de Aleria. Em 1469, ao refletir sobre as comple- xidades de sua época, o religioso utilizou a expressão media tempestas. Em meados do século XVI, Georgio Vasari (1511-1574), pintor e arquiteto italiano, conhecido por suas biografias de artistas da época, popularizou o termo Renascimen- to. O que “renascia” no século XVI eram as artes e as letras clássicas. Na mentalidade da época, entre as luzes da Antiguidade Clássica e as do Renascimento teria existido um período de obscuridade, um intermédio. Daí o surgimento de termos como: media 2 Aqui indicamos apenas um dos aspectos apontados pelo autor. O livro é um apanhado de aconte- cimentos considerados como “catastróficos” ocorridos ao longo do século XX, e que levam o autor a identificá-los como “A nova Idade Média”. 13 introdução ao estudo da história medieval aetas; media antiquitas e intermedia aetas, para se referir àquele período. Estas expressões tinham um caráter nitidamente filológico. O século XVI, que bus- cava o uso do latim clássico, recusava o latim utilizado no período anterior, conside- rado “bárbaro”. Da mesma forma era vista a arte medieval, considerada como “grotes- ca”, inclusive pelo pintor Rafael Sanzio (1483-1520) e pelo escritor François Rabelais (1483-1553). O primeiro chamou a arte medieval de “gótica”, certamente por fugir aos padrões clássicos. O termo “gótico”, atribuído pelo grande pintor italiano, tinha sinô- nimo de “bárbaro”. O segundo referia-se ao período intermediário como uma densa noite gótica (FRANCO JUNIOR, 2001, p. 11). Todavia, foi no século XVII que o termo medium aevum se difundiu. O erudito francês Charles de Fresne Du Cange, em seu conhecido Glossarium, publicado em 1678, referiu-se à mediae et infimae latinitatis. Contribuíram para sua definitiva afirma- ção os alemães Georg Horn (1620-1670), em latim Hornius, e Christoph Keller (1638- 1707), cujo nome foi latinizado para Cellarius. Hornius escreveu uma série de compêndios, dentre os quais se destaca História Eclesiástica e Política (1647). Nesse tratado, o período compreendido entre a queda do Império Romano do Ocidente (476) e a do Império Romano do Oriente (1453) estaria situado entre uma “história antiga” e uma “história nova”, e foi denominado de Imperia et regna medii aevi. Cellarius publicou, em 1688, um manual intitulado História da Idade Média desde o tempo de Constantino o Grande até à tomada de Constantinopla pelos Turcos. Ou seja, definia como “Medievo” o período situado entre o século IV e o século XV. Com esses manuais, de grande difusão na época, a subdivisão da História em An- tiguidade, Idade Média e Idade Moderna tornou-se uso corrente, sobretudo devido a Cellarius, que havia escrito dois outros tratados, um dedicado à “Idade Antiga” e outro à “Idade Moderna”3. Todavia, essa delimitação dos tempos da história não eliminou a visão negativa em relação à Idade Média. O sentido mantinha-se renascentista, isto é, a Idade Média era vista como um período de interrupção do progresso humano iniciado pelos gregos, continuado pelos romanos e retomado – após mil anos de obscurantismo – pelos homens da Renascença. No século XVII, as teses que Martinho Lutero havia proposto no século anterior ganharam muito mais força. O reformista alemão havia defendido, entre outras coisas, 3 A definição de “História Contemporânea” foi introduzida na França em 1902, nos programas dos liceus. Desde então, as denominações “História Antiga”, “História Medieval”, “História Moderna” e “His- tória Contemporânea” passaram a fazer parte dos currículos escolares e universitários. Na mesma época foi estabelecido que o “período moderno” se estenderia do século XVI ao XVIII. História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 14 a necessidade de retomar o cristianismo primitivo e eliminar as lembranças daquele predomínio tirânico, que, do seu ponto de vista, fora imposto pelos papas, bispos e abades ao longo de toda a Idade Média. Segundo Julio Valdeón Baruque, esta nova perspectiva que se difundiu amplamen- te em todos os setores do continente europeu que se mostraram seguidores da Refor- ma Protestante contribuiu para desacreditar a imagem da Idade Média, época a qual se acreditava plena de ignorância, de barbárie, de mediocridade, de atraso e arcaísmo (2004, p. 215). Os políticos ligados às novas monarquias absolutistas criticavam as interferências da Igreja medieval nos destinos dos reinos e no governo dos príncipes. Manifestavam um desprezo por aquele período, de reis fracos e de fragmentação política. Os intelectuais racionalistas deploravam a cultura medieval, plena de valores morais e espirituais. A burguesia, em plena afirmação, ridicularizava aqueles séculos de comércio limitado e de economia enrijecida pelas proibições às oportunidades de ganho e à lucratividade4. Todavia, foi, sem dúvida, no século XVIII que as críticas à Idade Média tornaram-se mais destrutivas. Os iluministas, adeptos da “Filosofia da Razão”, atribuíram à Igreja e, portanto, à religião, uma influência nefasta no desenvolvimento da humanidade. Denis Diderot (1713-1784) e Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, o marquês de Condorcet (1743-1794), lamentaram a “cegueira” imposta pelo cristianismo ao ho- mem medieval, limitando suas ações em direção ao progresso. Condorcet, em sua obra Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano, identifica o período medieval como época “desastrosa”, de “anarquia tumultuosa” e de “fantasias teológicas” (SAITTA, 1996, p. 18). Mas foi Voltaire (1694-1778), que professava ideais de tolerância, de paz e de des- potismo ilustrado, quem manifestou maior desprezo em relação ao período medieval. Segundo Giorgio Falco, no entendimento de Voltaire, em relação às invasões bárbaras no século XVI, a Europa inteira se estagna em um desonroso envelhecimento, do qual só sairá através de terríveis convulsões. A formosa língua latina é derrotada por dialetos bárbaros, os magníficos edifícios se transformam em casarios de teto de palha, as longas estradas são tomadas por águas estancadas; as mentes se embrutecem na ignorância e na superstição; cúmulo da vergonha: os monges se convertem em príncipes e senhores, e seus escravos nem sequer ousam lamentar-se (FALCO apud SAITTA, 1996, p. 15). Para Voltaire,os papas eram símbolos do fanatismo e do atraso característico da Idade Média. Sua posição em relação àquele período histórico pode ser sintetizada 4 Principalmente a condenação à usura. A esse respeito, veja-se: LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: a usura na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1989. 15 pela maneira como se referia à Igreja: “a infame” (VOLTAIRE apud FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 12). O mesmo sentimento de desprezo em relação à Idade Média observado por Giorgio Falco na obra de Voltaire é retratado na obra de outro iluminista, William Robertson. Em seu livro História do Reino do Emperador Carlo V, publicado em 1769, Robertson ressalta as mudanças provocadas pelos bárbaros e culpa-os pela “destruição” do mun- do romano. “Por todas as partes foram introduzidas novas formas de governo, novas leis, novos costumes, novas formas de vestir, novas línguas e novos nomes de homens e lugares” (ROBERTSON apud SAITTA, 1996, p. 17). Essas mudanças eram, na concepção de Robertson, resultado da “violência exter- minadora” imposta pelos bárbaros, e prova muito mais contundente do que os relatos de contemporâneos, como Amiano Marcelino, Santo Anselmo ou Jordanes, que teste- munharam ou escreveram sobre os acontecimentos da época. Recusando-se a atribuir qualquer valor histórico e cultural aos reinos oriundos das invasões bárbaras, o autor afirma, contraditoriamente: “Na obscuridade do caos provocado por esse desastre uni- versal, devemos buscar os germes da ordem e descobrir os primeiros rudimentos das formas políticas e das leis vigentes hoje na Europa” (ROBERTSON apud SAITTA, 1996, p. 18). Nem mesmo um dos mais proeminentes historiadores da ilustração deixou de ma- nifestar um sentimento negativo em relação à Idade Média. Em Declínio e queda do Império Romano, ao referir-se às “Ruínas de Roma no século XV”, na conclusão de sua longa obra5 Edward Gibbon se reporta às lamurias de dois servidores do papa Eugênio IV (1431-1447), que, do alto da colina capitolina, observavam as ruínas de colunas e templos de Roma. E foi observando aquelas ruínas que Gibbon sentiu-se inspirado a escrever sua obra: “Foi entre as ruínas do Capitólio que pela primeira vez concebi a idéia de uma obra que distraiu e ocupou perto de vinte anos de minha vida e que, por mais longe que esteja da medida dos meus desejos, entrego finalmente à curiosidade e à imparcialidade do público” (1989, p. 490). Nessa obra, Gibbon, de acordo com os ideais iluministas, caracteriza a Idade Média como um período de estagnação, de terrível e interminável decadência. Todavia, já no final do século XVIII o negativismo em relação à Idade Média co- meçou a ser posto de lado. Contemporâneo de Gibbon, o filósofo e escritor alemão 5 Existe uma edição completa da obra de Edward Gibbon, em quatro volumes publicados recentemente pela editora espanhola Turner (2006/2007). Aqui utilizamos a edição abreviada publicada no Brasil pela Companhia das Letras em 1989, e reeditada em 2005. introdução ao estudo da história medieval História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 16 Johann Gottfried von Herder (1744 -1803), cujas obras exerceram forte influência no Romantismo alemão, conclamou os literatos alemães a buscarem inspiração nas ori- gens germânicas e atacou a tirania da estética clássica e da imitação dos antigos. Em sua obra intitulada Também uma filosofia da história para a formação da hu- manidade (1774), Herder afirma que, na época das invasões dos povos germânicos, o mundo romano estava debilitado, desfeito e habitado por “criaturas sem fibra que se afundavam na opulência, no vício, na desordem, na licença e num orgulho guerreiro selvagem” (1995, p. 48). Para o autor, as leis e os conhecimentos dos romanos não podiam mais suprir as energias perdidas nem fortalecer aquele espírito vital capaz de impulsionar a humanidade. Diferentemente do que haviam afirmado os renascentistas, assim como os iluminis- tas de sua época Herder não culpa os invasores bárbaros pela destruição do mundo romano. Ao contrário, diz: E eis que do Norte tinha nascido um novo homem! Sob um céu mais frio, numa paisagem deserta e selvagem, onde ninguém suspeitaria, amadurecia já uma onda primaveril de ervas robustas e cheias, que, quando transplantadas para as terras mais belas do Sul – por ora transformadas em terreno desolado –, haviam de tomar uma nova natureza e oferecer ao destino do mundo uma enorme colheita! Godos, vândalos, burgúndios, anglos, hunos, hérulos, francos e búlga- ros, eslavos e lombardos chegaram, estabeleceram-se, e o mundo moderno, do Mediterrâneo ao Mar Negro, do Atlântico ao Mar do Norte, é obra sua, geração sua, constituição política sua. E não trouxeram apenas forças para serem aplica- das. Que leis e que instituições trouxeram também para o grande palco onde se processa a construção do mundo! (HERDER, 1995, p. 48). Um contemporâneo de Herder, o poeta e dramaturgo Gotthold Lessing (1729- 1781), expressou tal admiração em relação à Idade Média que nos permite qualificá-lo de verdadeiro precursor do idealismo Romântico: “Noite da Idade Média, que seja! Mas era uma noite resplandecente de estrelas” (LESSING apud VALDEÓN BARUQUE, 2004, p. 219). Mas foi no século XIX que o conceito de Idade Média adquiriu novos matizes. A imagem que os românticos difundiram acerca do período medieval contrastava total- mente com o que os iluministas haviam escrito. A motivação principal foi a questão da identidade nacional, que ganhou força ante as ameaças das conquistas de Napo- leão. O imperador francês pretendia unificar a Europa e mantê-la sob seu controle. Essa atitude provocou em cada região dominada ou ameaçada uma valorização de sua cultura e de sua história. As teses iluministas e o racionalismo pretendido pelos seus representantes não foram capazes de impedir que, no início do século XIX, a Europa se encontrasse mergulhada em conflitos políticos, guerras e revoluções. Nesse quadro, a Idade Média passou a ser referência como época de fé, tradição e 17 autoridade. Ela oferecia um alento à insegurança e aos problemas decorrentes do culto exagerado ao cientificismo dos defensores da “razão”. Mesmo na Alemanha, cuja unificação só ocorreria no final do século XIX, as ideias de Herder e Lessing ganharam adeptos. Os historiadores Heinrich Luden (1778-1847) e Johann Friedrich Bohmer (1795-1863) foram os principais defensores da Idade Mé- dia. Em 1818, Bohmer, após admirar a arquitetura da cidade de Estrasburgo, afirmou: “Jamais alguém me convencerá de que a Idade Média, que criou todas essas obras, foi uma época de barbárie.” (BOHMER apud VALDEÓN BARUQUE, 2004, p. 219). E Luden, autor de História do povo alemão (1825), escreveu: “Há uma geração, a Idade Média parecia uma noite escura, agora o encanto do que descobrirmos tem fortalecido o desejo de seguir investigando.” (LUDEN apud VALDEÓN BARUQUE, 2004, p. 219). A literatura e a arte alemãs não ficaram incólumes à tendência de valorização ou supervalorização do período medieval. Temáticas medievais aparecem em obras como Fausto (1806/1832), de Goethe, e em composições líricas como as óperas Tristão e Isolda (1859) e Parsifal (1882), de Richard Wagner. Também na França, como na Inglaterra, a nostalgia romântica em relação à Ida- de Média resultou em obras de grande aceitação, como O corcunda de Notre Dame (1831), de Victor Hugo (1802-1885), e o romance de cavalaria Ivanhoé (1819), de Sir Walter Scott (1771-1832). Historiadores como o francês Jules Michelet (1798-1874) e o escocês Thomas Carlyle (1795-1881) também se dedicaram a resgatar a Idade Média. Michelet reservou seis volumes de sua História da França (1833/1844) à Idade Média. Carlyle, em sua obra On heroes and hero-worship and the heroic in history (1841) dedicou-se ao estudo de personagens heróicos, da Idade Média aos tempos modernos. Mas os escritores do Romantismoexageraram em relação à Idade Média, tanto quanto os renascentistas e iluministas. Se, para os primeiros, essa teria sido uma época de trevas, a ser riscada da história, para os românticos ela foi um período magnífi- co, uma época que deveria ser imitada. Assim como Lessing viu a Idade Média como uma noite “resplandecente de estrelas”, Michelet a definiu como “aquilo que amamos, aquilo que nos amamentou quando pequenos, aquilo que foi nosso pai e nossa mãe, aquilo que nos cantava tão docemente no berço” (MICHELET apud FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 13), e Carlyle, como “a coisa mais elevada” (CARLYLE apud FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 13) produzida pela Europa. Não obstante, o século XIX desempenhou um papel importante no desenvolvi- mento das pesquisas em relação à Idade Média. Várias coleções documentais foram organizadas e catalogadas. Uma das mais significativas foi a Monumenta Germaniae Historica, iniciada em 1826, na Alemanha, sob a direção de Georg Heinrich Pertz. Essa coleção abrange o período compreendido entre os anos 500 e 1500, e seu objetivo é introdução ao estudo da história medieval História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 18 recolher as fontes medievais mais importantes dos diversos povos germânicos. Parale- lamente vieram à luz outras coleções, como as inglesas Rerum britannicorum medii aevi scriptores; Patent Rolls e Close Rolls, e as francesas Collection de documents rela- tifs à l’histoire de France e Patrologiae Latina. Na Espanha, destacam-se a Colección de documentos inéditos para la historia de España (1841); as Atas de las Cortes de los antiguos reinos de Castilla y de León (1861-1882); o Memorial histórico español (1861) e as Crónicas de los reyes de Castilla desde Alfonso el Sabio hasta los reyes Católicos. Em Portugal, a principal coleção documental foi a Portugalia Monumenta Historica, organizada por Alexandre Herculano em 1867. Do que expusemos até o momento, a que conclusão deve chegar o historiador do século XXI em relação à Idade Média? Devemos aderir à lenda negra difundida pelos renascentistas e iluministas ou à lenda dourada criada pelos românticos? – Nem uma coisa, nem outra. Devemos analisá-la com senso crítico, respeitando seus progressos e suas contradições. “A função do historiador é compreender, não a de julgar o passado.” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 13). Sem dúvida, na Idade Média, lançada aos infernos por alguns e aos céus por ou- tros, foram criadas as bases do mundo contemporâneo. Conforme esclarece Jacques Le Goff, ela “criou a cidade, a nação, o Estado, a universidade, o moinho, a máquina, a hora e o relógio, o livro, o garfo, o vestuário, a pessoa, a consciência... e a revolução” (1993, p. 12). A lista poderia ser enorme: poderíamos acrescentar o patrimônio lin- güístico ocidental – o inglês, o francês, o alemão, o italiano, o espanhol e o português nasceram na Idade Média –, o patrimônio dos valores sociais, da cultura material, das práticas econômicas, e o científico6. a periodização da História medieval A discussão elaborada no tópico anterior nos possibilita definir a Idade Média como um período da história da Europa que se estende do fim do Mundo Antigo ao Renascimento, quando se inicia o chamado “período moderno”. Entretanto, não existe unanimidade entre os historiadores com relação às balizas cronológicas que determi- nariam o seu início e o seu fim, e qualquer afirmação concreta seria passível de críticas e discussões. De modo geral, tem-se estabelecido como início da Idade Média o ano de 476, data em que o Imperador do Ocidente, Rômulo Augústulo, foi deposto pelo ostrogodo 6 A historiografia sobre as contribuições do período medieval ao mundo contemporâneo é relativamen- te ampla. Como síntese, indicamos as seguintes referências: WHITE, L. Tecnología medieval y cambio social. Barcelona: Paidós, 1990; FRUGONI, C. Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras inovações geniais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 19 Odoacro7. Entretanto, dependendo do critério analítico que se adota, outras datas ganham importância. Entre elas, o ano de 313, em que o Imperador Constantino de- cretou o Edito de Milão, que garantia a liberdade de culto aos cristãos; o ano de 392, quando Teodósio I proclamou o cristianismo como religião oficial do Império Roma- no; o ano de 378, em que o Imperador Valente foi morto pelos godos na Batalha de Adrianópolis; o ano de 410, em que a cidade de Roma foi saqueada pelos godos e a corte imperial romana foi transferida para Ravena; e 698, data que marca a conquista muçulmana de Cartago. Com relação ao fim da Idade Média, geralmente os historiadores adotam o ano de 1453, quando a cidade de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, foi conquistada pelo sultão turco Mehmed II. Esta data marca também o fim da Guerra dos Cem Anos, outro acontecimento que poria fim à Idade Média. Outros fatos e datas são mencionados: o descobrimento da América por Cristóvão Colombo, em 1492, e o ano de 1517, quando Martinho Lutero publicou suas 95 teses, o que marca o início da Reforma Protestante. Apesar da importância desses acontecimentos, todas as datas são aleatórias, uma vez que, sendo a História um processo, deve-se renunciar à busca de um fato específico que teria inaugurado ou posto fim à Idade Média. Como observa Régine Pernoud, não existe tratado algum que determine a mudança de uma época histórica (1978, p. 5). Portanto, entende-se que a Idade Média abrange um período de cerca de mil anos, que se estende do século V ao século XV, período bastante longo, em que as estruturas básicas não permaneceram inalteradas. Em razão disso os historiadores passaram a dividir a história medieval em períodos que apresentaram certa unidade interna. Tais períodos são comumente denominados: Alta Idade Média, Idade Média Central e Baixa Idade Média. Vejamos os limites temporais atribuídos a cada um deles, bem como os aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais que os caracterizam. A Alta Idade Média é o período mais longo, que se estenderia do século V ao X, mas geralmente aparece na historiografia dividido em Antiguidade Tardia ou Primei- ra Idade Média, e Alta Idade Média propriamente dita. As razões que levaram alguns historiadores a adotarem Antiguidade Tardia, e ou- tros, Primeira Idade Média, para se referirem aos séculos ditos de “transição” são me- ramente interpretativas. Os defensores da ideia de Antiguidade Tardia utilizam esse termo para identificar o período compreendido entre os séculos IV e VIII como uma 7 Não há um consenso em relação à origem de Odoacro. De acordo com algumas fontes da época, era rei dos hérulos antes de esse povo ter sido anexado pelos godos. introdução ao estudo da história medieval História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 20 “outra antiguidade”, diferente da “Antiguidade Clássica”8. Para os partidários da ideia de Primeira Idade Média, esse período apresenta uma imagem própria, diferente da “antiga”, mas ainda não claramente “medieval”9. Adotando-se um ou outro critério, caberia teoricamente ao período que se estende dos decênios finais do século VIII ao X a denominação de Alta Idade Média, o que permite, grosso modo, identificá-la como período de consolidação e desagregação do Império Carolíngio10. Antiguidade Tardia ou Primeira Idade Média e Alta Idade Média11, qualquer que seja a denominação que se adote para o período compreendido entre a queda do Im- pério Romano12 e o século X, pode ser considerado historicamente como o da gênese do feudalismo. No que se refere ao aspecto político, observa-se a permanência de estruturas de po- der e de administração romanas nas monarquias germânicas, que evoluíram para certa unidade política com os carolíngios. No econômico, uma debilidade, que se inicia com as invasões bárbaras e permanecepelo menos até meados do século VIII, quan- do se inicia uma recuperação. Em termos sociais, observa-se um relativo crescimento demográfico, sobretudo nos séculos IX e X, assim como a afirmação das relações de dependência que caracterizariam o feudalismo; e no aspecto cultural, uma fusão de valores da cultura romana com a germânica, que adquiriram forma própria com o Renascimento carolíngio, além da afirmação do cristianismo e de sua expansão para regiões pagãs, graças, sobretudo, à aliança entre a Igreja e o Estado carolíngio. 8 Veja-se: FRIGHETTO, Renan. Estruturas sociais na Antiguidade Tardia Ocidental (séculos IV/VIII). In: SILVA, G. V.; MENDES, N.B. (org.). Repensando o Império Romano: perspectiva socioeconômica, políti- ca e cultural. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória: Edufes, 2006, p. 223-240. 9 Veja-se: ANDRADE FILHO, R. O. Antiguidade Tardia ou Primeira Idade Média? In: ANDRADE FILHO (org.). Relações de poder, educação e cultura na Antiguidade e Idade Média. Santana de Paranaíba: Solis, 2005, p. 233-242; FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média, nascimento do Ocidente. São Paulo: Bra- siliense, 2001, p. 15. 10 As subdivisões podem variar segundo os critérios adotados pelos historiadores. Hilário Franco Júnior define como Alta Idade Média o período que se estende de meados do século VIII a fins do século X. 11 Conforme observamos, essas subdivisões são de natureza meramente interpretativa. Poderíamos rechaçar tanto a denominação de Antiguidade Tardia quanto a de Primeira Idade Média, e adotarmos unicamente a de Alta Idade Média. Note-se que, para Jacques Le Goff, a Idade Média se estende do século IV ao final do século XVIII; portanto, uma “longa” Idade Média. Veja-se, entre outras referências desse autor, a obra recentemente publicada: LE GOFF, J. A Idade Média explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 13-16. 12 Não cabe aqui entrarmos na polêmica em relação ao significado do ano de 476. Essa data marcaria “o fim do Império Romano do Ocidente” ou “o fim do Império Romano no Ocidente”? Esse questio- namento tem levado os historiadores à discussão sobre “rupturas” e “continuidades”, ao abordarem o período que se estende da crise do Império Romano à formação dos reinos germânicos até o advento dos carolíngios. 21 A Idade Média Central, que abrange o período que se estende do século XI ao XIII, é considerada a época do feudalismo. No plano político, a principal característica é a fragmentação do poder, com a distribuição das prerrogativas reais entre a nobreza terratenente. No econômico, verifica-se um crescimento generalizado da produção e do comércio, além de uma expansão territorial, da qual as cruzadas e a Reconquista Ibérica são os exemplos. Socialmente, observa-se um crescimento da população e, consequentemente, da mão de obra disponível, tanto no campo quanto nas cidades. No âmbito das relações sociais, evidenciam-se as relações “horizontais” (suserania e vassalagem) e “verticais” (senhorio e servidão). Culturalmente, considera-se o período mais rico da Idade Média: época do surgimento das universidades, da escolástica, e das artes românica e gótica. A Baixa Idade Média (séculos XIV e XV) é o período de transição para o mundo Moderno. Observa-se uma crise generalizada, iniciada em meados do século XIV e que põe fim à expansão dos séculos XI a XIII. No plano econômico, assiste-se a um declínio da produção e do comércio, de modo geral. No social, um acentuado decréscimo da população, em decorrência de epidemias como a peste negra, o que contribui para a desestruturação do esquema tripartido – oratores, bellatores e laboratores – carac- terístico do feudalismo. Politicamente, verifica-se uma tendência ao fortalecimento do poder real, a chamada centralização monárquica, base do absolutismo dos Estados Modernos. Culturalmente, as cidades e o ambiente cortês, assim como as mudanças na estrutura do ensino universitário possibilitaram uma secularização dos costumes. O pensamento e a produção intelectual deixam de ser monopólio da Igreja. As línguas vernáculas tornam-se línguas oficiais dos estados em substituição ao latim, o que pos- sibilitou uma maior difusão da cultura. panorama de fontes para o estudo da idade média Os historiadores da Idade Média e os estudantes interessados em pesquisar sobre esse período histórico contam hoje com um volume significativo de fontes para re- alizar suas pesquisas. Essa multiplicidade implica a necessidade de classificação das fontes medievais de acordo com sua tipologia e o uso que se faz dela na investigação. Francisco Ruiz Gómez (1998) estabeleceu a seguinte classificação para as fontes históricas: fontes orais, fontes escritas e fontes arqueológicas. As fontes orais inexistem para a Idade Média. Os historiadores dispõem apenas de referências a elas, em alguns textos escritos. As fontes escritas são as mais abundantes e as mais utilizadas pelos medievalis- tas. Sua tipologia é igualmente variada: biografias, crônicas, hagiografias, obras his- tóricas, literárias, filosóficas, morais e didáticas, códigos jurídicos, regras monacais, introdução ao estudo da história medieval História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 22 documentos oficiais (estatutos, atas, censos, contratos, editos, diplomas, regulamen- tos, etc.) e privados (registros nobiliários, regulamentos corporativos e comunais, etc.), além de muitas outras possíveis de serem mencionadas. As fontes arqueológicas ou materiais compreendem monumentos arquitetônicos (catedrais, castelos, palácios, monastérios, casas, pontes), preservados ou em ruínas, objetos da vida cotidiana (utensílios, ferramentas, vestimentas, joias, tecidos, tapetes, móveis, etc.), obras de arte (iconografias, pinturas, esculturas, cerâmicas), armas, mo- edas e demais vestígios arqueológicos, as quais permitem ao historiador obter uma imagem complementar dos fundamentos da sociedade, da economia e da cultura da Idade Média. Excetuando-se as fontes orais – pela razão aduzida acima – permanecem como fontes reais para os medievalistas as fontes escritas e as arqueológicas ou materiais. Por estarem mais próximas das possibilidades de pesquisa dos historiadores e dos estudantes brasileiros, vamos privilegiar, neste item, as fontes escritas publicadas rela- tivas aos três períodos da História Medieval: Alta Idade Média, Idade Média Central e Baixa Idade Média. As fontes escritas referentes à Alta Idade Média são relativamente escassas se com- pararmos com a documentação produzida na Idade Média Central e na Baixa Idade Média, pelo menos até o período carolíngio. Vejamos alguns exemplos de fontes escritas: obras teológico-filosóficas, como as de Santo Agostinho (A cidade de Deus, Confissões, Da Doutrina Cristã); Boécio (A consolação da filosofia); Cassiodoro (Instituições); Martinho de Braga (Formula vitae honestae/Fórmula de vida honesta e De correctione rusticorum/Sobre a instrução dos rústicos). Regras monásticas (Regra de Santo Agostinho; Regra de São Bento). Ha- giografias (La vita de San Fructuoso de Braga; Vida de los Santos Padres de Mérida; Historias de los monjes de Siria, de Teodoreto de Ciro). Obras históricas (Origen y gestas de los godos, de Jordanes; as Crónicas Asturianas; Ecclesistical History of the english people, de Beda; The history of the franks, de Gregório de Tours; Historia de los Godos, de Isidoro de Sevilha; o anônimo Poema de Fernán Gozález e os Anales Nortumbricenses, sobre a região da Northumbria anglo-saxã). Códigos jurídicos (Li- ber Iudiciorum, dos visigodos). Obras científicas, como as Etimologias, de Isidoro de Sevilha. No período do chamado “Renascimento Carolíngio” a elaboração de fontes escritas foi mais efetiva. Destacam-se textos políticos, como o De institutione regia, de Jonas de Orleans; De ordini palatii, de Hincmar de Reims.Obras históricas oficiais, como a Crónica de Región de Prum; os Anales del Imperio Carolingio. Relatos de historia regional redigidos em monastérios ou catedrais, como os Anales de São Bertín e os 23 da Abadia de Fulda. Biografias, como a Vida de Carlos Magno, de Engihardo, além de textos de Alcuino e Abbon de Fleury. Textos legislativos, como a Capitular de Villis, importante coleção de textos agrupados em capítulos, aprovados pela Assembléia Ge- ral Carolíngia. Destacam-se, também, os Polípticos, inventários de bens e rendas refe- rentes a distintos territórios, como o realizado pelo abade de Irminón do Monastério de San Germain des Prés, fontes importantes para o estudo da economia na Alta Idade Média. Existem, ainda, obras escritas tardiamente, ou seja, na Idade Média Central, mas que se referem à Alta Idade Média, como a gesta Canção de Rolando, os épicos Beo- wulf e Nibelungos, e as sagas Viland e Islandesas, todas elas obras anônimas. As fontes referentes à Idade Média Central são bastante abundantes, de modo que, assim como indicamos para a Alta Idade Média, vamos mencionar alguns exemplos de acordo com a tipologia das fontes, e, em especial, as relativas à Península Ibérica. Existe um número significativo de fontes relativas às monarquias feudais da França e da Inglaterra, e também referentes aos reinos ibéricos, entre os séculos XI e XIII. Ci- temos, para o caso inglês, o Domesday Book, levantamento fiscal e estatístico elabora- do por ordem de Guilherme, o Conquistador, em 1086; a Historia Regina Britanniae, de Geoffrey de Monmouth, do século XII; e a obra iconográfica The Bayeux Tapestry, que relata a conquista da Inglaterra por Guilherme, o Conquistador, em 1066. Para os reinos de Castela e Leão, a Chronica Adefonsi Imperatoris, referente ao reinado de Alfonso VII; a Crónica Latina de los Reyes de Castilla; as “Obras Jurídicas” de Alfonso X, o Sábio (Fuero Real; Espéculo e Las Siete Partidas); a Colección diplomatica del reinado de Sancho IV, de Castela, e, para Portugal, as Crónicas dos sete primeiros reis de Portugal, O Livro das leis e Posturas e as Ordenações Afonsinas13. A documentação eclesiástica é igualmente abundante, graças à organização de ar- quivos de igrejas e monastérios. Bispos e abades produziram uma farta documenta- ção diplomática e administrativa, agrupada em cartulários e coleções diplomáticas das mais importantes instituições eclesiásticas. Uma grande quantidade de textos doutri- nais, como sermões, relatos hagiográficos, obras teológicas e filosóficas, além de uma vasta documentação pontifícia inclui-se no leque da documentação religiosa da Idade Média Central. Basta lembrar algumas obras mestras, como o Decreto de Graciano; a Suma Teoló- gica, de Santo Tomás de Aquino; a Legenda Áurea: vida dos santos, de Jacopo de Va- razze; os Escritos de São Francisco de Assis; as várias Crônicas Franciscanas; as obras 13 O Livro das Leis e Posturas é provavelmente do fim do século XIV ou início do século XV, e as Orde- nações Alfonsinas, de 1446, mas ambas as fontes recolhem informações do século XIII. introdução ao estudo da história medieval História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 24 de Santo Anselmo (Da gramática e Da verdade; Monológio e Proslógio); os diversos Tratados, Sermões, Sentenças e Parábolas, de São Bernardo de Claraval; o Codex Ca- lixtinus, o mais famoso guia de peregrinos da Idade Média, entre muitas outras que poderiam ser mencionadas. Há uma farta documentação relacionada ao desenvolvimento urbano, iniciado a partir do século XI. A administração pública das cidades medievais e as instituições citadinas, como guildas e corporações artesanais produziu uma documentação de cunho político, econômico e jurídico. A título de exemplo, citemos os foros munici- pais das cidades dos reinos de Castela (Libro de los Fueros de Castilla e o Fuero Viejo de Castilla) e Leão (Fuero de León); documentos relativos às guildas e corporações de ofícios (Ordenanzas y otros documentos complementários relativos a las corpo- raciones de oficio en el reino de Aragón en la Edad Media); contratos comerciais (23 contratos comerciales escritos por los judíos de Toledo en los siglos XIII-XIV) e a Lei de Almotaçaria portuguesa do século XIII. A literatura da Idade Média Central é rica e de tipologia muito variada, o que a torna um manancial inesgotável para a realização de pesquisas acadêmicas. Além das obras já mencionadas, poderíamos acrescentar como exemplos os livros de viagem medievais (Livro das Maravilhas, de Marco Polo; as Crônicas de viagem dos monges franciscanos; Chronicles of the Crusades, de Joinville e Villehardouim; a Cidade de Luz, de Jacob d’ Ancona e o Felix ou Livro de Maravilhas, de Ramon Llull). Obras de caráter político-filosófico (Policraticus, de Juan de Salisbrury; Da Monarquia, de Dante Alighieri; A Monarquia, de Santo Tomás de Aquino; o Setenario, de Alfonso X, o Sábio; Sobre o poder eclesiástico, de Egídio Romano). Obras poéticas, como A divina comédia, de Dante Alighieri; Líricas, como as Cantigas de Santa Maria, de Alfonso X, o Sábio e as Cantigas d’escárnio e de mal dizer, dos cancioneiros medievais galego- portugueses. Obras sobre o amor cortês: Tratado do amor cortês, de André Capelão e o Roman de la rose, de Jean de Meung. Fábulas medievais (Fabliaux) anônimas. Livros de cavalaria: O livro da ordem de cavalaria, de Ramon Llull. Livros de caça, como o De arte venandi cum avibus, do imperador Frederico II de Hohenstaufen e o Libro de la caza, de Dom Juam Manuel. Documentos apócrifos, como A carta de Preste João, além de muitas outras fontes que seriam dignas de nota. Instituições importantes, como as ordens monástico-militares, produziram uma documentação significativa. Citemos como exemplo as diversas “regras” relativas a es- sas instituições: La Règle du Temple, dos cavaleiros templários; Les Statuts de L’Ordre de Saint-Jean de Jérusalem, da Ordem dos Hospitalários; a Regla de la Orden Militar de Santiago del Espada; a Regla de la Orden Militar de Calatrava. Existe também uma importante documentação relativa à estrutura e ao funcionamento dessas ordens 25 militares, assim como às suas propriedades. Vejamos: Colección Diplomática Medie- val de la Orden de Alcántara; Libro de privilégios de la Orden de San Juan de Je- rusalém en Castilla y León. Ainda em relação às ordens militares, cabe mencionar o opúsculo Liber ad milites Templi de laude novae militiae/Em louvor da nova milícia templária, de São Bernardo de Claraval. Em relação à Baixa Idade Média (séculos XIV e XV), o volume de fontes escritas elaboradas e conservadas é ainda muito maior. A utilização do papel em substituição ao pergaminho, ao longo do século XIV, e a afirmação das línguas vernáculas possibili- taram a difusão e a utilização de documentos escritos em todos os níveis da sociedade. As instituições públicas (reinos, principados, municipalidades, etc.), as eclesiásticas e os senhorios intensificaram a produção de documentos como forma de controle sobre o território e sobre a população a eles pertencentes. As instituições econômicas citadinas, hansas, guildas e corporações de ofícios esta- beleceram uma série de registros de suas atividades, como o de compra e de venda, de fiscalização, de sentenças e julgamentos, de execuções, de documentos alfandegários e de taxas de câmbio, o que permite o estudo da história econômica da época. Cite- mos, como exemplo, as coleções: Documentos relativos a los oficios artesanales en la Baja Edad Media e Documentos relativos a las corporaciones de oficio en el reino de Aragón en la Edad Media. As fontes jurídicas, históricas, literárias e os tratados teológicos, filosóficos, políti- cos e científicos são igualmente abundantes, e permitem um conhecimento aprofun- dado da Baixa Idade Média. Vejamos alguns exemplos: No campo jurídico, os jámencionados Livros das Leis e Posturas e as Ordenações Afonsinas, portugueses, e o Ordenamiento de Alcalá, castelhano, de 1348. No campo filosófico-político, as obras: Sobre El poder del imperio y del papa, de Marsilio de Padua; o Brevilóquio sobre o principado tirânico e Oito questões sobre o poder do papa, de Guilherme de Ockham; e Sobre o poder régio e papal, de João de Qudiort. De cunho religioso e moral, o Libro de las confessiones, de Martín Pérez. Obras cien- tíficas, como o Códice Zabálburu de Medicina Medieval e o valenciano Regiment Pre- servatiu e curatiu de la pestilência, do século XIV. As fontes de natureza puramente literária são dignas de nota. Entre elas podemos destacar os livros de viagem medievais, como As viagens de Sir John de Mandeville; o anônimo Libro del conoscimiento de todos los reinos, e os Diários de viagem, de Cristóvão Colombo. Obras mestras da literatura medieval, como o Decamerão, de Boc- caccio; Os Contos de Canterbury, de Geoffrey Chaucer e o Libro de buen amor, de Juan Ruiz Arcipreste de Hita. Obras poético-trovadorescas, como as Cantigas de amigo introdução ao estudo da história medieval História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 26 e Cantigas de Amor, do rei Dom Dinis, de Portugal. Obras que formam o gênero cha- mado “Dance Macabré” (Dança da morte), como a Danza General e a Farsa llamada danza de la muerte, espanholas, e The dance of death, de Hans Holbein, publicada já no início do século XVI, além de vários dramas litúrgicos medievais. Cabe mencionar, também, algumas outras fontes de tipologia variada, como o li- vro de cavalaria Tirant lo Blanch, de Joanot Martorell; o Libro de la Caza, de Gaston Phoebus e o Libro de la Monteria, de Alfonso XI, rei de Castela. Bestiários, como o Livro das Aves, de Hugo de Folieto, e o Livro das Bestas, de Ramón Llull. Manuais de inquisição, Malleus Maleficarum/Martelo das Feiticeiras, escrito em 1446 pelos inqui- sidores Heinrich Kramer e James Sprenger, e o Manual dos Inquisidores, escrito em 1376 por Nicolau Eymerich. Os chamados livros de horas, como Les Trè Riches Heures Du Duc de Berry, iluminados pelos irmãos Limbourg, em 1413, o Libro de horas de Carlos V, de 1516. Saltérios, como o The Luttrel Psalter, de 1330. Os pesquisadores e estudantes da História Medieval contam ainda com coleções documentais – além das grandes coleções publicadas no século XIX, mencionadas inicialmente – organizadas por medievalistas europeus e publicadas em português. Indicamos a obra de Fernanda Espinosa, “Antologia de textos históricos medievais” (1981) e a de Maria Guadalupe Pedrero-Sánchez, “História da Idade Média: textos e testemunhas” (2000). eXtratos de doCumentos para aprofundamento temÁtiCo UMA noVA ConCEpção dA IdAdE MédIA EM fInS do SéCUlo xVIII Documento 01: Ao refletir sobre as invasões germânicas do século V, o filóso- fo Johan Gottfried Herder (1774-1803) rompe com o negativismo renascentista e iluminista em relação ao período medieval. E não trouxeram [os bárbaros] apenas forças para serem aplicadas. Que leis e que instituições trouxeram também para o grande palco onde se processa a construção do mundo! É certo que desprezavam as artes e as ciências, a opulência e os refinamentos... que afinal tinham devastado a humanidade. Mas, se em vez de artes traziam consigo a natureza, em vez das ciências a saúde do seu nórdico entendimento, em vez de refinamentos costumes fortes e bons, ainda que selvagens, se tudo isto estava agora em condições de fermentar em conjunto [...] Que grande acontecimento! Vede as suas leis, como respiram coragem viril, sentimento de honra, confiança no entendimento, na lealdade e no respeito pelos deuses! Vede a sua organização feudal, como enterrou o tumulto das cidades populosas e opulentas para cultivar os campos e dar 27 trabalho aos homens, criando pessoas saudáveis e, por isso mesmo, satisfeitas! Mais tarde, resolvidas as necessidades, desenvolveram um ideal orientado para a castidade e a honra que enobreceu o que de melhor podia haver nas inclinações humanas. Um ideal fixado em romance, é certo, mas romance de elevação: flor verdadeiramente nova da alma humana (HERDER, 1995, p. 48-49). A VISão RoMÂnTICA SoBRE A IdAdE MédIA Documento 02: Início do Romance Ivanhoe, de Sir Walter Scott (1771-1832). Naquela região agradável da alegre Inglaterra que é banhada pelo rio Don, estendia-se, em época remota, uma grande floresta, cobrindo a maior parte das belas colinas e vales que jazem entre Sheffield e a aprazível localidade de Doncaster. Os restos dessa extensa floresta podem ainda ser vistos nas nobres paragens de Wentworth, em Warncliffe Park, e ao derredor de Rotherdam. Lá aparecia, antigamente, o fabuloso Dragão de Wanthley; lá se travavam muitas das mais desesperadas batalhas, durante a Guerra das Rosas. E lá também floresceram, em tempos distantes, aqueles bandos de poscritos galantes, cujas façanhas se tornaram tão populares nas canções inglesas. É esse o nosso cenário principal. Quanto à data da nossa história, refere-se a um período de cerca do fim do reinado de Ricardo I, quando o seu regresso do longo cativeiro se tornou um acontecimento que os seus desesperados súditos – sujeitos, entrementes, a toda espécie de opressões decorrentes do seu estado – mais desejavam que esperavam (SCOTT, 1972, p. 9). introdução ao estudo da história medieval ANDRADE FILHO, R. O. Antiguidade tardia ou Primeira Idade Média? In: ANDRADE FILHO, R. O. (Org.). Relações de poder, Educação e cultura na Antiguidade e Idade Média. Santana de Paranaíba: Solis, 2005. p. 233-242. FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. Referências História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 28 FRIGHETTO, Renan. Estruturas sociais na antiguidade tardia ocidental (séculos IV/ VIII). In: SILVA, G. V.; MENDES, N. B. (Org.). Repensando o Império romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória: Edufes, 2006. p. 223-240. FRUGONI, C. Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras inovações geniais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. GIBBON, E. Declínio e queda do Império romano. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. HERDER, J. G. Também uma Filosofia da História para a formação da humanidade. Lisboa: Antígona, 1995. LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1993. ______. A Idade Média explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2007. MINC, A. A nova Idade Média. São Paulo: Ática, 1994. PERNOUD, R. O mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1978. PERNOUD, R. Idade Média: o que não nos ensinaram. Rio de Janeiro: Agir, 1994. PITELLA, R. A. A empresa medieval: o fracasso ao alcance de todos. Petrópolis: Vozes, 1995. RUIZ GÓMEZ, F. Introducción a la Historia medieval. Madrid: Síntesis, 1998. SAITTA, A. Guía crítica de la Historia medieval. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. SCOTT, W. Ivanhoe. São Paulo: Abril Cultural, 1972. 29 VALDEÓN BARUQUE, J. El concepto de la Edad Media: del infierno a la gloria. In: BENITO RUANO, E. (Coord.). Topicos y realidades de la Edad Media (III). Madrid: Real Academia de la Historia, 200. p. 211-231. WHITE, L. Tecnología medieval y cambio social. Barcelona: Paidós, 1990. introdução ao estudo da história medieval Anotações 1) Faça um breve comentário comparando a visão renascentista e a iluminista com a visão romântica em relação à Idade Média. Utilize os documentos como base para a discussão. 2) Destaque as principais características dos períodos chamados de Alta Idade Média, Idade Média Central e Baixa Idade Média. 3) Faça uma reflexão acerca das contribuições da Idade Média ao mundo contemporâneo. Fontes e referenciais parao aprofundamento temático História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 30 Anotações 31 o signifiCado do termo BÁrBaro e as CaraCterÍstiCas das invasões Denominam-se bárbaros os diferentes povos que se deslocaram rumo ao ocidente europeu, entre os séculos IV e X. O termo bárbaro já era utilizado pelos gregos num sentido negativo, uma vez que se referia aos povos que não compartilhavam suas tra- dições políticas, econômicas, sociais, religiosas e culturais, ou seja, os estrangeiros ou os não gregos. Esse termo também foi apropriado e utilizado de forma pejorativa pelos romanos, pois era empregado para caracterizar povos que não participavam da cultura ou que não falavam a mesma língua dos romanos. É importante destacar que, embora ainda hoje se utilize o termo bárbaro, ele não pode ser concebido na perspectiva grega ou romana, pois, como veremos, aque- les povos contribuíram de forma positiva para formar o que hoje conhecemos por Europa. Portanto, as referências aos bárbaros utilizadas neste texto não devem ser entendidas como sinônimo de barbárie, mas sim como menção aos diferentes povos ou tribos que adentraram as fronteiras do Império Romano, de forma efetiva, a partir do século V. A expressão Invasão Bárbara também deve ser ponderada com cuidado, já que muitas vezes ela é empregada para marcar somente os aspectos da violência cometida por diferentes povos na destruição do Império Romano. Nesse sentido, devemos en- tender que o contato entre os diferentes povos bárbaros e a civilização romana se deu de diversas maneiras, pois, mais que um assalto repentino e impetuoso, é necessário Alta idade média: as invasões bárbaras e a organização dos reinos germânicos 2 Verônica Ascênsio Ipólito História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 32 entender que o contato entre eles já existia desde longa data, por meio de infiltrações e migrações; porém, como dissemos, acentuaram-se a partir do século V. Segundo Ja- cques Le Goff, esse contato se deu hora ao ritmo de lentas infiltrações e de avançadas mais ou menos pacíficas ora ao ritmo de bruscas arremetidas acompanhadas de lutas e morticínios, a invasão dos Bárbaros modificou profundamente, entre o início do sé- culo V e o fim do século VII, o mapa político do Ocidente, que estava sob a autoridade nominal do imperador bizantino (LE GOFF, 1983, p. 42). Esses povos, que direta ou indiretamente estão associados ao declínio do mundo romano e que contribuíram para a formação da Idade Média, dividem-se em diferentes ascendências, quais sejam: germânicos, celtas, eslavos, tártaro-mongóis e escandina- vos. Embora seja possível estabelecer os diferentes grupos étnicos, é quase que impos- sível traçar com clareza os limites territoriais dessas tribos em contato com o mundo romano, uma vez que, no contínuo processo de caminhada rumo ao território do Império, muitos se fundiram ou foram eliminados por tribos mais poderosas. O que lhes dava certa unidade era o fato de respeitarem o mesmo rei, ou, dependendo das circunstancias, pertencerem a um mesmo exército. invasões bárbaras fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/file:invasions_of_the_roman_empire_1.png Outra dificuldade para se conhecer com exatidão a história desses povos é o fato de que muitos não possuíam registros escritos, o que leva o pesquisador a basear-se em restos arqueológicos e, principalmente, nos relatos de escritores gregos (Piteas, 33 Estrabão, Posidonius, entre outros), latinos (Amiano Marcelino, Tácito, Plínio, entre outros) e cristãos (Santo Agostinho, Salviano, Santo Ambrosio, entre outros). Portanto, numa leitura sobre os povos bárbaros deve-se sempre considerar a origem das fontes, as quais, na maioria das vezes, descrevem esses povos como ignorantes, violentos, desumanos, desprovidos de alma e de fé cristã. Se nos ativermos apenas aos aspectos bélicos travados entre bárbaros e romanos, verificaremos que eles se estenderam por séculos, e revelam como o mapa político do Império Romano foi se alterando nesse processo. A primeira grande confrontação entre o império e os bárbaros de que se tem noticia remonta ao tempo de Marco Aurélio, aproximadamente entre 161 e 180 d.C. Apesar da vitória deste, a pressão das tribos germânicas ao longo das fronteiras dos rios Reno e Danúbio cresceu sem cessar. Portanto, desde o século II os germânicos orientais, formados pelos godos, vândalos, burgúndios e lombardos abandonaram suas terras próximas ao mar Báltico e puseram- se em direção ao sul do continente europeu. No século III os godos invadiram a Dácia, atual Romênia e Moldávia, e a Macedônia. Já os francos e os alamanos devastaram a Gália, a Espanha e o norte da Itália. O historiador Bendriss (2007, p. 16) afirma que as incursões do século III se multipli- caram, e com elas se deu o verdadeiro começo das invasões germânicas. Elas ocorreram em 375, quando os godos, pressionados pelos hunos, dilataram seus territórios para além das fronteiras do Mar Negro. Os visigodos atravessaram o rio Danúbio em 376 e, após derrotarem o imperador Valente, junto a Adrianópolis, no ano de 378, constituíram uma constante ameaça. No ano de 382 foram estabelecidos como federados na província de Mesia, região que hoje compreende a Sérvia e a Bulgária, pelo imperador Teodósio. Nesse sentido, Roma incorporou vários bárbaros como tropas auxiliares, e a partir da segunda metade do século IV se instalaram grupos de origem bárbara nas frontei- ras, com o objetivo de defender as regiões ameaçadas. Em contrapartida, concedeu a esses grupos um pacto (foedus) no qual eles ocupariam terras imperiais sem impostos, em troca de certo número de soldados. São esses os povos que, desde o século II d.C., pressionados por outros povos bárbaros e facilitados pelas próprias mudanças estruturais do Império Romano, co- meçaram a fixar-se no ocidente europeu, e nele manteriam traços da própria cultura, absorveriam aspectos da cultura romana e contribuiriam para a criação de uma nova civilização. Assim, a época das penetrações dos povos bárbaros configura-se como um período de transição entre a Antiguidade e a Idade Média, entre um império com bases políticas, socioeconômicas e religiosas concretas, mas em processo de transfor- mação, e as inovações peculiares dos povos que se assentaram sobre o território, já fora de controle por parte das autoridades romanas. alta idade média: as invasões bárbaras e a organização dos reinos germânicos História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 34 O novo mundo criado está inserido numa dialética entre a continuidade das es- truturas do passado e a mudança para um novo sistema. Nele há que considerar as principais mudanças produzidas ao longo do contato entre bárbaros e romanos, e, especialmente, os aspectos econômicos, sociais, ideológicos e militares, entre outros (SANZ SERRANO, 1995, p. 122-123). CaraCterÍstiCas dos povos germâniCos Neste item discutiremos os aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais dos povos germânicos, os quais eram formados por uma coligação de povos de língua indo-europeia1 originários da Europa setentrional e que habitavam um quadrilátero compreendido entre o Báltico, o Reno, o Danúbio e o Oder. Dentre os principais povos germânicos destacam-se os alamanos, os anglos, os saxões, os bávaros, os bur- gúndios, os francos (ripuários, sálios, sicambrios), os frísios, os godos (ostrogodos, visigodos) os hérulos e os lombardos, entre outros. Abaixo, relacionamos as formas de organização política, social, econômica, cultural e religiosa dos germânicos. Política: Os germânicos possuíam uma organização tribal, e uma vez que entre eles não havia o conceito de Estado, as questões políticas eram resolvidas no âmbito do privado. Eram dirigidos por um rei, que possuía funções guerreira e religiosa, porémnão governava sozinho, uma vez que, nas assembleias, contava com a colabo- ração de guerreiros nas decisões políticas a serem tomadas. Por ser uma coletividade fundamentalmente guerreira, a razão da existência de um germano estava voltada para esse fim. O reflexo dessa vivência estava no refina- mento da fabricação das armas, na educação dos jovens, nas estratégias das batalhas e na estrutura militar. O exército era formado por uma corte ou séquito (comitatus), composto pelos principais chefes e auxiliado por grupos de jovens que haviam pres- tado juramento e lealdade. Criava-se, assim, um setor de pessoas dependentes e um grupo de homens livres para o serviço de armas, na guerra e nas expedições de botim (SONSOLES GUERRAS, 1987, p. 17). Sociedade: O alicerce da sociedade germânica encontrava-se na família. Composta por esposos, filhos e dependentes (escravos e semilivres), era regulada e protegida pela comunidade segundo a tradição de cada tribo. A existência dos indivíduos, nessa sociedade, destacava-se pela linhagem e era assegurada pela tradição. As mulheres ocupavam um lugar de destaque nessa coletividade, principalmente as esposas, por serem responsáveis pela educação e guardiãs da pureza das filhas. O cumprimento 1 Indo-europeu: aplica-se aos diferentes povos da Europa e da Ásia Central que possuem um tronco linguístico comum. 35 dessa obrigação explica-se pelo fato de que as filhas, quando estavam aptas ao ca- samento, por volta dos 15 anos, passavam para a tutela do pai e transformavam-se em verdadeiros “objetos” de vendas ou de trocas, aspecto importante da sociedade germânica, uma vez que servia para selar acordos entre as famílias. Ao homem cabia o comando irrestrito, nessa sociedade. Quando ainda criança, vi- via sob a autoridade do pai. Sua educação estava voltada para os trabalhos domésticos e agrícolas, e principalmente entre os 12 e 15 anos, sob o comando de um guerreiro para aprender a arte da guerra e fundar uma nova família. O topo da hierarquia social pertencia a uma aristocracia formada por homens detentores de grande extensão de terra. Abaixo deles encontrava-se a maioria da po- pulação, formada por homens livres (guerreiros), e por fim os prisioneiros de guerras temporários e os escravos, que trabalhavam para sustentar a todos. Economia: Em certo aspecto, a economia era o reflexo da estrutura social, pois os frutos da terra e os produtos obtidos por meio das guerras eram a base da sobrevi- vência dos germânicos. Embora existissem propriedades privadas, o cultivo do solo e a criação de animais eram realizados de forma coletiva, conforme o solo e o clima de cada região. Principalmente por serem nômades ou seminômades, praticavam uma agricultura adaptada a essa realidade. Nas oficinas os germânicos produziam utensílios para satisfazer as necessidades do- mésticas, indumentárias e jóias para o convívio social; porém, constituíam-se como um dos povos mais avançados na técnica de produção de armas e armamentos de guerra. Cultura: Originalmente os germânicos não possuíam um sistema de escrita pro- priamente dito. A memória era transmitida pela oralidade ou pelas inscrições rúnicas gravadas em armamentos, em adereços ou em pedras tumulares, e elas preservavam a tradição mitológica de cada tribo. Como as runas possuíam características mágico- religiosas, apenas alguns sacerdotes conseguiam decifrá-las. O historiador Georges Duby revela um aspecto importante dessa cultura antes do contato com os romanos: [...] Essas populações dispersas, seminômades, de caçadores, criadores de por- cos e guerreiros têm costumes e crenças muito diferentes. Também sua arte é diferente: não é a arte da pedra, mas a do metal, das contas de vidro, do borda- do. Não há monumentos, apenas objetos que as pessoas transportam consigo, armas, e essas jóias, esses amuletos com que os chefes se enfeitam na vida e que são postos ao lado de seus cadáveres no túmulo. Não há relevos, apenas o cinzelado2. Uma decoração abstrata, símbolos mágicos entrelaçados em que às vezes se inserem as formas estilizadas do animal e da figura humana [...] (DUBY: 1997, p. 20). 2 Cinzelado refere-se à arte feita com cinzel; um instrumento cortante que serve para lavrar ou gravar pedras e metais. alta idade média: as invasões bárbaras e a organização dos reinos germânicos História medieval i: das invasões BÁrBaras ao feudalismo 36 Por serem povos de tradição guerreira, a cultura das diferentes tribos germânicas manifestava as lendas e as epopeias dos guerreiros, principalmente os heróis com po- deres sobrenaturais e descendentes de divindades. Religião: Entre os germânicos não havia uma hierarquia sacerdotal, uma vez que cabia aos chefes das tribos realizar as cerimônias coletivas, e aos chefes das famílias os rituais domésticos, embora entre alguns desses povos existissem “profetas” e ou “pro- fetisas”, que tinham a função de desvendar os mistérios das runas. O nomadismo e o caráter agrário dessas tribos não favoreceram a edificação de templos, como os dos gregos e romanos, ou de igrejas, como as dos cristãos. Suas crenças, associadas à natureza, levavam-nos a adorar as montanhas, os bosques, as fontes, entre outros, assim como ante as mudanças das estações e as forças da natureza exprimia-se o mais profundo sentimento de religiosidade desses povos. Outra característica importante da religião diz respeito à maneira como relaciona- vam as crenças com a guerra. Os germânicos acreditavam que tudo o que foi criado no plano terreno deveria terminar. Ainda assim, a vida teria continuidade após a morte. Por isso, quando faleciam eram incinerados ou enterrados com objetos e utensílios pessoais. Caso fossem mortos em batalhas, os guerreiros seriam recompensados com a promessa de viverem entre os deuses (Walhalla). Seriam levados por donzelas guer- reiras (valquírias), filhas do deus Wotan (ou Odin�)3. Acreditavam que a vida mundana era marcada pela predominância da guerra e da morte. Já a vida após a morte era confortada, por meio da crença, com um mundo de paz, no qual filhos de deuses e os homens ressuscitariam após a guerra final. as relações entre germâniCos e romanos Os germânicos surgiram em meio ao universo dos romanos e migraram em direção ao Império Ocidental. De acordo com Lucien Musset (1968), várias hipóteses podem ser enumeradas para explicar essas migrações, como péssimas condições climáticas na região báltica e na Península Escandinávia, aventura e pilhagem, em decorrência da crença de que os jovens de cada geração teriam que buscar fortuna no exterior fazendo uso de armas. Os atritos mais intensos se iniciaram quando os celtas, povo bárbaro que residia próximo ao vale do Rio Reno, sentiram-se ameaçados pelos germânicos e pediram pro- teção aos romanos. Durante os séculos I a. C e I d. C. os romanos organizaram campa- nhas militares para tentar dominar os germânicos, mas não conseguiram submetê-los. Também os marcomanos, outro povo bárbaro originário dos suevos, estavam 3 Deus protetor do comércio, dos combates e das tempestades. 37 despontando como força poderosa, dominando todos os povos próximos à região da Boêmia. Diante da ameaça desse povo, os romanos e germânicos se uniram, apesar das rivalidades, para conter seu avanço. Essa aliança só foi possível porque os dois povos tinham a necessidade de combater a força estrangeira que ameaçava invadir seus terri- tórios. Mesmo com relações controversas, podemos dizer que as migrações dos povos bárbaros foram marcadas pela luta de romanos e bárbaros contra bárbaros e também de bárbaros contra romanos (LE GOFF, 1983, p. 40). Essa relação recíproca intensificou-se ainda mais com o estabelecimento do limes (limites) no Império Romano, que a partir do século I ficou definido entre os rios Reno e Danúbio. A partir desse momento, os romanos abandonaram o projeto ofensivo
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