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1 HISTÓRIA ANTIGA NELSON DE PAIVA BONDIOLI EDUCAÇÃO A DISTÂNCIAFACULDADE ÚNICA 2 LEGENDA DE Ícones Trata-se dos conceitos, definições e informações importantes nas quais você precisa ficar atento. Com o intuito de facilitar o seu estudo e uma melhor compreensão do conteúdo aplicado ao longo do livro didático, você irá encontrar ícones ao lado dos textos. Eles são para chamar a sua atenção para determinado trecho do conteúdo, cada um com uma função específica, mostradas a seguir: São opções de links de vídeos, artigos, sites ou livros da biblioteca virtual, relacionados ao conteúdo apresentado no livro. Espaço para reflexão sobre questões citadas em cada unidade, associando-os a suas ações, seja no ambiente profissional ou cotidiano. Atividades de fixação sobre o conteúdo visto e aplicado no livro. Apresentação dos significados de um determinado termo ou palavras mostradas no decorrer do livro. Espaço para marcar citações de algum livro, artigo ou site que sustenta e reforça uma ideia. FIQUE ATENTO BUSQUE POR MAIS VAMOS PENSAR? FIXANDO O CONTEÚDO GLOSSÁRIO CITAÇÕES 3 SUMÁRIO UNIDADE 1 UNIDADE 2 UNIDADE 3 UNIDADE 4 1.1 O que é história antiga?.......................................................................................................................................................................6 1.2 Fontes e Metodologias para o estudo sobre antiguidade.......................................................................................8 1.2.1 Particularidades das fontes antigas......................................................................................................................................10 1.2.2 Metodologias para análise das fontes antigas.............................................................................................................13 2.1 Antiguidade oriental: Reflexões históriográficas...........................................................................................................19 2.2 Trabalho e escravidão no oriente próximo.......................................................................................................................22 2.3 Realezas divinas no Egito e Mesopotâmia.......................................................................................................................24 2.4 Estudo de caso:”De Israel aos Hebreus: Narrativa bíblica na construção de uma história polí- tica...........................................................................................................................................................................................................................26 3.1 A Hélade e os Helenos: Os períodos arcaico, clássico e helenístico...............................................................32 3.2. Paideia.........................................................................................................................................................................................................34 3.3 Helenismo..................................................................................................................................................................................................35 3.4. A história e memória na antiguidade grega: Da epopeia à história...........................................................37 3.4.2 História e memória: Escrita e regime de verdade..................................................................................................38 4.1 Introdução.................................................................................................................................................................................................45 4.2 Política..........................................................................................................................................................................................................47 4.2.1 Res Pública............................................................................................................................................................................................47 4.2.2 Principado.............................................................................................................................................................................................49 4.3 Religião........................................................................................................................................................................................................50 4.3.1 Religião Romana, religões de roma...................................................................................................................................50 4.3.2 Cultos imperiais: Roma e as províncias.........................................................................................................................52 HISTÓRIA ANTIGA, DISCIPLINA, PERIODIZAÇÃO E DOCUMENTOS ANTIGUIDADE ORIENTAL - MESOPOTÂMIA, EGITO E OS HEBREUS ANTIGUIDADE CLÁSSICA - O MUNDO GREGO ANTIGUIDADE CLÁSSICA - O MUNDO ROMANO UNIDADE 5 5.1 Introdução..................................................................................................................................................................................................59 5.2 Documentação e cultura material dos estudos celtas............................................................................................61 5.2.1 Cultura Textual: A visão clássica..............................................................................................................................................61 5.2.2 Arqueologia: culturas hallstatt e la tène........................................................................................................................62 5.3 Análise de fontes: “Religião celta e seus sacerdotes”...............................................................................................64 5.3.1 Bardos, duidas e adivinhos........................................................................................................................................................64 5.3.2 Filósofos e educadores.................................................................................................................................................................65 5.3.3 Os mais justos dos homens.....................................................................................................................................................65 5.3.4 Monopólio da ação religiosa...................................................................................................................................................66 5.3.5 Sacrifícios................................................................................................................................................................................................66 5.3.6 Uma instituição centralizada..................................................................................................................................................67 UMA OUTRA ANTIGUIDADE: OS CELTAS UNIDADE 6 6.1 Introdução................................................................................................................................................................................................72 6.2 Usos do passado.................................................................................................................................................................................73 6.3 Teoria da recepção............................................................................................................................................................................74 6.4 Temas de Pesquisa: Estudos de Recepção....................................................................................................................76 6.4.1 Televisão & Cinema.......................................................................................................................................................................766.4.2 Videogames......................................................................................................................................................................................78 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................................................................84 A ANTIGUIDADE HOJE: RECEPÇÃO & USO DO PASSADO 4 UNIDADE 1 Nesta unidade são apresentados temas inicias sobre a Antiguidade, em que fazemos uma discussão historiográfica a respeito do que é a “História Antiga”, bem como tratamos das fontes para seu estudo. UNIDADE 2 Começamos nosso estudo com a chamada Antiguidade Oriental, em que debateremos temas acerca do Egito, Mesopotâmia e dos Hebreus. Ao final desta Unidade apresentamos um “Caso de Estudo”, isto é uma maneira de observamos na prática as questões teóricas que estamos tratando. UNIDADE 3 Nossas investigações históricas a respeito do chamado “Mundo Clássico”, em que discutiremos diversos aspectos relacionados à Grécia Antiga, privilegiando discussões de conceitos essenciais dessas sociedades, bem como a questão da Historiografia Grega. UNIDADE 4 Nesta Unidade trabalharemos com Roma, com maior atenção a dois aspectos que se entrelaçam: a esfera política e a esfera religiosa. Nosso recorte cronológico será aquele do período Republicano e do Principado Romano. UNIDADE 5 Já a unidade 5 traz cada etapa do Processo de Negociação de negociação: planejame Apresentaremos nesta unidade estudos sobre os povos Celta, privilegiando, sobretudo, a discussão a respeito de fontes, apresentando ao final desta unidade uma breve “Análise das Fontes” relativas aos Druidas. nto, abertura da negociação, fase teste/interesse, convicção, ação final/fechamento, avaliação e controle. E por fim a Administração de Conflitos. UNIDADE 6 Na última unidade deste material, trazemos questões relacionadas com a presença do passado em nossas sociedades atuais, e apontando “Temas de Pesquisa” na área conhecida como Estudos de Recepção. C O N FI R A N O L IV R O 5 UNIDADE 1 HISTÓRIA ANTIGA, DISCIPLINA, PERIODIZAÇÃO E DOCUMENTOS 6 1.1 O Q U E É H IS TÓ R IA A N TI G A? “A História não é nunca inocente” Furet, François. Oficina da História. É fácil tomarmos a cronologia como um elemento certo, fechado e definido, como se fosse um dado da natureza: primeiro vem a “Pré-História”, então a “História Antiga” seguida da “Medieval”. Em algum momento encontramos o “Renascimento” na História dita “Moderna”, até chegarmos ao momento mais próximo de nosso presente: a “História Contemporânea”. Nunca nos fora apresentado, em termos de currículo escolar, uma alternativa ou ferramentas que possibilitassem questioná-la. Conforme já apontou Rosa (2013, p. 119): “[...] os “períodos” estão tão naturalizados e tão presentes na base dos currículos de ensino e dos programas de pesquisa, que não costumam ser vistos como (apenas) mais um dos modelos explicativos de que dispomos para organizar nossas investigações”. Em outras palavras, esta cronologia, estas periodizações parecem-nos categorias imóveis e incontestáveis, independentes das orientações e recortes dos historiadores e historiadoras. Tal fato, entretanto, talvez possa ser entendido como mais um elemento constitutivo de nossa própria inabilidade/habilidade humana de lidar com a passagem do tempo: marcamos no relógio e calendário os segundos, minutos, horas, dias meses sem questionarmos tais separações e categorias. Afinal, poderia o tempo ser contado de forma diferente? Oras, e de mesma sorte, quão estranho pareceria questionar que o Antigo vem antes do Medieval? E ambos antes de nosso “tempo” Contemporâneo? Figura 1 - Visão Simplificada das Periodizações Históricas Ao dirigirmos nossa atenção a uma reflexão a respeito da periodização na História, podemos apreciar toda a complexidade – e mesmo simplicidade – que envolve essa distribuição do passado em categorias. É simples, pois se torna rapidamente evidente o caráter arbitrário, político e ideológico que circunda categorias como “História Antiga”, “História Medieval”, “Renascimento” etc. Perguntemos: Onde e Quando começa e termina a História Antiga, ou ainda como alguns chamam, a Antiguidade? É certo que, conforme observaremos, mais de uma resposta pode ser dada – e vem sendo dada –, e encontramos diversas possibilidades dependendo, justamente, de quem pergunta. Começa a Antiguidade na África, na Índia, na China ou nas Américas? Ocorrem elas ao mesmo tempo em que a Antiguidade Greco- Romana? Estava o restante do mundo parado e despovoado durante as Antiguidades Egípcia e Mesopotâmica? Se considerarmos apenas o mundo Greco-Romano, como já questionou Guarinello (2003), seria essa a “História Antiga” da Europa? Ainda que não seja possível nem mesmo observar uma continuidade espacial entre seus territórios no passado e no presente? Por outro lado, a complexidade dessa análise está em uma vez que percebamos sua arbitrariedade, entender como se formam esses modelos explicativos, as maneiras como são capazes de abarcar os variados fatores que influenciam na configuração dessas categorias e sua permanência em nosso imaginário cronológico. Trata-se, pois, de um exercício no tempo 7 e no espaço que, para citar alguns desses fatores, passa por debates dentro de grupos intelectuais, processos e projetos políticos/ indenitários e mesmo sobre a criação e desenvolvimento da própria ideia de uma “História Científica”. Atentemo-nos a esse último elemento. Como já mostrou Geary (2005) é especialmente importante notarmos como a História-Ciência nasce como instrumento dos Estados Nacionais: ela lança as bases das justificativas de sua criação, historicidade e pretensões futura. A História, ou ainda, as narrativas históricas, nesse primeiro momento, são criações sobre um povo e sua cultura, a busca de uma identidade. VAMOS PENSAR? Existem outras formas de datação que não tomam como referência a tradição cristã. Uma outra forma muito popular se marcar datações é através da ex- pressão: “Era Comum”. Assim temos em 44 a.E.C. (an- tes da Era Comum) a morte de Júlio César e a funda- ção de Constantinopla no século IV E.C. (Era Comum). Você conseguiria pensar em outras formas de data- ção que não referenciam a tradição cristã? Dosse (2017, p. 07) indica a mesma conjunção entre História e nacionalismo, em que: O historiador detinha então uma autoridade inconteste, situando-se no mais elevado nível das posições de poder. Durante um século [XIX] uma verdadeira sobreposição de consciência nacional e discurso historiográfico constituía a base da função que parecia natural ao historiador: missão patriótica, em que ele era meio sacerdote, meio soldado. Nesse mesmo sentido, Furet (1982) quem nos aponta para um elemento importante: é na França da Restauração que encontramos as primeiras tentativas de se estabelecer um ensino sistemático e cronológico sobre a história, mostrando como um texto de 1814 que: [...] divide o ensino da história em fatias cronológicas para as aulas dos liceus e dos colégios: história sagrada no primeiro ano, Egito e Grécia no segundo, Roma (até o Império) no terceiro, de Augusto a Carlo Magno no quarto, a idade média no quinto, Tempos modernos e história da França no sexto (FURET, 1982, p. 123) Nesse excerto podemos observar os contornos que moldam nossa própria disciplina, especialmente no que tange o seu Ensino. Mas notemos que as preocupações demonstradas nessa separação, como sempre afirmamos, não são despretensiosas: há uma clara ênfase pelo aspecto político, a segmentação da história pelos “Grandes Homens”, e pela força da tradição católica – perceba que ainda hoje, usa-se muito como forma de datação “antes” e “depois” de Cristo – noções e elementos que continuam a aparecer na atualidade, ainda que hoje sejam feitos maioresdebates. Voltemo-nos, porém, a pensar a “História Antiga”, sob esses aspectos, nos perguntando a respeito de sua periodização e os conceitos que abrange. Em primeiro lugar, como afirmamos, é comum que o conceito de História Antiga acabe sendo traduzido como o período relativo à Antiguidade Greco-Romana. Mas rapidamente percebemos seus motivos: Se a história científica moderna, conforme observado, nasce como esse instrumento dos Estados Nacionais que faz dos historiadores “meio soldados, meio sacerdotes”, qual a surpresa em percebermos que a identidade buscada é aquela que está naquelas “raízes da Europa”, dita dos povos “civilizados” cujo legado é a “cultura ocidental”? História Antiga é assim, vista com uma introdução ao momento “atual”, é a nossa história mais afastada no tempo, a partir de um marco cultural: a escrita. Afinal, a escrita da história era especificamente vista como feita com fontes documentais. Devemos notar que há também uma imposição espacial nessa nossa história: a forma de construção da narrativa histórica cronológica é a narrativa do apogeu do 8 Estado Nacional, e assim percebemos um movimento que nasce no Oriente em direção ao Ocidente: da Mesopotâmia e Egito, para as hegemonias gregas e então romanas, os “verdadeiros antepassados”. Esse caso é sintomático mesmo em nosso Brasil: tendo a elite intelectual brasileira construído sua identidade a partir do “descobrimento” e, portanto, por uma orientação europeia, a História Antiga aqui, até muito recentemente fora ensinada e aprendida como a antiga história da Europa, não havendo espaço, por exemplos, para a história dos nossos povos nativos, uma História Antiga do povo Tupi, por exemplo. A partir desta observação é possível entendermos por- que se critica o ensino de “História do Brasil”, como uma perspectiva Eurocêntrica e Ocidentalizada: isto é, que si- tua o Brasil a partir de uma História Europeia, sem levar em consideração a existência de populações nativas, anteriores ao “Descobrimento”. FIQUE ATENTO Observamos, entretanto, que há atualmente diversas tentativas de se afastar desse modelo europeu de História Antiga, como mostraram Savant e Hirscheler (2014) reinserindo a imaginação geográfica como uma categoria crucial de análise ou, em outras palavras, quebrando com as ideias de histórias universais e teleologias na criação de modelos interpretativos sobre o passado. Especificamente no que tange a História Antiga, essa reinserção da geografia e desestabilização da hegemonia europeia deu origem a uma separação entre duas categorias: Ocidente e Oriente, de modo que encontramos – inclusive atualmente nos diversos currículos universitários – a separação entre disciplinas de História Antiga “Oriental” e “Clássica”. Embora proponham retirar da agenda do historiador o compromisso com as identidades nacionais, essas periodizações ainda acarretam dois grandes problemas. O primeiro é que, ao seu próprio modo, ainda lidam com uma metanarrativa que movimenta a história do Oriente ao Ocidente. O oriental é também um/o Oriente próximo: os estudos nessa área são invariavelmente sobre Egito e Mesopotâmia. Onde está o restante do mundo? O segundo problema, e talvez mais perigoso, é a reificação do “lugar” das sociedades, isto é, ao estipularmos categorias como Oriente e Ocidente, acabamos por congelar o passado, em uma visão isolacionista do desenvolvimento das várias sociedades antigas. As trocas culturais entre povos distintos são pouco observadas. Afinal, onde estão, por exemplo, as civilizações da Mesopotâmia ou do Egito, durante a ascensão de Atenas ou durante o Império Romano? Sumiram do tempo e do espaço? Quando muito, sendo o Egito lembrado devido a figura de Cleópatra. E o que dizer das culturas milenares das regiões que hoje chamamos de China, Índia ou Japão, completamente ignoradas? Devemos compreender, é verdade, necessitamos fazer recortes em pesquisas históricas, tanto temporais quanto geográficos, cujas formas de escolha dependem do/a próprio/a historiador/a. Seriam então todos esses problemas apontados, apenas um problema de nomenclatura? Não. Deveríamos proclamar o fim da “História Antiga”: talvez. Enquanto unidade genérica e representativa de uma universalidade, certamente deveria ser cancelada. A Antiguidade é múltipla, e ela é viva. Os povos não desaparecem ou deixam de ser “importantes” com a passagem do tempo. O contato entre as diferentes culturas é intenso e recorrente. Não existe um movimento histórico do Oriente para Ocidente, se não no recorte específico de quem assim o queira ver. A partir desta observação é possível entendermos porque se critica 9 o ensino de “História do Brasil”, como uma perspectiva Eurocêntrica e Ocidentalizada: isto é, que situa o Brasil a partir de uma História Europeia, sem levar em consideração a existência de populações nativas, anteriores ao “Descobrimento”. Metanarrativa é o termo utilizado para se referir a nar- rativas que visam fazer explicações universais, abarcan- do todo um conteúdo, muitas vezes, como uma forma de impor uma verdade absoluta. GLOSSÁRIO História Antiga continua a existir, porém, enquanto marcação quando bem definida no tempo e no espaço: História da Roma Antiga no Período Imperial, A História de Atenas do século V a.E.C. ou a História dos Povos Celtas da Gália dos séculos III ao IV a.E.C. Porque o problema, apesar de parecer linguístico, é de um enfretamento político de nossa atualidade. História Antiga, conceito imbuído de ideologias, não se desprende de lutas maiores pela emancipação: Correntes pós-modernas e pós-coloniais que o digam. Assim, seria sim ideal que na construção de nossos modelos interpretativos ficassem explícitas as escolhas realizadas pelo (as) historiador (as), desnaturalizando o tempo e o espaço, e identificando-os como recortes subjetivos. 10 1.2 F O N TE S E M E TO D O LO G IA S P A R A O E ST U D O S O B R E A N TI G U ID A D E “Não há relato histórico sem documentos” Lefebvre (1971) A pesquisa histórica a respeito da Antiguidade – seja essa “Oriental” ou “Ocidental” – passa, necessariamente, pela análise dos documentos disponíveis: dos textos à cultura material, encontramos diversas fontes que podem ser utilizadas pela historiadora e pelo historiador. Devemos, no entanto, indagarmos de pronto, de um lado, o que são essas fontes, assim como, de outro lado, investigarmos a sua disponibilidade ao historiador\a. Em outras palavras, o documento deve ser problematizado em duas vias: uma que diz respeito a crítica documental e, como expôs Le Goff (1982) outra em relação às suas condições de produção [e manutenção] histórica. A necessidade dessa dupla indagação se dá pelo fato de entendermos que os documentos não são “inocentes” e nem mesmo possuem uma existência objetiva, independente das relações de poder existente nas sociedades históricas que os criaram e os mantiveram. Como aponta Batstone (2009, p. 27), acreditar que os documentos que temos disponíveis não sejam o resultado de, de um lado, uma violência ideológica e, de outro, o próprio acaso, é acreditar que durante muitos anos “nada aconteceu” ou mesmo que em determinadas épocas as mulheres não existiram. Le Goff (1982, p. 114), nesse sentido, faz uma síntese do documento: “É o resultado do esforço realizado pelas sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias”. Como deve então proceder o historiador e a historiadora em sua pesquisa sobre a Antiguidade? De que formas deve trabalhar seus textos e artefatos na análise que se propõe desse passado? Para responder a essas perguntar devemos, em primeiro lugar, compreender as especificidades das fontes antigas. 1.2.1 PARTICULARIDADES DAS FONTES ANTIGAS Quando trabalhamos com fontes da Antiguidade, duas categorias extremamente amplas edistintas estão disponíveis: Em primeiro lugar, e comumente usada nas pesquisas históricas, encontramos textos; escritos que, de maneira geral, são o produto de uma elite intelectual que escreve para a própria elite (MARINCOLA, 2009, p. 13-14). Figura 2 - Exemplos de Edições das Bibliotecas Les Belles Let- tres e Loeb Classical da obra de Júlio César, Guerra da Gália Nesse sentido, encontramos obras sobre diversos temas, como oratória, costumes, religião, política, biologia, filosofia, e mesmo história, espalhadas por todo o período da Antiguidade, sobretudo clássica. 11 Atualmente, diversos textos antigos podem ser consul- tados de forma legal e gratuita, nas línguas originais como Latim e Grego, e suas traduções, principalmente para o inglês. Conheça esse projeto: Perseus Digital Library LINK: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/ Além disso é possível encontrar excertos de diferentes textos antigos compilados em livros: 100 Textos de História Antiga – Jaime Pinsky LINK: https://plataforma.bvirtual.com.br/Acervo/Publica- cao/3477 BUSQUE POR MAIS Diz Hartog (2011, p. 20), especificamente em um estudo sobre os historiadores greco- romanos antigos, que a “historiografia é sempre história da história da história”, querendo dizer com isso que as Histórias escritas no passado são sempre um contar a partir de outra produção. O que chega a nós não são, portanto, dados brutos e objetivos: não são “eventos”, mas uma produção política e cultural posicionada sobre acontecimentos passados. São discursos construídos e reconstruídos com determinados fins – em uma metáfora, o que chega a nós não é o petróleo bruto do passado, mas seus derivados refinados, como a gasolina. Mas não apenas as Histórias devem ser observadas sob esse aspecto: todo texto, todo escrito da Antiguidade é sempre um posicionamento, uma imposição de uma imagem, elemento esse que os antigos estavam bastante cientes: Quem poderia acusar Aristóteles, Tucídides, Júlio César ou Cícero de ingenuidade na construção de suas obras? Em relação a esse tema, podemos retomar um dos grandes nomes da historiografia: Finley (1994). Em seu livro História Antiga: Testemunhos e Modelos, notamos a importância que o autor faz da distinção entre “testemunhos oculares” e “posteriores”, ou ainda, uma distinção entre “fontes primárias” e “derivadas”. Entendemos, entretanto, e conforme estamos expondo, que essa é uma distinção de pouca utilidade para o historiador atual, pois enseja uma ideia de “verdade” ou objetivação de “fatos e eventos” narrados da qual discordamos. Para Finley é como se, por exemplo, o valor da obra de Tito Lívio sobre períodos antigos da República Romana fosse menor – ou mais falsa – do que a escrita de Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso, pois este teria participado da mesma, enquanto Tito Lívio, estaria apenas trabalhando com documentos e memórias distantes. Sabemos, entretanto, que o relato do historiador grego não é mais “verdadeiro” ou “verossímil” que a obra de Lívio sobre a fundação da República Romana: ambas retratam posicionamentos específicos do que seus autores queriam expressar para a sua audiência. Nem Lívio, nem Tucídides trabalham com fatos ou verdades, ambos escrevem apenas as suas reflexões sobre esses eventos, discursos sobre o passado e o presente: história da história da história. A segunda categoria de fontes disponíveis é o que chamamos por cultura material: e adentramos em um terreno absolutamente extenso que passa pela análise de construções/monumentos e sítios arqueológicos, artefatos como cerâmica, armamentos, roupas, alimentos, joias, moedas e etc. enfim, um número absolutamente vasto de objetos que podem auxiliar aos historiadores (as) e aos arqueólogos (as). SCANEIE O CÓDIGO E ACESSE O LINK 12 VAMOS PENSAR? Com o advento da internet e grandes esforços de di- gitalização ficou muito mais fácil trabalhar com di- versos artefatos da cultura material. Você sabia, por exemplo, que existem bancos de dados com extensos catálogos de inscrições e arquivos numismáticos de livre acesso aos usuários? CIL - Corpus Inscriptionum Latinarum: LINK:https: //arachne.uni-oeln.de/drupal/?q=en/ node/291 OCRE – Online Coins of the Roman Empire: LINK: http://numismatics.org/ocre/ Figura 3 - Exemplos de fontes da Cultura Material: moedas, sítios arqueológicos e Vasos Canopos Embora comumente relegadas ao domínio da Arqueologia, as fontes materiais também fazem sim parte da busca do/a historiador/a, algo que os próprios fundadores dos Annales já haviam expressado: “A História faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem” (LE GOFF 1982, p. 107). Bloch (2002, p. 80) expressa pensamento semelhante em sua Apologia da História: Que o historiador das religiões se contentaria em compilar tratados de teologia ou coletâneas de hinos? Ele sabe muito bem que as imagens pintadas ou esculpidas nas paredes dos santuários, a disposição e o mobiliário dos túmulos têm a lhe dizer sobre as crenças e as sensibilidades mortas quanto muitos escritos. Como aponta Funari (2005) sempre que possível é importante explorar as diferenças e contradições entre fontes escritas e materiais. É necessário, contudo, ter em mente que as fontes materiais não estão disponíveis como mera “colaboração/corroboração” para uma pesquisa feita com textos. Elas possuem uma orientação própria e carecem de modelos interpretativos próprios. De fato, a fonte material conta com um elemento importante: “podem fornecer indícios de conflitos e resistência, em geral subestimados pela literatura produzida pelos letrados” (FUNARI, 2005, p. 102). Esse elemento é especialmente significativo uma vez que as fontes materiais podem fornecer possibilidade para análise de grandes grupos populacionais e as “massas” frequentemente esquecidas ou tratadas com desdém pela elite letrada. Devemos, contudo, esclarecer que a fonte material não é, de forma alguma, menos posicionada ou mais “explícita” que a documentação textual. Como mostrou Hartog (2011) assirologistas já chamaram a atenção para o fato de que as inscrições contendo a “Lista de Reis” sumérios, longe de ser “um documento “bruto”, era o resultado de uma compilação e o produto de uma fabricação, para não dizer, de uma falsificação, elaborada em um momento que pode ser datado: a primeira dinastia de Isin”. Continua Hartog (2011, p. 52) Longe de ser a primeira escrita de escribas arquivistas, encarregados do registro, ela é já, o de saída, reescrita (...) de um poder que procura, acima de tudo, fundir fontes diversas em um todo único e sobretudo contínuo. Em vez de um documento, trata-se do monumento de um poder novo que, proclamando a própria legitimidade e justificando suas ambições escreve já sua história. Feitas essas considerações a respeito das fontes antigas, passaremos agora a explorar alguns modelos de análise utilizados hoje pelos historiadores. SCANEIE O CÓDIGO E ACESSE O LINK 13 1.2.2 METODOLOGIAS PARA ANÁLISE DAS FONTES ANTIGAS Considerando, especificamente as fontes textuais, que como mostramos se tratam de posicionamentos políticos e culturais, uma das principais ferramentas disponíveis ao historiador é a Análise de Discurso, que pode ser compreendida de diferentes formas conforme obras de Foucault ou Norman Fairclough, entre outros. Para Foucault (2009), o discurso é um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva. Esse conjunto deve ser observado do ponto de vista: Histórico – fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo (FOUCAULT, 2009, p. 132-133). O discurso,nessa perspectiva, é indissociável do contexto em que foi produzido, um contexto que possibilita ou proíbe sua realização. Ainda em relação a essa ideia, percebemos que o discurso é uma prática, que constrói seu sentido na articulação desses enunciados. As práticas discursivas, desse modo, são fundamentalmente dependentes do contexto que lhe dá significado e é importante que percebamos nessas práticas como o enunciador: Lança mão de estratégias argumentativas e de outros procedimentos da sintaxe discursiva para criar efeitos de sentido de verdade ou de realidade com vistas a convencer seu interlocutor. [...] organiza sua estratégia discursiva em função de um jogo de imagens: a imagem que ele faz do interlocutor, a que ele pensa que o interlocutor tem dele, a que ele deseja transmitir ao interlocutor etc. É em razão desse complexo jogo de imagens que o falante usa certos procedimentos argumentativos e não outros (FIORIN, 2004, p. 18). Nesse sentido, quando falamos da análise de discursos e de práticas discursivas, propõe-se entender as estratégias de persuasão dos variados autores da antiguidade em seus textos. O/A historiador/a deve buscar compreender os objetivos desses discursos, os resultados almejados – se possível, alcançados – dessas práticas discursivas. Assim, dentro dessa perspectiva, podemos entender a horizontalidade das fontes, em relação a uma possível diferenciação entre “primárias” e “derivadas”: tendo como objetivo entender as estratégias de persuasão dos autores e seus objetivos, não se busca uma “realidade” ou “evento real” nos documentos, mas trabalhamos justamente com as construções ideológicas, políticas e etc. nelas contidas. Desse aspecto, percebemos que tanto como Tito Lívio quanto Tucídides são importantes não pela sua “veracidade” em relação aos fatos narrados, mas na intencionalidade de suas construções, não necessariamente pelo o que é narrado, mas o porquê é narrado e para quem. Em relação a metodologias para análise da cultura material há uma grande variedade de modelos, a maioria advindos da própria Arqueologia, para a interpretação dos artefatos. Podemos encontrar, como mostra Renfrew & Bahn (2005), teorias que passam da Caracterização (que foca nos aspectos materiais constitutivos do artefato, por exemplo, de onde a matéria prima teria sido retirada e trabalhada para a construção do objeto) que possibilita uma análise das técnicas utilizadas no passado assim como sugerir redes de troca e comércio, ao modelo de Peer Polity Interaction (Interação entre Comunidades Paritárias, que reflete sobre a mudança política e econômica) sendo o modelo predominante na compreensão do desenvolvimento de Creta no período Minoico. A Semiótica é também uma importante ferramenta de análise de materiais, e especialmente, imagens. Assim 14 como a Análise de Discurso, a Semiótica possui diversas teorizações, como de Ferdinand de Saussure, Julius Greimas e Umberto Eco, que podem ser utilizadas e seguidas pelo/a historiador/a em sua análise. A semiótica é uma área em que encontramos uma gran- de diversidade, tanto em aspectos teóricos quanto prá- ticos! Ficam aqui boas sugestões de leitura sobre este tema, das suas bibliotecas: Semiótica Aplicada – Lucia Santaella LINK:https: //integrada.minhabiblioteca.com.br/#/ books/9788522126989/ Semiótica: Objetos e Práticas – Ivã Carlos Lopes e Nilton Hernandes LINK: https://plataforma.bvirtual.com.br/Acervo/Publica- cao/1230 BUSQUE POR MAIS Um último e importante ponto a ser lembrado quando tratamos de artefatos é que tal qual as fontes documentais, é necessário que eles não sejam analisados descontextualizados. Um objeto enterrado, por exemplo, deve levar em consideração para sua análise outros objetos que tenham sido depositados em conjunto, o local em que foi encontrado e que tipo local se refere, por exemplo: seria um cemitério, um templo, uma casa comum, um quartel? Todos esses elementos básicos, são necessários para uma análise e interpretação adequada do material. Na busca de ferramentas interpretativas aos artefatos, terminamos esta unidade com o conselho do professor Pedro Paulo Funari que sugere aos historiadores “promiscuir-se com as teorias sociais” (2005 p. 94) associando a sua análise diversas “leituras de caráter metodológico, antropológico, sociológico e filosófico que devem ser feitas pelo pesquisador”. SCANEIE O CÓDIGO E ACESSE O LINK 15 FIXANDO O CONTEÚDO 1 - A respeito da periodização da História, observe as assertivas a abaixo e assinale a alternativa correta. I- A periodização é a forma lógica e natural de divisão do tempo em categorias, livre de qualquer fundamentação ideológica. II- O conceito de História Antiga é vago e impreciso, sendo necessário explicitar, no tempo e no espaço, a qual Antiguidade está se referindo. III- A Periodização tradicional toma como referência as ideias de “Grandes Eventos”, “Grandes Homens” e é profundamente influenciada pela tradição Cristã. a) I e II são verdadeiras. b) II é a única verdadeira. c) III é a única verdadeira. d) II e III são verdadeiras. e) I, II e III são verdadeiras. 2 - Na historiografia dos séculos XVIII e XIX, era possível observar a respeito da ideia de “História Antiga” principalmente um movimento: a) partindo do Ocidente para o Oriente, este último visto como o último grau de elevação civilizatória. b) de baixo para cima em que o principal vetor de ação social na Antiguidade eram as massas. c) partindo do Oriente movendo-se para o Ocidente, iniciando-se na Mesopotâmia e ao Egito, chegando ao mundo Greco-Romano, visto como a raiz da civilização atual. d) de cima para baixo, em que a elite estava preocupada com a educação das massas, de maneira que sua produção intelectual se direcionava a elas. e) não há nenhum movimento, tendo em vista que a ideia de movimentos na história é exclusiva de uma perspectiva Marxista. 3 - A Respeito da conceituação de “Antiguidade Oriental”, observe as assertivas a abaixo e assinale a alternativa correta. I- Reflete o avanço historiográfico nos debates acerca da necessidade de se especificar os recortes quando trabalhamos com a História Antiga. II- Mantém ainda alguns problemas de precisão, uma vez que em geral, refere-se somente ao Oriente Próximo, não abrangendo áreas de estudos como China e Índia. III- Pode levar a uma noção ainda isolacionista da História, em que os povos após dado momento “desaparecem” ou “deixam de ser importantes”, não mantendo mais contato com outras culturas. a) I e II são verdadeiras. 16 b) II e III são verdadeiras. c) I e III são verdadeiras. d) I, II e III são verdadeiras. e) I, II e III são falsas. 4 - Considere as seguintes assertivas e assinale a opção correta. I- Devemos estudar o Império Romano, compreendendo-o como História Antiga da Europa, uma vez que existe perfeita continuidade espacial entre estas duas regiões. II- Estudar a Antiguidade Clássica no Brasil é uma questão essencial de nossa identidade, tendo em vista que nossas raízes estão unicamente na Europa, devido à nossa colonização Portuguesa. III- A História antiga era vista como introdução de nosso momento atual, tomando como marco cultural o uso de ferramentas e o início da agricultura. a) I é verdadeira. b) I e II são verdadeiras. c) III é verdadeira. d) I, II e III são verdadeiras. e) I, II e III são falsas. 5 - As principais fontes que temos para trabalhar com a Antiguidade são: a) Fontes Textuais e a Cultura Material. b) Fontes Internas e Fontes Externas. c) Fontes Primárias, Secundárias e Terciárias. d) Memórias e Tradições orais. e) Sítios Arqueológicos. 6 - Podemos afirmar acerca da Documentação a respeito da Antiguidade que: a) documentos são todos de um mesmo gênero: história, pois não havia diversidade nas formas de escrever na antiguidade, seja essa clássica ou oriental. b) eram escritos de uma elite que escrevia para si mesma, tendo em vista haver apenas uma ínfimaparte da sociedade que era alfabetizada. c) os documentos chegaram a nós sem passar por nenhuma modificação, já que as condições de manutenção de documentos históricos são sempre as mesmas. d) representam a realidade daquelas sociedades, pois, tendo sido escritos naquele período, trazem verdades e fatos sobre o que realmente aconteceu. e) tratam-se, em grande parte, de falsificações realizadas no século XX, em que determinados grupos sociais resolveram impor novas visões sobre o passado. 7 - A Importância da Análise de Discurso para compreensão dos documentos Antigos reside no fato que: a) esclarece a verdade dos fatos, de modo que é possível discernir entre aquilo que realmente aconteceu e não aconteceu. b) evidencia a intencionalidade de certas narrativas, de modo que nos permite fazer as 17 principais perguntas sobre um determinado texto: porque algo foi dito, e para quem. c) na antiguidade o discurso era a segunda mais importante forma de comunicação, sendo o canto e a poesia lírica em primeiro lugar. d) nega o caráter político e ideológico dos textos antigos, atribuindo-lhes valores bem definidos e universais. e) garante ao pesquisador uma metodologia de trabalho que não é passível de erros, ou interpretações equivocadas. 8 - A respeito da Análise de artefatos da Cultura Material, podemos dizer que a melhor forma de realizá-la é: a) considerar o seu contexto, analisando o objeto de forma única, pois cada artefato tem a capacidade de falar por si mesmo, independentemente de outros fatores. b) desconsiderar o contexto, analisando o objeto de forma única, cabendo ao historiador trabalhar com diversas teorias sociais para interpretar essas fontes. c) considerar o seu contexto, analisando objetos que foram encontrados em conjunto, realizando questionamentos sobre o local em que foram encontrados e outros elementos. Cabe ao Historiador trabalhar com diversas teorias sociais para interpretar essas fontes. d) a análise de artefatos é função exclusiva do Arqueólogo, não sendo lícito ao historiador estudar e utilizar esses materiais em suas pesquisas. e) considerar em primeiro lugar sua relação com a fonte textual, uma vez que essa possuí primazia no interesse do historiador, devendo comparar se o objeto corrobora ou discorda do texto. 18 UNIDADE 2 ANTIGUIDADE ORIENTAL – MESOPOTÂMIA, EGITO E OS HEBREUS 19 2. 1 A N TI G U ID A D E O R IE N TA L: R E FL E XÕ E S H IS TO R IO G R Á FI C A S Falar de Antiguidade Oriental é uma questão de grande complexidade que começa com a própria terminologia adotada, devido à falta de clareza e conceituação do termo “Oriental”. A primeira pergunta que se coloca, portanto, é o que está sendo chamado de “Oriente / Oriental”, tendo como corolário as questões sobre onde ele se encontra e quais suas implicações. Como foi observado na Unidade 01, a “Antiguidade Oriental” apareceu representada como um espaço dentro do discurso historiográfico – e não um espaço real – em que se enfatizava o passado das civilizações que habitaram um chamado “Oriente Próximo”, focando nos povos do Egito e da Mesopotâmia e, em geral, ignorando todo o restante do continente asiático. Podemos dizer que esta historiografia dos séculos XVIII e XIX fora sobretudo, retomando o conceito de Said (1990) Orientalista. Mas o que significa dizer isso? De maneira mais abrangente, se entende por Orientalismo como o longo processo através do qual o Oriente, para além de uma posição geográfica, foi construído e constituído ideologicamente, e mesmo reorganizado materialmente, por acadêmicos ocidentais. Como é possível observarmos essa construção? Pois bem, se nos lembrarmos das discussões realizadas a respeito do papel da história na constituição das identidades, e o foco mundo Greco- Romano enquanto berço da civilização, tanto Egito quanto Mesopotâmia, por exemplo, encontravam-se relegados a um segundo plano narrativo que, frente a uma ideia de desenvolvimento linear no tempo, concebe antecedência cronológica como equivalente à defasagem cultural – em outras palavras, a Cultura era vista também como evoluindo com a passagem do tempo, do mais bárbaro ao mais civilizado. Nesse sentido, note como fora um grande ponto de discussão a respeito do Oriente Antigo, o fato de não apenas não haver o desenvolvimento de um “sistema democrático” – uma “inovação Grega” – em suas sociedades, mas como as próprias relações entre o político e o religioso “as realezas divinas” orientais (BRISCHE, 2008), acabavam por justificar uma hierarquização de valores e reificação de lugares, que como apontou o próprio Said (1990) fez com que o Oriental fosse visto como passivo e submisso, necessitado de ser dominado e controlado. Ainda nesta perspectiva Orientalista, no que diz respeito ao uso e manipulação de fontes e abordagens, existe o problema da fetichização/exotização do “outro” em objetos e artefatos que tomam caráter metonímico, ao lado de suas formas de recepção e consumo no Ocidente. De um lado, a questão da existência de diversos materiais espalhados em solo europeu e americano, por exemplo, em disputa com os países de origem (como, por exemplo, o Egito) que solicitam sua devolução é um atestado da manutenção de práticas coloniais antigas. Por outro lado, e mais relevante sob o ponto de nossa análise, o deslocamento de artefatos e suas exibições, seja como do célebre Obelisco de Luxor – ícone religioso que se encontra em uma praça pública em Paris – seja das disposições das coleções em museus são sintomáticos dessa fetichização do outro da qual decorre uma curiosa ambiguidade: cada objeto é colocado como representativo de culturas inteiras, mesmo estando por vezes no limiar do “epifenômeno negligenciável”. 20 Metonímia é a figura de linguagem que consiste em to- mar uma coisa pela outra, ou ainda, uma parte pelo seu conjunto. Nesse sentido, o caráter “metonímico” do obje- to, é quando tomamos um único artefato ou fato como representativo de toda uma cultura, povo, período etc. GLOSSÁRIO Figura 4 - Obelisco de Luxor: Retirado do Egito em 1823, e atualmen- te na Praça de la Concorde em Paris Neste exato sentido que encontramos as tradicionais exibições de múmias egípcias em sarcófagos abertos e que ainda por cima contam com a exposição de objetos ao seu redor que não possuem nenhuma ligação com a múmia em questão ou o local de seu descobrimento, sendo especialmente comum em relação a exposição de vasos canopos (OSBORNE, 2004). Da mesma forma podemos refletir sobre a reconstrução do palácio de Sargão II: Durr-Sharrukin, espoliado por franceses e americanos entre os séculos XIX e XX, resultando hoje nas exposições de estátuas em baixo-relevo no Museu do Louvre “Cour Khorsabad” e no Instituto Oriental de Chicago. Perguntamos: Qual o papel da exibição dos restos mumificados que jamais foram vistos em suas próprias sociedades, ou dos Lamassus nas portas da seção das Antiguidades Orientais do Louvre? Existe algo além de um prazer voyeurístico dos visitantes em saciar sua sede pelo exótico ao ver estes objetos ou restos mumificados que jamais foram criados ou pensados para este fim? Figura 5 - Cour Khorsabad, Louvre Esses são exemplos claros de como as sociedades do Egito e da Mesopotâmia são reconstruídas e representadas/reapresentadas a partir de decisões e delimitações que são basicamente ocidentais e fornecem assim, um conhecimento que é na verdade Orientalizado sobre o passado. Apesar do quadro exposto, devemos observar que nem todo conhecimento sobre a Antiguidade Oriental é, necessariamente, fundamentado no orientalismo, existindo uma grande produção histórica, principalmente no tempo recente, que permite conhecermos mais sobre esse passado sem subjugá-lo. De um lado contamos, por exemplo, com uma extensa produção de acadêmicos egípcios que fazem parte de uma “tradição” de formados pela Universidade do Cairo. Compondo-se especialmentede arqueólogos tais como Selim Hassam e Ahmed Moussa (que trabalharam nas décadas entre 30 e 70), e mais recentemente Mamdouh Eldamaty e Zahi Hawass, em que é possível perceber em suas obras um forte senso de valorização da história do Egito Antigo não o colocando dentro do movimento Ocidente-Oriente que observamos anteriormente. Por outro lado, contamos também com a produção da comunidade internacional e inclusive brasileira, que tem se preocupado em não cair nos erros orientalistas de análise. No que diz respeito da historiografia brasileira, podemos chamar à atenção o livro organizado por Pozzer, Silva e Porto (2013), Um outro Mundo Antigo, em que diversos pesquisadores apresentam suas contribuições sobre a 21 Antiguidade Oriental. Existem dois pontos a respeito dessa obra que são particularmente importantes para mencionarmos. Primeiro, em consonância com que estamos afirmando a respeito de perspectivas não-orientalistas no estudo dos povos do Egito e Mesopotâmia, os autores apontam para necessidades de abordagens plurais, não apenas trazendo temas pouco explorados, mas também no próprio sentido de integração e formação de redes de relações culturais entre esses povos. Notamos assim, um considerável esforço para se afastar daquela visão isolacionista do passado ao qual nos referimos e a tentativa de compreender a dinâmica social, política e econômica que ligava essas regiões – não só entre si, mas também com o próprio “mundo ocidental”. O segundo elemento que devemos mencionar é o fato de haver uma tentativa de inclusão do restante da Ásia em uma visão de Antiguidade Oriental. Ainda que possamos considerar uma dada timidez – dos onze capítulos da obra, apenas dois fazem análises sobre a Índia e um sobre a China – é uma importante quebra com o paradigma reinante que compreende alguma espécie de muro intransponível ao leste do Rio Tigre, embora ainda estejamos distantes de uma visão de integração e formação de redes também com essas civilizações da Índia, China e além. Nesta Unidade, considerando-se especialmente questões de limitação física do material de estudo, privilegiaremos uma análise comparativa entre diferentes povos do Oriente Próximo, deixando claro, porém, que a Antiguidade Oriental não se resume a eles, convidando os estudantes a continuarem seus estudos com outras bibliografias. 22 2. 2 TR A B A LH O E E SC R A V ID Ã O N O O R IE N TE P R Ó XI M O Os temas da escravidão e do trabalho entrelaçam-se de maneira clara na Antiguidade, tanto para o que chamamos de “Oriental” quanto “Clássica” embora, seja muito mais analisado em relação a essa última. É importante percebermos de pronto que, e como todos os demais aspectos da vida na Antiguidade, o trabalho e a escravidão são marcados por nada senão a pluralidade e a diversidade de formas com que foram pensados, encarados e implementados nas diversas sociedades espalhadas no tempo e no espaço. Por um lado, é possível fazermos uma generalização básica, como nos mostra Warburton (2005, p. 169), que “as economias da antiguidade são caracterizadas como agrárias”: da Suméria à Roma Imperial, encontraremos a dependência básica da sociedade na produção agrícola para tanto sua estabilidade quanto desenvolvimento. Por outro lado, como aponta Zuiderhoek (2013), a produtividade agrícola era baixa e necessitava do emprego da grande maioria das populações do mundo antigo na produção de alimentos primários, e condenava a vasta maioria de indivíduos para um padrão de vida não muito acima do que a subsistência”. Por um lado, é possível fazermos uma generalização básica, como nos mostra Warburton (2005, p. 169), que “as economias da antiguidade são caracterizadas como agrárias”: da Suméria à Roma Imperial, encontraremos a dependência básica da sociedade na produção agrícola para tanto sua estabilidade quanto desenvolvimento. O trabalho escravo, entretanto, não necessariamente se reduziria a condução desses trabalhadores somente aos campos, podendo também ser empregada nos projetos das grandes construções, especialmente de templos. Nesse mesmo sentido, porém, é preciso observar que em diversos períodos a maior parte da mão-de-obra eram os próprios camponeses. Apesar de ser um tropo comum em imagens atuais sobre o Egito, as Grandes Pirâmides não foram cons- truídas com base no trabalho escravo. De fato, como diversas pesquisas demonstraram, as Pirâmides fo- ram construídas com base no trabalho de campo- neses e artesões. Haveria dúvidas até mesmo sobre como seria possível manter um número tão grande de escravos nestes locais, com a tecnologia da época! Re- alize sua pesquisa sobre o assunto! FIQUE ATENTO Outro fator importante que devemos ter em mente em nossas análises: o número e proporção de escravos em determinada sociedade antiga é, invariavelmente, desconhecido. Faltam-nos ferramentas e fontes básicas que auxiliem essa quantificação, sendo que os números com que atualmente trabalhamos – como, por exemplo, o acima de 20% da população composta por escravos em Roma de acordo com Hopkins (1978) – são especulações com maior ou menor probabilidade, baseada em modelos e teorias a respeito da economia na Antiguidade. Devemos estar atentos também ao fato de que não apenas de escravos e trabalhadores livres existiam nas sociedades antigas, eliminando a extrema complexidade de suas relações sociais. Zuiderhoek (2013) já mostrou como “existia numerosas categorias de trabalhadores dependentes e semi-dependentes”, de grupos camponeses que trabalhavam sem serem os donos da terra, pessoas submetidas a trabalho forçado, pessoas escravizadas devido a dívidas, escravos públicos pertencentes ao Rei e, inclusive, ex-escravos. 23 Outro fator importante que devemos ter em mente em nossas análises: o número e proporção de escravos em determinada sociedade antiga é, invariavelmente, desconhecido. Faltam-nos ferramentas e fontes básicas que auxiliem essa quantificação, sendo que os números com que atualmente trabalhamos – como, por exemplo, o acima de 20% da população composta por escravos em Roma de acordo com Hopkins (1978) – são especulações com maior ou menor probabilidade, baseada em modelos e teorias a respeito da economia na Antiguidade. Devemos estar atentos também ao fato de que não apenas de escravos e trabalhadores livres existiam nas sociedades antigas, eliminando a extrema complexidade de suas relações sociais. Zuiderhoek (2013) já mostrou como “existia numerosas categorias de trabalhadores dependentes e semi-dependentes”, de grupos camponeses que trabalhavam sem serem os donos da terra, pessoas submetidas a trabalho forçado, pessoas escravizadas devido a dívidas, escravos públicos pertencentes ao Rei e, inclusive, ex-escravos. De fato, como mostrou Snell (2011) existem alguns textos do período Ur III (2112–2004 a.E.C) provindos da região sul da Mesopotâmia que mostram o resultado de julgamentos em que pessoas contestavam seu status de escravas, apresentando inclusive os argumentos utilizados pelas partes. Um jovem, por exemplo, pleiteava que seu pai havia sido libertado há mais de quinze anos e não poderia ser o escravo de um certo homem rico. Este, porém, trouxe testemunhas de que o pai havia recentemente recebido rações de comida de sua casa – tal qual um escravo recebia. Figura 6 - Mapa Mesopotâmia (Destaque para o sítio Arqueológico da cidade de Ur) O famoso código de Hamurabi também traz algumas informações de determinados aspectos da escravidão, como por exemplo, o fato de que a criança nascida da união de uma pessoa escrava e outra livre, teria o status de livre. Note que foi observado que a criança cujo pai não reconhece a paternidade não teria proveito dessa situação, ao mesmo tempo, porém, garantia-se que o filho/a reconhecido/a pelo pai em sua morte, ganharia o status de livre, bem como sua mãe, se esta fosseescrava. No Egito, é principalmente a partir do período do Novo Reino (c. 1558-1080 a.E.C) que encontramos a entrada maior de escravos na sociedade. Por se tratar de um período expansionista, são principalmente estrangeiros – vindos da Ásia Menor e Alto Nilo – escravizados, recebendo uma denominação que equivaleria ao termo “trabalhadores”. Ao contrário do observado na Mesopotâmia, nesse período do Egito uma criança nascida de uma mulher escrava seria sempre escrava, independentemente da posição social e/ou reconhecimento do pai. Estes escravos egípcios possuíam trabalhos variados, de serviços domésticos ao cuidado com a agricultura, e grandes construções, com espaço inclusive para que escravos reais fossem alfabetizados. O que podemos observar assim, é que a escravidão e o trabalho tomam diferentes formas e possibilidades, sendo extremamente reducionista do ponto de vista social, e mesmo econômico, dividir a sociedade simplesmente entre indivíduos livres e escravizados; bem como não se buscar entender os 24 diferentes aspectos da escravidão, em que se deve sempre perguntar: • Quem são esses escravos? • Quais seus direitos e suas obrigações? • Quais suas ocupações? 2. 3 R E A LE ZA S D IV IN A S N O E G IT O E M E SO P O TÂ M IA O Ramo de Ouro de Frazer, (1982) foi um dos primeiros e mais influentes trabalhos a tentar sistematizar observações a respeito das relações entre religião, mito e monarquia em diferentes sociedades. Apesar das grandes críticas que recebeu e recebe, esta obra permitiu que, ao longo do tempo, estudos sobre este tema passassem a integrar um campo de estudos comparativos cujas contribuições provinham de várias disciplinas como a História, Arqueologia, Teologia e etc. A consolidação deste campo é particularmente importante para os estudos a respeito da Antiguidade Oriental, onde os pesquisadores passaram a compreender a religião enquanto um fator importante de integração das sociedades, especialmente no que se refere em seu desenvolvimento/relacionamento com a monarquia. O trabalho de Frankfort (1948), intitulado “Kingship and The Gods: A Study of Ancient Near Eastern Religion as the Integration of Society and Nature” é neste sentido, um dos principais estudos realizados sobre o tema, sendo até os dias de hoje um ponto de partida para muitos pesquisadores discutirem, e mesmo reavaliarem, as relações entre a Monarquia e Divindade nas sociedades do Egito e Mesopotâmia. Para o autor, a qualidade comum e essencial entre as realezas do Egito e Mesopotâmia é a sua posição central nos sistemas cosmológicos destas duas sociedades: isto é, a Realeza é necessária não somente para a ordenação da sociedade, mas da própria natureza, sendo a ordem da natureza e da sociedade diferentes aspectos de uma ordem moral do universo. Porém, como observa o próprio autor, os papéis desempenhados pelos Reis nestas duas sociedades, apesar de tocados pelo divino, seriam diferentes: No Egito, o Faraó é um deus entre os deuses, mantenedor - por seu próprio direito - da ordem divina, que se reflete nos ciclos da natureza e da estrutura social. Na Mesopotâmia, o rei se apresenta enquanto um servo dos deuses, ele encontra- se acima dos outros membros da sociedade e possui uma relação próxima com as divindades: ele é um “espécime magnífico” da humanidade, mas inteiramente humano. Assim, em outras palavras, encontramos no Egito um Rei-Divino e na Mesopotâmia uma espécie de Rei-Sacerdote. Apesar de no papel esta diferença parecer bastante drástica, não se pode dizer absolutamente que um egípcio observava seu faraó de uma maneira completamente diferente do que um assírio, por exemplo. A aura divina em torno do Rei leva-nos a questionar diretamente, se na prática e na vida cotidiana, este rei-sacerdote não se tornara também divino em seu próprio direito. Figura 7 - Faraó Ramsés III e seu Filho frente a Deusa Háthor 25 Este questionamento, na verdade, parte diretamente do que Brisch (2008) nos revela sobre os posicionamentos atuais dos estudos sobre a Antiguidade Oriental em que novas perspectivas vêm sendo abordadas, sendo uma das principais, a reconsideração a respeito da separação binária entre o divino e o humano. Como mostram diversos pesquisadores, essa separação que é, em última instância, baseada numa classificação aristotélica, não funciona quando aplicadas diretamente ao dia a dia daquelas sociedades. De fato, tanto no Egito como na Mesopotâmia, os Reis e os membros da família real são “compostos” de elementos tanto humanos quanto divinos, e não necessariamente se enquadram dentro de uma única categoria/estereótipo/ arquétipo. VAMOS PENSAR? Podemos fazer uma reflexão acerca deste aspecto “Divino” do Governante, que está longe de ser um ele- mento presente apenas nas sociedades do Oriente Próximo. Para além da Antiguidade, até muito recen- temente na História humana, de fato, governantes foram vistos como dotados de uma aura sobrenatu- ral, dando origem as mais diferentes construções po- líticas e sociais, como os reis taumaturgos medievais e a própria concepção de direito divino nos Estados Modernos. A compreensão a respeito da divindade, ou ainda da realiza divina, passa assim de uma separação absoluta entre divino e humano, para uma visão relacional sobre o status divino, em que observamos o Rei, independentemente se no Egito ou na Mesopotâmia, como uma figura que ao encontrar-se no topo da pirâmide social, esta imersa em uma aura divina. O status divino assim, deve ser compreendido dentro de uma visão que engloba um conjunto de ferramentas políticas e sociais que aliada s à esfera religiosa criam, honram e distinguem o governante. Esta visão é importante, pois dessencializa a “natureza divina” do Rei, situando-a dentro de um complexo contexto social, em que se pesa os interesses de diferentes grupos sociais na manutenção deste sistema. 26 2. 4 E ST U D O D E C A SO : “ D E IS R A E L A O S H E B R E U S: N A R R A TI V A B ÍB LI C A N A C O N ST R U Ç Ã O D E U M A H IS TÓ R IA P O LÍ TI C A ” Que o passado é usado para justificar posições presentes não é nenhuma novidade para nós historiadores do século XXI. Conforme observado, é especialmente importante notarmos como a história ciência nasce como instrumento dos Estados Nacionais, nas justificativas de sua criação, historicidade e pretensões futuras: A história, ou ainda, as narrativas históricas, são criações sobre um povo e sua cultura. O caso Hebreu é particularmente significante desta tradição historiográfica, especialmente por contar com um corpus narrativo que, como mostrou Brettler (1995) parte da presunção tradicional que as religiões Israelitas e “Proto-Judáicas” eram fundamentalmente religiões “históricas”, no sentindo em que eram primariamente preocupadas com, e baseadas em, eventos históricos reais. Neste sentido, a história – enquanto instrumento – e a bíblia – como corpus narrativo – assumiram, e ainda assumem, o papel de reconstruir uma história “real” de Israel usando correntemente textos do Oriente Próximo Antigo para este propósito. É neste cenário que os Hebreus aparecem nos estudos históricos onde a preocupação com a sua formação e diáspora, na verdade, são as preocupações com a formação e criação de Israel e dos judeus. Desta forma, podemos nos perguntar enquanto pesquisadores/as, de que adianta adentramos neste corpo narrativo, se for para meramente repetir – com maior ou menor ar de cientificidade – as palavras do Antigo Testamento? De irmos de Ur a Canãa, de Abraão às doze tribos de Israel, do Egito a Moisés, ou ainda realizarmos uma narrativa sobre os Reinados de Davi e Salomão, passarmos pelo general romano Tito, para terminamos em 1948 com a fundação do Estado de Israel – se não entrarmos nas dimensões retóricas e literárias destas narrativase, especialmente, se não nos atentarmos ao ofício do historiador que não lida com fatos, mas com textos? A questão chave que colocamos assim, como se pode perceber, é a aceitação acrítica do texto, da narrativa bíblica, o que poderia, por um lado suscitar a questão eloquentemente trabalhada por Miller (1991): É possível escrevermos uma história de Israel sem dependermos da Bíblia Hebraica? Uma resposta a esta questão sugeriria o uso praticamente exclusivo dos estudos arqueológicos sobre os povos da Idade do Ferro I que viviam na região da Palestina. O problema, entretanto, está que mesmo estes estudos de base arqueológica tomam também de alguma forma a Bíblia hebraica para chegar às suas conclusões: sendo a primeira e mais problemática destas considerar de antemão como hebraicos ou israelitas os povos que viviam nesta região. A questão apropriada assim para esta problemática não é, como explica o autor, SE devemos usar a Bíblia hebraica na pesquisa histórica, mas sim COMO devemos usá-la, ou ainda, em nossas próprias palavras, como compreender e trabalhar estes textos? A alternativa assim, é considerá- los dentro das perspectivas que mencionamos: a partir de seu caráter retórico e entrarmos em nosso ofício de historiadores e perguntarmos Figura 8 - Expansão do Estado de Israel de 1946 – 2010 27 sobre os textos: O quê? Por quê? Para quem? Tomemos um exemplo prático deste trabalho que propomos, considerando a Conquista de Canãa. Como mostra Malamat (2001), os problemas começam quando consideramos a própria confiabilidade da bíblia enquanto registro histórico. Do ponto de vista metodológico, existe a questão de que, praticamente, não possuímos outros documentos para uma comparação externa. Neste caso, esta própria ausência é significativa: tal conquista parece não ter trazido nenhum movimento na política da época, causando um impacto pouco significativo, de forma que nem mesmo os senhores anteriores de Canãa – leia-se o Egito – tomassem nota/registro deste acontecimento. Este silêncio torna-se sugestivo no sentindo que, poderia se esperar algum tipo de reação, ou ainda, notificação de uma tomada de território a força. Neste mesmo sentido estudos arqueológicos das últimas décadas, como os de Finkelstein (1990) têm mostrado que parece ser muito mais apropriado se dar lugar da ideia de uma invasão e conquista, para uma ocupação pacífica e negociada. Cabe assim, questionarmos: Por que é importante, do ponto de vista bíblico e narrativo a ideia de uma invasão e a tomada pela força de Canãa, ao invés do que, como sugerem outros indícios, uma ocupação pacífica? A resposta fica evidente quando percebemos que a descrição deste evento na narrativa Deuteronomista subordina a historiografia a uma doutrina teológica, onde o divino e mortal se entrelaçam, ficando explícito e acentuado o papel e a força do Senhor de Israel nos feitos humanos. A conquista de Canãa na narrativa bíblica é a vitória do Deus Hebreu, que legitima toda uma série de outros textos, configurando-se em um eficiente reforço moral e retórico na construção identitária e posicionamentos sociais de quando o texto Deuteronomista fora escrito. Como não podemos deixar de perceber, tal evento e interpretação permanecem importante na leitura atual do Estado de Israel, pois este evento é utilizado como mais uma evidência do direito à terra, no que podemos classificar como a ideia de uma “conquista atemporal” dos Israelenses da “Terra Prometida” – uma vitória militar, que nesta situação atual de disputa com os Palestinos, é muito mais significativa do que, possivelmente, um acordo de ocupação ou empréstimo de terras, embora seja provável que este tenha sido o caso. 28 FIXANDO O CONTEÚDO 1 - Assinale a Alternativa que apresenta a perspectiva Orientalista acerca dos povos da Antiguidade Oriental. a) Na perspectiva Orientalista, a antecedência cronológica de um povo era entendida como equivalente à defasagem cultural, assim, povos do Egito e Mesopotâmia, eram vistos como bárbaros, e gregos e romanos como civilizados. b) Na perspectiva Orientalista, há uma exaltação do caráter avançado das culturas do Oriente Próximo, em que se celebra as suas grandes criações como, por exemplo, a Democracia. c) A perspectiva Orientalista é atualmente a principal forma de compreensão do Oriente, permanecendo como ponto central de inflexão historiográfica, caracterizada, sobretudo, pela visão do barbarismo dos povos orientais. d) A perspectiva Orientalista foi, especialmente nos séculos passados, a principal forma de compreensão do Oriente, caracterizada sobretudo, pela visão de respeito aos avanços culturais dos povos orientais. e) Na perspectiva Orientalista o passado era entendido, sobretudo, a partir de relatos literários e estórias orais, nas quais superstição e misticismo acabavam sendo as principais fontes para retratar os povos orientais. 2 - É correto afirmar acerca da Antiguidade Oriental: I – Refere-se somente aos povos do Egito e da Mesopotâmia. II – China e Índia não são localidades abrangidas pelo tema. III – É um termo preciso e objetivo, não havendo necessidade de se apresentar o recorte do pesquisador. a) I e II são verdadeiras. b) Apenas II é verdadeira. c) Apenas III é verdadeira. d) I, II e III são verdadeiras. e) I, II e III são falsas. 3 - Considerando-se a Relação da Economia com o Trabalho na Antiguidade, podemos afirmar que. a) dado que a economia era principalmente baseada no comércio de bens, a mão de obra concentrava-se nas cidades, empregando artesões e construtores. b) uma vez que a economia era sobretudo agrária, a mão de obra, seja essa livre ou escrava, concentrava-se no trabalho no campo. c) a economia dos povos antigos baseava-se, principalmente, nos processos de expansão e consequente escravidão de povos conquistados, sendo estes, os principais trabalhadores. d) considerado o baixo grau de riqueza e desenvolvimento das sociedades Orientais Antigas, era possível dividir claramente a sociedade em duas camadas: escravos e dono de 29 escravos. e) uma vez que a economia era sobretudo agrária, e com altíssimos índices de fertilidade e produção – comparáveis até a produção agrícola atual – a maior parte da população não precisava trabalhar no campo, sendo os trabalhadores, em sua maioria, artesãos. 4 - Sobre a Escravidão na Antiguidade Oriental, é verdadeiro afirmar: I - A escravidão possuía diferentes formas dependendo da região analisada, havendo possibilidade de encontrarmos diferentes direitos para escravos. II - Não havia grande complexidade nas relações sociais e de trabalho: os indivíduos ou eram livres ou escravos. III - Escravos sempre foram o principal motor de trabalho nas sociedades orientais antigas, sendo eles, por exemplo, responsáveis pela construção das grandes Pirâmides no Egito. a) Apenas I é verdadeira. b) I e II são verdadeiras. c) Apenas III é verdadeira. d) I, II e III são verdadeiras. e) I, II e III são falsas. 5 - A respeito das Realezas Divinas na Antiguidade Oriental, é correto afirmar que a) a separação entre as esferas divino e humana é natural, de modo que a qualquer tempo e em qualquer sociedade, a realeza sempre possuirá uma aura divina. b) o Faraó do Antigo Egito, deve ser entendido como um Rei-Sacerdote: um espécime magnífico da humanidade, porém, inteiramente humano. c) na prática havia pouca diferença entre a visão de um Rei-Sacerdote e um Rei-Divino, como presente em sociedades da Mesopotâmia e do Egito. d) os membros da família real não possuíam qualquer caráter divino, sendo este uma exclusividade do Rei. e) o peso de diferentes grupos sociais era mínimo na manutenção de sistemas em que havia a percepção da natureza divina do Rei, pois o poder deste último restava unicamente em crenças religiosas. 6 - A respeito das relações de Israel e seu passado, é possível afirmar que I- O país não tenta traçar nenhuma relação entre presente e passado umavez que o estado é bem recente: fundado em 1948, após a Segunda Guerra Mundial. II- Israel utiliza-se de narrativas bíblicas como uma forma de dar suporte às suas demandas por direito à terra, de forma que traçam uma relação direta com os Hebreus da Antiguidade. III- As conquistas dos Hebreus, embora cada vez mais questionadas do ponto de vista histórico e arqueológico, permanecem servindo como argumento para justificar posições atuais da política externa israelense. a) Apenas I está correta. b) Apenas II está correta. c) I e III estão corretas. d) II e III estão corretas. 30 e) I, II e III estão corretas. 7 - A respeito da utilização da Bíblia enquanto fonte de estudo da Antiguidade, pode-se afirmar que: I- A Bíblia não deve ser usada como fonte histórica para se entender os povos da Antiguidade. II- A principal questão não é sobre usar ou não a Bíblia, mas sim, como ela deve ser usada. III- A Bíblia apresenta verdades históricas que dispensam a análise do Historiador. a) Apenas I está correta. b) Apenas II está correta. c) II e III estão corretas. d) I e III estão corretas. e) I, II e III estão corretas. 8 - A presença de objetos e artefatos de Sociedades Orientais espalhados por diversas partes do mundo, muitas vezes sem qualquer contexto ou ainda, exercendo funções que jamais foram pensadas em sua criação são reflexos de qual perspectiva: a) Capitalismo. b) Orientalismo. c) Ocidentalismo. d) Comunismo. e) Romantismo. 31 ANTIGUIDADE CLÁSSICA – O MUNDO GREGO UNIDADE 3 32 3. 1 A H É LA D E E O S H E LE N O S: O S P E R ÍO D O S A R C A IC O , C LÁ SS IC O E H E LE N ÍS TI C O Quando falamos de Mundo Grego, é necessário observar em primeiro lugar que tratamos de uma abstração com base em pressupostos atuais: não havia uma Grécia e muito menos Gregos, na Antiguidade. Conforme observado já na primeira unidade deste material, ao discutirmos questões de periodização, não é possível traçar sequer uma continuidade espacial entre o que hoje chamamos de Grécia, Estado Nacional formado em 1830, com sua suposta contraparte antiga; não apenas por não haver uma unidade política entre as diferentes poleis (cidade-estado), mas também pelo fato de encontrarmos helenos não apenas na península balcânica: estavam espalhados pelas ilhas do mar egeu e inúmeras colônias na Ásia Menor, no Norte da África e nas Penínsulas Itálica e Ibérica. O “Mundo Grego” assim, trata-se de uma convenção para denominar o que os próprios povos antigos entendiam como “Hélade”: um espaço territorial, compostos por unidades políticas independentes, espalhadas pelo mediterrâneo, mas que compartilhavam alguns valores culturais e sociais. Uma das principais características da Hélade está no compartilhamento – e estruturação da linguagem, educação e etc. – da poesia homérica, em que inclusive, há a menção dos povos Helenos, como aqueles que acompanhavam o herói Aquiles. Há duas grandes obras da poesia Homérica a quais temos acesso: Ilíada e a Odisseia. Essas obras estrutu- ram – e de muitas formas ainda estruturam – gêneros literários, tendo sido adaptadas diversas vezes ao lon- go do tempo. No Brasil, sugerimos a leitura das traduções de Carlos Alberto Nunes e as de Haroldo de Campos. FIQUE ATENTO Conceituar assim, Hélade e Helenos – um problema espacial e cultural, leva-nos a outro problemática, está de natureza temporal e historiográfica. Tradicionalmente, divide- se os períodos da Antiguidade “Grega” em, principalmente, Arcaico (c. 800-480 a.E.C), Clássico (c. 500 – 338 a.E.C) e Helenístico (c. 321- 31 a.E.C). Figura 9 - Mapa da Expansão e Colonização dos Helenos Os alunos e alunas de história – ao menos aqueles atentos – já devem ter suspeitado do forte caráter ideológico em denominar um período como “Arcaico” e situá-lo, justamente, antes do “Clássico”. Notoriamente, como demonstrado por Assumpção (2013) havia uma predileção pelo chamado “Período Clássico”, entre os historiadores que elaboraram esta periodização: trata-se de um momento de “grandes eventos políticos” como a “Guerra do Peloponeso”, “Ascenção de Atenas” etc., como se todo o desenvolvimento político, econômico e social de quase 300 anos do período “Arcaico”, pouco significasse. 33 Conforme estamos vendo nas unidades deste ma- terial, as capacidades de nomear e classificar não devem ser vistas de maneira externa ao exercício do poder, ao exercício de ideologias e seus contextos so- cioculturais bastante específicos! Definir, ordenar, no- mear e classificar são ações sempre de cunho subjeti- vo, que não podem ser tomadas como “naturais”. FIQUE ATENTO Não nos é possível traçar aqui uma visão geral ou aprofundada acerca de cada período – isto poderá ser conferido nas indicações bibliográficas ao final deste material – tendo sido optado por focar em alguns conceitos importantes para a historiografia atual, dos quais destacamos: Paideia, Helenismo, e da visão de História entre os Helenos. Para outros temas referentes a Antiguidade Grega, sugerimos as seguintes leituras, disponíveis em suas bibliotecas: Arquétipos da Religião Grega – Karl Kerényi LINK: https://plataforma.bvirtual.com.br/Acervo/Publi- cacao/49136 Introdução a Literatura Grega: de Homero ao Roman- ce Antigo – Emerson Cerdas LINK: https://plataforma.bvirtual.com.br/Acervo/Publi- cacao/169747 Dicionário de Mitologia Grega e Romana – Mário da Gama Kury LINK:https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/ books/9788537802182 BUSQUE POR MAIS SC A N EI E O C Ó D IG O E A C ES SE O L IN K 34 3. 2 P A ID E IA Paideia é um conceito complexo e de grande importância entre os Helenos, pois se relaciona com as ideias de Educação, Cultura e Verdade, sendo possível encontrarmos uma grande variedade de escritos a seu respeito ao longo de toda a história da Hélade. Atualmente, ainda encontramos o termo Paideia em voga, sendo utilizado em muitos estudos, sobretudo ligados à educação, no que tange processo educativo do indivíduo da infância à sua fase adulta. Tal entendimento do termo, no entanto, pode nos trazer uma imagem equivocada a respeito do exercício da Paideia no passado, relacionando-a com escolas, textos, livros e etc., isto é, de cairmos na armadilha de entender a Paideia apenas como um ensinamento e formas de ensinar. Se por um lado a Paideia envolve uma certa ideia de transmissão – de um conhecimento, por exemplo – ela representa algo maior do que uma educação formal, mais próxima de, como apontou Robb (1994) uma aceitação – mesmo que inconsciente modelos ancestrais, tornando-se, mais do que um conhecimento, um próprio modo de vida. Sob esse aspecto, Paideia liga- se com uma ideia de cultura: uma transmissão – não necessariamente sistemática – de conjunto de valores sociais e culturais (como uma língua, uma estética, visões de mundo), próxima do que antropologistas chamariam de enculturação. Enculturação pode ser definida como processos pelos quais um indivíduo apreende os elementos da cultura em que estão inseridos, como os valores e comporta- mentos considerados apropriados. GLOSSÁRIO O exercício da Paideia assim, como nos mostrou Sousa (2013) ocorre de diferentes maneiras e em diferentes locais: Palestras, Ginásios e mesmo nos Banquetes. Está presente na arte: na escultura, no teatro, ou mesmo na poesia. Está nos diferentes processos educativos seja da retórica, história, filosofia ou geografia, como também numa educação física e nas competições esportivas. Ela se apresenta como um ideal que é social – de como viver em sociedade – e político, do gerenciamento do coletivo e do porte público do cidadão. Nesse sentido, é possível então relacionarmos – como faziam os helenos – as ideias de Paideia com Verdade, seja no sentindo metafísico transcendental, ou mesmo no ponto de vista humanístico. A Paideia trazia o homem a aquilo que ele deveria ser, a completitude de suas aspirações:
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