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Giovanna Innocencio Psiquiatria TRANSTORNOS ALIMENTARES Os transtornos alimentares são os transtornos mentais de maior mortalidade, e possuem altas taxas de comorbidades psiquiátricas e complicações clínicas graves, bem como correlação com obesidade e tendências demográficas importantes. Definição: alterações patológicas do comportamento alimentar, em geral com grande preocupação por controle dietético e por um corpo ideal, levando a prejuízos físicos, psicológicos e sociais. ® Não ocorrem por outras doenças que podem levar à perda de peso e mudanças alimentares, como depressão, uso de drogas, quadros delirantes, autismo, retardo mental, tireoidopatias, síndromes consumptivas, doenças do trato digestório, etc. Etiologia: • Fatores predisponentes: sexo feminino (10:1), história familiar de transtorno alimentar (genética e ambiental), baixa auto estima, perfeccionismo, dificuldade em expressar emoções, valores culturais • Fatores mantenedores: alterações neuroendócrinas, distorção da imagem corporal, distorções cognitivas, práticas purgativas, aceitação social • Fatores precipitantes: dietas muito restritas, separação e perda, alterações na dinâmica familiar, expectativas irreais na escola/trabalho/vida pessoal, proximidade da menarca, bullying, abuso sexual • Fatores biológicos: muitos estudos têm se voltado para a predisposição biológica hereditária, embora não haja comprovação definitiva e não possam ser considerados suficientes para explicar os transtornos alimentares. ® Envolvimento de neurotransmissores moduladores da fome (nora, serotonina, dopamina e outros neuropeptídios): Anorexia Nervosa e Bulimia Nervosa ® Alterações de neurotransmissão e peptídeos periféricos (YY, grelina, leptina, colecistocinina, etc): Bulimia Nervosa e Transtorno de Compulsão Alimentar ® Aumento do cortisol sérico leva a diminuição do apetite, hipogonadismo hipotalâmico e redução do interesse sexual ® As variáveis biológicas participam da patogenia da AN, não como fatores causais, mas como fatores precipitantes (mudanças hormonais da puberdade) e como fatores mantenedores (efeito da desnutrição no estado mental dos pacientes). • Fatores psicológicos: abuso físico e sexual na infância, distúrbios perceptuais e da imagem corporal, preocupação excessiva com o peso, acentuada autocrítica, perfeccionismo, sensibilidade a críticas, baixa auto estima, ansiedade interpessoal aumentada, preocupação com a autonomia, identidade e separação, alta esquiva ao dano, distúrbios cognitivos (crenças disfuncionais). • Fatores familiares: aponta-se a rigidez familiar, relações parentais disfuncionais e a grande importância dada às aparências, tanto na questão física quanto no desempenho de diversos setores da vida. ® As taxas de TA entre parentes de primeiro grau são de seis a dez vezes maiores do que em relação à população em geral. ® O índice de incidência intrafamiliar pode ser compreendido não apenas como um fator hereditário, mas também como aprendizagem comportamental. ® Dependência de álcool, transtornos afetivos e obesidade são mais comuns entre familiares de pacientes com transtornos alimentares Giovanna Innocencio Psiquiatria ® Pais excessivamente preocupados com os filhos podem contribuir para a etiopatogenia da anorexia nervosa. • Fatores culturais: o aprendizado social da mulher é equiparar a aparência física com autoestima, uma vez que a mídia apaga a fronteira entre a ficção glamourizada e a realidade. Os padrões de beleza e de saúde são vinculados à magreza, que acaba por significar ser feliz, bem sucedido, aceito, respeitado e desejado, e sua internalização favorece o aparecimento dos transtornos alimentares. ® Profissões de risco: modelos, bailarinas, atletas, atores, estudantes de medicina/nutrição/psicologia O DSM-5 engloba vários tipos de transtornos alimentares, sendo que aqui abordaremos apenas dos três primeiros: • Anorexia Nervosa (AN) • Bulimia Nervosa (BN) • Transtorno de Compulsão Alimentar (BED ou TCA) • Pica • Transtorno da Ruminação • Transtorno de Evitação/Restrição da Ingesta Alimentar (ARFID) • Transtornos Alimentares Não Especificados (TANE) • Outros TA (transtornos ligados a quadros clínicos, como vômitos psicogênicos). 1. Anorexia Nervosa A anorexia nervosa é caracterizada por um baixo peso (IMC abaixo de 17,5 ou percentil baixo em crianças) por conta da perda de peso autoprovocada por restrição alimentar ou outros métodos (medicações, exercícios físicos exagerados, purgações, etc), bem como pela distorção de como a pessoa vê e percebe o próprio corpo, com pavor de engordar, levando a alterações clínicas causadas pela desnutrição (geralmente amenorreia). Epidemiologia: • Acomete principalmente indivíduos do sexo feminino • Início entre os 13-20 anos de idade com pico aos 16 • Áreas industrializadas, em todas as classes sociais • Profissões de maior risco: atletas, modelos, atores, bailarinos, profissionais de moda e saúde, estudantes de medicina, nutrição, enfermagem e psicologia • Relação familiar de maior risco: gêmeos monozigóticos e parentes de 1º grau • Altas taxas de comorbidades psiquiátricas • Mortalidade 1200% maior do que a população da mesma faixa etária Quadro clínico: • Grande conhecimento sobre valor calórico dos alimentos • Evitação de alimentos que engordam • Crenças diversas sobre o tema • Crença de que a gordura consumida se transforma imediatamente em gordura corporal • Hábitos alimentares diversos: dietas especiais vegetarianas ou bizarras, dividir alimentos em pequenas porções, ruminar alimentos, evitar comer na presença dos outros • Sofrimento evidente ao se alimentar Giovanna Innocencio Psiquiatria Complicações da restrição alimentar: • Pele e anexos: hipercarotenemia, pele seca, lanugo, alterações e perda de cabelo, perdas dentárias • Digestório: retardo no esvaziamento gástrico, constipação, pancreatite, alteração de enzimas hepáticas, diminuição de peristaltismo intestinal • Cardiovascular: bradicardia, diminuição da PA e hipotensão postural, arritmias, IC, parada cardíaca • Renal: edemas, IRA, cálculo renal • Hematológicos: anemias, leucopenia, trombocitopenia • Reprodutivo: infertilidade, atraso do desenvolvimento sexual, amenorreia, recém-nascido com baixo peso • Eletrólitos: hipocalemia, hiponatremia, hipoglicemia, desidratação • Endócrino: gonadotrofina, hormônio luteinizante, T3 reverso, estrogênios, hormônio do crescimento e cortisol • Outros: hipotermia, convulsões, osteopenia/osteoporose Tratamento farmacológico: ainda não há droga de escolha específica para a anorexia nervosa • Benzodiazepínicos podem ser utilizados para a ansiedade pré-prandial • Outros fármacos podem ser utilizados no contexto do tratamento de comorbidades Tratamento não farmacológico: é o tratamento de escolha • Equipe mínima de psicólogo, nutricionista e psiquiatra • Possui o objetivo de regularizar o padrão alimentar e suspender as práticas restritivas e purgativas. • Dependendo da gravidade do quadro, os pacientes precisam ser internados. 2. Bulimia Nervosa Caracterizada por episódios de compulsão alimentar (muita comida em pouco tempo, com a sensação de perda de controle), seguidos de método compensatório inadequado (vômitos, medicações, atividade física excessiva, etc). Tais eventos ocorrem pelo menos 1 vez por semana nos últimos 3 meses. Ciclo bulímico: • Insatisfação e preocupação excessiva com o corpo • Restrição e dieta com menos obstinação em relação à anorexia • Momentos de fome incontrolável e binge, com culpa imediata após episódio de compulsão • Vômitos trazem satisfação e alívio momentâneo • Culpa pelos vômitos, subsequente ansiedade, piora da autoestima e retomada da dieta Quadro clínico: • Episódios de alimentação bizarra • Binge pode chegar a 14.000kcal • Estocagem e furto de alimentos • Raiva em sentir fome/perda de controle • Prática de atividade físicaexcessiva visando perder peso Giovanna Innocencio Psiquiatria Complicações do método purgativo: • Sinal de Russel: calosidade no dorso da mão pela lesão da pele com os dentes ao provocar vômito • Erosão do esmalte dentário, cáries e perdas dentárias • Queilite • Alterações e perda de cabelo • TGI: dor abdominal, gastrite, esofagite, erosões esofágicas, sangramentos, ruptura de esôfago, esôfago de Barret, constipação, prolapso retal, perda das vilosidades intestinais, fecaloma • Irregularidade menstrual • Desidratação • Alterações dos eletrólitos: K, Mg, P, Na, Cl e Bicarbonato (alcalose metabólica) • Hipertrofia de glândulas parótidas podendo ter aumento da fração de amilase produzida no local, com consequente alterações hepáticas e pancreáticas Tratamento farmacológico: • 1ª opção: ISRS – fluoxetina (impede o ciclo bulímico, sendo eficaz na diminuição de episódios compulsivos) • 2ª opção: Topiramato (também diminui a compulsão) Tratamento não farmacológico: • Terapia Cognitivo-Comportamental: maior evidência científica 3. Transtorno de Compulsão Alimentar Caracterizado por episódios de compulsão alimentar (muita comida em pouco tempo, com a sensação de perda de controle) sem método compensatório. Tais eventos ocorrem pelo menos 1 vez por semana nos últimos 3 meses. Epidemiologia: • Transtorno alimentar mais comum na população: prevalência de 1,5-4,5% • 30% em obesidade grau 2 e 40% em obesidade grau 3 • Afeta da maneira semelhante homens e mulheres (3:2); • Pico no final da adolescência • Comum após dieta rígida com perda significativa de peso e indivíduos que passaram por privação alimentar • 50% dos pacientes de cirurgia bariátrica Critérios diagnósticos (DSM-5): • Ingestão de uma quantidade de alimento definitivamente maior do que a maioria dos indivíduos consumiria no mesmo período em circunstâncias semelhantes, com sensação de perda de controle • Episódios recorrentes de compulsão alimentar associados a 3 ou mais dos seguintes: ® Comer mais rapidamente que o normal ® Comer até se sentir desconfortavelmente cheio ® Comer grandes quantidades na ausência de fome Giovanna Innocencio Psiquiatria ® Comer sozinho por vergonha de si mesmo, ou por se sentir deprimido ou muito culpado em seguida Quadro clínico: • Episódios recorrentes de compulsão alimentar SEM uso de métodos compensatórios • Assim como na BN, o paciente pode se sentir alheio a si durante os episódios de compulsão • É comum que estes pacientes procurem conforto da comida tanto após frustrações como em momentos de celebração • Piora na vigência de quadro de humor, ansiosos e eventos estressantes • Cursa com comorbidades clínicas (síndrome metabólica, DM, HAS) e psiquiátricas (depressão e ansiedade) Tratamento farmacológico: • ISRS e Topiramato: abordar a compulsão alimentar • O uso de Sibutramina deve ser feito com cautela, devido ao risco de problemas cardíacos, AVC e problemas psiquiátricos, pelo “efeito sanfona”: precisa tratar o transtorno! • Lisdexanfetamina com ressalvas Tratamento não farmacológico: • Abordagem multidisciplinar • Mudança de hábitos alimentares • Mudança geral no estilo de vida 4. Tratamento dos Transtornos Alimentares (GERAL) A motivação para aderência e a aliança terapêutica são fundamentais para o tratamento dos transtornos alimentares, bem como o envolvimento da família, que melhora o prognóstico. O tratamento é realizado a partir de uma equipe multidisciplinar, com nutricionistas, psicólogos, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, educadores físicos, terapeutas ocupacionais, etc, e a sua modalidade depende da gravidade do quadro, podendo ocorrer tanto ambulatorial, como hospital/dia, internação ou terapia intensiva. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) é a linha mais estudada, e as medicações são mais eficazes na bulimia nervosa e no transtorno de compulsão alimentar do que na anorexia nervosa. As metas do tratamento incluem regularização do padrão alimentar, suspensão de práticas purgativas, restritivas e dos episódios de compulsão alimentar. Além disso, é muito importante tratar as comorbidades, sintomas somáticos e as alterações clínicas. Farmacológico: • O uso de antidepressivos (ISRS) pode ser muito benéfico na BN e TCA pelo seu efeito anticompulsivo, sendo que as doses tendem a ser mais altas que as usadas em depressão. • Os ISRS são a primeira escolha no tratamento de comorbidades afetivas e ansiosas nos transtornos alimentares • Os IMAOs e a bupropiona devem ser evitados (risco de perda de peso) • Horário de administração das medicações pode fazer muita diferença no efeito, assim como o número de tomadas, devido a comportamentos purgativos e restritivos Giovanna Innocencio Psiquiatria • Há pouca evidência de benefício do uso de tais medicações na anorexia pura, mas os BZD podem ser utilizados para reduzir a ansiedade pré-prandial e os sintomas fóbico-ansiosos. 5. Conclusões ® Os transtornos alimentares são os quadros psiquiátricos de maior mortalidade ® Os prejuízos em qualidade de vida equivalem aos da esquizofrenia ® A base do tratamento é o vínculo do paciente com a equipe ® A função da equipe é motivar e apoiar o paciente na luta contra o transtorno alimentar ® Muitas vezes nossa função é minimizar o sofrimento e reduzir danos, mas a cura é possível na maior parte dos casos.
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