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LITE R A TU R A B R A SILEIR A II A n dré G ardel O momento da literatura brasileira sobre o qual se debruça este livro é, sem dúvida, um dos mais importantes de nossas Letras. O percurso aqui traçado inicia com o pré- -Modernismo, no fim do século XIX, e os movimentos de vanguarda que influenciaram a estética do Modernismo brasileiro, passa pela Semana de Arte Moderna de 1922, seus antecedentes, seus desdobramentos e manifestos, e percorre as três grandes fases do Modernismo no país, incluindo a prosa dos anos 30, o ensaismo social e a geração de 45. São discutidos, entre outros, autores como Lima Barreto, Augusto dos Anjos, Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald Andrade, Cecilia Meireles, Carlos Drummond Andrade, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e Guimarães Rosa, contextualizando-os historicamente no desenvolvimento da literatura brasileira moderna. Trata-se, assim, de um convite para o (re) conhecimento da alma e do corpo cultural do Brasil e de nosso povo, por meio do veículo verbal, multitemporal e surpreendente da literatura. Código Logístico 58163 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6150-1 9 788538 761501 Literatura brasileira II IESDE BRASIL S/A 2018 André Gardel Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G213L Gardel, André Literatura brasileira II / André Gardel. - [2. ed.]. - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2018. 134 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6150-1 1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Movimentos literários. I. Título. 18-51849 CDD: 809.9 CDU: 82.09 © 2009-2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Svitlana Unuchko/iStockphoto André Gardel Doutor e mestre em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cumpriu estágio pós-doutoral em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Bacharel em Língua e Literatura Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Associado I da Escola de Teatro, da Escola de Letras e do PPGAC (Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas) do Centro de Letras e Artes da UNIRIO. É um dos líderes do Grupo de Pesquisa Formas e Efeitos, Fronteiras e Passagens na Linguagem Teatral, e membro do Grupo Escritas do Contemporâneo, ambos do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Autor do livro O Encontro entre Bandeira e Sinhô, que recebeu o Prêmio Carioca de Monografia de 1995, e de outros livros de poesias, dramaturgia, biografia e didáticos, além de ter lançado os CDs Sons do Poema, Vôo da Cidade e Lua sobre o rio. Sumário Apresentação 9 1 O momento pré-moderno no Brasil 11 1.1 Os estilos pós-românticos 11 1.2 A ambiência cultural pré-modernista 12 1.3 Lima Barreto e Euclides da Cunha 12 1.4 Augusto dos Anjos e Raul de Leoni 15 2 As vanguardas europeias 19 2.1 Vanguardas: origens e sentidos 19 2.2 O Futurismo 21 2.3 O Expressionismo 22 2.4 O Cubismo 23 2.5 O Dadaísmo 24 2.6 O Surrealismo 25 3 A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos 29 3.1 Antecedentes da Semana 29 3.2 A Semana de 1922 30 3.3 Manifestos de Mário de Andrade 31 3.4 Manifestos de Oswald de Andrade 33 3.5 Os grupos de direita e seus manifestos 35 4 A obra de Manuel Bandeira 39 4.1 Manuel Bandeira e o Modernismo: aproximações e fugas 40 4.2 A poesia do humilde cotidiano e do alumbramento 40 4.3 O poeta cronista 42 4.4 O letrista da canção 44 4.5 O crítico de arte e literatura 44 4.6 Itinerário de Pasárgada 46 5 A obra de Mário de Andrade 49 5.1 O poeta Mário de Andrade 49 5.2 O ficcionista 51 5.3 Macunaíma 51 5.4 A música modernista de câmara e a canção popular 52 5.5 O antropólogo aprendiz 53 5.6 As cartas: documentos íntimos e culturais 54 5.7 A atuação como homem público 55 6 A obra de Oswald de Andrade 61 6.1 O primeiro Oswald: viagens e atuação jornalística 61 6.2 O poeta 62 6.3 O romancista 63 6.4 O dramaturgo 64 6.5 Crônicas e polêmicas 65 6.6 Outros manifestos 67 7 Segundo momento modernista: estabilização da consciência criadora nacional (a poesia) 71 7.1 A estabilização da consciência criadora nacional 71 7.2 Carlos Drummond de Andrade 72 7.3 Jorge de Lima 73 7.4 Murilo Mendes 75 7.5 Cecília Meireles 76 7.6 Vinicius de Moraes 78 8 A prosa dos anos 30 83 8.1 As duas faces da prosa dos anos 30 83 8.2 Rachel de Queiroz e José Lins do Rego 83 8.3 Graciliano Ramos 85 8.4 Jorge Amado 86 8.5 Erico Verissimo 87 8.6 Lúcio Cardoso 88 8.7 Marques Rebelo 88 9 O ensaísmo social 91 9.1 O pensamento social e antropológico no Modernismo 91 9.2 Paulo Prado e o retrato do Brasil 92 9.3 Sérgio Buarque de Holanda e as Raízes do Brasil 93 9.4 Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala 95 10 João Cabral e a Geração de 45 99 10.1 A poesia da Geração de 45 99 10.2 Alguns nomes de destaque dessa geração 100 10.3 A poesia de João Cabral de Melo Neto 101 11 A ficção depois de 45 (o romance experimental): Clarice Lispector 109 11.1 Conceituação do romance experimental pós-45 109 11.2 A voz feminina e singular da prosa de Clarice 110 11.3 Principais obras 110 11.4 Clarice cronista 112 12 A obra experimental de Guimarães Rosa 117 12.1 A linguagem ficcional de Guimarães 117 12.2 Grande Sertão: Veredas 118 12.3 Outros escritos 120 Gabarito 123 Referências 129 Apresentação O momento da literatura brasileira sobre o qual nos debruçamos neste livro é, talvez, o mais importante de nossas Letras. Não só pelo fato de se tratar de um período que gerou nossos maio- res autores de todos os tempos, mas, também, por essa produção quase toda buscar responder à demanda geral de um país que tinha como projeto se configurar dentro da modernidade, empe- nhando-se em harmonizar sua voz nacional, nem que fosse em contracanto, com a orquestra das nações modernas e civilizadas. Só para termos uma ideia da grandeza do momento a que nos referimos, é o período em que poetas como Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Jorge de Lima, João Cabral de Melo Neto concebem suas obras. E, na prosa, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Mário e Oswald de Andrade delineiam seus geniais textos inventivos. Nosso percurso começa definindo o “Momento pré-moderno no Brasil”, em que estilos pós- -românticos se desdobram numa ambiência sociocultural fortemente Belle Époque, num sincre- tismo que pavimenta as bases para a revolução modernista. Pois, pouco a pouco, “As vanguardas europeias” adentram nosso universo artístico, trazendo a maior parte do instrumental técnico, ampliando as visões de mundo que se consolidarão a partir dos anos 1920. Será “A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos”, em que os artistas definitivamente colocarão em xeque o passadismo literário, devorando as múltiplas novidades das rupturas vanguardistas. É o momento em que “A obra de Manuel Bandeira”, “A obra de Mário de Andrade” e “A obra de Oswald de Andrade” se consolidam, com suas linguagens específicas, cada qual absorven- do e recriando as informações estrangeiras, com o fim de produzir uma literatura brasileira sem ufanismos, firmemente fincada na realidade cultural do Brasil, por meio de conceitos ainda hoje produtivos, como o de antropofagia. Depois, tem início o “Segundo momento modernista: estabilização da consciência criadora nacional (a poesia)” e “A prosa dos anos 30”, em que vemos as conquistas técnicas das vanguardas, já devidamente incorporadas, adquirirem uma força ideológicae um engajamento de mudança po- lítico-social intensas. Para tal, muito contribuiu “O ensaísmo social” de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda, em suas tentativas de definir o perfil psicológico e cultural do povo brasileiro. Literatura brasileira II10 Por fim, na terceira fase modernista, que se entremostra com “João Cabral e a Geração de 45”, com “A ficção depois de 45 (o romance experimental): Clarice Lispector” e com “A obra expe- rimental de Guimarães Rosa”, temos um balanço das primeiras conquistas do Modernismo, com um espírito mais universalizante e existencial, abrindo já perspectivas para as possibilidades de uma arte pós-modernista. Assim, fazemos um convite a você, leitor, para uma viagem muito especial: a de (re)conhe- cimento da alma do Brasil e do corpo cultural do nosso povo, por meio do ágil veículo verbal, multitemporal e mágico da literatura. Bom proveito! 1 O momento pré-moderno no Brasil O Pré-Modernismo brasileiro configura-se no período que vai da última década do século XIX até as duas primeiras décadas do século XX. Esse momento é marcado por um intenso diálogo entre as artes e a realidade nacional, já que com a Proclamação da República, em 1889, ocorre a “maioridade” do povo brasileiro em relação a Portugal. Essa “maioridade” nacional traduz um momento de “maturidade” mental, estética e social do Brasil. Na busca de atingir a sua afirmação, o país tenta criar novos símbolos e roteiros da nossa nacionalidade. E, como não podia deixar de ser, a literatura torna-se um instrumento de rara utili- dade – refletindo sobre os hábitos e costumes, aprofundando as dimensões psicológicas do homem brasileiro etc. – para a configuração de um perfil específico para a nação emergente. Na verdade, trata-se de uma busca antiga de nossas Letras que, em momentos históricos di- versos e sob diferentes perspectivas, desde suas origens tentou incorporar, por exemplo, elementos culturais coloniais na produção barroca de Gregório de Matos e Guerra. Isso sem falar no sentimento nativista já presente em nossos árcades inconfidentes1 ou no nacionalismo idealizado de nossos es- critores românticos. 1.1 Os estilos pós-românticos Contudo, no momento pré-moderno, há o aparecimento de nossa primeira geração de grandes ensaístas sociológicos, fundamentais para os debates políticos que vão levar à Abolição e à instauração da República. Oradores como Rui Barbosa, jornalistas como José do Patrocínio, historiadores como Capistrano de Abreu e Joaquim Nabuco, críticos como Sílvio Romero e José Veríssimo, ensaístas como Tobias Barreto e Euclides da Cunha nos dão um panorama dessa gera- ção de intelectuais que vai estimular uma maior qualificação crítica em nossos prosadores e poetas. O Pré-Modernismo está relacionado a uma confluência de estilos literários que se cruzam num mesmo contexto histórico, assinalando a presença de variadas tendências na literatura brasi- leira. Esse cruzamento de estéticas e suas múltiplas dicções possibilitam a origem de um fenômeno conhecido como sincretismo, por meio do qual se manifestam os autores mais representativos do Realismo, do Naturalismo e do Impressionismo, na prosa, e do Parnasianismo e do Simbolismo- Decadentismo, na poesia. 1 Entre os poetas árcades mineiros, destacam-se Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e Tomás Antonio Gonzaga (1744-1810). Eles são autores que estudaram em Coimbra e que, influenciados pelas ideias enciclopedistas e pela inde- pendência dos EUA, participaram da Inconfidência Mineira, demonstrando essa consciência da nacionalidade. Literatura brasileira II12 1.2 A ambiência cultural pré-modernista Ainda não houvera a Primeira Guerra Mundial. Estamos no Brasil do início do século XX. No Rio de Janeiro – a capital do país – transitam, pela Rua do Ouvidor, os escritores representativos do momento pré-moderno e a maioria dos 730 mil habitantes da cidade. Eles vivem a esperança esplendorosa da Belle Époque2. O progresso e a ciência apresentam suas armas sedutoras que tra- duzem a nova percepção urbana: bares, cafés, bondes elétricos, confeitarias, revistas, iluminação pública. O Rio consome livros e modelos europeus, cervejas alemãs e conhaque francês. Nesses cenários de ritmos e estéticas variados destaca-se a visão urbana e moder- na do administrador Pereira Passos e a abertura da Avenida Central, hoje Av. Rio Branco. Na cena pré-modernista, os cafés e as livrarias são os espaços das relações intelectuais. Na im- prensa, A Quinzena Alegre, O Diabo, a Revista da Época (da qual Lima Barreto foi secretário) e O Correio da Manhã, entre outros, anunciam a ebulição sociopolítica e cultural que toma conta da capital da República. Nas primeiras décadas do século XX, o cenário literário carioca ostenta figuras de peso nacional como Machado de Assis, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Coelho Neto, José Veríssimo, Gonzaga Duque e, entre outros, João do Rio – um dos personagens satirizados por Lima Barreto no seu romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de 1909. No início do século XX, a cidade ostentava amplos salões festivos e culturais. Os salões são o signo reluzente da época de ouro vivida pelo Rio de Janeiro no pórtico do novo século. Por eles passaram celebridades estrangeiras em visita ao Rio, como os escritores Anatole France e Rubén Darío. Em 1919, a bailarina precursora da dança livre, Isadora Duncan, apresentou suas coreogra- fias nos salões cariocas. Nem todos os autores do momento pré-moderno se identificavam com esse país de iden- tidade mais europeia do que brasileira. Autores como Lima Barreto, entre outros, optaram por uma leitura dos elementos constitutivos do seu contexto e da realidade brasileira. Para isso, Lima Barreto rompeu com as narrativas do passado e pôs em cena personagens marginalizados, como veremos a seguir. 1.3 Lima Barreto e Euclides da Cunha Lima Barreto e Euclides da Cunha são os autores mais representativos da prosa produzida no Pré-Modernismo. Embora os seus textos possuam temáticas e características estéticas diferentes, ambos os autores apresentam-se comprometidos com as ideias de representação daquele Brasil do início do século XX. A seguir, estudaremos a narrativa social na obra de Lima Barreto e a Guerra de Canudos na ótica de Euclides da Cunha. 2 A Belle Époque traduz a nova sensibilidade urbana que surge no final do século XIX, em sintonia com os avanços tecnoló- gicos. No Brasil, corresponde ao período que vai da Proclamação da República, em 1889, até a Semana de Arte Moderna, em 1922. O momento pré-moderno no Brasil 13 1.3.1 Lima Barreto e a narrativa social A literatura de Lima Barreto (1881-1922) tem como base o registro de suas memórias e da sociedade de sua época, o que o torna um escritor “confessional” – como sugere Francisco de Assis Barbosa (BARBOSA, 2002, p. 38). O autor estetiza sua conturbada vida social, suas memórias familiares e existenciais, como no romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Sua narrativa constrói conexões entre a vida no início da modernidade no Brasil e as dificuldades de inscrição social para um jovem negro, numa sociedade cujas desigualdades latentes oscilavam entre o centro e a periferia, a maioria pobre e negra e uns poucos brancos instruídos a gozarem privilégios infindos. A narrativa de Lima Barreto consiste num tipo de texto que se fundamenta muito mais no plano das ideias e reflexões, em sintonia com as questões sociais do seu tempo, do que no trabalho com a sintaxe e o significante linguístico. O crítico Sérgio Milliet destaca, no texto de Lima, exata- mente o seu caráter “antiliterário” (MILLIET apud BARBOSA, 2002, p. 176) e a busca pela exatidão na construção das frases. A primeira publicação jornalística de Lima foi em A Lanterna. Nesse jornal, o escritor de cor azeitonada que sorri para as certezas das ciências começa a exibir sua produtiva porção irônica e sarcástica: “O sarcasmo já brilha nas suas crônicas. É a reação contra o meio que começa a se pro- cessar demodo inevitável” (BARBOSA, 2002, p. 108). Sarcástico, irônico, ferino. Esses adjetivos nortearão a carreira profissional e a vida de Lima Barreto, em suas relações sociais e nos ambientes profissionais pelos quais transitou. Sua vida e obra estão repletas de imagens que refletem as margens nas quais o autor se situou durante quase toda a sua vida. A negritude roubava-lhe a força; acentuava seu azedume diante dos costumes e das regras de uma sociedade racista e socialmente muito injusta. Junte-se as injustiças sociais, as perdas econômicas, a loucura e os delírios paternos, os seus temas recorrentes. Na revista Floreal, o autor inicia a publicação do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, cuja 1ª edição – portuguesa – começa a circular no Rio de Janeiro em dezembro de 1909. Isaías Caminha é o alter ego de Lima Barreto. Servia, às vezes, como pseudônimo do autor. O nar- rador desse romance assume a predileção pelos seus autores literários mais amados: Dostoiévski, de Crime e Castigo, Voltaire, de Contos, Tolstói, de Guerra e Paz, Flaubert, de Educação Sentimental, e, entre outros, Eça de Queirós e Stendhal. Entre 1920 e 1922, Lima Barreto conclui nada menos que cinco volumes: Histórias e Sonhos, Marginália, Feiras e Mafuás, Bagatela e Clara dos Anjos. Destes, viu publicado apenas Histórias e Sonhos. Em 1920, após deixar o hospício pela segunda vez, começa a escrever um importante roman- ce que deixou inacabado: O Cemitério dos Vivos. A obra, cujo trecho foi publicado na Revista Sousa Cruz, aponta para uma temática mais fortemente metafísica e existencial. Trata-se de um denso re- gistro, como atesta a voz de Vicente Mascarenhas – o narrador (BARRETO apud BARBOSA, 2002, p. 350): “eu sentia que interiormente eu resplandecia de bondade, de sonho de atingir a verdade, do amor pelos outros, de arrependimento dos meus erros e um desejo imenso de contribuir para que os outros fossem mais felizes [...] uma vontade de descobrir nos nossos defeitos o seu núcleo primitivo de amor e de bondade”. Literatura brasileira II14 1.3.2 Euclides da Cunha e a Guerra de Canudos No livro Os Sertões (1902), o engenheiro militar de alma aflita recria a guerra e a destruição de Canudos pelas tropas republicanas, há mais de cem anos, cujo resultado foi o massacre de uma cidade com uma população estimada entre 10 e 25 mil habitantes, em 1897. Texto híbrido que rompe com a noção de gênero literário, Os Sertões pode ser lido como um ensaio histórico de tonalidades e sintaxes romanescas, com desfecho de tragédia e alto teor de poesia. Sua volumosa fortuna crítica registra uma gama de títulos anunciando os múltiplos proce- dimentos poéticos de que Euclides lança mão, chegando a ser relacionado por Gilberto Freyre com o seu contemporâneo Augusto dos Anjos. Testemunha como jornalista de O Estado de São Paulo, Euclides escreve sob o impacto de ter entrado em contato com o universo verbal e a realidade histórica do sertanejo. Seu texto traduz as duras trilhas de um espaço cuja geografia apresenta – nos seus signos naturais e imaginários – elementos ásperos e violentos, como o clima quente e o solo seco. Para abarcar esse universo, onde a morte parece ser mais cultuada que a vida, Euclides pro- duz jogos intertextuais com autores de diversas procedências e mune-se de sofisticados recortes vocabulares, oriundos tanto do universo das ciências quanto da oralidade sertaneja. Tais recursos orais podem ser aferidos nas muitas falas e expressões sertanejas que o autor ouviu da “boca jagun- ça do povo/ linguagem/ poesia viva/ explodindo em seus tímpanos civilizados”, como diz o poeta Paulo Leminski (LEMINSKI, 2001, p. 78). Em seus Anseios Crípticos, o poeta do romance experimental Catatau lê Os Sertões como um texto “barroco positivista/ estilo de cipó” (LEMINSKI, 2001, p. 77). A bela metáfora – que vê o tex- to de Euclides como um cipó – foi concebida originariamente por um dos principais intérpretes do Brasil no final do século XIX: Joaquim Nabuco. Essa leitura, que possui a linguagem como um dos seus alvos, aponta para uma gradação estilística e formal, “um longo percurso textual”, que vai “das anotações às reportagens” até chegar à escrita definitiva de Os Sertões. Segundo Paulo Leminski (LEMINSKI, 2001, p. 75), Euclides da Cunha... traumatizou uma literatura feita por bacharéis ornamental “sorriso da sociedade” brilho dos salões do 2.º império A seguir, destacamos um trecho da terceira parte do livro Os Sertões (1902): Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um obje- tivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra mais demo- rada e digna. Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários. (CUNHA, 2000, p. 440) O momento pré-moderno no Brasil 15 1.4 Augusto dos Anjos e Raul de Leoni 1.4.1 A poética de Augusto dos Anjos A poesia de Augusto dos Anjos caracteriza-se por apresentar uma linguagem inusitada em relação à tradição literária, ostentando um recorte vocabular com termos “baixos” e antipoéticos. Esse recorte remete, às vezes, ao grotesco, como lemos em sonetos como “O morcego” ou nos ver- sos “O beijo, amigo, é a véspera do escarro” e “Escarra nesta boca que te beija” (“Versos íntimos”). Apesar desses termos antipoéticos, a poesia de Augusto dos Anjos é extremamente musical, seja pelo rigor da sua forma, seja pelo desejo do autor de, por meio da palavra, contatar a sonori- dade potencial dos seres. Acerca do recorte vocabular e da musicalidade dessa poesia, vejamos um trecho do soneto “Vandalismo” (ANJOS, 1987, p. 142), um dos poemas mais cultuados do único livro publicado em vida pelo poeta, Eu, em edição financiada por conta própria com ajuda de seu irmão Odilon, em 1912. Vandalismo Meu coração tem catedrais imensas, Templos de priscas e longínquas datas, Onde um nume de amor, em serenatas, Canta a aleluia virginal das crenças. Na ogiva fúlgida e nas colunatas Vertem lustrais irradiações intensas Cintilações de lâmpadas suspensas E as ametistas e os florões e as pratas. [...] A seguir, apresentamos a letra da canção “Bandalhismo”, recriação do soneto “Vandalismo”, uma paródia realizada em 1980 pelos compositores João Bosco e Aldir Blanc (BOSCO, 1980). Meu coração tem botequins imundos, Antros de ronda, vinte-e-um, purrinha, Onde trêmulas mãos de vagabundo Batucam samba-enredo na caixinha. Perdigoto, cascata, tosse, escarro, um choro soluçante que não para, piada suja, bofetão na cara e essa vontade de soltar um barro... Como os pobres otários da Central já vomitei sem lenço e sonrisal o P.F. de rabada com agrião... Mais amarelo do que arroz-de-forno, voltei pro lar, e em plena dor-de-corno quebrei o vídeo da televisão. Literatura brasileira II16 1.4.2 A poesia de Raul de Leoni Raul de Leoni é um poeta cuja obra clareia para nós a noção de sincretismo, à qual fizemos referência anteriormente como sendo própria do momento pré-moderno, por se tratar de uma ten- dência recorrente nos versos desse autor injustamente banido das principais antologias escolares. Autor de um único livro de poemas, Luz Mediterrânea (1922), Raul de Leoni herda dos poetas parnasianos o apreço pelo rigor e pela estrutura métrica; possui dos autores simbolistas o gosto pelos efeitos tonais e rítmicos e pelos símbolos como representação da existência; e, dos mo- dernos, antecipa o apreço pela ironia e pelo ceticismo, como demonstram poemas como “Ironia” e “Platônico”. Segundo Borja (2001, p. 4), não sendo exatamente parnasiano, por consentir-se uma liberdade formal mais próxima dos autores simbolistas, Leoni não chega também a alinhar-se com esses, dada a objetividade clássica de sua poesia. A melhor definição, se é que alguma pode dar contade um verdadeiro poeta, talvez seja aquela encontrada por Rodrigo Melo Franco, no prefácio à segunda edição de Luz Mediterrânea: “poeta das ideologias ou das abstrações”. O sincretismo que caracteriza a poesia de Luz Mediterrânea aponta para uma pluralidade que se manifesta também na visão de mundo do poeta. Segundo Queiroz (1999, p. 102), “ora seus poemas vêm inspirados de platonismo, ora, em posição diametralmente oposta, inspirados de nietzschismo, assim como de epicurismo e cepticismo, parecendo contradizer-se de um poe- ma para outro”. Alma estranha esta que abrigo, Esta que o Acaso me deu, Tem tantas almas consigo, Que eu nem sei bem quem sou eu. (QUEIROZ, 1999, p. 102) Nessa estrofe do poema “Confusão”, o autor estetiza, ainda segundo Queiroz (1999, p. 102), o “drama da identidade”. Essa estetização tem por base a leitura dos elementos dionisíacos e a ideia de pluralidade que apresenta em seu livro Luz Mediterrânea. Ampliando seus conhecimentos Pré-Modernismo (BOSI, 1994, p. 306) Creio que se pode chamar pré-modernista (no sentido forte de premonição dos temas vivos em 22) tudo o que, nas primeiras décadas do século, problematiza a nossa realidade social e cultural. O grosso da literatura anterior à “Semana” foi, como é sabido, pouco inovador. As obras, pon- tilhadas pela crítica de “neos” – neoparnasianas, neossimbolistas, neorromânticas – traíam o marcar passo da cultura brasileira em pleno século da Revolução Industrial. Essa literatura já foi vista, em suas várias direções, nas páginas dedicadas aos epígonos do Realismo e do O momento pré-moderno no Brasil 17 Simbolismo. No caso dos melhores prosadores regionais, como Simões Lopes e Valdomiro Silveira, poder-se-ia acusar um interesse pela terra diferente do revelado pelos naturalistas típicos, isto é, mais atento ao registro dos costumes e à verdade da fala rural; mas, em última análise, tratava-se de uma experiência limitada, incapaz de desvencilhar-se daquele conceito mimético de arte herdado ao Realismo naturalista. Caberia ao romance de Lima Barreto e de Graça Aranha, ao largo ensaísmo social de Euclides, Alberto Tôrres, Oliveira Viana e Manuel Bonfim, e à vivência brasileira de Monteiro Lobato o papel histórico de mover as águas estagnadas pela Belle Époque, revelando, antes dos moder- nistas, as tensões que sofria a vida nacional. [...] Dicas de estudo Para novas abordagens acerca do Pré-Modernismo e seus autores mais representativos, recomendamos: • o livro de Walnice Nogueira Galvão, No Calor da Hora (São Paulo: Ática, 1994). É uma leitura imprescindível para quem deseja entender melhor a Guerra de Canudos. Nesse ensaio, a autora faz uma leitura da recepção jornalística que o episódio teve na época, em diferentes cidades brasileiras. Além disso, o volume reúne as reportagens feitas no local da guerra; • a peça Os Sertões, dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Encenado em amplos espaços com tonalidades épicas, o espetáculo dialoga outras artes como a música, o vídeo, a dança, o circo, e com a própria biografia de Euclides da Cunha. Pode ser vista em quatro DVDs lançados em 2007; • o filme Policarpo Quaresma: herói do Brasil, com o ator Paulo José no papel do herói, di- rigido por Paulo Thiago. Trata-se de um roteiro construído com base no romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Atividades 1. Por quais motivos podemos afirmar que o momento pré-moderno, no Brasil, foi um período de sincretismo estilístico na literatura brasileira? 2. Como podemos definir a postura antiliterária de Lima Barreto? 2 As vanguardas europeias Neste capítulo, vamos conhecer os principais movimentos de vanguarda europeia do início do século XX. Esses movimentos influenciaram fortemente a estética do Modernismo brasileiro. São eles: Futurismo, Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo e Surrealismo. Nosso objetivo é conhecer os autores e os artistas mais representativos dessas correntes de van- guarda, contextualizando-as, tanto com o intuito de apreender as proposições técnicas que configuram seus estilos quanto de abordar as perspectivas existenciais e a visão de mundo de tais estéticas. As manifestações mais importantes das hoje chamadas vanguardas históricas surgiram, no geral, por volta da Primeira Guerra Mundial, embora seus desdobramentos abranjam o contexto da Segunda Guerra e atravessem todo o século XX, reverberando nas várias propostas do nosso Modernismo. Essa reverberação é perceptível, por exemplo, nas produções estéticas de Mário e Oswald de Andrade e nas obras de Murilo Mendes e Jorge de Lima, autores visivelmente influen- ciados pelo Surrealismo. 2.1 Vanguardas: origens e sentidos De origem francesa – avant-garde – a palavra vanguarda significa “o que marcha na frente”. Oriundo da esfera militar (a tropa que marcha na frente), o termo foi utilizado pelos vários movi- mentos estéticos que surgiram na Europa no início do século XX, atestando as mutações políticas e culturais que aconteceram naquele contexto. As vanguardas traduzem o novo. Suas obras apontam para o que se encontra à frente; seja nos vários campos das artes ou na esfera da cultura, seja nos domínios da sociedade ou da políti- ca. Segundo Gilberto Mendonça Teles, “a vanguarda representa a mudança de crenças...” (TELES, 1985, p. 82). Daí a busca frequente da novidade e da ruptura com o passado, nos âmbitos dos valo- res, das filosofias, das religiões, das estéticas. Muitos desses movimentos de vanguarda acabaram por assumir um comportamento próximo ao estilo dos partidos políticos. Sendo assim, algumas correntes estéticas possuíam militantes, lançavam manifestos e acreditavam que a verdade encontrava-se com eles. A história das vanguardas demonstra que o repasse dessas verdades nem sempre ocorreu de forma simples e com bons modos. Cortar, agredir, rasgar, inverter, gritar. Esses são alguns dos verbos prediletos dos artistas de vanguarda, que eles conjugam com frequência na vida e nos manifestos. Por isso, é normal que a tensão e a agressão sejam sentimentos inerentes aos criadores que transitam na linha de frente das Literatura brasileira II20 vanguardas, como atesta a leitura feita por Teles: “Toda vanguarda sempre se caracteriza pela sua agressividade, manifestada no antilogismo, no culto a valores estranhos (o negrismo dos cubistas), os poderes mágicos, a beleza da anarquia, o instantaneísmo, o dinamismo, a imaginação sem fio” (TELES, 1985, p. 82). Ao assumir tais valores, as vanguardas traduzem os estilos de vida e uma certa estética do choque, da agressão, que tem muito a ver com o comportamento e a sensibilidade urbana moderna, que começaram a ser produzidas a partir de fins do século XIX. Assim sendo, é im- portante ressaltar que as estéticas de vanguardas assumiram importantes papéis na formação do homem contemporâneo. O sentido das correntes de vanguardas europeias pode ser dimensionado no fato de elas re- fletirem, na maioria das vezes, o ritmo de vida fragmentado e as mutações oriundas da percepção apressada dos centros urbanos. Essas vanguardas traduzem, com os seus gritos e as suas palavras de ordem, uma outra sensibilidade, que se configura a partir do advento da chamada Belle Époque, quando foram criadas novas maneiras de ler o mundo. Alia-se a isso a presença das máquinas e dos inventos surgidos no início do século XX – o telégrafo, o telefone, o automóvel, a lâmpada elétrica, o cinema, o avião – e que fizeram aumentar a fé no progresso e na ciência. Referindo-se à Belle Époque e aos seus desdobramentos estéticos durante o século XX, diz o autor de Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro: “É a época das boêmias literárias, como as de Mont-martre e Munique. Dessa literatura de cafés e boulevards, de transição pré-vanguardista, é que vão se originar os inúmeros –ismos que marcarão o desenvolvimento de todas as artes neste século” (TELES, 1985, p. 39). Na leitura que empreende acerca do sincretismo literário que ocorreu no final do século XIX, Telesé bastante didático ao tecer filiações entre as estéticas daquele contexto e seus desdobra- mentos. Desdobramentos que vão dar nas propostas das vanguardas. Segundo ele, [...] as várias tendências literárias do fim do século podem perfeitamente agru- par-se em torno de duas estéticas fundamentais: a do simbolismo, com que o decadentismo e o neoclassicismo guardam afinidades temático-expressivas; e a do naturismo, a que se ligam tendências reveladas pelos manifestos socialistas e unanimistas, e que vai evoluir no sentido do aparecimento da vanguarda com o manifesto de Marinetti. (TELES, 1985, p. 40) Com base nessa leitura, veremos a seguir os cinco principais movimentos de vanguarda que marcaram a Europa no início do século XX e que foram fundamentais para a consolidação do projeto da modernidade no Brasil. Comecemos, pois, pelo Futurismo, corrente de vanguarda italiana que influenciou diversos autores de nosso Modernismo, como, por exemplo, Oswald e Mário de Andrade. As vanguardas europeias 21 2.2 O Futurismo O Futurismo tem origem em 1909, quando o jornal parisiense Le Figaro publica o Manifesto Futurista, de Filippo Tommaso Marinetti. O manifesto surpreende os meios artísticos e intelectuais europeus pelo seu radicalismo e pela forma violenta de suas proposições1. Como o próprio título sugere, Futurismo é uma corrente de vanguarda que descarta o passa- do. Esse descarte se dá em prol de uma luta agressiva, em que as ideias de movimento e velocidade são o combustível para a criação artística. São ideias inovadoras, que surgem em sintonia com o desejo de destruir, como podemos ler no fragmento número 11 do Manifesto Futurista: A Itália foi durante muito tempo o grande mercado das quinquilharias. Nós queremos desembaraçá-la dos museus inumeráveis que a cobrem de inumerá- veis cemitérios. [...] Museus cemitérios! [...] Idênticos verdadeiramente no seu sinistro acotovelamento de corpos que não se conhecem. ... (MARINETTI apud TELES, 1985, p. 92) Atentos à percepção urbana e tecnológica do início do século XX, os futuristas são respon- sáveis pela destruição da sintaxe e pela inclusão, no texto, de sinais da matemática, ao invés da pontuação. A consolidação da estética futurista se dá mais nos campos da literatura e da pintura. Seu líder Marinetti escreve que autores como Walt Whitman2 e Zola3 são os precursores referenciais para a sua escola. Segundo Annateresa Fabris (1994, p. 19), “o movimento de Marinetti é nuclear para a compreensão de uma estratégia básica da vanguarda que funde em sua ação arte e estética, práxis e teoria”. 2.2.1 As três fases do Futurismo Apesar de polêmica e complexa, a história do Futurismo pode ser dividida nas três fases a seguir (TELES, 1985, p. 86): 1ª – De 1905 a 1909 • Nesta primeira fase, o verso livre é o princípio estético que rege o texto. 2ª – De 1909 a 1914 • Fase em que é publicada a maioria dos manifestos futuristas. 1 Segundo Teles, “esse manifesto foi no mesmo ano publicado no Jornal de Notícia, da Bahia, em 30 de dezembro de 1909, tendo, no entanto, passado despercebido” (TELES, 1985, p. 85). 2 Walt Whitman (1819-1892) – poeta norte-americano, cantor da democracia e do progresso da humanidade, de uma América idealizada e moderna. Louvou a liberdade do corpo, da alma e da política, expressas em versos brancos extensos, prosaicos e vigorosos. É considerado, por muitos críticos, o maior poeta dos Estados Unidos. 3 Émile Zola (1840-1902) – escritor francês naturalista, cuja obra mais conhecida é Germinal (1885), romance que trata da vida dos mineradores na França. Literatura brasileira II22 3ª – De 1919 em diante • Nesta última fase, o Futurismo passa a ser porta-voz do fascismo italiano. A seguir, apresentamos as quatro primeiras vontades publicadas por Marinetti em 1909. Primeiro Manifesto do Futurismo (MARINETTI apud TELES, 1985, p. 91) 1 – Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito à energia e à temeridade. 2 – Os elementos essenciais de nossa poesia serão a coragem, a audácia e a revolta. 3 – Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êx- tase e o sono, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco. 4 – Nós declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre adornado de grossos tubos como serpentes de fôlego explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Somotrácia. [...] 2.3 O Expressionismo Embora tenha surgido por volta de 1910, o Expressionismo “tornou-se conhecido no mun- do depois de 1918, quando os seus adeptos agiram como propagandistas da revolução republicana e socialista na Alemanha” (CARPEAUX, 1968, p. 81). Foi o primeiro movimento de vanguarda a perceber e lutar contra os aspectos trágicos do mundo técnico moderno, ao contrário do Futurismo, que cantava a máquina e suas qualidades intrínsecas como se fossem as novas deusas vitais de uma segunda natureza, a da tecnologia. Crendo na obra de arte como expressão do mundo interior do artista, o Expressionismo é um movimento de vanguarda que possui fortes conotações sociais. Para o artista expressionista, a realidade atroz e o sentido trágico da vida são pressupostos para a criação de uma arte que, de forma contestatória, descarta os conceitos de belo e feio. O Expressionismo “antecipou claramente alguns aspectos essenciais do Surrealismo” (TELES, 1985, p. 105). Assim como acontecerá com o Surrealismo, as propostas dos expressionistas atingem As vanguardas europeias 23 vários domínios da arte, como a arquitetura e o cinema. Na música, Schoenberg é a referência. Na pintura, destacam-se Van Gogh, Kandinski, Edvard Munch, Paul Klee e Chagall; na literatura, Thomas Mann4, Hermann Hesse5 e August Stramm, dentre outros. Figura 1 – O Grito, de Edvard Munch, traduz a angústia existencial do ser humano. Fonte: MUNCH, Edvard. O grito.1910. Têmpera sobre tela, 83 x 66 cm. Museu Munch, Oslo, Noruega. A terra é uma paisagem imensa que Deus nos deu [...] Assim, o universo do artista expressionista torna-se visão. Ele não vê, mas percebe. Ele não descreve, acumula vivências. Ele não reproduz, ele estrutura (gestaltet). Ele não colhe, ele procura. Agora não existe mais a cadeia dos fatos: fábricas, casas, doença, prostitutas, gritaria e fome. Agora existe a visão disso. Os fatos têm significado somente até o ponto em que a mão do artista os atravessa para agarrar o que se encontra além deles. [...] (KASIMIR apud TELES, 1985, p. 111) 2.4 O Cubismo O Cubismo é uma corrente de vanguarda que influenciou fortemente duas artes: a pintu- ra e a poesia. Surgido em 1907, com Picasso e seu quadro Les Demoiselles d’Avignon, o Cubismo opõe-se à objetividade e sua direção é contrária à arte realista. Além de Picasso, na pintura cubista podemos destacar os nomes de Mondrian, Braque e Picabia. Na literatura, sobressaem, dentre outros, Apollinaire e Blaise Cendrars. Este último, cos- mopolita e viajante, autor de Poesia em Viagem, conheceu o Brasil na década de 20 e influenciou autores do nosso Modernismo, como Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. 4 Thomas Mann (1875-1955) – escritor alemão, cuja obra mais conhecida é A Montanha Mágica (1924). Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1929. 5 Hermann Hesse (1877-1962) – romancista alemão de cultuados livros como Demian (1919) e O Lobo da Estepe (1927). Um dos autores prediletos de Clarice Lispector, Hesse seduz o leitor rebelde e abissal na sua fase de formação. Ganhou o Prêmio Goethe e o Prêmio Nobel de Literatura em 1946. Literatura brasileira II24 A pintura cubista se desenvolveu a partir do construtivismo de Cézanne, criando uma técni- ca em que elementos da geometria ganham a cena. “A sua técnica é a da representação da realidade através de estruturas geométricas, desmontando os objetos para que, remontados pelo espectador, deixasse transpareceruma estrutura superior, a forma plástica essencial e verdadeira da beleza” (TELES, 1985, p. 114). Ao contrário da maioria dos movimentos de vanguarda, o Cubismo não lançou manifestos de poesia. No entanto, o texto do poeta Apollinaire, “Meditações estéticas sobre a pintura”, embora remeta mais às questões da pintura, apresenta um olhar estético que irradia muito da função poé- tica dos cubistas. Diz o texto de 1913: Os grandes poetas e os grandes artistas têm por função social remover conti- nuamente a aparência que reveste a natureza, aos olhos dos homens. Sem os poetas, sem os artistas, os homens aborrecer-se-iam depressa com a monotonia natural. [...] Os poetas e os artistas determinam e concertam a imagem de sua época e docilmente o futuro se amolda ao seu gosto. (APOLLINAIRE apud TELES, 1985, p. 115) Esse trecho é fundamental para entendermos o lugar do poeta no contexto da modernidade. Nas “Meditações” de Apollinaire ressalta-se, além da monotonia da natureza, a determinação do poeta como criador que possui a função de ordenar o mundo de acordo com o seu contexto6. 2.5 O Dadaísmo De dimensões internacionais e urbanas, o Dadaísmo surge em 1916, em Zurique, como um não à guerra. Os dadaístas criam uma estética que atira na decadência da civilização e nos perigos que a guerra produz: a instabilidade, o medo, o desprezo pelo outro, o silêncio que angustia e cria monstros. Por isso os dadaístas expressam e reproduzem a negação, produzindo tais sentimentos em seus textos fragmentados e fora da ordem gramatical. Segundo Tristan Tzara, o líder dadaísta, a palavra dadá não possui uma significação plena. O nome de batismo do movimento que lançou vários manifestos foi encontrado casual- mente. O Dadaísmo nega o paradigma social e sua força opressora, sendo considerado “o mais radical movimento intelectual dos últimos tempos” (TELES, 1985, p. 131). Os manifestos do Dadaísmo nem sempre apresentam coerência gramatical. Suas frases des- denham, na maioria das vezes, da ordem sintática e da produção do sentido, como podemos obser- var, a seguir, no fragmento que abre o Manifesto do Senhor Antipirina: “Dadá é nossa intensidade: quem levanta as baionetas sem consequência a cabeça sumatral do bebê alemão; Dadá é a vida sem pantufas nem paralelos; quem é contra e pela unidade e decididamente contra o futuro [...]” (TZARA apud TELES, 1985, p. 135). 6 Para conhecer algumas importantes pinturas desse movimento, acesse: <https://www.wikiart.org/pt/paintings-by style/cubismo?select=featured#!#filterName:featured,viewType:masonry>. Acesso em: 20 jul. 2018. As vanguardas europeias 25 Quando consegue fugir da desordem e produzir algum sentido, o texto dadaísta pode tor- nar-se agressivo, como demonstra o segundo fragmento do mesmo Manifesto: “Dadá permanece no quadro europeu das fraquezas, no fundo é tudo merda, mas nós queremos doravante cagar em cores diferentes para ornar o jardim zoológico da arte de todas as bandeiras dos consulados” (TZARA apud TELES, 1985, p. 135). 2.6 O Surrealismo Na cronologia das vanguardas europeias, o Surrealismo é o último movimento a lançar o seu manifesto. Isso acontece em 1924, quando o poeta francês André Breton lança o Manifesto do Surrealismo. Por esse motivo, Walter Benjamin diz ser esse movimento de vanguarda “o último instantâneo da inteligência europeia” (BENJAMIN, 1993, p. 21). O manifesto de Breton critica a atitude realista e vê o homem como um sonhador definitivo (BRETON apud TELES, 1985, p. 174), assumindo a importância do sonho e do imaginário como espaços da produção do saber e do sentido. Irônico e sucinto, o autor afirma: “Cara imaginação, o que eu amo, aprecio, sobretudo em você, é que você não perdoa” (BRETON apud TELES, 1985, p. 175). Essa crítica é extensiva, dentre outros gêneros, ao romance de estilo informativo, aos seus narradores donos das chaves do real e às suas convincentes descrições com apelos de verdade. Assim como o Dadaísmo, o Surrealismo propõe a destruição da ordem social. Apesar disso, a divergência entre os dois movimentos é visível, já que os surrealistas desejam recriar a sociedade a partir de novos paradigmas estéticos e sociais. Também ao contrário do Dadaísmo – estética de vanguarda cuja influência se restringe mais ao universo da literatura –, a arte surrealista repercutiu em diferentes domínios da produção artística e recebeu forte influência da obra de Freud. Na literatura surrealista destacam-se os seguintes autores: André Breton, Louis Aragon e Paul Éluard. No teatro, Antonin Artaud figura como a grande referência que norteará as artes cênicas do século XX. Nas artes plásticas, os nomes mais importantes são os de Salvador Dalí, De Chirico e Joan Miró. No cinema, Luis Buñuel destaca-se como o diretor mais representativo da es- tética surrealista, chegando a dirigir um de seus filmes, Um Cão Andaluz (1928), em parceria com o pintor Salvador Dalí. Em ensaio que trata das produções de Breton e Miró, Octávio Paz nos “narra”, de forma poética, o modo como vê os dois artistas. Acerca do pintor surrealista, o poeta e crítico mexicano capta uma percepção dialógica entre a oralidade e a visibilidade, e diz: ele “escutava com os olhos muito abertos e um sorriso de lua camponesa extraviada na cidade” (PAZ, 1991, p. 220). De André Breton, brota uma percepção oral: “A voz de Breton era profunda e rítmica; lia devagar e com leves modulações litúrgicas” (PAZ, 1991, p. 222). Afirmando que Miró “pintava como uma criança de cinco mil anos de idade”, Paz conclui o seu ensaio com as seguintes palavras: “Para Breton, as Constelações de Miró literalmente ilumina- vam as obscuras relações entre a história e a criação artística” (PAZ, 1991, p. 222-223). Literatura brasileira II26 Ampliando seus conhecimentos Manifesto do Surrealismo (BRETON, 1985, p. 174-176) Tão longe vai a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, a vida real entenda-se, que, por fim, esta crença se perde. O homem, este sonhador definitivo, dia a dia mais insatisfeito com sua sorte, passa em revista, a custo, os objetos de que foi levado a fazer uso, aos quais dispensou sua incúria, ou seu esforço, quase sempre seu esforço, pois que ele consentiu em trabalhar, pelo menos não lhe repugnou tentar uma oportunidade (aquilo que ele chama sua oportunidade!) Uma grande moderação é presentemente seu quinhão: ele sabe as mulheres que possuiu, em que aventuras ridículas se meteu; sua riqueza ou sua pobreza de nada lhe ser- vem, em relação a elas ele permanece como o garoto que acaba de nascer e, quanto à aprovação de sua consciência moral, eu creio que ele prescinde dela facilmente. Se ele conserva alguma lucidez, só pode se voltar então para sua infância que, por mais mascarada que tenha sido pelo cuidado dos moralistas, daqueles que querem tudo muito bem feito, não lhe parece menos cheia de encantos. Lá, a ausência de todo rigor conhecido deixa-lhe a perspectiva de vários caminhos percorridos ao mesmo tempo; ele se enraíza nesta ilusão; quer saber apenas da faci- lidade momentânea, extrema, de todas as coisas. Cada manhã, crianças partem sem inquie- tude. Tudo está perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são brancos ou pretos, não se dormirá jamais. Mas é verdade que não se ousaria ir tão longe, não se trata apenas da distância. As ameaças acumulam-se, concede-se, abandona-se uma parte do terreno a conquistar. Essa imaginação que não conhece limites, só lhe é permitida exercitá-la de acordo com as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo este papel secundário, inferior e, por volta dos 20 anos, prefere, geralmente, abandonar o homem a seu destino sem luz. [...] Cara imaginação, o que eu amo, aprecio, sobretudo em você, é que você não perdoa. [...] Resta a loucura, “a loucura que nos prende”, disseram bem. Essa ou a outra... Cada um sabe, com efeito, que os loucos só devem seu internamento a um pequeno número de atos legal- mente repreensíveis,e que, na falta destes atos, sua liberdade (o que se vê de sua liberdade) não estaria em jogo. Que eles sejam, numa medida qualquer, vítimas de sua imaginação estou pronto a concordar, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas normas, fora das quais o gênero se sente visado, o que todo homem é pago para saber. Mas o profundo despren- dimento, desapego de que eles dão testemunho em relação à crítica que lhes fazemos, quiçá aos corretivos diversos que lhes são infringidos, permite supor que eles sentem um grande conforto na imaginação, que eles se comprazem bastante com seu delírio, para suportar que esse delírio só seja válido para eles. E, de fato, as alucinações, as ilusões etc., não constituem uma fonte de prazer negligenciável. A sensualidade mais ordenada ali se enquadra e eu sei que eu domesticaria muitas noites essa mãozinha bonita que, nas últimas páginas de G’Intelligence, de Taine, se entrega a curiosos delitos. As confidências dos loucos, eu passaria a vida a provo- cá-las. São pessoas de uma honestidade escrupulosa e cuja inocência só é comparável à minha. As vanguardas europeias 27 Foi preciso que Colombo partisse com loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura se corporificou e durou. Não será o temor da loucura que nos forçará a hastear a bandeira da imaginação a meio pau. O processo da atitude realista demanda ser estudado, após o processo da atitude materialista. Esta, mais poética, além disso, do que a precedente, implica por parte do homem num orgu- lho, decerto, monstruoso, mas não numa nova e mais completa queda, num novo declínio. Convém ver nisso, antes de tudo, uma feliz reação contra alguma tendência irrisória do espiri- tualismo. Enfim, ela não é incompatível com uma certa elevação de pensamento. Ao contrário, a atitude realista, inspirada no positivismo, de Santo Tomás a Anatole France, tem um ar hostil a todo arrojo intelectual e moral. Tenho horror a ela, pois é feita de mediocri- dade, de ódio e suficiência sem atrativo. É ela que engendra, hoje, estes livros ridículos, estas peças insultuosas. [...] Dicas de estudo Para novas abordagens acerca das vanguardas europeias, suas obras e seus autores mais re- presentativos, recomendamos: • UM CÃO andaluz. Produção e direção de Luis Buñel. Roteiro de Luis Buñel e Salvador Dalí. França, 1929. 16 min. Esse filme é codirigido por Salvador Dalí e apresenta temas e mecanismos relacionados aos sonhos. Como obra de vanguarda, desafia o espectador. Suas imagens e seus ritmos misturam prazer estético com uma percepção cortante que pode causar angústia. Ao modo surrealista, trata-se de uma arte que dialoga com a esfera dos instintos; • Obra do compositor Arnold Schoenberg. Além de teórico, era um músico cuja comple- xidade harmônica e inventiva possibilitou a criação de um dos mais revolucionários es- tilos musicais do século XX: o dodecafonismo7. Conheça um pouco mais da obra em: <http://www.casadamusica.com/pt/artistas-e-obras/compositores/s/schoenberg-arnold/ #tab=0>. Acesso em: 20 jul 2018. • SANT’ANNA. Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão. Rio de Janeiro: Vieira e Lent, 2003. O livro lança um olhar sobre a arte nos últimos 150 anos, questionando con- ceitos como vanguarda, arte moderna, arte pós-moderna e arte contemporânea. 7 O dodecafonismo é fruto da atonalidade e da música serial. Ao invés de usar um tom determinado para compor – dó, ré, lá etc. –, trabalhando com as diferentes alturas de sons da escala tonal, a música atonal de ordem serial e dodecafônica se ocupa de todos os 12 graus da escala cromática – dó, dó sustenido, ré, ré sustenido etc. Com isso, há uma perfeita igualdade no uso de todos os graus da escala, da mesma forma que na pintura expressionista, preocupada mais com a cor do que com a linha, pois as cores expressam melhor os sentimentos subjetivos, não existe a perspectiva clássica, na qual um elemento fica à frente dos outros. A hierarquia dos elementos da perspectiva clássica atuaria assim para insistir na comparação entre música e pintura, de modo semelhante ao da organização dramática das alturas na música tonal. No serialismo dodecafô- nico atonal, ao contrário, a intensidade da emoção expressiva se espalha por igual pelas notas, que podem se alternar nos timbres e nos modos de combinações, a partir da construção de uma série básica cromática de sons. Literatura brasileira II28 Atividades 1. Como explicar o caráter agressivo e demolidor da maioria dos movimentos de vanguarda? 2. Que relações podemos estabelecer entre as estéticas do Dadaísmo e do Surrealismo? 3 A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos Neste capítulo, adentraremos em uma das zonas centrais do universo da modernidade: va- mos estudar o Modernismo brasileiro! Inicialmente, abordaremos a sua fase heroica, que acontece na segunda década do século XX. O marco histórico desse momento é a Semana de Arte Moderna de 1922. Veremos, com isso, os antecedentes e os fatos que ocorreram durante momento tão signi- ficativo de nossa história literária contemporânea. O movimento modernista criou, segundo um dos seus ideólogos mais celebrados, o poeta e ensaísta Mário de Andrade, “um estado de espírito nacional” (ANDRADE, 1972c, p. 231). Estudar esse período da nossa historiografia literária significa, portanto, ler os múltiplos textos que a cons- trução da modernidade produziu no Brasil, em sintonia com as ideias de arte e nação. É nosso objetivo atentar para a produção e a recepção desses escritos modernos e seus dife- rentes gêneros estéticos, sejam os manifestos de cunho político e cultural, sejam os documentos ou os textos críticos. Vamos conhecer as propostas estéticas e culturais inseridas nos principais ma- nifestos da primeira fase Modernista: Pauliceia Desvairada e A Escrava que não é Isaura, de Mário de Andrade (1893-1945), e o Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade (1890-1954). Além de manifestos dos dois principais ideólogos dialéticos de nosso Modernismo, vamos conhecer, também, os manifestos dos artistas de direita: o Verde-Amarelismo e o Grupo Anta, entre outros. 3.1 Antecedentes da Semana Ao reler o Modernismo brasileiro no ensaio “O movimento modernista”, Mário de Andrade deixa claro que os antecedentes da Semana de Arte Moderna estão diretamente relacionados à noção de heroísmo. Esse heroísmo vem associado às ideias de liberdade e pureza. Segundo o poeta modernista, naquela segunda década do século XX, o grupo modernista vivia “numa união ilumi- nada e sentimental das mais sublimes” (ANDRADE, 1972c, p. 237). Essa fase heroica dura, mais ou menos, seis anos. Compreende, segundo o autor de Pauliceia Desvairada, o período que vai do escândalo causado pela exposição de pintura de Anita Malfatti, em 1917, até a Semana de Arte Moderna que aconteceu de 11 a 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Referindo-se a essa exposição de Anita Malfatti, Mário de Andrade diz: “Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação” (ANDRADE, 1972c, p. 232). Literatura brasileira II30 Essa “revelação” teria um preço. Ela seria um marco no contexto que antecede a Semana, sendo assim relida por Bosi (1994, p. 333): [...] o fato cultural mais importante antes da Semana e que serviu de barômetro da opinião pública paulista em face das novas tendências foi a exposição de Anita Malfatti em dezembro de 1917. Quem lhe deu, paradoxalmente, certo relevo foi Monteiro Lobato que a criticou de modo injusto e virulento em um artigo intitulado “Paranoia ou Mistificação?”. Concebendo a Semana de Arte Moderna como “construção de uma ruptura”, o ensaísta Evando Nascimento entrevê duas faces no Brasil no início do século XX. Segundo ele, “a oficialida- de cultural era perfeitamente harmônica com o atraso econômico do país” (NASCIMENTO, 2002, p. 31). Exemplo dessa harmonia é o poeta parnasiano Olavo Bilac, citado por Nascimento, e suas campanhas educacionais de conotaçãocívica. Acerca da polêmica causada pela exposição de Anita e do texto “Paranoia ou Mistificação?”, ele diz: No caso de Anita estão, pela primeira vez, defrontados publicamente no Brasil dois valores radicalmente distintos. Um é o valor representativo do conser- vadorismo cultural da época; as palavras de Monteiro Lobato reproduzem os parâmetros de uma estética acadêmica que entendia a pintura como reprodução direta da natureza. Outro é o valor absolutamente novo, expresso nos quadros de Anita, de uma arte que atende a seus próprios princípios, não tendo um compromisso fotográfico com os objetos da realidade natural (NASCIMENTO, 2002, p. 34) Esse “valor absolutamente novo” está em sintonia com os movimentos da vanguarda euro- peia do início do século XX e circula como ideia viajante pelas reuniões dos intelectuais e das elites nos salões urbanos, nas quais ocorriam atividades artísticas e gastronômicas. Mário de Andrade destaca, dentre outras, a reunião da Rua Lopes Chaves, em São Paulo. Segundo ele, “essa reunião precedeu mesmo a Semana de Arte Moderna” (ANDRADE, 1972c, p. 239). Depois de Anita, em 1917, foi a vez do escultor Victor Brecheret, em 1919, causar polêmica, mas com uma recepção diferente. Lobato dessa vez não repudia o trabalho do artista que estudou em Roma, e se junta a Di Cavalcanti, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, entre outros artis- tas e produtores, para saudá-lo. O lançamento da revista O Pirralho, criada por Oswald de Andrade e Emílio de Menezes, a realização desses dois eventos das artes plásticas aos quais aludimos e uma série de vários outros episódios pontuais e menores, acontecidos durante a chamada fase heroica da nossa modernidade, contribuíram para atingirmos o marco que funda o Modernismo brasileiro: a Semana de Arte Moderna de 1922. 3.2 A Semana de 1922 Embora tenha acontecido de 11 a 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, a Semana de Arte Moderna teve os seus eventos realizados durante três dias: 13, 15 e 17. “A pro- posta era unir aos festejos do Centenário da Independência em 1922, o marco de uma outra inde- pendência, a da cultura brasileira” (NASCIMENTO, 2002, p. 43). A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos 31 Na abertura da programação destaca-se a conferência do escritor Graça Aranha, “A emoção estética na arte moderna” (vide texto complementar), ilustrada com música e poesia. A conferência foi seguida de um concerto do maestro Villa-Lobos e publicada depois por Aranha no livro Espírito Moderno, de 1925. Dentre outros artistas importantes que participaram, direta ou indiretamente, da Semana de Arte, podemos destacar: Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Paulo Prado. Acerca da programação do evento, diz o historiador Mário da Silva Brito (apud BOSI, 1994, p. 337): A grande noite do festival foi a segunda. A conferência de Graça Aranha, que abriu os festivais, confusa e declamatória, foi ouvida respeitosamente pelo pú- blico, que provavelmente não a entendeu, e o espetáculo de Villa-Lobos, no dia 17, foi perturbado, principalmente porque se supôs fosse “futurismo” o artista se apresentar de casaca e chinelo, quando o compositor assim se calçava por estar com um calo arruinado... Mas não era contra a música que os passadistas se revoltavam. A irritação dirigia-se especialmente à nova literatura e às novas manifestações de arte plástica. Ao referir-se à Semana de Arte Moderna, o poeta Mário de Andrade utiliza palavras e ex- pressões como: “o brado coletivo principal”, “batalha”, “escândalo público permanente”, “coroamen- to lógico dessa arrancada gloriosamente vivida” e “festa” (ANDRADE, 1972c, p. 241). Tal entu- siasmo pode ser aferido nos desejos expressos no discurso realizado por um outro participante do evento, o poeta Menotti del Picchia. Diz ele, no segundo dia da Semana: Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismo, motores, chaminés de fábrica, sangue, velocidade, sonho, na nossa Arte. E que o ruído de um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o último deus homérico, que ficou, anacronicamente, a dormir e a sonhar, na era do jazz-band e do cinema, com a frauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena! (PICCHIA apud BOSI, 1994, p. 338) Apesar dos desejos de ruptura e demolição expressos nesses textos relacionados à Semana de Arte Moderna, é importante atentarmos para os patrocinadores do evento. Acerca desse patro- cínio, que tem na pessoa do Paulo Prado o seu signo referente, o historiador Mário da Silva Brito nos auxilia a compreender melhor o seu significado mais amplo: “É interessante assinalar que o Correio Paulistano, órgão do PRP1, do qual Menotti del Picchia era o redator político, agasalhava os ‘vanguardistas’, com o consentimento de Washington Luís, presidente do Estado” (BRITO apud BOSI, 1994, p. 339). 3.3 Manifestos de Mário de Andrade Embora não tenha escrito exatamente um texto com o título de manifesto, Mário de Andrade publicou vários ensaios e escritos – em livros, jornais, revistas – nos quais manifestava aquelas que seriam consideradas, mais tarde, as linhas mestras da nossa modernidade. Pesquisador que empreendeu várias viagens de pesquisa folclórica e etnográfica ao Norte e Nordeste do Brasil, Mário era um intelectual consciente da importância do nosso 1 O autor refere-se aqui ao Partido Republicano Paulista. Literatura brasileira II32 passado nacional e soube louvar, de modo crítico e seletivo, a tradição literária brasileira. Apesar de ser considerado conciliatório no universo estético, o poeta, nos momentos de maior radicalidade e desejo de mudança, rompe com essa tradição, por estar inserido no contexto das reverberações da fase heroica de nosso Modernismo. Isso fica claro na autoavaliação feita pelo autor em 1942, três anos antes de sua morte: “O Modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a inteligência nacional” (ANDRADE, 1972c, p. 235). A seguir estudaremos dois textos publicados por Mário de Andrade, que podem ser lidos como manifestos da modernidade brasileira: Pauliceia Desvairada (1922) e A Escrava que não é Isaura (1925). 3.3.1 Pauliceia Desvairada Escrito a partir das influências das vanguardas europeias, Pauliceia Desvairada (1922) é considerado o primeiro livro de poemas modernistas de nossa literatura. O volume tem a cidade de São Paulo como tema e personagem e traz, na abertura, um texto escrito pelo próprio autor, com o sugestivo título de “Prefácio interessantíssimo”. Mas antes de conhecermos esse texto, vejamos como surgiu, segundo Mário de Andrade (1972c, p. 234), o livro que funda nossa modernidade poética: Me lembro que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Não sei o que me deu. Fui até a es- crivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, “Pauliceia Desvairada”. O estouro chegara afinal, depois de quase ano de angústias, inter- rogativas. Entre desgostos, brigas, em pouco mais de uma semana estava jogado no papel um canto bárbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte deu num livro. O canto bárbaro de Mário de Andrade abre-se com um texto que funda uma nova poética: o Desvairismo. Essa poética, sob inspiração vanguardista, quer ter a duração da leitura do mani- festo, já que no próprio documento o autor informa que “no próximo livro” fundará outra poética. Leiamos a seguir a abertura do irônico “Prefácio interessantíssimo” (ANDRADE apud TELES, 1985, p. 298). Leitor: Está fundado o Desvairismo. Este prefácio, apesar de interessante, inútil. [...] Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu incons- ciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo. [...] Nessa introdução,o autor justifica o livro. Depois ele apresenta uma teoria na qual se des- tacam elementos da poética, da música e da gramática, dentre outros. Com esse “Prefácio interes- santíssimo”, o autor “antecipa-se ao Primeiro Manifesto do Surrealismo de André Breton de 1924, quando pregava o primado do inconsciente, que os surrealistas chamariam de ‘“escrita automáti- ca”’ (ABEL, 1985, p. 8). A diferença é que Mário se dispõe a corrigir e justificar o que escreve sem A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos 33 pensar; os surrealistas, ao contrário, têm como proposta trazer à tona, para a realidade, as forças da palavra que vem do subconsciente profundo, sem essa arrumação do intelecto. 3.3.2 A Escrava que não é Isaura O título desse ensaio de Mário de Andrade é uma paródia do romance do escritor mineiro e romântico Bernardo Guimarães, autor de A Escrava Isaura, publicado em 1875. “Através de uma parábola, Mário apresenta a poesia como uma mulher nua que os homens, com o passar dos tempos, foram cobrindo de roupas e joias, até que um vagabundo genial (Rimbaud) deu um pontapé naquele monte de roupas e deixou outra vez a mulher nua – a poesia moderna” (TELES, 1985, p. 302). A seguir, vejamos a primeira parte do ensaio, na qual o autor ressalta a poética (o fenômeno da criação) e desenvolve temas ligados à produção artística. Dentre esses temas, destacam-se o lirismo, a beleza, a retórica e a relação com o passado, como recortado a seguir (TELES, 1985, p. 303). Primeira Parte [...] Belas-artes: “Começo por conta de somar: / Necessidade de expressão + neces- sidade de comunicação + necessidade de ação + necessidade de prazer = Belas Artes.” Poesia: “Das artes assim nascidas a que se utiliza de vozes articuladas chama-se poesia” [...] Leitor: “É o leitor que se deve elevar à sensibilidade do poeta, não é o poeta que se deve baixar à sensibilidade do leitor. Pois este que traduza o telegrama!” Conclusão da primeira parte: “Assim pois a modernizante concepção de Poesia que, aliás, é a mesma de Adão e de Aristóteles e existiu em todos os tempos, mais ou menos aceita, levou-nos a dois resultados – um novo, originado dos progressos da psicologia experimental; outro antigo, originado da inevitável realidade: /1.º: respeito à liberdade do subconsciente. Como consequência: des- truição do assunto poético. /2.º: o poeta reintegrado na vida do seu tempo. Por isso: renovação da sacra fúria”. O ensaio continua acerca da retórica e da crítica, dando destaque para os temas relacionados ao estudo da poética, como o ritmo, a noção do verso livre e a rima. No que tange às questões de relevo relacionadas à esfera da estética, Mário ressalta a “substituição da ordem intelectual pela ordem subconsciente” (TELES, 1985, p. 306) e destaca, ainda, questões como a rapidez e a síntese na poesia moderna. Na conclusão, o poeta alude à tradição e à história: “Os passadistas não conseguem tirar de nós mais que o dorso da indiferença. O amor esclarecido ao passado e o estudo da lição histórica dão-nos a serenidade” (ANDRADE apud TELES, 1985, p. 307). 3.4 Manifestos de Oswald de Andrade Apesar do mesmo sobrenome de Mário, o escritor Oswald de Andrade não era seu parente e assumiu posturas mais radicais na vida e no texto. Rico, irreverente e irônico, casou-se várias vezes e colecionou alguns desafetos. Sua obra foi banida das antologias escolares durante anos, sendo reconhecida nos anos 1960 pelos poetas concretos de São Paulo, Haroldo e Augusto de Campos. Literatura brasileira II34 Sua biógrafa, Maria Augusta Fonseca, e parte da crítica sugerem explicações para o silêncio ao qual o poeta foi relegado: “Oswald arreganhou os dentes de antropófago à mentalidade coloni- zada que atrofiou e ainda atrofia o país” (FONSECA, 2007, p. 22). “Oswald nunca pôde subordinar seu espírito a cânones métricos e aos parâmetros semânticos que lhes são correlatos” (CAMPOS, 1978, p. 19). Poeta que viajou à Europa e manteve contato com autores representativos das vanguardas europeias, Oswald atuou em várias frentes. Publicou poesia, romance, teatro e ensaio. As memó- rias, os diários e os manifestos ocupam grande parte da sua produção estética e literária. A seguir, conheceremos dois dos principais manifestos do nosso Modernismo, publica- dos por Oswald de Andrade: “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” (1924) e “Manifesto Antropófago” (1928), os quais, segundo a perspectiva de alguns críticos, “formam uma peça única, o segundo estando contido fundamentalmente no primeiro” (CAMPOS, 1978, p. 48). 3.4.1 “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” Considerado o nosso primeiro produto de exportação, o pau-brasil é uma árvore da época da colonização, cujo nome foi utilizado por Oswald para batizar o seu manifesto. Publicado no Correio da Manhã, em 1924, esse texto fragmentado e sucinto possui a arte e a cultura brasileiras como temas e se propõe a mostrar a importância da síntese entre a raiz nativa e a antena que capta a atualidade dos saberes da modernidade para a definição de um conceito de nacionalidade crítico e autêntico. Diz o poeta da “Poesia Pau-Brasil”: “Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas” (OSWALD apud TELES, 1985, p. 331). Na busca de redescobrir o país, o poeta explora temas e elementos folclóricos, culinários, históricos e estéticos, dentre outros, ressaltando a importância da originalidade primitiva. “Oswald recorreu a uma sensibilidade primitiva (como fizeram os cubistas, inspirando-se nas geometrias elementares da arte negra) [...] para comensurar a literatura brasileira às novas necessidades de comunicação engendradas pela civilização técnica” (CAMPOS, 1978, p. 50). O manifesto abre-se em sintonia com as teorias contemporâneas, segundo as quais os fatos, no contexto da modernidade, são mais importantes que a crença nas convicções e essências tradi- cionais. Diz Oswald: A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá o ouro e a dança. (OSWALD apud TELES, 1985, p. 326) 3.4.2 “Manifesto Antropófago” Lançado em 1928, o “Manifesto Antropófago” foi originalmente publicado no número um da Revista de Antropofagia de São Paulo. Suas propostas ampliam as ideias nacionalistas do “Manifesto do Pau-Brasil”, pois radicalizam na brasilidade primitiva, ao parodiar a famosa máxima A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos 35 shakespeareana2 em “Tupy or not tupy, that is the question”. Afora isso, destacam a alegria e o humor como traço crítico do nosso caráter (“A alegria é a prova dos nove”). A seguir, destacamos alguns dos trechos do referido manifesto. Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. […] Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. […] […] Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre Declaração dos Direitos do Homem. […] Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trou- xe a lábia. […] Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses […] Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. […]. Antes dos portugueses descobrirem o Brasil,o Brasil tinha descoberto a felici- dade. […] Nesses trechos podemos observar a crítica que o autor empreende ao processo da nossa co- lonização política e cultural, nas referências diretas aos portugueses e ao padre Vieira. Trata-se da aplicação prática do conceito de antropofagia, que – ao reproduzir simbólica e culturalmente o ato explícito realizado por tribos indígenas antropófagas, espalhadas pelo Brasil no momento histórico de achamento de nossas terras pelos europeus, de devorar os inimigos para adquirir suas forças físicas e espirituais –, ao invés de negar a diferença, quer incorporá-la, filtrando apenas o que nos possa ser útil para enriquecermos nossa sociedade e cultura. A antropofagia é o desejo do outro, do “que não é meu”. 3.5 Os grupos de direita e seus manifestos Os manifestos modernistas dos anos 1920 representam duas tendências estéticas e ideológi- cas. De um lado, estão os artistas como Mário e Oswald de Andrade, influenciados pelas vanguar- das europeias e pelas ideias de ruptura com a tradição literária; do outro, encontram-se os artistas de direita, representados por movimentos como, por exemplo, o Verde-Amarelismo e o Grupo Anta, liderados por Plínio Salgado. 2 A máxima é “to be or not to be, that is the question”, cujo significado literal em português é “ser ou não ser, eis a ques- tão”, e está inserida em um dos vários solilóquios que ocorrem na arquifamosa tragédia Hamlet, do autor inglês William Shakespeare, considerado por muitos críticos como o centro do Cânone Literário Ocidental. A máxima, hoje em dia, já se transformou em bordão popular. Os solilóquios foram importantes para que, no palco elizabetano, pudesse ser expressa a psicologia profunda do personagem teatral, que, usando essa técnica, apresenta diretamente para a plateia o que ocorre em sua alma. Nesse aspecto, Shakespeare introduz procedimentos modernos de concepção literária do homem, que perde muito de seu traço caricatural e ganha em densidade existencial. Oswald de Andrade, ao parodiar a expressão, está ampliando, de modo genial, a questão existencial para o âmbito do cultural e do nacional, além de exercitar seu conceito de antropofagia. Literatura brasileira II36 Publicado em 1929, o Nhenaçu Verde Amarelo (Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta) valoriza as nossas raízes. Contra a noção de intelectualidade e a favor de uma filosofia tupi, os verdes modernos destacam a figura do índio que nos ensinou a rir dos sistemas e concluem o manifesto assumindo sua porção conservadora: “Aceitamos todas as instituições con- servadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil [...] Nosso nacionalismo é ‘verdamarelo’ e tupi”. Referindo-se a esses grupos de cunho conservador e de direita, Haroldo de Campos critica a sua “grandiloquência vazia” e ressalta a supremacia das propostas artísticas e culturais de Oswald de Andrade. Segundo o crítico e poeta concreto paulista, em relação à poesia “pau-brasil”, a diluição veio por volta de 1926, com o nome de “Verdamarelismo”, depois “Escola da Anta”, sob a responsabi- lidade principal de Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado. O “Verdamarelismo” propunha-se combater os resquícios parisienses no “Pau- -Brasil”, mas, na verdade, através deste expediente diversionista, capeado de nativismo, procurava escamotear o pesado tributo temático e estilístico que pagava às inovações oswaldianas, das quais era um sucedâneo edulcorado, em pauta decorativa e superficial. (CAMPOS, 1978, p. 47-48) “Triste xenofobia que acabou numa macumba para turista”, é a frase de Oswald de Andrade para definir o “verdamarelo” (CAMPOS, 1978, p. 49). Ampliando seus conhecimentos A emoção estética na arte moderna (ARANHA, 1985, p. 280-284) Para muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje, é uma aglomeração de “horrores”. Aquele Gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carna- val alucinante, aquela paisagem invertida se não são jogos da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros “horrores” vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de dispara- tes, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pelas forças do Passado. Para estes retardatários a arte ainda é o Belo. Nenhum preconceito é mais perturbador à concepção da arte que o da Beleza. Os que ima- ginam o belo abstrato são sugestionados por convenções forjadoras de entidades e conceitos estéticos sobre os quais não pode haver uma noção exata e definitiva. Cada um que se interro- gue a si mesmo e responda que é a beleza? Onde repousa o critério infalível do belo? A arte é independente deste preconceito. É outra maravilha que não é a beleza. É a realização da nossa integração no Cosmos pelas emoções derivadas dos nossos sentidos, vagos e indefiníveis sen- timentos que nos vêm das formas, dos sons, das cores, dos tatos, dos sabores e nos levam à unidade suprema com o Todo Universal. Por ela sentimos o Universo, que a ciência decompõe e nos faz somente conhecer pelos seus fenômenos. Por que uma forma, uma linha, um som, uma cor nos comovem, nos exaltam e transportam ao universal? Eis o mistério da arte, inso- lúvel em todos os tempos, porque a arte é eterna e o homem é por excelência o animal artista. O sentimento religioso pode ser transmudado, mas o senso estético permanece inextinguível, A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos 37 como o Amor, seu irmão imortal. O Universo e seus fragmentos são sempre designados por metáforas e analogias, que fazem imagens. Ora, esta função intrínseca do espírito humano mostra como a função estética, que é a de idear e imaginar, é essencial à nossa natureza. A emoção geradora da arte ou a que esta nos transmite é tanto mais funda, mais universal quanto mais artista for o homem, seu criador, seu intérprete ou espectador. Cada arte nos deve comover pelos seus meios diretos de expressão e por eles nos arrebatar ao Infinito. A pintura nos exaltará, não pela anedota, que por acaso ela procure representar, mas principal- mente pelos sentimentos vagos e inefáveis que nos vêm da forma e da cor. Que importa que o homem amarelo ou a paisagem louca, ou o Gênio angustiado não sejam o que se chama convencionalmente reais? O que nos interessa é a emoção que nos vem daquelas cores intensas e surpreendentes, daquelas formas estranhas, inspiradoras de imagens e que nos traduzem o sentimento patético ou satírico do artista. Que nos importa que a música transcendente que vamos ouvir não seja realizada segunda as fórmulas consagradas? O que nos interessa é a transfiguração de nós mesmos pela magia do som, que exprimirá a arte do músico divino. É na essência da arte que está a Arte. É no sentimento vago do Infinito que está a soberana emoção artística derivada do som, da forma e da cor. Para o artista a natureza é uma “fuga” perene no Tempo imaginário. Enquanto para os outros a natureza é fixa e eterna, para ele tudo passa e a Arte é a representação dessa transformação incessante. Transmitir por ela as vagas emoções absolutas vindas dos sentidos e realizar nesta emoção estética a unidade com o Todo é a suprema alegria do espírito. Se a arte é inseparável, se cada um de nós é um artista mesmo rudimentar, porque é um criador de imagens e formas subjetivas, a Arte nas suas manifestações recebe a influência da cultura do espírito humano. Toda a manifestação estética é sempre precedida de um movimento de ideias gerais, de um impulso filosófico, e a Filosofia se faz Arte para se tornar Vida. Na Antiguidade Clássica o surto da arquitetura e da escultura se deve não somente ao meio, ao tempo e à raça, mas prin- cipalmente à cultura matemática, que era exclusiva e determinou a ascendência dessas artes da linha e do volume. A própria pintura dessas épocas é um acentuado reflexo da
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