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SEGURANÇA INTERNACIONAL AULA 4 Profª Caroline Cordeiro Viana e Silva 2 CONVERSA INICIAL Até agora, já entendemos a evolução do conceito de segurança, nas relações internacionais; verificamos como a comunidade internacional encara um tema de segurança e como esse conceito foi se moldando à nova realidade dos Estados. Nesta aula, veremos como foi esse processo no Brasil, em específico. Verificaremos como a política brasileira encarou as ameaças internacionais e como o Brasil enfrentou essas ameaças, passando pela fase reativa e pela assertiva. Depois disso, analisaremos a participação do Brasil em organizações internacionais, especialmente naquelas vinculadas a temas de segurança. E, por fim, estudaremos um dos grandes temas de segurança para o Brasil, o narcotráfico. TEMA 1 – AMEAÇAS INTERNACIONAIS Para entendermos as ameaças internacionais que entraram na nossa agenda, precisamos levar em consideração o contexto em que o Brasil está inserido, ou seja, a segurança internacional na América Latina. Ao compreender esse contexto, teremos competência para entender como a agenda brasileira hierarquiza os temas de segurança. O contexto da América Latina pode ser mais bem entendido se lembrarmos das correntes teóricas que vimos nas aulas passadas. Chamamos atenção, especialmente, para as correntes teóricas que pararam para pensar na realidade dos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. Isso porque nossa região é formada por países que ainda buscam o desenvolvimento. Precisamos, então, relembrar as seguintes correntes teóricas: segurança humana e pós-colonialismo. A agenda de segurança do Brasil e da América Latina como um todo passa pela ideia da segurança humana ao depositar esforços na melhora dos seus Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs). Todos os países em nossa região têm focado as suas agendas em melhorar a qualidade de vida de sua população e isso significa encarar como uma questão de segurança do país a nutrição, a escolaridade e a expectativa de vida. A outra corrente teórica que nos ajuda a entender o contexto da América Latina é o pós-colonialismo. Essa corrente teórica nos ensinou que é necessário 3 observar as especificidades dos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, pois a história da formação dos Estados é diferente, assim como, em cada local, o padrão de recrutamento das elites e os regimes políticos. A desigualdade econômica e a diferença na distribuição de renda, junto com os elementos anteriores, mostram uma formação de agenda internacional singular na região – o resultado disso é que a América Latina é considerada uma região de paz. O subcontinente é a região de menor gasto militar no mundo. Entretanto, várias ameaças surgiram, se intensificaram e fazem parte da agenda de segurança dos países da região, com destaque para o narcotráfico e o crime organizado (Villa, 2019). Apesar de a América Latina ser conhecida por ser uma região de paz, com poucos conflitos interestatais em sua história, existe um aumento no investimento militar na região, isso porque algumas ameaças se mostram maiores e cada vez mais transnacionais, principalmente, como já falamos, em relação ao narcotráfico e ao crime organizado. Nos últimos anos, vários países da América do Sul aumentaram notavelmente seus gastos militares. Embora a despesa militar total na América do Sul tenha uma média de US$ 36,3 bilhões entre 1991 a 2000, entre 2001 e 2005 essa média subiu para US$ 46,1 bilhões e desde então aumentou constantemente, chegando a US$ 67,7 bilhões em 2012. Alguns dos principais atores regionais, como Brasil, Colômbia e Venezuela, estão engajados em compra de armamentos e em estabelecimento de parcerias estratégicas com potências externas, a saber, França, Estados Unidos e Rússia (Villa; Weiffen, 2014). Duas condições promovem o surgimento desse aumento da militarização na região. Primeiro, a governança de segurança ali é adequadamente descrita como uma combinação de discursos e práticas da comunidade de poder e segurança. Os Estados ainda veem a força militar como uma ferramenta legítima para influenciar suas relações com outros Estados da região, ao mesmo tempo que usam sua diplomacia e instituições cooperativas para manter a paz. Segundo, a América Latina é uma região em transformação, de uma influência global para um aumento da sua inserção internacional. Os Estados latino- americanos se libertaram da interferência tradicional norte-americana e europeia e reforçaram sua identidade latino-americana ou sul-americana. O Brasil, como um dos países do Brics, é uma potência regional com aspirações globais, enquanto Estados como Argentina, Chile, Colômbia e Venezuela se tornam 4 potências regionais secundárias. A transformação regional envolve tanto a renegociação das relações de poder, de acordo com o pensamento do equilíbrio de poder, quanto os esforços para melhorar a integração regional e construir uma comunidade de segurança regional (Villa; Weiffen, 2014). Dessa forma, podemos perceber que os temas que são pauta na agenda de segurança na América Latina advêm da necessidade de os países se desenvolverem e de melhorarem sua posição econômica dos países e também das singularidades enfrentadas na região. Essa agenda se junta com um constante desejo de crescimento no cenário internacional dos países da região. Os países enfrentam temas de segurança e também nutrem o interesse em serem mais atuantes no cenário internacional. Isso fez com que o seu investimento em capacidade militar aumentasse, assim como o enfrentamento dos temas de segurança em foco na região. TEMA 2 – FASE REATIVA DA POLÍTICA DE SEGURANÇA BRASILEIRA Para entendermos como alguns temas da segurança internacional passaram a fazer parte da política brasileira, precisamos conversar sobre a política externa nacional. Estamos falando do alinhamento entre a política externa brasileira e a segurança internacional. Seguindo a mesma linha que adotamos na aula passada, vamos pensar essa relação no pós-Guerra Fria. Esse recorte temporal tem duas finalidades: a primeira é pensar na inserção internacional do Brasil após a Guerra Fria, levando em consideração o contexto internacional; a segunda é analisar a política externa brasileira no período de redemocratização do país, após o governo militar. Lopes (2011) expõe que é possível perceber uma mudança no insulamento da política externa a partir do governo Collor e, de maneira mais acentuada, no governo Fernando Henrique Cardoso. O Itamaraty torna então público o seu desejo de contar com a participação popular na formulação da agenda da política externa; porém, a instituição também deixa claro que cabe a ela decidir quais dos temas realmente serão incorporados à agenda. A abertura à sociedade dos antes opacos debates da PEB agora se apresenta como uma “inevitabilidade”, no dizer dos participantes dos encontros. Dois aspectos do trecho reproduzido saltam aos olhos: a indisfarçada pretensão de tutela política itamaratyana (“o Itamaraty pode escolher o que lhe interessa discutir publicamente...”) e a constatação de que existe um agenda da opinião pública (ainda que 5 essa “opinião pública” se restrinja a “setores da elite”) da qual o MRE terá, circunstancialmente, de dar conta (Lopes, 2011, p. 3). O autor afirma ainda que o Itamaraty opta por essa abertura justificando- se nas circunstâncias democráticas. O Itamaraty deixa claro que essa abertura não poderia ser considerada uma opção, mas sim uma necessidade imposta pelos mecanismos e princípios democráticos. O Ministério das Relações Exteriores admitiu existir um descompasso entre o processo de democratização do país e a condução da política externa. Era visível que a política externa brasileira era elaborada de forma insular, sem a participação popular, o que iaclaramente contra os preceitos democráticos. Porém, Lopes (2011) assinala que, ainda assim, a literatura brasileira de análise de nossa política externa denuncia esse processo como descompassado; ou seja, a política externa brasileira não era tão democrática quanto se dizia. Ela ouvia a opinião pública, mas não necessariamente esse movimento fazia parte da formulação da política externa em si: Tal perspectiva encontraria guarida na proposição de Zairo Cheibub (1985) de que, a partir da década de 1960, os diplomatas brasileiros do Itamaraty teriam deixado de se preocupar com aspectos organizacionais ou estilísticos para centrar o foco da sua atuação profissional na formulação da PEB. Isso teria colaborado para o fechamento da corporação em torno de si, bem como para a emergência de um senso comum entre os diplomatas de carreira de pertencimento à “elite burocrática” da nação. (Lopes, 2011, p. 5) Dessa forma, é possível perceber que, se os preceitos democráticos pregam a participação popular no processo decisório, o Itamaraty admite a necessidade de incorporar isso ao seu processo de elaboração da política externa e introduz, ao menos em seu discurso, essa participação. Porém, o que depreendemos é que a instituição na verdade se manteve fechada em si, restringindo a seus diplomatas o centro do processo de elaboração da política externa brasileira, ao longo dos anos 1990. Por fim, Lopes (2011) resgata a análise crítica de acadêmicos brasileiros e ressalta que houve uma mudança na formulação da política externa e que a tendência seja ocorrer uma alteração ainda maior. O autor afirma que o próprio cenário internacional pressionará o Ministério das Relações Exteriores a se revisar: 6 Minha primeira observação diz respeito ao próprio interesse que os processos diplomáticos despertam na cidadania. Em regra, o país é introvertido. São de tal ordem os problemas internos [...] que 'tradicionalmente' a diplomacia não tem sido objeto de um debate 'organizado' na imprensa, no Parlamento, nos meios de comunicação de massa. A situação tende, contudo, a se alterar. Amplia-se a consciência de que qualquer projeto nacional é afetado pelas condições internacionais, pelas opções políticas que fazemos. O fenômeno qualifica não só aqueles temas que modificam interesses concretos, [...] mas também outros, mais precipuamente políticos (Lopes, 2001, p. 8, grifo nosso). Faria (2008) corrobora com essa visão de que o processo insular da formulação da política externa brasileira passa por uma revisão. Segundo o autor, ainda não é possível afirmar que presenciamos uma total mudança de paradigma, porém existem indícios de que, aos poucos, o Itamaraty caminhe para uma mudança: [...] “como já diria o Itamaraty: a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se” (Faria, 2008, p. 83). O principal fator a pressionar essa mudança é o duplo processo iniciado nos anos 1990. Ou seja, a alteração do modelo de desenvolvimento e do padrão de inserção internacional do Brasil. O país diversifica e intensifica sua participação nas instâncias multilaterais e passa a se envolver em uma multiplicidade de negociações internacionais. Ao mesmo tempo, o processo de globalização, de aumento da liberdade econômica e a revolução nos meios de comunicação têm ampliado o coeficiente de internacionalização da sociedade brasileira (Faria, 2008, p. 84). Esse momento específico da política externa brasileira faz com que a postura do Brasil diante de temas de segurança internacional seja reativa. Ou seja, o Brasil apenas reage a demandas internacionais sobre alguns temas, pois o Itamaraty está preocupado com pensar na sua renovação e aprendendo como organizar um processo de política externa que seja mais democrático e ao mesmo tempo posicione o país no cenário internacional. TEMA 3 – FASE ASSERTIVA DA POLÍTICA DE SEGURANÇA BRASILEIRA Nos anos 2000, também é possível perceber a política doméstica e a política externa mais entrelaçadas que em outros momentos da história do país. Isso em função, também, das mudanças nos padrões de impacto doméstico da política externa brasileira. Como desdobramento desse processo, verifica-se a mobilização de novos atores no que diz respeito a essa política, por exemplo as organizações da sociedade civil. Isso fez da política externa questão relevante 7 no debate eleitoral brasileiro, ampliando a visibilidade social das estratégias de inserção internacional do país. Essa mobilização doméstica tem gerado pressão no sentido de reversão do padrão insulado de produção da política externa brasileira e, por outro, reações adaptativas da presidência e do Itamaraty. “As duas décadas de globalização e de redemocratização fizeram que a política externa seja hoje mais transparente e permeável à sociedade brasileira. O relacionamento entre o Estado e os atores sociais mostra-se efetivo e crescente” (Faria, 2008). A política externa de Lula, em comparação com a de Fernando Henrique Cardoso, apresenta elementos de mudança na continuidade, ou seja, produz ajustes e alterações de programas. A administração de Lula não se afastou do princípio historicamente assentado para a diplomacia de que a política externa é um instrumento para o desenvolvimento econômico e para a consequente preservação e ampliação da autonomia do país. Há mudanças de ideias e de estratégias para lidar com os problemas e objetivos, mas não mudanças essenciais (Vigevani; Cepaluni, 2007). Nesse contexto, percebemos uma inserção internacional do Brasil de forma assertiva, ou seja, o Brasil opta por protagonizar a sua participação no cenário internacional e deixa de apenas reagir a demandas de segurança internacional, havendo, para isso: a. reforço do poder militar convencional e participação em operações de paz; b. tentativa de influenciar o processo de reforma das instituições internacionais de segurança; c. construção regional de instituições de segurança (Villa, 2019). Para o reforço militar convencional, o Brasil iniciou os anos 2000 com um projeto de modernização das Forças Armadas, o que incluiu a compra de aviões caças Gripen, da Suécia, e também o desenvolvimento de um submarino nuclear com tecnologia francesa. Além disso, começou no Brasil um movimento para a elaboração de ações para a criação da Política de Defesa Nacional (PDN), da Estratégia Nacional de Defesa (END) e da Doutrina Militar de Defesa (DMD). Interessante notar que essas iniciativas demonstraram um avanço no posicionamento brasileiro, uma ação assertiva, não apenas pensando em segurança, mas também em novas parcerias comerciais e na projeção do Brasil como um ator político global emergente (Brasil, 2005, 2007, 2008). 8 A PDN é um documento produzido pelas Forças Armadas e promulgado pelo presidente da República sob a forma do Decreto n. 5.484/2005, condicionante do planejamento estratégico nacional com vistas à defesa dos interesses internos e contra as ameaças externas (Brasil, 2005). Já a END é documento formalizado pelo Decreto n. 6.703/2008, mas do qual participou, na sua elaboração, um comitê ministerial criado com essa finalidade específica e mediante consultoria especializada de cidadãos nacionais renomados no assunto, bem como dos comandantes das três Forças Armadas – Aeronáutica, Exército e Marinha (Brasil, 2008). A END tem por finalidade definir ações estratégicas de médio e longo prazos, atuando por meio de eixos fundamentais com vistas à atuação interna das Forças Armadas na promoção da defesa nacional (Silva; Oliveira, 2011). A PDN foi elaborada com o objetivo de ser condicionante dos conceitos e das diretrizes de atuação brasileira, em defesa, em ambiente nacional e, sobretudo, internacional. Destaque-se a sua orientação inovadora na esfera de planejamento estratégico, na matéria (Brasil, 2005). Deve, ainda, ser mencionada a importância, ressaltadano Decreto 5.484/2005, da necessidade de conscientização nacional sobre as ameaças externas, as quais, embora não tenham resultado, ao menos recentemente, em conflitos internacionais que afetem diretamente o território, ignorá-las seria no mínimo imprudente, ante a extensão do país e sua proeminência no cenário internacional (Silva; Oliveira, 2011). Diferentemente da PDN, a END não tem vínculo tão direto sobre a atuação externa do Estado, mas é possível verificar que se preocupa com o contexto internacional e a inserção do país no continente, com o objetivo de chegar ao desenvolvimento nacional e à independência estratégica brasileira. O Decreto n. 6.703/2008 tem por orientação estratégica a atuação em três linhas fundamentais, quais sejam: 1. reorganização das Forças Armadas; 2. reestruturação da indústria brasileira de material de defesa; 3. composição dos efetivos das Forças Armadas. Já a DMD, de 2007, foi estabelecida com o propósito de orientar as ações brasileiras e estabelecer os fundamentos para emprego das Forças Armadas nacionais. O documento, inicialmente restrito a 13 exemplares entregues às chefias dos gabinetes das principais secretarias do Ministério da 9 Defesa e aos comandos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, assim como aos Estados-Maiores da Armada, do Exército, da Aeronáutica e da Escola Superior de Guerra, foi divulgado e tornado público à população civil como resultado dos princípios de orientação democrática do Estado brasileiro. A DMD é dividida em seis capítulos, nos quais os três primeiros são conceituais, os dois seguintes contêm disposições de manobras de crise e o último estabelece as hipóteses de emprego das Forças Armadas (Brasil, 2007). TEMA 4 – POLÍTICA DE SEGURANÇA BRASILEIRA EM ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS Para entender a política de segurança do Brasil em organizações internacionais, falaremos de duas principais, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a União de Nações Sul-Americanas (Unasul). No início dos anos 2000, a política externa brasileira traçou novos objetivos, pensando na ampliação da inserção internacional do Brasil. Ao fazer esse movimento, o Brasil optou por uma abordagem mais assertiva nos temas de segurança internacional e isso ficou evidente quando o país retomou a manifestação de desejo de ser um membro permanente no Conselho de Segurança da ONU. Importante notar que a reivindicação por um assento permanente no Conselho de Segurança não era um objeto novo – esse ponto está presente na política externa desde o governo de Itamar Franco. Contudo, o governo Lula opta por dar mais ênfase a esse aspecto. Esse pleito não é somente por um assento permanente, mas sim por uma reforma em todo o Conselho de Segurança da ONU. O argumento do corpo diplomático brasileiro era de que a ordem internacional, nos anos 2000, era diferente do pós-Segunda Guerra Mundial. A sua retórica estava baseada na democratização do multilateralismo internacional, com ênfase na participação permanente do Brasil no Conselho de Segurança. O Brasil seria o representante dos países em desenvolvimento e outros países também se juntaram a esse pleito, como Alemanha, Japão e Índia. Essa proposta foi barrada pelos Estados Unidos e China. A segunda organização internacional que estudaremos é a Unasul. A Unasul foi estabelecida em 2008 e é estruturada em dois níveis: de órgãos políticos e de órgãos setoriais. Em 2015, foi inaugurada sua sede, em Quito, e em abril de 2019 o Brasil formalizou a sua saída da organização. Apesar de não 10 fazer mais parte da Unasul, a participação nessa organização foi importante para a política de segurança brasileira, conforme veremos a seguir. Em especial, a área de defesa foi uma das que mais avançou no contexto da Unasul. No âmbito da Unasul foi criado o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS). O CDS é baseado no respeito à soberania e à não intervenção, com o objetivo de consolidar a América do Sul como uma região pacífica, livre de armas nucleares e de destruição em massa. Ele se propõe a construir uma identidade sul-americana de defesa, reforçando a cooperação regional. Surge como um foro de consultas e diálogo, na área de defesa (Bragatti; Gonçalves, 2018). O CDS se destaca por ter sido pioneiro na tentativa de cooperação para a defesa, na América do Sul. Para atingir os seus objetivos, o conselho foi estruturado em quatro eixos: 1. política de defesa; 2. cooperação militar, realização de ações humanitárias e operações de paz; 3. indústria e tecnologia de defesa; 4. formação e capacitação. Apesar de receber críticas por sua consolidação ter sido vagarosa, os cinco primeiros anos do CDS tiveram avanços positivos; já os cinco anos seguintes demonstraram uma inflexão, até que, em seu 11º ano, o Brasil deixa de participar do foro. De qualquer forma, o CDS preenche uma lacuna relacionada a iniciativas para questões de segurança, na América do Sul. TEMA 5 – O BRASIL E O NARCOTRÁFICO A legislação brasileira lida com o tema do chamado tráfico ilícito de drogas há muitos anos. O primeiro registro nesse sentido é de 1890, demonstrando que o tema existe na agenda legislativa do país, mas ainda não apresentava maiores preocupações, sendo caracterizado como não politizado. É possível sistematizar o histórico legislativo referente às drogas identificando, também, as etapas do processo de securitização do tema. O Quadro 1 apresenta uma sistematização desse histórico (Silva; Pereira, 2019). 11 Quadro 1 – Compilação da legislação brasileira sobre drogas ETAPA DA SECURITIZAÇÃO ANO LEGISLAÇÃO CONTEÚDO Não politizada 1890 Código Penal, art. 159 Tipificou a conduta referente ao uso de substâncias psicotrópicas. 1936 Decreto n. 780 Criou a Comissão Permanente de Fiscalização. 1938 Decreto n. 2.953 Criou a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. 1938 Decreto-Lei n. 891 Regulamentação de tóxicos. 1940 Decreto-Lei n. 2.848, art. 281 Regulamentou a produção, tráfico e consumo de entorpecentes. 1964 Decreto n. 54.216 Instaurou Convenção Única sobre Entorpecentes. 1967 Decreto-Lei n. 159 Equiparou substâncias capazes de determinar dependência física ou psíquica aos entorpecentes. 1968 Decreto-Lei n. 385 Regulamentou o comércio, posse ou facilitação destinados a entorpecentes. 1971 Lei n. 5.726 Adequou a legislação brasileira às orientações internacionais. Politizada 1976 Lei n. 6.368 Criou figuras penais de posse, tráfico e uso de entorpecentes. 1977 Decreto n. 79.388 Instaurou a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas. 1986 Lei n. 7.560 Criou o Fundo de Prevenção, Recuperação e Combate às Drogas de Abuso (Funcab). 1988 Constituição Federal, art. 5° e 144 Regulamentação dos crimes envolvendo entorpecentes. 1990 Lei n. 8.072 Equiparou o tráfico de entorpecentes aos crimes hediondos. 1991 Lei 8.257 Sobre expropriação de glebas. 1991 Decreto n. 154 Instaurou a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas. 1993 Lei n. 8.764 Criou a Secretaria Nacional de Entorpecentes. 1995 Lei n. 9.017 Sobre o controle e fiscalização de produtos e insumos químicos que possam ser usados na elaboração da cocaína e seus derivados. 1998 Portaria n. 344 Publicou o regulamento técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. 2000 Decreto-Lei n. 3.696 Dispõe sobre o Sistema Nacional Antidrogas. 2001 Decreto-Lei n. 3.887 Sobre o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem. 2002 Lei n. 10.409 Sobre prevenção, fiscalização, tratamento, controle e repressão à produção, uso e tráfico de drogas. 12 2003 Resolução Conad n. 1 Dispõe sobre orientações estratégicas e diretrizes para o Sistema Nacional Antidrogas. Em processo de securitização 2004 Decreto n. 5.144 Lei do Abate. Lei que permite a destruiçãode aeronaves hostis. 2005 Resolução Conad n. 3 Instaurou a Política Nacional sobre Drogas (Pnad). 2006 Lei n. 11.343 Instaurou a nova Lei Antidrogas. 2006 Decreto-Lei n. 5.912 Regulamentou a Lei n. 11.343/2006 e questões relativas ao Conad e ao Sisnad. Securitizada 2011 Decreto n. 7.496 Instaura o Plano Estratégico de Fronteira. Dessecuritizada 2016 Decreto n. 8.903 Instaura o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras. Fonte: Adaptado de Silva; Pereira, 2019. Analisando-se o Quadro 1, pode-se observar que, até o ano de 1976, as leis apresentavam um caráter imediatista e buscavam resolver problemas pontuais que se destacavam na sociedade. Portanto, a questão do tráfico de drogas nesse período pode ser classificada como não politizada: existem leis pontuais, mas não havia um envolvimento mais significativo do governo. Em 1976, foi lançada a primeira lei antidrogas cujo propósito era lidar com problemas de tráfico de ilícitos. Dessa maneira, essa lei marca a mudança de status do tema que, a partir de então, pode ser classificado como politizado, pois o governo começa a produzir políticas específicas para o enfrentamento do tráfico de drogas (Brasil, 1976). Após 1976, o problema do tráfico foi objeto da política brasileira, cujo objetivo foi controlar todas as adversidades sociais resultantes das drogas. Outro indício de que a questão passou à etapa politizada aparece em 1988, na Constituição Federal (Brasil, 1988). Após a Constituição, o Estado passou a adotar não só leis com caráter permanente, mas também políticas públicas específicas. O tema segue politizado quando, em 1990, equiparou-se o tráfico a crimes hediondos. Além disso, um aparato repressivo começou a se configurar, materializado na Secretaria Nacional de Entorpecentes, criada em 1993. Para Thiago Rodrigues (2012), a reformulação do aparato antidrogas do Estado brasileiro foi iniciada no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995- 2002), por meio da criação da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), vinculada à Casa Militar da Presidência da República. Essa secretaria foi estabelecida com base na Medida Provisória n. 1.669/1998, que atribuiu competência a Casa Militar para 13 [...] coordenar e integrar as ações do governo nos aspectos relacionados com as atividades de prevenção e repressão ao tráfico ilícito, ao uso indevido e à produção de substâncias entorpecentes e drogas que causem dependência, bem como aquelas relacionadas com a recuperação de dependentes (Brasil, 1998, citado por Rodrigues, 2012, p. 28). À frente dessa secretaria, estava o general Paulo Roberto Uchôa, que será mantido pelo presidente Lula durante os oito anos de seu mandato (2003- 2010). Além disso, Rodrigues (2012) menciona o desenvolvimento do Sistema de Vigilância Amazônico (Sivam), que visava estabelecer o controle do espaço aéreo, solo e subsolo da Amazônia brasileira por meio de radares fixos, satélites e aviões-radares, no âmbito do Sistema de Proteção Amazônico (Sipam), conduzido pela Força Aérea Brasileira (FAB). Essas medidas adotadas nos anos 1990 durante o governo Cardoso indicam a continuidade da politização do tema, que se expressa pelo envolvimento do governo federal no combate ao tráfico de drogas. O marco inicial do processo de securitização do narcotráfico pode ser situado em 2004, por meio da aprovação da chamada Lei do Abate, pela qual passou a ser possível derrubar aeronaves hostis (Brasil, 2004). Essa lei visava contribuir para o combate ao narcotráfico num contexto caracterizado pelo aumento dos crimes relacionados ao tráfico de drogas. O ano de 2006 revela qual esforço era esperado do Estado brasileiro para lidar com os novos desafios que o narcotráfico acarretava à sociedade brasileira. Esperava-se, também, que fosse desenvolvida uma ação conjunta de vários órgãos estatais e da sociedade civil para o combate às drogas. Trata-se do estágio intermediário ou, como denominado no Quadro 1, em processo de securitização. Esse esforço resultou na nova Lei Antidrogas (Brasil, 2006). As leis e políticas públicas brasileiras confirmam a existência do processo de securitização que se materializa no Plano Estratégico de Fronteira, em 2011 (Brasil, 2011). Em 2011, a criação do Plano Estratégico de Fronteira confirmou que o tráfico de ilícitos se tornara uma questão de segurança para o Brasil. Nesse plano, o grupo designado para cuidar das questões relativas ao tráfico deixa de ser apenas a polícia judiciária. A questão passou a ser de responsabilidade de um grupo de órgãos federais, estaduais e municipais. O tratamento da questão, portanto, evidencia a securitização da ameaça. O Plano Estratégico é o marco 14 para a alteração de status, de em processo de securitização para securitizado (Brasil, 2011). O Decreto n. 7.496/2011 instituiu o Plano Estratégico de Fronteira e a presidente Dilma Rousseff indicou os seus objetivos, que envolviam fortalecer a prevenção, o controle, a fiscalização e a repressão dos delitos transfronteiriços e praticados na faixa de fronteira. O decreto fixou como diretrizes: a. a atuação integrada dos órgãos de segurança pública, da Secretaria da Receita Federal (SRF) e das Forças Armadas; b. a integração com países vizinhos (Brasil, 2011). Outra mudança relevante foi o Decreto n. 8.903/2016 (Brasil, 2016), que marcou a dessecuritização do tema ao tornar rotineiras as ações integradas, nas fronteiras, com a participação das Forças Armadas (Silva; Pereira, 2019). NA PRÁTICA Em nossa aula, em especial ao longo do Tema 3, vimos o desenvolvimento de uma política de segurança no Brasil. Essa política de segurança passou pela elaboração de três principais documentos: PDN, END e DMD. Para além desses três documentos, em 2012 o Brasil lançou o Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN) (Brasil, 2012). Leia atentamente o LDBN (disponível em: <https://www.defesa.gov.br/estado-e-defesa/livro-branco-de-defesa-nacional>.) e reflita sobre a estrutura desse quarto documento e como ele completa a lógica dos três documentos anteriores (Brasil, 2012). FINALIZANDO Ao longo desta nossa quarta aula, vimos como o Brasil pensou a segurança internacional. Abordamos como as ameaças internacionais são encaradas no Brasil e qual é o contexto da América Latina. Depois seguimos pensando sobre a relação da política externa brasileira e os temas de segurança internacional, que foi pensada em dois momentos: primeiro, a fase reativa da política externa em relação aos temas de segurança e a segunda, a fase assertiva da política externa brasileira, diante dos temas de segurança. Depois de termos refletido sobre a política externa, analisamos a participação do Brasil em organizações internacionais, falando do Conselho de 15 Segurança da ONU e da Unasul. Por fim, refletimos sobre a securitização do narcotráfico no Brasil. 16 REFERÊNCIAS BRAGATTI, M. C.; GONÇALVES, R. M. Cooperação na área de defesa na Unasul: um balanço do conselho de defesa sul-americano (CDS) e seus limites atuais. Revista de Relaciones Internacionales, Estrategia y Seguridad, Bogotá, v. 13, n. 2, jul./dez. 2018. BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 23 nov. 2019. _____. Decreto n. 5.144, de 16 de julho de 2004. Diário Oficial da União, Brasília, p. 1, 19 jul. 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004- 2006/2004/Decreto/D5144.htm>. Acesso em: 23 nov. 2019. _____. Decreto n. 5.484, de 30 de junho de 2005. Diário Oficial da União, Brasília, 1 jul. 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004- 2006/2005/Decreto/D5484.htm>. Acesso em: 21 nov. 2019. _____. Decreto n. 6.703, de 18 de dezembro de 2008. Diário Oficial da União, Brasília,19 dez. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007- 2010/2008/Decreto/D6703.htm>. Acesso em: 21 nov. 2019. _____. Decreto n. 7.496, de 8 de junho de 2011. Diário Oficial da União, Brasília, p. 1, 9 jun. 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011- 2014/2011/Decreto/D7496.htm>. Acesso em: 23 nov. 2019. _____. Decreto n. 8.903, de 16 de novembro de 2016. 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