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A poetisa que falava coisas

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2017 
Sergio Weinfuter 
 
 
Stela do patrocínio 
A poetisa que falava coisas 
 
Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo eu era ar, espaço vazio, 
tempo E gases puro, assim, ô, espaço vazio, ô. Eu não tinha formação 
Eu não tinha formatura Não tinha onde fazer cabeça Fazer braço, fazer 
nariz Fazer céu da boca, fazer falatório Fazer músculo, fazer dente Eu 
não tinha onde fazer nada dessas coisas Fazer cabeça, pensar em 
alguma coisa Ser útil, inteligente, ser raciocínio Não tinha onde tirar 
nada disso Eu era espaço vazio puro. (Patrocínio, 2001, p. 82). 
 
 
Assim ela falava andando pelos corredores da Colônia Psiquiátrica Júlio Moreira, onde estava 
internada desde 1966, devido sofrer de esquizofrenia hebefrênica, evoluindo sob reações psicóticas e 
personalidade psicopática. Por causa dessa doença ela não poderia ficar no convívio com as demais 
pessoas, a não ser, em um local totalmente controlado como a colônia. 
 
Mesmo sofrendo dessa terrível doença, ela andava altiva dentro da colônia e sem parar, continuava a 
falar para quem quisesse ouvir, a sua poesia. Ela se destacava das demais pessoas, fazendo com que 
todos que entrassem no local, a vissem, mesmo se não quisesse vê-la. Uma dessas testemunhas que a 
viu a descreveu da seguinte forma: “Parecia uma rainha, não se portando como as outras, que se 
aglomeravam, pedindo sempre. Diferenciava, em um silêncio agudo, sua forma própria de se 
colocar no espaço. Impossível era não vê-la: negra, alta, com muita dignidade no porte, 
algumas vezes enrolada em um cobertor com o rosto e os braços pintados de branco” (Mosé in 
Patrocínio, 2001, p.20). 
 
Assim era ela, mesmo vivendo em uma colônia, ela não se curvava. Com sua elegante figura não 
deixava a doença a abater seu espírito inquietante, dedicava-se a falar para si mesma ou para quem 
quisesse ouvir, deixando como legado a sua bela poesia. 
 
Embora tantas pessoas a conhecesse e já tivessem ouvido a sua voz andando pelos corredores da 
colônia, nem uma delas havia se interessado pelo que ela estava dizendo, até que a entre os anos de 
1986 a 1988 a artista plástica Neli Gutmarcher – Professora de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio 
de Janeiro – E seu grupo de alunos foram convidados pela psicóloga Denise Corrêa para montar um 
ateliê na Colônia Juliano Moreira. (Luna, 2010) 
 
Esse grupo passou a trabalhar dentro das instalações da instituição com objetivo de proporcionar um 
relacionamento entre artistas e pacientes. Essa era a intenção inicial, para os artistas mostrarem seu 
mundo, seu dia a dia, para os pacientes e de alguma forma, ajudasse a eles na superação ou pelo menos 
amenização, dos sintomas de suas doenças. A psicóloga poderia pensar que nessa troca de informações, 
entre pacientes e artistas, pudessem os internos passar mais tempo entretido com a arte e esquecessem, 
pelo menos por alguns minutos, das condições em que se encontravam. 
 
Mas, quem se surpreendeu foi a artista plástica quando conheceu Stela do Patrocínio. Não poderia ser 
diferente, com seu andar altivo, sua fala desconcertante e incisiva, ela se destacava de tudo e de todos. 
Ao conhecer Stela a artista começou a reparar em seu jeito singular de andar e passou a prestar 
atenção no que ela falava e para sua surpresa, começou a ouvir a mais bela e pura poesia. 
 
“Durante o desenvolvimento do trabalho do ateliê, Stela do Patrocínio acabou estabelecendo uma 
ligação com a artista Neli Gutmacher e com a estagiária Carla Gaguilard que, admiradas pela poesia 
presente nas falas de Stela, decidiram gravá-las.” (Luna, 2010 p. 2) Estava lançado o fundamento do 
início e a descoberta enfim da poetisa ainda desconhecida para o mundo, mas muito assídua entre seus 
companheiros (as) de colônia e trabalhadores deste local. Todos a conheciam e ouviam sua voz, mas 
ninguém reparava e nem prestava atenção no que ela dizia. 
 
O impressionante é que Stela nada escreveu, ela somente falava enquanto andava pelos corredores da 
instituição, onde estava internada permanentemente, devido a seu estado de saúde mental. Com o 
material colhido no local “Em 1988 as artistas envolvidas com o trabalho na Colônia montaram a 
exposição “Ar subterrâneo”, no intimamente a palavra, não a palavra da comunicação, mas a palavra 
deslocada da interioridade e da subjetividade cotidiana.” (Luna, 2010 p. 2) 
 
Eu estava com saúde Adoeci Eu não ia adoecer sozinha não Mas eu estava com 
saúde Me adoeceram Me internaram no hospital E me deixaram internada E 
agora eu vivo no hospital como doente O hospital parece uma casa O hospital é 
um hospital (Patrocínio, 2001, p.51) 
 
Essa impressionante história não ficou esquecida nos corredores da colônia devido ao esforço hercúleo 
de Viviane Mosé que passou a organizar, então, as falas gravadas entre 1986 e 1988 por Neli 
Gutmacher e Carla Guagliard, e os textos transcritos por Mônica Ribeiro em 1991. O trabalho de 
organização consistiu na seleção dos fragmentos apresentados e na versificação a partir do próprio 
ritmo já existente na fala de Stela. (Luna, 2010) 
 
Dessa forma a impressionante e comovente história da poetisa que falava coisas foi divulgada, abrindo 
um mundo desconhecido para o nosso mundo, uma janela para a poesia desconhecida de Stela do 
Patrocínio, que vivia em um mundo somente dela, fala em sua poesia de si mesma e de sua condição. 
Infelizmente ela morreu no mesmo local onde foi internada, somente após a sua morte física em 1997, 
seu corpo alcançou a liberdade. Mas sua alma, sempre viveu livre! 
 
Eu já falei em excesso em acesso muito e demais. Declarei expliquei esclareci 
tudo Falei tudo o que tinha pra falar Não tenho mais assunto, mais conversa 
fiada Já falei tudo Não tenho mais voz pra cantar também Porque eu já cantei 
tudo que tinha pra cantar Eu cresci engordei tô forte To (sic) mais forte que um 
casal Que a família que o exército que o mundo que a casa Sou a mais velha do 
que todos da família (Patrocínio, 2001, p. 141) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para saber mais: 
 
PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome/ Stela do Patrocínio. 
MOSÉ, Viviane (org). Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001 
 
Luna, Ive. A maravilhosa expedição do falatório de Stela. Disponível em: 
http://periodicos.ufpb.br/index.php/moringa/article/viewFile/4796/3623 Acesso em: 10/02/2017 
 
 
 
Meu blog: 
http://guerreiro-das-sombras.webnode.com/ 
http://periodicos.ufpb.br/index.php/moringa/article/viewFile/4796/3623

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