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Universidade Estadual do Paraná, campus de União da Vitória Disciplina: História Moderna Acadêmico: Luis Fernando Masiero O lugar da cultura nos estudos sobre a Idade Moderna na Europa Os estudos de História sobre o período moderno europeu, geralmente entendido pelo intervalo entre os séculos XV e XVIII da era comum, ganharam um enorme fôlego com a ascensão de novas teorias e metodologias em nossa ciência. A partir da segunda metade da centúria passada, a História Cultural foi a grande responsável por renovar as abordagens historiográficas sobre temas já consagrados pelas vertentes mais tradicionais da disciplina. A principal novidade, talvez, fora a adoção da “cultura” enquanto objeto de pesquisa privilegiado, desde as artes clássicas até a musica, a literatura e as expressões populares nos mais diversos sentidos. Por conseguinte, diferentes historiadores se voltaram para o período moderno com novas problemáticas, hipóteses e temas de investigação. O presente ensaio se propõe a trabalhar com algumas dessas abordagens procurando refletir sobre a importância da cultura nesses estudos, ou seja, quais as contribuições que este imenso campo pôde e pode ofertar para todos aqueles que desejam fazer do período moderno a sua área de interesse acadêmico prioritária. Antes de mais nada, é necessário discorrer sobre o que se entende conceitualmente por “cultura”. Peter Burke, em seu livro “Cultura popular na Idade Moderna”, nota que para o período havia uma distinção sociocultural que formava, grosseiramente, dois grupos sociais na maioria das localidade europeias, uma vez que existia uma minoria letrada, essencialmente pertencente às elites e que sabia ler e escrever, e uma maioria analfabeta e “não culta”, identificada com os mais pobres (BURKE, 2010, p. 63). Utilizando-se de autores como Robert Redfild e Herder, o historiador britânico entende que existiam dois mundos em coexistência e contato: o da “grande tradição” ou alta cultura, e o da “pequena tradição” ou cultura popular, entendida aqui “enquanto cultura ou tradição dos incultos, dos iletrados, da não elite” (BURKE, 2010, p. 64). Mergulhando sua obra neste segundo universo, o autor irá sobrevoar por diferentes segmentos e subdivisões populares no sentir e no agir nas festas, no cotidiano e nos modos de vida da maior parte da população europeia do período. Esse tipo de abordagem é interessante, visto que permite ao pesquisador, sob uma perspectiva comparativa, notar as aproximações e as distâncias da práticas culturais entre diferentes grupos. O carnaval, por exemplo, era uma festa popular, mas integrantes das elites não se furtavam em comparecer nas ditas ocasiões. Aliás, ricos e pobres pareciam ter o mesmo apreço, na literatura, por romances de cavalaria e baladas, ainda que o acesso da plebe aos livros fosse muito limitado e na maioria das vezes somente através da oralidade, por meio das ocasiões de leituras públicas dessas obras. Todavia, Burke percebeu com precisão que embora as elites participassem das celebrações populares, dificilmente o inverso ocorria (2010, p. 70). Além do mais, as escolhas teórico-metodológicas do autor também o permitiram enxergar as diferenças importantes entre grupos distintos dentro das próprias massas. A título de exemplo, notou o pesquisador que a cultura do pastor diferia da cultura do camponês. Enquanto que o primeiro construía sua vida em constante deslocamento por conta das pastagens dos animais, “desfrutando” de uma vida solitária, sem senhores e com tempo de sobra – ainda que em condições materiais miseráveis –, o segundo detinha menos margem de manobra, permanecia a maior parte do ano preso a um pedaço de terra – seu ou do seu senhor –, no trabalho extenuante da agricultura e ao lado de sua família (BURKE, 2010, p. 77-78). Se na obra anterior Burke encaminhou sua pesquisa para lidar com a cultura popular, em um outro livro seu a situação se inverteu. Ainda que “A fabricação do rei” não esteja preocupada essencialmente em problematizar a cultura em si, são no elementos culturais da realeza francesa que o historiador inglês buscará os sustentáculos de sua investigação. Lidando literalmente com a máxima autoridade da elite da França dos séculos XVII e XVIII, Burke volta suas atenções para a imagem pública de Luis XIV, o rei sol, que governou a nação entre 1643 e 1715. Mesmo que o historiador inglês coloque este trabalho enquanto uma contribuição para “a história da comunicação, história da produção, da circulação e da recepção de formas simbólicas”, é inegável que este estudo tenha por objeto a cultura material da corte gala do período moderno (BURKE, 2009, p. 13). Em um primeiro momento, pode parecer que o autor, como o próprio admite, esteja tentando escrever sobre a “ideologia” ou a “propaganda pessoal” de Luis XIV à época, mas para além dessa função de poder, todas as representações iconográficas do rei sol eram feitas para aumentar sua glória (2009, p. 16). De qualquer forma, se a fabricação das imagens de Luis XIV tinha ou não por intuito glorificar sua figura diante das massas, fato é que as relações entre a arte e o poder no período existiam por diversos caminhos. Como o próprio autor lembra, ainda que pareça anacronismo tratar do assunto a partir de conceitos contemporâneos como “propaganda” ou “ideologia”, seu objetivo enquanto pesquisador é “[…] fazer a mediação entre duas culturas, entre o passado e o presente [...]” (BURKE, 2009, p. 18). Burke nunca abandona a perspectivava comparada, nem neste trabalho nem no anterior. Ao analisar as pinturas, estátuas, gravuras e até moedas com o retrato de Luis XIV, o historiador percebe diferentes estratégias e elementos empregados pelo rei para engrandecer a sua imagem. A peruca, o sapato de salto, as ricas vestes, o cetro, tudo era pensado e retratado para glorificar ainda mais o monarca em um parâmetro altamente idealizado (BURKE, 2009, p. 36). Daí se pode inferir que, embora o processo de fabricação da imagem pública do rei tivesse suas intenções políticas e suas relações com o poder, é inegável que todos esses intentos passavam decisivamente pela arte e pela cultura material da época, ou seja, estavam intrinsecamente atadas ao mundo da “grande tradição” do período moderno, desde o universo letrado e culto das elites, só ele capaz de criar mecanismos de persuasão e de convencimento tão sofisticados a ponto de forjar a própria glória. Tal como no caso anterior, as concepções estéticas da alta cultura também foram objetos de estudos de Nicolau Sevcenko. Em seu livro “O Renascimento”, o historiador brasileiro procurou discorrer sobre a arte italiana desde o fim da idade média até o início do período moderno naquela região. Para este pesquisador, as artes plásticas reuniram em torno de si grande parte das tendências de uma nova cultura emergente que fazia oposição e procurava se desvencilhar da cultura medieval (SEVCENKO, 1994, p. 25). As novidades artísticas que surgiram a partir dos anos 1400 na Itália foram consagradas posteriormente por uma historiografia tradicional ao serem classificadas enquanto “renascentistas”. Todavia, quem patrocina todo esse processo de renovação não é a nobreza clássica, mas uma camada burguesa também emergente, que por sua vez estava distante de qualquer noção de cultura popular que se queira empregar. Essa nova arte pautava-se na construção de grandes palácios, igrejas e estátuas nos ambientes urbanos, bem como pinturas, afrescos e gravuras financiadas por importantes mecenas de cada lugar. Em todas as suas formas de expressão, procurava apresentar uma “visão racional, dinâmica, progressista, otimista e opulenta do mundo e da sociedade” (SEVCENKO, 1994, p. 26). Isso contrastava diretamentecom as concepções românticas e exclusivamente religiosas do período medieval. Em um primeiro momento, é necessário ressaltar que a cultura renascentista não emergiu das camadas populares. Partindo do pressuposto de que na época arte e ciência andavam juntas – outra diferença importante em relação à Idade Média –, a medição rigorosa e a percepção matemática das obras dos artistas são bons exemplos da complexidade desse tipo de arte. Nas pinturas italianas, por exemplo, os objetos passaram a ser retratados sob uma perspectiva realista, com profundidades calculadas com vistas a imitar as disposições naturais dos corpos. Essa racionalização altamente científica não era possível de ser concebida por artesãos comuns, dadas às condições materiais, intelectuais e financeiras inferiores em relação aos artistas privilegiados. Com notou Sevcenko, foi no período moderno em que se abriu “[…] um enorme fosso entre a arte voltada para a elite e presa a todos esses procedimentos científicos e a arte popular, a que se habituou chamar de primitiva” (1994, p. 35). Outro exemplo de que as novas concepções estéticas da arte emanavam das altas camadas sociais pode ser visto na retomada do prestígio e na exaltação cultural da antiguidade clássica, das artes e escritos de gregos e romanos, e isso só foi possível graças a um conhecimento especializado que só a “grande tradição” poderia guardar e retomar. Das pesquisas citadas até aqui, pôde-se perceber que todas elas abordaram aspectos da cultura do período moderno por meio da História Cultural, vertente teórica à qual pertencem os historiadores Peter Burke e Nicolau Sevcenko. Mas também é possível tomar a cultura enquanto objeto de estudo a partir de outras áreas da ciência histórica. É o que fez Edward Palmer Thompson, historiador britânico que estudou a cultura popular inglesa do século XVIII a partir da História Social e da Antropologia. Para além de sua conhecida hipótese sobre a “economia moral” dos pobres em meio às transformações da Inglaterra em um país urbano e capitalista, processo que só irá se consolidar em fins do século XVIII e início do XIX, Thompson mergulha nas fontes em busca de decifrar aspectos cotidianos da cultura popular amplamente disseminados pela ilha. Em suas investigações, o autor notou que o costume da venda de esposas era uma prática altamente ritualizada entre as massas, pertencendo à categoria de “divórcio” seguido novo casamento. O consentimento da esposa para tal ato era imprescindível. Tudo era planejado de antemão: o marido levava sua mulher até a praça do mercado com uma corda atada ao corpo da consorte. Uma vez anunciado o leilão, os lances eram feitos de forma lúdica, visto que na maioria das vezes a venda já estava arranjada, sendo o amante da mulher o comprador mais comum (THOMPSON, 1998, p. 321-23). Tal ritual público conferia legitimidade informal à separação em situações de colapso do casamento, algo fundamental em tempos onde o divórcio via Igreja era sempre desestimulado pelas autoridades eclesiásticas e pelos juízes de paz. Outro costume popular estudado por Thompson diz respeito à rough music, sons rudes emitidos pela multidão para zombar e hostilizar indivíduos que não cumpriam com as normas sociais esperadas pelos pares. Essas músicas eram feitas com instrumentos desafinados e com materiais como latas, panelas e potes. A intenção era humilhar a vítima e fazê-la passar pelo maior dos castigos à época: a desonra pública (THOMPSON, 1998, p. 367). As turbas saíam pelos campos e geralmente seguiam à casa do infrator para hostilizá-lo de forma mais ou menos brutal ou irônica, de acordo com a gravidade dos delitos . Durante o século XVIII, as vítimas mais comuns eram as mulheres mandonas que maltratavam ou batiam em seus maridos, viúvos e viúvas que se casavam pela segunda vez, homens e mulheres que cometiam adultério, bem como homens que espancavam suas mulheres, ainda que esta última categoria só ganhara relevância no século XIX, período em que o ritual entrou em declínio por uma série de razões (THOMPSON, 1998, p. 370). Durante todas essas práticas, era relativamente comum que estas fossem acompanhadas de outros ritos de zombaria, tais com o cavalgar do culpado/a em uma vara cheia de espinhos, a queima e o enterro de efígies que representavam o denunciado, caças ao veado, entre outros. De modo geral, Thompson conclui que a rough music era uma prática socialmente conservadora que defendia o costume e a tradição da dominação masculina na Inglaterra do período moderno (1998, p. 392). Por fim, para traçar um panorama geral do que fora exposto até aqui, pode-se notar que todas as pesquisas aqui citadas voltaram o seu olhar para os elementos culturais das sociedades estudadas. Esse tipo de abordagem é fundamental para romper os silêncios que as vertentes mais tradicionais da historiografia geralmente não conseguem vencer. Os trabalhos de Nicolau Sevcenko sobe a cultura renascentista e de Peter Burke sobre o processo de fabricação da imagem pública de Luis XIV demonstram o quanto a arte e a alta cultura, além de possuírem significados e motivações em si mesmas, estavam intrinsecamente ligadas às relações de poder e à estruturação das respectivas sociedades, ainda que concentradas no seio das elites italianas e francesas das quais pertenciam. Por outro lado, o mesmo Peter Burke e Edward Palmer Thompson foram muito competentes em revelar aspectos riquíssimos da cultura popular de algumas localidades da Europa. Quer nos estudos comparativos entre as culturas distintas de diferentes grupos sociais ou através da problematização de alguns rituais específicos do pobres, percebe-se claramente em ambos os casos que, apesar de estarem praticamente excluídos da “grande tradição”, as massas populares forjaram seus próprios parâmetros e costumes ao decorrer do tempo, mantendo por muitas vezes uma cultura distinta e em grande medida independente dos gostos das elites, algo essencial para a própria sobrevivência dos pobres. Ainda assim, discorrer sobre a real importância das questões culturais nos estudos de História não é algo fácil de se fazer, principalmente para os estudantes que, como eu, não possuem grandes afinidades com a cultura, seja lá qual for sua definição mais precisa. Referências BURKE, Peter. A fabricação do rei: A construção da imagem pública de Luis XIV. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. São Paulo: Atual, 1994. THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.