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FORMALISMO SOCIOLÓGICO E A TEORIA DO CONFLITO 1; Vida e época. Georg Simmel nasceu em Berlim, a 1.° de março de 1858, no seio de uma família judia. Seu avô, Isaak Simmel, natural de Dyhernfurth, era um comerciante bem-sucedido. Deslocou-se para Breslau, onde por volta de 1840 recebeu o título de cidadão dessa cidade. Seu fio, Edward, pai de Georg Simmel, nasceu em Breslau em 1810, vindo a dedicar-se também ao comércio, sob a firma "Felix und Barotti", como fabricante de chocolate. Casou-se muito jovem, em 1838, com Flora Bodstein, da mesma cidade, também de família judia, Simmel foi o mais jovem, o último, de sete irmãos, um menino e cinco meninas. Falecendo-lhe o pai em 1874, um amigo da família, dedicado a negócios de edições musicais, Julius Friedlãnder, foi nomeado seu tutor, Muito representou este tutor na formação espiritual de Simmel e no seu amor pelas coisas das artes e da música, Com sua morte, herdou Simmel uma herança considerável, que lhe permitiu entregar-se à carreira académica, sem qualquer dependência económica a alguém ou a uma instituição, A sua dissertação doutoral (1881) é oferecida a esse bom tutor, "com gratidão e amor". - Seus pais eram convertidos ao protestantismo, e nessa religião foi Simmel batizado, sem que chegasse em qualquer época a dedicar-se a alguma prática judaica, Quando de sua inscrição à dissertação doutoral, deixara escrito no seu currículo em latim: "Fidem profiteor evangelicum". Ingressara Simmel na Universidade de Berlim, com dezoito anos de idade, matriculou-se a princípio nos cursos de história, passando pouco depois 8 9 para os de filosofia, a despeito de haver sido aluno do grande Theodor Mommsen, que muito o impressionara, Foram seus professores univer¬ sitários, nas duas carreiras: Theodor Mommsen, Johann Droysen, Heinrich von Sybel e Heinrich von Treitschke, em história; Moritz Lazaras, Hajim Steinthal e Adolf Bastian, em psicologia e etnologia; Friedrich Harms e Edward Zeller, em filosofia; Herman Grimm, em história da arte, Recebeu o título de doutor em filosofia, no ano de 1881, com uma dissertação sobre A natureia da matéria segundo a monadologia física ié Kant, de 34 páginas. Como contribuição "minor", coube-lhe escrever sobre Petrarca, 1,1, Permanecendo em Berlim depois de diplomado, foi designado quatro anos mais tarde, em 1885, Privatdomt na universidade, função que ocupou até 1900, por longos quinze anos, Livre-docente, ou confe¬ rencista, nada recebia Simmel diretamente dos cofres da instituição, Seus ganhos, parcos e aleatórios, limitavam-se à contribuição das taxas dos alunos inscritos em seus cursos, Promovido a Ausserordentlicher Professor (professor extraordinário), já aos 42 anos de idade, em nada se alterou a sua situação de marginalidade nos quadros permanentes da universidade. Como o anterior, esse novo cargo era também de natureza puramente honorífica, sem qualquer segurança administrativa nem financeira, Exer- ceu-o Simmel por mais catorze longos anos, No ano em que começava a guerra, foi ele convidado, finalmente, para titular da cátedra, em tempo integral, na Universidade de Estrasburgo, cargo que desempenhou até a sua morte, de câncer de fígado, a 28 de setembro de 1918. Casara-se Simmel em 1890 com Gertrud Kinel, moça de cultura, diplomada pela universidade e filha de pais católicos, que não lhe deu filhos. 1.2, Tema obrigatório de todos os biógrafos de Simmel é o que diz respeito à sua marginalidade ou à sua inexpressividade oficial diante da vida universitária alemã, notadamente perante a Universidade de Berlim, na qual se formou e na qual se iniciou como professor, Antes, porém, de discutirmos as possíveis causas, é indispensável compor o quadro político, social e cultural dos fins dos oitocentos e as duas pri¬ meiras décadas dos novecentos, século atual, Os anos da virada do século foram de grande criatividade espiritual na Europa Central, Basta recordar, como o faz Donald Levine, que foi a época que assistiu nascer a psicanálise, a teoria da relatividade, o positivismo lógico, a fenome- logia, a música atonal e muitas outras manifestações literárias e filosóficas, Em Berlim levava-se uma vida de grande estilo cultural e de muita agitação espiritual e artística, Paul Honigsheim detém-se nessa heteroge¬ neidade de grupos, instituições e movimentos culturais da época, Desta- cavam-se: A velha Prússia, representada pelos proprietários feudais, dominava o exército, a alta administração e a igreja protestante oficial, conservadora e com concessões ao anti-semitismo. Artesãos e lojistas conservadores, protestantes, que aspiravam a uma sociedade pré-capitalista, organizada em corporações, Manifestavam-se contra o capitalismo, a economia monetária e os judeus, como represen¬ tantes máximos dessa economia, Os novos industrialistas e comerciantes, que procuravam imitar os senho¬ res feudais, encaminhando seus fios para a cavalaria e fazendo-os mem¬ bros de organizações estudantis de duelo, Admiradores de Bismarck, eram favoráveis ao nacional-liberalismo, Os liberais de esquerda, com influência somente no plano municipal, Com simpatia para certas manifestações do protestantismo, inclinavam-se de modo geral para o naturalismo e o realismo, fazendo aliança, não raro, com os socialistas, Os socialistas reformistas, não marxistas, recrutados entre os líderes sin¬ dicais e de movimentos cooperativistas. Sua concepção do mundo se aproximava muito da anterior, dos liberais de esquerda. A Universidade de Berlim, na qual se concentravam as grandes cabeças da época, era elitista e dava status a quem a frequentava. "Tomou-se, diz Honigsheim, uma posição da moda e muito distinta para os filhos dos bem-sucedidos homens de negócios," Em história, dividiam-se entre Ranke e Treitschke, voltados para a política externa e os grandes esta¬ distas e generais. Schmoller era a figura dominante na economia, com grande ênfase também dada aos estudos estatísticos, Não se ensinava sociologia, sendo, pelo contrário, já antiga a tradição universitária do ensino da psicologia, a princípio matemática, logo depois experimental, com destaque para Wilhelm Wundt e Carl Stumpf. Em filosofia, ninguém superava Dilthey, na melhor tradição do idealismo alemão. A cultura não-oficial de Berlim, de concepção materialista e mecanicista, tinha em Virchow um representante bem significativo, Com os esquer¬ distas liberais e os socialistas, via na ciência natural "a religião de nossa época" e difundia a literatura realista de Zola, Ibsen, Bjõrnson e Suder- mann, Incluía-se nesta cultura Julius Lippert, grande popularizador do darwinismo social, O protesto anti-racionalista contra a urbankação, o racionalismo e o materialismo, vindo desde o romantismo alemão, passando por Scho¬ penhauer e Nietzsche. As duas figuras mais representativas deste movi- 10 11 mento foram Julius Langbehn, cognominado o "Rembrandt alemão" e o poeta Stefan George, Pois bem, Simmel . começou pela "cultura não-oficial de Berlim" e terminou nos movimentos anti-racionalistas, sendo amigo pessoal de Stefan George, a quem dedica um dos seus últimos livros, No início de sua carreira, Berlim e a sua universidade eram grandemente anti-semitas, sofrendo Simmel por ser judeu, e assim discriminado, Por outro lado, não se identificava profundamente com nenhum dos grupos e movimentos então reinantes, Politicamente, não estava com a centralização imperial nem com o liberalismo capitalista, nem muito menos com o socialismo. Nos seus dois primeiros livros (1890 e 1892-3), sobre a diferenciação social e a moral, andava Simmel bem próximo dos pensadores liberais independentes, darwinistas e progressistas, Adotando um certo indivi¬ dualismo ético, negava o império absoluto da norma ética, cujo critério devia ser autonômico, antí-racionalista e subjetivo, A ética existe, à maneira nietzschiana e vitalista, para servir à vida, como manifestação da própria existência, 1,3, De ascendência judaica, não considerava o protestantismo como possível alternativa; livre-pensador e crítico dos valores dominantes nasua época, não se enquadrava Simmel dentro dos rígidos padrões da vida nacional e universitária do seu tempo, É bem verdade que, no fim da vida, quando em Estrasburgo desenvolveu - como em outra parte fazia Weber -uma intensa campanha belicista, a favor do esforço de guerra da Alemanha. Deu-se inteiro a estes propósitos, com confe¬ rências, discursos, artigos, ensaios de toda sorte, mais tarde reunidos em livro, . Escritor prolífico, entregue aos mais variados assuntos, faltava-lhe uma certa disciplina académica, Tinha-se a impressão de um diletante, muito inteligente e culto, verdadeiramente enciclopédico, brilhante, mas ciscador dispersivo de vários terrenos, Foi inegavelmente um grande conferencista, prendendo e empolgando o seu auditório - como o de Bergson em Paris, -predominantemente feminino, Gassen e Landmann transcrevem, na íntegra, uma carta de Simmel a Max e Marianne Weber, na qual lamentava não terem estes conseguido uma cátedra para ele em Heidelberg, mas os motivos não lhe haviam causado nenhuma surpresa; "Em certos círculos, dizia ele, existe a impressão de que sou exclu¬ sivamente crítico, até mesmo um espírito destrutivo, e que minhas con¬ ferências levam unicamente à negação, Talvez eu não precise lhe dizer que esta é uma inverdade abominável. Minhas conferências, como meu inteiro trabalho de muitos anos, tendem exclusivamente em direção positiva, para a demonstração de uma mais profunda compreensão do mundo e do espírito, com uma total renúncia de polémica e de crítica a respeito de teorias e condições divergentes, Quem compreende minhas conferências e livros em geral, não pode compreendê-las de outra forma, No entanto, essa opinião existe há muito tempo, É meu destino. E estou convencido de que a 'disposição desfavorável' do Ministro se refere a alguma comunicação de Berlim". Suas conferências abrangiam, praticamente, todos os aspectos da filosofia, desde a lógica e a teoria do conhecimento até à ética e à metafísica, passando por temas de estética, Psicologia e sociologia, filo¬ sofia da história e religião incluíam-se no seu universo de interesse universitário, Não devem ser esquecidas as suas grandes biografias, de Goethe, Schopenhauer, Nietzsche, Rembrandt e Kant, Emil Ludwig, que foi seu ouvinte, compara-o a um dentista no aprofundamento do assunto, até atingir o próprio nervo da matéria em debate, George Santayana escrevia da Alemanha para William James, dizendo-lhe que tinha "desco¬ berto um Privatdozent, Dr, Simmel, cujas conferências me interessam muito", Entregue a esse seu mundo cultural, ao contrário de Weber e da maioria dos seus colegas de profissão, nunca se interessou Simmel pela política partidária, nas suas manifestações concretas do dia-a-dia, embora sempre se mantivesse atualizado com os acontecimentos polí¬ ticos e sociais do seu tempo, Como já dissemos, foi das mais ricas culturalmente a vida dos Impé¬ rios centrais na virada do século e nos anos que antecederam à guerra de 14, Simmel privou da amizade desses grandes espíritos, Com Weber e Tõnnies, fundou a Sociedade Alemã de Sociologia, As famílias Weber e Simmel mantinham cordiais relações de amizade, com visitas recíprocas, Foi também amigo pessoal de Stefan George e Rainer Maria Rilke, correspondendo-se com Heinrich Rickert, Edmund Husserl e Adolf von Harnack, que muito se esforçaram, juntamente com Max Weber, por melhorar a situação universitária de Simmel, sem sucesso, Correspon- deu-se também com o escultor Auguste Rodin. Virtuose da palavra e do espetáculo, dele diz Lewis Coser, seu grande admirador: "Simmel was somewhat of a showman"1, 1Para a vida e época de Simmel, a contribuição mais importante ainda é o livro editado por Gassen e Landmann (Textos principais sobre G. Simmel: 1958è), no qual nos socorremos do ensaio deste último "Bausteine zur Biographie" (11-33), Nele se encontra a carta de Simmel aos Weber (127-8). Para a questão da universidade, Coser (1971a) é exaustivo, E, de modo geral, para os temas tratados neste item 1, podem ser vistos: Spykman (1925a); Wolff (1950), Honigsheim (1953), Wolff (1959), Martindale (1961), Giddens (1971) e Strasser (1978). • 12 2. Obra e ideias gerais. Ao contrário do que aconteceu a Dilthey e a Tonníes e, de certa maneira, também a Weber, Simmel teve a sua obra divulgada em línguas francesa e inglesa - notadamente nesta última -desde os seus primeiros escritos, Muitos dos seus artigos eram publicados ao mesmo tempo no original e em tradução, sendo que alguns deles apareceram antes em tradução americana, anunciando ser parte de livro em vias de publicação na sua língua pátria, Sem nunca haver viajado para a terra de Small, seu principal divulgador em língua inglesa - viagem levada a efeito por Sombart e Weber - era tão conhecido nos Estados Unidos e mesmo na França como um natural desses países, Seu estilo e sua maneira de escrever muito o ajudaram nessa divul¬ gação, Praticamente, não há um só comentarista seu que não lhe elogie o talento e o brilho, qualidades positivas, sem dúvida, mas traiçoeiras no trato das coisas da ciência. De formação filosófica e literária, alta¬ mente criativo, dotado de grande imaginação, era-lhe fácil deixar-se levar livremente pelos temas estudados sem pressa de concluir nem de resumir a matéria tratada, Versátil, prolífico, deixou mais de 200 artigos e cerca de 20 livros, alguns de grande fôlego, Como veremos adiante, imensa foi a sua influência no campo das ideias sociológicas, principal¬ mente nos Estados Unidos, Para se ter uma exata noção desse deslumbra¬ mento verba! e intelectual, basta uma meia página de adjetivos utilizados por seus expositores: "o homem mais sutil da Europa em 1910" (Ortega y Gasset); "engenhosidade crítica" (Bouglé); "ideias engenhosas", "vis¬ tas picantes", "aproximações curiosas" (Durkheim); "riqueza de dedu¬ ções psicológicas", "ensaios sugestivos", "brilhante moralista" (Bouglé); ensaios "engenhosos e finos" (Cuvillier); "brilhantíssimo" (Ayala); "bri¬ lhante" (Becker e Boskoff); "belo estilo sutil" (Salomon); "sutil" (Mannheim); "sinuoso e brilhante" (Aron); "personalíssimo" (Freyer); "genial" (Caso); "vivo e acolhedor" (Bréhier); "agudo e surpreendente", "imaginação e espírito inovador", "fascinante imaginação", "fantasia e fascínio" (Martindale); "homem inteligente e bem dotado" (Lukács); "delicia no elegante espetáculo de idéias" (Coser); "análises sutis e penetrantes" (Banfi), Também Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni referem-sauem texto,jiq .qual se encontra "todaja beleza que é possível extrair da análise de sutilezas". Ortega y Gasset, que foi seu aluno em Berlim nos primeiros anos do século e que elaboraria um perspectivismo existencialista muito pró¬ ximo do seu relativismo e da sua filosofia da vida, comparou-o de certa feita a um "esquilo filosófico", que "aceitava o assunto que escolhia como uma plataforma para executar sobre ela seus maravilhosos exercí- 13 cios de análise", Do seu livro sobre Nietzsche, achava-o escrito com "a agudeza que lhe é peculiar, mais sutil que profunda, mais engenhosa que genial" \ Mas sempre, ao lado da restrição, nunca deixa de aparecer o elogio ao seu talento, à sua agudeza e à sua percuciência analítica, Simmel, com a multiplicidade dos seus escritos, como que representou, segundo lembra Heinz Maus, uma grande riqueza das mais diversas sugestões, que ainda hoje podem ser exploradas, Segundo Herman ' Schmalenbach, citado por Maus, a obra de Simmel "interfere com todos os movimentos da nossa total vida intelectual, de tal modo que uma mera filosofia técnica não pode alcançar, Em seu conteúdo, também, Simmel significa a verdadeira representação filosófica de nossa idade". Mas, a despeito dessa observação, transcreve Maus essas duras palavras de Ernsí Bloch, que também era membro do círculo de Max Weber: "Simmel tem a mais refinada inteligência entre todos os seus contem¬ porâneos, Mas, fora disso, é totalmente vazio e sem objetivos, desejando tudo exceto a verdade, Ele é um compilador de pontos de vista ccm os quais rodeia a verdade,sem nunca pretender ou estar apto a possuí-la, Consome-se a si mesmo em muitos vivos e ocasionais fogos e na maioria das vezes fascinando com um sempre repetido aparato metodológico pirotécnico, com o qual rapidamente nos aborrecemos. Ele é coquete sem nunca mostrar suas verdadeiras cores, e é, ao todo, inteiramente sem vontade e incompetente para fazer repousar sua metodologia sensi¬ tiva - que sempre caminha em círculos - sobre uma objetividade compreensiva, amplamente contextual", O texto de Bloch é ainda mais extenso e severo. Limita-se Maus a dizer que "talvez tudo isso seja verdade". Mas procura justificar Simmel, pelo que ele representa, em sensibilidade e inteligência, para as correntes culturais da Alemanha do seu tempo, em defesa da liber¬ dade espiritual do indivíduo. E isso ele o fazia, como que com a ponta do lápis, em rápidos e inquietos desenhos, Sabia ele - e o escreveu em seu diário - que morreria sem deixar herdeiros espirituais, e com¬ pleta: "Isto é bom", Ernst Troeltsch admitia como muito leve a sua ascendência sobre os historiadores, "Sua influência, concluía, ficou como 2 Cf, Ortega y Gasset, J, Obras completas. Madri, Revista de Occidente, 1947. t. IV, p. 398; 1946, 1. 1, p, 92, Coser gosta muito dessa imagem de "esquilo filosófico", pulando de ideia em ideia como de noz em noz. Cf, Coser, 1971a, p. 199; e, juntamente com Nisbet, Robert, The idea of social structure. Papers in honor of R. K. Morton. Org, por L, A, Coser, Nova York, Harcourt Brace Jovanovich, 1975, p, 5. 14 uma influência sobre a atmosfera geral, fazendo-se. sentir particularmente entre os jornalistas mais sofisticados," 3 2.1, Veremos, ao final, os exemplos mais flagrantes da influência simmeliana na sociologia contemporânea, Por outro lado, dada a sua maneira de escrever sem referência às possíveis fontes, sem citação de autores nem de livros, nem sempre é fácil apontar-se a filiação de suas próprias ideias, Como o denuncia a escolha do tema da sua dissertação doutoral (1881), imensa e permanente foi a influência de Kant sobre as suas ideias, Neokantiano, incluiu-se Simmel na corrente dominante no pensamento alemão a partir do último quarto do século passado. O dualismo forma e matéria nunca o abandonará e estará sempre presente em todos os seus escritos - de moral, de filosofia, de história, de estética, Por outro lado, no entanto, estava Simmel também profunda¬ mente mergulhado na atmosfera espiritual de Berlim e da sua univer¬ sidade, A Volkerpsychologie de seus mestres Lazaras, Steinthal e Bastian está bem presente, com o seu psicologismo, nas suas primeiras obras até 1900. Os exemplos etnológicos à Bastian, um certo evolucionismo darwinista, aí também se fazem sentir, Mesmo na Soziologie, de 1908, não deixa de aparecer um exemplo ilustrativo de índio brasileiro, Falando do jovem Simmel, esclarece Honigsheim: "Os grupos mais próximos dele eram os pensadores liberais inde¬ pendentes, os darwinistas e os progressistas, fora da universidade. Simmel abraçou suas opiniões, mas somente em certa extensão e por um curto período, como mostram duas das suas publicações mais antigas: o breve Uber soziale Diffmmng de 1890 e os dois volumes Einleitung in die Moralwissenschaft de 1892-93" 4. Muitas das concepções simmelianas posteriores já aqui se encontram -sua base psicológica, o dualismo forma-matéria, a noção de interação e de sociação como processo social básico, inclusive, a filosofia da vida, 3 Cf. Maus, H, Simmel in german sociology, In: Wolff, K, H., 19596, p. 194-6. A opinião de Ernst Bloch encontra-se em Geisl der Utopie, Miinchen, Duncker & Humblot, 1918, p, 246-7. Não .achamos o texto na edição que possuímos de 1923, "revista e modificada", Nesta refere-se ele a Simmel, no qual "são somente pintadas as franjas coloridas, nervosas, da vida, as puras impressões", Mora, J, Ferrater, (1941a) escreve em defesa de Simmel: "Em vez de ser ele. acusado de que era pouco sistemático e académico, reconheceu-se que era bastante original e amigo de caminhos pouco trilhados. O 'ensaio filosófico' de Simmel apareceu logo, em suma, não como um modo de fazer 'literatura' com a filosofia, e sim como um modo diverso de fazer filosofia". 4 Honigsheim, P, The time and thought of the young Simmel; A note on Simmel's anthropological interests, In: Wolff, K, H, 19596. sua fase final,, já no ano de sua morte, Fazendo algumas restrições ao darwinismo biológico e social, já dava preferência ao vitalismo de Hans Driesch, em detrimento da psicologia quantitativista de Wundt e de Stumpf, Para ele a ciência da moral, como capaz de pesquisas cientí¬ ficas e positivas, encontra-se em três outras ciências humanas: na psico¬ logia, na sociologia e na história, Pelos métodos da primeira, analisa os atos voluntários, os sentimentos e os juízos individuais, cujos conteúdos têm ou não um valor moral, Como parte da sociologia, distingue as for¬ mas e os conteúdos da vida em sociedade, que são unidos com o dever moral do indivíduo por uma relação de efeito a causa ou vice-versa. Finalmente, como parte da história, pelas duas vias indicadas, deve ela conduzir toda a representação moral, dada a sua forma original e todo o desenvolvimento desta representação às influências históricas que a determinam. Por isso mesmo, deve ser rejeitada desde logo qualquer tentativa de monismo ético, "pecado original de todas as teorias abstratas da moral". A idéia do dever, como absoluto, fica privada de qualquer fundamento lógico. É a história que se incumbe de dar conteúdo às formas vazias da lógica, e é o sentimento íntimo do indivíduo que lhe permite distinguir o real do ideal, A ontologia não pode explicar o processo histórico, este é que pode explicar aquela, A personalidade do indivíduo encontra-se entrecruzada por numerosos círculos sociais, que lhe condicionam a consciência moral, Por isso mesmo a realidade escapa às abstrações, como meros ideais, da ética formal. O pior inimigo da ciência da moral é a própria moral, Para Simmel - e aqui já aparecem as primeiras afirmações de seu relativismo filosófico, - "todos os valo¬ res morais, atuais ou passados, são, aos olhos da história, igualmente relativos, isto é, cada um deles é, em certo sentido, um absoluto" 5, 2,2, Em 1892 viria à luz Problemas da filosofia da história, em que essas mesmas ideias são sustentadas, Dentro da linha de Dilthey, Windelband e Rickert, não admite Simmel a história como ciência natu¬ ral, causal. O objeto do conhecimento histórico é o fato histórico, mas este, diferentemente do fato da ciência natural, encontra-se no passado, 5 Breve súmula das principais ideias dos ensaios de Simmel, de 1890 e 1892-3, Neste último - v. II, 1893, - já às voltas, como sempre, com os conceitos básicos de forma e conteúdo, não deixa de escrever, p. 309: "A categoria de conteúdo e forma é uma das mais relativas e subjetivas em todo o campo do pensamento, O que, de.um ponto de vista, é forma, de outro, é conteúdo, e a oposição conceituai entre ambos se apaga, muitas vezes, ao ver-se mais de perto, em distinção apenas gradual entre a determinação geral e especial". 16 e não pode ser diretameníe observado, Esse fato terá de ser reconstituído pelo historiador, diante dos documentos e de outros elementos auxiliares, Como espírito e dotado de personalidade humana - e o objeto da história são também as obras humanas, -constrói o historiador em sua mente a imagem do passado, que lhe é subjetiva, e, para ele, verdadeira, Os dados da história, como realidade empírica, pertencem à experiência histórica do indivíduo, Para Simrael, assim, "a psicologia é o a priori da ciência histórica", Não há propriamente leis históricas, que supõem a ação de fatores objetivos constantes, Diversas são as interpretações da realidade histórica, sem que qualquer delas possa ser chamada de falsa, pois muita coisa ainda permanece no domínio da fé, A fim de que a seleção dos fatos históricos não se torne arbitrária e meramente subjetiva, joga Simmel com a noção do "umbral da consciência histó¬ rica", Isto é, só merecemo nome de fatos, significativos, aqueles que penetram esse umbral, por numerosa série de consequências, e pela re¬ percussão social dentro da própria continuidade histórica, O aconteci¬ mento isolado, como registra Aron, sem efeito aparente, fica aquém do umbral da consciência histórica, O único critério para apreender a reali¬ dade histórica e o seu sentido é a compreensão de sua totalidade9, Criticando o materialismo histórico, nega-lhe Simmel este caráter, reduzindo-o, quase ingenuamente, a motivos de índole psicológica: "O que o materialismo histórico parece oferecer antes de tudo é uma explicação psicológica dos acontecimentos históricos segundo um só e mesmo princípio, E se Marx afirma expressamente que a fome em si não constitui a história, isso não impede que as condições de produção e de troca não possam bastar para fazê-lo, se a fome, pelo fato que faz sofrer, não se encontrasse lá como força de impulsão, Eis por que a designação de materialismo presta-se a erros, , , Materialismo poderia significar somente dependência da história, em última instância, de energias que nada têm de psíquicas, Mas isso precisamente está em contradição com o próprio conteúdo da doutrina que dá à história motivos eminentemente psicológicos" 7. 8 Simmel, 1892, Sua exposição em Aron e Mandelbaum (1938a e b) e em Bauer, W. Introduction al estúdio de la historia. Trad, de L, G, de Valdeavellano, Barcelona, Bosch, 1944, passim, 7 Escreve na p, seguinte: "Mas, 'reconhecendo que o valor do método considerado do ponto de vista da teoria do conhecimento é ilusório, não se diminui em nada o grande valor que ele tem na prática para as pesquisas históricas, revelando novas relações causais", Conclui: "Ele só possui o valor de uma hipótese psico¬ lógica, - oÿ'que, aliás, longe dé diminuir sua importância, não faz senão aumen¬ tá-la", Cf, Simmel, 1892, p. 111-6 et seqs, Ora, por essa argumentação - e Simmel se utiliza dela em numerosas outras oportunidades de sua obra -, tudo na vida, todas as ciências, naturais e humanas, se reduziriam à psicologia, porque tudo, afinal de contas, é produto da mente humana. , . 2,3, Pouco depois, em 1895, publicou Simmel um ensaio -Dber eine Beziehung der Selektiontheorie zur Erkenntnistheorie" -, no qual negava a possibilidade da verdade absoluta. Pelo contrário, a verdade só é válida pelo que dela resultar de útil e prático, de eficaz para a espécie humana, isto é, as representações verdadeiras nascem pela sele¬ ção. Esta concepção pragmatista, que admite como verdadeiro aquilo que "sustenta e guia a ação humana no sentido da conservação e do fomento da vida", vai reaparecer na última fase do pensamento de Simmel, na sua filosofia da vida, porque, nos Problemas fundamentais da filosofia (1910), assumira ele uma posição menos pragmatista, mais distante de ser cética, Embora não chegue a filosofia a ser uma ciência objetiva, é considerada como "a reação do homem à totalidade do ser", Somente a ciência positiva alcança um conceito de verdade, sendo a filosofia, em comparação com ela, a expressão de um tipo de espírito, a intuição do mundo e da vida desse espírito, Mas essa tipicidade não se prende propriamente ao puro indivíduo, realiza-se na esfera de uma espiritualidade típica, que o supera e permite a comunicação das dife¬ rentes intuições do mundo, tornando-as capazes de livre comunicação. Os seus livros biográficos são exemplos e exercícios dessas diversas tipi» cidades espirituais. Com isso, Simmel consegue evitar o subjetivismo cético, segundo o qual, para cada homem, a sua verdade 8. 2.4. Um dos dois livros fundamentais de Simmel, Filosofia do dinheiro (1900) - o outro seria a Sociologia (1908) - é, fora da Alemanha, o menos conhecido de sua bibliografia, Publicado em 1900, somente agora, em 1978, foi traduzido para o inglês. Com impressões sucessivas, já em 1958 alcançava a 6,a edição, e note-se que se trata de uma obra de 585 páginas, Apesar do título, o seu conteúdo é o mais 8 Assim resume Simmel a sua concepção da filosofia (1910, edição espanhola, p, 34) nesta fórmula: "o pensamento filosófico objetiva o pessoal e personaliza o objetivo", A generalização filosófica não se confunde com a da ciência, da lógica e da prática: "Na filosofia, a afirmação geral não se deduz das coisas, mas é, pelo contrário, uma expressão que se reflete na totalidade das coisas, da maneira como algum dos grandes tipos espirituais se comporta diante das impres¬ sões da vida e do mundo, Não se trata, pois, de uma generalização que abrange as coisas singulares consideradas, e sim da generalização de uma reação individual, mas ao mesmo tempo típica, ante elas", Daí ser possível a sua objetivação em forma conceituai e inteligível. 18 19 amplo possível, e não simplesmente económico. É bem representativo do pensamento global de Simmel, como concepção da cultura humana contemporânea, vindo desde os povos primitivos até atingir o pleno de¬ senvolvimento do capitalismo moderno. Obra de história, de filosofia, de economia, de ciência política, e, sobretudo, de sociologia, divide-se ela em duas partes, a analítica e a sintética. Compõe-se a primeira de três capítulos: i) valor e dinheiro; 2) o valor do dinheiro como subs¬ tância; 2) o dinheiro na sequência de fins; e a segunda também de três: i) a liberdade individual; 2) o equivalente monetário de valores pessoais; J) estilo de vida, Não há um só sociólogo alemão de anteguerra (1914), e mesmo posterior, que tenha deixado de enfrentar o pensamento marxista, Observa Mannheim que dele se originaram ensinamentos significativos a soció¬ logos como Max Weber, Alfred Weber, Troeltsch, Sombart e Scheler na Alemanha, E concluí: "Suas polémicas com o materialismo histórico levam os sinais de todas as verdadeiras controvérsias que penetram a posição do oponente em lugar de evitá-la com artifícios" 9, Tambémÿ ali poderia figurar o nome de Simmel, Com razão, reconhece Johannes Plenge, da escola de von Wiese, que Marx representa um ponto crítico na história da filosofia, da teoria económica e da sociologia, Por isso mesmo, dizemos nós, não pode ser ignorado: há que rejeitá-lo ou acei¬ tá-lo. Sente-se a presença de Marx, mais difusa do que confessada, na Filosofia do dinheiro. O propósito de Simmel, como ele próprio con¬ fessa, no prefácio do livro, "é examinar o materialismo histórico e encontrar relações sociais funda¬ mentais que permitam compreender, do ponto de vista da natureza humana, a dinâmica dos processos económicos", Na economia monetária, com o novo sistema de crédito, o valor do dinheiro passa da ordem da substância para a ordem da função, tornando-se um símbolo abstraio dos valores, mudança essa que irá alterar todo o restante do estilo de vida. Ao mesmo tempo que o indi¬ víduo se vê esmagado nas novas engrenagens económicas, de massas anónimas e competitivas, ele também se liberta do antigo substancia- lismo em suas relações sociais, incluindo principalmente as do trabalho, que se tornam despersonalizadas, A nova economia monetária é raciona¬ lista, intelectualista, baseada no cálculo e na abstração, com prejuízo do primado dos sentimentos e da imaginação. A organização e a burocracia 9 Mannheim, K, Ensayos de sociologia de la cultura. Trad, de M. Suárei Madri, Aguilar, 1957, p. 38, são as manifestações típicas dessa nova classe burguesa dirigente, O processo cultural torna-se cada vez mais "objetivado". Essa "objetivação do conteúdo cultural é provocada pela especialização e cria um crescente alheamento entre o sujeito e seus produtos" (,,,) Os objetos culturais cristalizam-se cada vez mais num mundo inter¬ comunicado que tem cada vez menos contatos com a alma subjetiva e com sua vontade e seus sentimentos" 10. Repete-se aqui a noção de alienação de Marx, e muitas das idéias futuras de Weber aqui também se encontram, como chega a ser notório. Possivel¬ mente, Weber o leu em 1902, quando da volta às suas atividades universitárias em Heidelberg, depois de grave doença nervosa11, 3 , Sociologia de Simmel -Ao contrário do que se costuma escre¬ver, Simmel não foi tão assistemático como parece, As suas idéias são sempre praticamente as mesmas, como também são os critérios metodo¬ lógicos, em todos os seus livros, Quer trate de sociologia, de filosofia ou de estética, mantém-se a mesma diretiva do seu espírito, Por exemplo, em seu livro Die Religion, cuja 2,a edição possuímos, de 1912, mais parece um tratado de sociologia, como que repetindo as noções socioló¬ gicas defendidas até então. Quando da publicação da l,a edição da sua Sotiologie, em 1908, quase todos os seus capítulos já haviam sido publi¬ cados esparsamente na Alemanha e no estrangeiro, Assim mesmo, ao reuni-los, não deixou Simmel de chamar a atenção para a possível uni¬ dade do livro,,aparentemente muito fragmentário, Pouco se tem prestado atenção às suas palavras no prólogo, quando ele declara que com esse ensaio, pretende "dar ao conceito vacilante da sociologia um conteúdo inequívoco, regido por um pensamento seguro e metódico, A única coisa, portanto, que pedimos ao leitor, no proêmio deste livro, é que tenha sempre presente a posição do problema, tal como se explica na primeira parte, De outro modo, estas páginas poderiam dar-lhe a impressão de 10 Simmel, 1900, p. 491-2, Além do próprio livro, as melhores exposições, dos livros indicados na bibliografia, encontram-se em: Mamelet, 1914; Spykman, 1925a; Aron, 1938a; Salomon, 1945; Becker, H,, 1959b, On Simmel's Philosophy of Money, p, 216-32. 11Gerth, H. H, e Wright Mills, C, From Max Weber. Essays in sociology. Nova York, Oxford University Press, 1938. p. 14, Weber refere-se expressamente à Soziologie e à Philosophie des Geldes, completando-os em parte, em Wirtschaft iand Gesellschaft, 5. ed, Tubingen, I, C, B. Mohr, 1972 (1», de 1922), p, 1. Durkheim, E. Simmel, Georg, Philosophie des Geldes. L'Annee Sociologique, Paris,, V, 1902, p. 140-5. ) 20 21 uma massa inconexa, composta de fatos e reflexões, sem relação entre si". Em nota ao índice geral, na página seguinte, torna a frisar: "Cada um destes capítulos contém muitas discussões que, mais ou menos cerradamente, abrangem seu problema título. Mas eles não são somente matéria do seu título: constituem também contribuições relati¬ vamente independentes ao problema total (do livro). A intenção final e a estrutura metodológica destes estudos necessitam de sua ordenação sob alguns conceitos centrais, mas, ao mesmo tempo, necessitam de grande latitude em relação às questões particulares tratadas sob seus enunciados", Compõe-se a Soziologie de dez capítulos e de treze digressões (Exkurs), tão ou mais interessantes do que os primeiros. Embora nem sempre consiga Simmel manter o mesmo rigor metodológico, como enun¬ ciado no capítulo I, violando os seus próprios critérios propostos - confundindo forma e conteúdo, por exemplo, - cada capítulo é um tratamento especial, concreto, da aplicação dos seus conceitos básicos. À maneira de Kant, que perguntava na Crítica da razão pura como era possível a natureza, a mesma indagação fazia Simmel em relação à sociedade: como é possível a sociedade? Diferentemente da natureza, cujos fatos materiais concretos são ordenados pelas formas a priori (intuições puras e categorias) do espírito humano que as percebe; na sociedade, ao contrário, a síntese mental que constitui a sociedade, a unidade social, realiza-se pela própria atividade dos componentes da sociedade, sem necessidade da ação mental sintetizadora de um sujeito que lhe é externo ou estranho. Claro está que a unidade do social não atinge nem pode atingir a unidade da natureza, cujo caos de fenómenos é organizado num perfeito cosmos pelas faculdades, ativas, do espírito humano, Pois bem, a sociedade só é possível como uma resultante das ações e reações dos indivíduos entre si, isto é, por suas interações. São processos psíquicos, intermentais, cujos suportes, como sujeitos da ação, são os indivíduos, as suas consciências, a totalidade da sua vida psíquica. Como já havia acontecido com Dilthey (1887) 12, abandonou Simmel o antigo conceito de uma sociologia como ciência social global, enciclopédica e abrangedora de toda a matéria social. Para ele só era possível uma ciência sociológica rigorosamente delimitada, com objeto próprio, particular, não tratado pelas demais ciências sociais, Nem tudo 12 Cf, Dilthey, W, Introduction a 1'étude des sciences humaines. Trad, de L, Sauzin. Paris, P.U.F., 1942, p, 515-7, cuja l.a edição alemã é de 1887. ' o que acontece na sociedade merece o nome de social, nem por ela pode ser explicado ou compreendido. Como ciência empírica, a sociologia deve ter por campo ou objeto a multiplicidade de interações, numa incessante vida de aproximação e de separação, de consenso e de con¬ flito, de permanente vir-a-ser, A sociedade não é algo estático, acabado; pelo contrário, é algo que acontece, que está acontecendo. O objeto da sociologia são esses processos sociais, num constante fazer, desfazer e refazer, e assim incessantemente. É através das múltiplas interações de uns-com-os-outros, contra-os-outros e pelos-outros, que se constitui a sociedade, como realidade inter-humana, Ao processo fundamental Simmel dá o nome de Vergellschaftmg, ao pé da letra, socialificação, mais do que sociedade, denotando o seu dinamismo, sempre in fieri Como se verá em chamada própria, adotamos aqui a sugestão dos sim- melianos norte-americanos, traduzindo-o por sociação, que não se con¬ funde com socialização nem com associação, Pois bem, o processo básico de sociação é constituído pelos impul¬ sos dos indivíduos, ou por outros motivos, interesses e objetivos; e pelas formas que essas motivações assumem. Por isso mesmo, no processo de sociação, há que distinguir entre forma e conteúdo. À maneira de Kant, representa aquela o a priori, o invariante por assim dizer, e só ela deve ser o objeto próprio e particular da sociologia, deixando os múltiplos conteúdos concretos para as outras ciências sociais -o direito, a econo¬ mia, a moral, a história, etc, A isso chamou Simmel de sociologia formal, dando ensejo a uma série de críticas, de discordantes da doutrina (Sorokin, Abel, Treyer, Ginsberg, entre outros), como igualmente de adeptos e seguidores seus (Leopold von Wiese) 13, A sociologia, para Simmel, seria como a geometria, que somente ela "determina o que é realmente espacialidade nas coisas espaciais". A geometria "investiga a forma que a matéria assume para se tomar um corpo observável-forma que, em si mesma, só existe em abstrato, exatamente como as formas de sociação. A gometria, do mesmo modo que a socio¬ logia, deixa o estudo dos conteúdos, . . ou fenómenos totais, cuja forma estudam, para outras disciplinas". Simmel frisa, no entanto - e em mais de uma passagem - que ao chamar a sociologia de "geometria social", apresentava somente uma metáfora. A forma e o conteúdo são, de certo modo, inextricáveis, inse- «Sorokin, 1928, p. 501-3; Abel, 1929, p. 27; Freyer, E, 1930, p. 71-6, da ed. esp.; Ginsberg, M. Manual de sociologia. Trad, de J, M. Echeverria, Buenos' Aires, Losada, 1942, p. 13-5; Wiese, L, von, 1926, p. 62-3, da ed. esp. 22 paráveis, podendo a primeira ser construída somente por abstração, como acontece no trabalho de qualquer ciência, Não há formas vazias, como não há conteúdos sem forma, As formas puras podem nunca ser encontradas na história; são obtidas pela exageração de certas caracte¬ rísticas dos dados reais, até o ponto em que se tornem "linhas e figuras absolutas", Funcionam como "tipos-ideais", Aquelas "linhas e figuras absolutas, na vida social real, são encontradas apenas em começo e fragmentos, como realizações parciais que são constantemente interrom¬ pidas e modificadas". Antecipou-se Simmel aos conhecidos conceitos metodológicos de Max Weber, como se vê desta passagem de Philosophie des Geldes (1900) transcrita por Tenbruck: "Inumeráveis vezes, formamos nossos conceitos dos objetos de tal maneira que a experiência não pode mostrar nenhum equivalente de seu caráter puro e absoluto; eles ganham uma forma empírica somente mediante seu enfraquecimentoe limitado por conceitos opostos, , , Este método peculiar de exagerar e reduzir conceitos produz um conheci¬ mento do mundo que pode ser mensurável com o nosso modo de conhe¬ cimento, Nosso intelecto pode apoderar-se da realidade somente mediante limitações dos conceitos puros, os quais, não importa quanto se desviem da realidade, provam sua legitimidade pelo serviço que prestam ao inter¬ pretá-la" M. A sociedade só é possível pela existência das formas de sociação, verda¬ deiro a priori lógico da sua existência. Os capítulos da Soziologie, embora não exaustivos, são exemplos dessas condições formais, A primeira delas é a determinação quantitativa dos grupos, que, a partir de dois elementos mínimos, influi na sua organização, Há "uma série de formas de convi¬ vência, de unificação e de ação recíproca entre os indivíduos, que aten¬ dem só ao sentido que tem o número dos indivíduos sociados nas refe¬ ridas formas", A segunda condição é o processo dominação-subordi- nação, que importa interação entre dominante e dominado, entre auto¬ ridade e certa liberdade de aceitação do subordinado. Distingue Simmel entre autoridade e prestígio, antecipando-se em muitos pontos às conhe¬ cidas idéias de Weber sobre os tipos de dominação15, 14 Tenbruck, F, H, Formal sociology, In: Wolff, K, H,, 19596, p. 80-1, IR Para as relações Simmel-Weber, entre outros: Cuvillier. Ou n la sociologie française? Paris, M. Rivière, 1953, p. 64; Wiese, L, von, 1926, p. 137, 141, da ed, esp.; Gurvitch, G, Traité de sociologie. Paris, P.U.F., 1962, v, 1, 12-4; Salomon, A, 1945, p. 606; Gerth, H. e Wright Mills, C. Op, cit, p. 14, 19, 21; Ziegenfuss, W, org. Handbuch der Soziologie. Stuttgart, F, Enke Verlag, 1956, p, 224; Oppenheimer, F, e Salomon, G, orgs, Begriff der Gesellsáaft in der deutschen Sozialphilosophie. Karlsruhe, Verlag G, Braun, 1926, p. 8; Abel, Th,, 23 A terceira condição é o conflito, forma pura de sociação e tão necessário à vida do grupo e sua continuidade como o consenso. É ele indispensável à coesão do grupo, O conflito não é patológico nem nocivo à vida social, pelo contrário, é condição para sua própria manu¬ tenção, além de ser o processo social fundamental para a mudança de uma forma de organização para outra. A forma indireta do conflito é a competição, cuja manifestação na sociedade "é sempre a mesma, apesar da grande variedade de conteúdo"16, Também no segredo e na sociedade secreta encontra Simmel outro exemplo de formas puras de sociação, "Todas as relações dos homens entre si descansam, naturalmente, no que sabem algo uns dos outros, . , A representação corrente que se formam uma da outra as duas pessoas, por trás de uma conversação prolongada ou ao se encontrarem na mesma esfera social, ainda que pareça forma vazia, é um símbolo justo daquele conhecimento mútuo, que constitui a condição a priori de qualquer relação," Um dos problemas constantes em Simmel é o da formação da individualidade (cap, X), E tanto mais rica é a participação do indi¬ víduo na vida social, tanto maior o número de círculos sociais (cap, VI) a que pertença, quanto mais forte é a sua independência, quanto 1972, p, 83 et seqs,, da ed, port.; Bottomore, T. e Nisbet, R. 1980, passim. Ainda: Strasser, H, 1978, p, 221-2; Heberle, R,, 1948, p, 266; Parsons, T, Max Weber's sociological analysis of capitalism and modern institutions, In: Barnes, H, E. 1948, p, 291; Naegele, K. D, Some observations on the scope of sociological analysis. In: Parsons, T, 1961, p, 22-3; Antoni, C, Dallo storicismo alia sociologia, 2, ed. Fírenze, G, C, Sansoni, 1951, p, 179; Fernandes, R, 1959, p, 94, 132. 18E este capítulo da obra de Simmel que maiores interesse e polemica têm suscitado ultimamente, principalmente na sociologia americana, depois dos comen¬ tários de Coser, 1956 e 1967 e a nova tradução de Wolff, 1955a, O assunto • conflito voltou à ordem do dia na teoria sociológica, não mais como fator mera¬ mente dissociativo nem negativo da unidade social, E o nome de Simmel quase nunca é estranho ao debate, Cf, Dahrendorf, R. Class and class conflict in industrial society. 3. ed, Stanford, Stanford Univ, Press, 1963, p, 206 et seqs., 211, 226; Demerath, N, J, e Peterson, R, A., orgs, System, change and conflict, Nova York, The Free Press, p, 261-3; Horowitz, I, L. Consensus, conflict and cooperation, In: Demerath e Peterson, Op, cit,, p, 265-80; Rex, J, Problemas fundamentales de la teoria sociológica, Trad, de N, Miguez, Buenos Aires, Amorror- tu, 1968, p, 144 et seqs,; Janne, H, Le système social. Essai de théorie generate, Bruxelas, Inst, de Soe, de l'Univ, Libre de Brux,, 1968, p, 113-5; Ferraroti, F, La sociologia. Torino, Edizioni Rai, 1962, p, 99, 102, 124 et seqs.; Strasser, H, 1978, p. Til et seqs,, 272 et seqs, Coser, Strasser e Rex com grande discussão do tema e bibliografia. 24 25 mais nítida se destaca a sua personalidade, A pobreza também pode ser apresentada como outra forma pura de sociação, e pergunta Simmel: a que círculo pertence o pobre? Quais os tipos de relações que se cons¬ tituem entre o pobre e a sociedade como um todo? "A assistência é tanto uma parte da organização do todo, ao qual pertence o pobre, como o são igualmente as classes proprietárias", Simmel considera o espaço, que Kant define como "a possibilidade da coexistência", como uma das condições da sociedade; "Também este é o espaço do ponto de vista sociológico, A interação converte o espaço, antes vazio, em algo cheio para nós, já que faz possível a referida relação, , . Assim, ao procurarmos conhecer as for¬ mas de sociação, temos de inquirir a importância que as condições espaciais de uma sociação têm no sentido sociológico, para suas quali¬ dades e desenvolvimentos", Daí as noções de proximidade e afastamento, de distância social, de vizinhança e de isolamento, O que importa, porém, não é o espaço geográfico ou geométrico, e sim "as forças psicológicas", os "fatores espirituais", que aproximam, unem, distanciam ou separam as pessoas e os grupos, O estrangeiro é um dos exemplos mais característicos apre¬ sentados por Simmel, e por ele mais extensamente desenvolvido, 3,1, Como disciplinas científicas, admite Simmel três espécies de sociologias, que se completam: a sociologia formal, a sociologia geral e a sociologia filosófica. A primeira tem por objeto as formas sociais, como organizadoras apriorísticas da matéria social, dando-lhe estrutura e continuidade, São relações duráveis, irredutíveis, independentes dos múltiplos conteúdos concretos, infinitamente variáveis, que se apresentam no universo pluralista das relações intersubjetivas, quer na família, na escola, na profissão, no exército, na igreja, nos partidos políticos, etc, A sociologia geral é um subproduto da sociologia formal, tendo por objeto a análise do funcionamento e dos processos particulares, as con¬ dições específicas e as bases das instituições sociais, Finalmente, a socio¬ logia filosófica, que repensa todos os pressupostos metodológicos da disciplina, permite ao sociólogo uma visão trans-sociológica do indivíduo criador, Simmel procurou dar exemplos disso com as suas biografias de grandes espíritos inventivos, para cujas formações e criatividades não bastavam os condicionamentos histórico-sociais. Atinge-se aqui, como registra Salomon, o debate filosófico sobre os problemas do determi¬ nismo e da liberdade 17t 11Cf, Simmel, 1917a, passim; Salomon, A,, 1945, p. 607-8, 3.2, Como ciência empírica e analítica, tendo por objeto a imediata compreensão do dado, não se liberta a sociologia de duas disciplinas filosóficas: a teoria do conhecimento e a metafísica. Ocupa-se a primeira com as condições, os conceitos fundamentais e os pressupostos de toda pesquisa social, como antecedentes necessários de qualquer ciência parti¬ cular. Volta-se a segunda para o aperfeiçoamento da pesquisa parcial, colocando-a em relação com os conceitos que não se encontram na experiência e no saber objetivo imediato, Dá unidade ao conhecimento fragmentário da realidade social, atendendo ao grau do conhecimento,ao mesmo tempo que se projeta em outra dimensão da existência, levan¬ tando indagações sobre o sentido ou o fim da própria vida social e humana, já na esfera dos valores, dos símbolos e dos significados, inclu¬ sive religiosos 18 3,3, Apesar de muitos pontos de contato entre Simmel e Dur- kheim, muitos outros havia também de total separação entre eles19, O sociólogo francês escreveu todo um ensaio criticando o formalismo do seu colega alemão, considerado como infecundo, inútil e impossível, Por outro lado, não aceitava o primeiro qualquer modalidade de hipós- tase da sociedade, dando-a como uma realidade independente e auto- -suficíente em relação aos indivíduos; nada de consciência coletiva, de espírito do grupo, e assim por diante, Entre o organicismo social e o atomismo individual, procurava Simmel colocar-se num meio termo de equilíbrio20, dando o indivíduo como o sujeito último da vida social, seu legítimo portador, mas sem desconhecer a existência das grandes formações sociais, como unidades próprias. Embora distinguindo nitida¬ mente a psicologia da sociologia, porque só nesta se manifestam as ações recíprocas dos indivíduos como criadoras das sociações propriamente ditas, nunca deixou Simmel de se ocupar com o indivíduo e sua libei- 18 Simmel, 1908; na ed. de 1968, p, 20-1; constante desta coletânea, texto 2. 19 Para as relações teóricas Simmel-Durkheim, sumariamente: Nisbet, R.A. The sociology of Emile Durkheim. Nova York, Oxford Univ, Press, 1974, p, 7, 95-6, 125, 133, 170, 202-3, 264; Sorohn, P. 1928, p, 467, 474, 726-7; Naegele, K, D, In: Parsons, T, org, 1961, p. 15-21, 22-3; Blau, P, M, e Moore, I, W. Sociology, In: Hoselitz, Bert F,, org, A reader's guide lo the social sciences. Nova York, The Free Press, 1965, p, 170; Abel, Th,, 1972, esp. 95-9, da ed, portuguesa, L'Annee Sociologique, quase sempre com críticas e discordâncias, registra a recen¬ são de todas as obras de Simmel, de autoria de Durkheim, Bouglé, Mausse Hourticq. 211 Martindale, D., 1961, na ed. italiana, Tipologia e sloria delia teoria sociológica. 2, ed, Bolonha, II Mulino, 1972< p. 379-81; e Strasser, H,, repetindo-o, 1978, p. 217, 26 dade, Mais nominalista do que realista, jamais aceitaria ele essa afirmação de Vierkandt, inicialmente seu adepto: "O grupo se nos afigura, considerado do ponto de vista lógico, como uma nova espécie de seres. O grupo não pertence à classe dos corpos inor¬ gânicos, nem à dos seres vivos, não é tampouco um fenómeno meramente atual, no sentido de uma série de processos psíquicos. O grupo faz parte de uma classe própria de seres que não se podem reduzir a outros, A noção de grupo significa, portanto, para a ciência, como para a con¬ cepção popular, uma categoria social. Denominamos essa classe de seres, objetivações sociais" 21, 4, Filosofia da vida -O derradeiro livro de Simmel, escrito durante o último ano da primeira grande guerra e também da sua vida, e quando ,i ele já sabia que estava morrendo de câncer, é bem o coroamento de toda a sua obra, Em verdade, em tudo que escreveu e disse, ainda mesmo nos seus ensaios de sociologia, nunca deixou Simmel de colocar ij a vida, em seu conjunto, como o valor supremo, de certa maneira critério da verdade e do erro, do bem e do mal. Os seus antecedentes, a este respeito, foram Goethe, Schopenhauer, Nietzsche e Bergson, numa crescente linha de irracionalismo e antiintelectualismo intuicionista. A ii vida se apresenta sob o aspecto fisiológico e sob o aspecto espiritual; I sob o primeiro aspira a uma criação contínua, de viver mais (Mehr- -Leben); sob o segundo procura superar-se, almeja mais do que viver J , (Mehr-als-Leben). A vida é intensificada pela consciência, que faz das suas exigências (da vida) um dever, que se reveste do caráter de uma ! "lei individual", já que a vida é sempre individual. Apesar de individual, l! essa lei não é subjetiva, porque é imposta pela própria vida, dando a medida da liberdade pessoal, Cabe ao indivíduo superar os conflitos da vida e da cultura, em cumprimento ao dever de realizar-se a si mesmo 22, 5. Influência de Simmel - Escrevendo ao mesmo tempo para revistas alemãs, americanas e francesas, ainda no começo de sua vida intelectual, nenhum outro na sociologia germânica alcançou, ainda em vida, o renome de Simmel, principalmente nos Estados Unidos, Além de Small, que lhe traduziu a maioria dos ensaios, vai caber a Park e 21 Vierkandt, A. Gesellschaftslehre, Stuttgart, Ferdinand Enke, 1928, p, 329, 22 Para a sua filosofia da vida: Simmel, 19186; Weingartner, R, H, Form and content in Simmel's philosophy of life. In: Wolff, K, H, 19596, p. 33-60 (Simmel, à época, estava muito sob a influência de Bergson); nas obras de Bréhier, Ferrater Mora e Abbagnano, E do ponto de vista crítico: Rickert, H, Die Philosophie ies Lebens, 2, ed. Tiibingen, J.C.B. Mohr, 1922. p, 4, 8, 26, 28, 64 et seqs., 112, 149, 151, 177 e 183; LuxÁcs, G, 1954, p, 357-71, da ed. espanhola. ÿ , ...: . • At. ÿ%. ......;*......."Ç"'- ----,-*r-.W&r Á-ii-j—$"4 ~i* '*•? ,j* 'ÿ V !'ÿ , .* 'I LÃ." i,V*"a •* • i ' . 27 Burgess, de Chicago, em 1921, a difusão das suas ideias no livro de leituras que organizaram. Conceitos tais como: processos sociais, ínte- ração, acomodação, competição, conflito, cooperação, mundo rural e urbano (a grande cidade), espaço social, distância, contatos primários e secundários, dominação e subordinação, ganharam desde logo foros de cidadania, fazendo às vezes esquecer as suas origens. A segunda geração da escola de Chicago, entre os quais se destacam Wirth, Mackenzie e Hughes, ainda muito devem a Simmel. Grande também foi a sua influên¬ cia sobre Ross, pelo seu relacionismo sociológico, como igualmente sobre Merton, Warner, Homans, Moreno, Riesman, Caplow, nem lhe sendo estranho Talcott Parsons. Na França aproximam-se das suas as idéias da vida intermental da sociologia nominalista de Tarde; como dele também se aproximou em alguns pontos Celestin Bouglé, da escola de Durkheim. Na Alemanha, não escondeu Dilthey a simpatia pela sua maneira de conceber a sociolo¬ gia, Mais do que se pensa são as suas afinidades (com antecedência de Simmel) com o pensamento de Max Weber (ação-relação social, tipos de dominação, caracterização do capitalismo, tipo ideal, etc.), Vierkandt o seguiu a princípio, sendo Leopold von Wiese o maior dos seus segui¬ dores, desenvolvendo-lhe as sugestões e dando-lhes um aprofundamento sistemático. Fazendo a recensão da Soziologie em 1910, escrevia von Wiese: "Estou pronto a considerar seu caminho como correto, e a ver em sua sociologia um avanço significativo sobre todas as tentativas ante¬ riores", Na Bélgica destacam-se as obras de Waxweiler e de Dupréel como adeptas do formalismo simmeliano. Nos Estados Unidos há toda uma nova geração grandemente admiradora de Simmel e que se tem incumbido de lhe reatualizar a obra nos mais diversos escritos, entre os quais cabem ser destacados: Coser, Wolff, Levine, Hughes, Tenbruck, Nume¬ rosíssimos manuais de sociologia incorporam idéias e teorias de Simmel aos seus ensinamentos. Em verdade, a influência de Simmel, em toda a parte, é maior do que a de Wiese, que viveu muito mais do que ele e que por muitos anos chefiou a escola de Colónia, Somente Max Weber o supera, Por isso, não é exagero o que sobre ele escreveu Howard Becker: "Se convidados a alinhar uma dúzia de pensadores que durante os últimos cinquenta anos mais tenham influenciado o desenvolvimento da sociologia como disciplina, os sociólogos de todo o mundo incluiriam, 28 29 com toda probabilidade, na maioria dessas listas, o nome de Georg Simmel". Por outro lado, lembra Heinz Maus que "a ideia básica de sua sociologia tornou-se uma propriedade comum ainda que haja uma pequena consciência de sua origem" 2l 6. Conclusão crítica -Em tudo o que escreveu sempre mostrou Simmel uma grande dose de autonomia intelectual, de originalidade de concepção e de singular beleza estilística. Mas, isso que foi um bem, também pôde ter sido um mal, pois levou-o a extremos de uma sociologia excessivamenteanalítica e filosófica. Simmel não tinha por hábito refe- rir-se às suas fontes nem fazer citações de outros autores, preferindo fechar-se no seu próprio ensaio, como peça autónoma, Como lembrou ; Maus, muitas de suas ideias incorporaram-se de tal modo na teoria socio- ! lógica que não mais se indaga pela sua paternidade. Por outro lado, | como havia acontecido a vários outros sociólogos da sua geração, inclu- I sive a Max Weber, embora reconhecendo a especificidade do social,j deu Simmel exagerada importância à psicologia na explicação e com- í preensão da vida humana. Sua preferência sempre se voltou para os F estudos microscópicos da estrutura social, para o indivíduo como átomo | social. Mais nominalista do que realista - há comentadores que o jj incluem nesta última categoria -, fazia do indivíduo o único dado real 11 . da vida coletiva. "Sociedade, escreve ele, é apenas o nome para vários j indivíduos ligados pela interação," 24 Por isso mesmo, apesar dos esfor- ! ços em sentido contrário de Coser, por exemplo, vão-se nele abeberar ! de preferência, como mostramos atrás, os teóricos recentes do estrutu- ! ralismo, do funcionalismo, da sociometria e das análises dos pequenos i 23 Por limitação de espaço, não podemos nos estender neste tema, Todos os expositores de Simmel referem-se às suas influências no pensamento sociológico t que lhe foi posterior. Em conjunto, o mais completo é Levine, 1971b. As citações últimas são: Becker, H, In: Wolff, 1959b, p, 216; Maus, H, In: Wolff, 19590, p, 196, 24 Idealista, nominalista é, a nosso ver, a exata posição teórica de Simmel. Assim o consideram: Gurvitch, G. Traité k sociologie. p, 5-6; Aron, 1938a, p. 204-7; Aron, 1935, p. 10-1; Birnbaum e Chazel, 1977a, p, 9; Siches, R. 1943, p. 35; Berger/P, e Luckmann, T. La construction social de la mlidad, Trad, de S. Zuleta, Buenos Aires, Amorrortu, 1968, p. 216; Vierkandt, 1934, p, 61, Como ; realista objetivo: Carli, F. Li teorie sociologiche, Padova, 1925, p, 132-3, "O conceito de sociedade só tem sentido contrapondo-a à simples soma dos indi¬ víduos", reconhece Simmel, como que a se colocar no meio-termo conceituai indivíduo-sociedade. Nisso reside o sentido da sua dialética das tensões entre aqueles dois extremos, grupos, quase microscópicas, feitas a ponta de alfinete, como formas elementares da vida social, ' Por essa opção metodológica, permanece Simmel demasiado preso às motivações psicológicas da vida em sociedade, quase dizendo com Aristóteles que o homem é um animal social por natureza, Apela Simmel quase sempre para os instintos, inclinações e impulsos para explicar o conteúdo do processo básico da sociação, desprezando a própria matéria social, Isso nos faz lembrar estas palavras de Sumner e Keller: "Quando um escocês passa na escala social de uma classe inferior para a classe média, os sapatos se tornam para ele uma necessidade, Não os usa para conservar os pés, mas para conservar a sua situação social, , . Algum dia, um filósofo emitirá a opinião que os sapatos foram inventados por inata pudicícia de mostrar os pés e teremos assim desco¬ berto Um novo instinto"25, Apesar dos cuidados tomados por Simmel quanto aos possíveis exageros conceituais do seu formalismo social, da sua geometria social, mais metafórica do que real, como escreveu, mero fruto de abstração do próprio processo científico, a verdade é que passou à história da sociologia como criador da Sociologia Formal, como única maneira de se criar uma disciplina analítica e sistemática da sociedade. A sua pro¬ posta, brilhante e válida até certo ponto, corre o perigo de transformar a sociologia em palha seca, numa simples coleção de formas vazias, ocas, sem conteúdos concretos, ciência atemporal e a-histórica, Feliz¬ mente,' o próprio Simmel não consegue ser rigoroso consigo mesmo e fiel ao método indicado. Não raro os exemplos históricos penetram em suas análises carregados de matéria social, numa ampla visão 'de toda a sociedade global, Por outro lado, a sua perspicaz sugestão do conflito como forma elementar e necessária do processo da sociação, e não mais como permanente fator dissociativo, não foi além dessa função positiva de manutenção do grupo, de sua coesão, com superação das diver¬ gências, Na verdade, tanto em Simmel, como em Coser, como em Dahrendorf, estamos diante de teorias conservadoras do conflito, de natureza estruturalista e funcionalista, Lamenta Maus que Simmel, tão avesso a palavras vazias, tenha sucumbido no fim da sua existência à mágica da chamada filosofia da vida, Na verdade, porém, mesmo fazendo sociologia, nunca deixou de 25 Sumner, W, G, e Keller, A. G. The science of society. New Haven, 1927, apud Carvalho, C, Delgado de, Sociologia, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1931, p, 256, r lí < i < 30 estar presente em Simmel um certo intuicionismo irracionalista, um certo vitalismo antimecanicista, Ele próprio considerava a sua metodologia como incipiente ou provisória, à espera de outra melhor ou mais aper¬ feiçoada. Os exemplos que dava - já que nunca fez pesquisas empí¬ ricas - eram exemplos históricos e verossímeis, não precisavam ser reais nem verdadeiros, desde que verossímeis e possíveis, como dizia. A uma "particular disposição do olhar", a uma "intuição" é do que se dispõe até agora para distinguir a forma do conteúdo, Mais: "A prática científica, especialmente nos domínios até agora não cultivados, não pode prescindir de certo procedimento instintivo, cujos motivos e normas somente depois chegam totalmente à clara consciência e E mais ainda: "Se eu tivesse de expressar a questão de um modo um tanto exa¬ gerado, por amor à clareza metodológica, diria que os exemplos só são importantes por serem possíveis, mais que por serem reais (...)" A investigação poderia ser levada a cabo baseada até mesmo em exemplos fictícios, cuja importância para a interpretação da realidade poderia ser deixada ao ocasional conhecimento de fato do leitor" 26. A sua filosofia da vida distingue também entre conteúdo e forma, sendo que esta modela um certo número de conteúdos numa unidade, : j dando sentido a este constante fluir, a esta permanente duração, que i I ÿ é a própria vida. Todos os produtos da cultura nascem dela e nela se encontram, mas logo se encaminham para uma existência autónoma e independente, entrando em conflito com a própria vida, não raro, pre¬ tendendo negá-la. Daí a tragédia da cultura. Lukács submete a filosofia da vida de Simmel a rigorosa crítica, como representativa da filosofia imperialista do período de anteguerra, cujo expoente típico veio a encar- nar-se em Spengler, Intuicionista, impressionista, irracionalista e relati¬ vista, acrescenta Lukács que essa filosofia da vida chega a manifestar-se anticientífica: "Todo o suscetível de ser provado é suscetível também de ser discutido, Só é indiscutível o que não pode ser provado (...) Para o homem profundo, não há outra possibilidade de suportar a vida que uma certa dose de superficialidade" 2L 26 As duas primeiras citações são de O problema ia sociologia e as duas últimas de A determinação quantitativa dos grupos sociais, ambos os capítulos nesta 27 Lukács, 1954, p, 357-71, os exemplos são extraídos do próprio Lukács. Ainda do mesmo autor, In: Gassen e Landmann, 1958b, p. 171-6, 31 Dentro da sociologia académica contemporânea, não há negar que o nome de Simmel se encontra entre os quatro ou cinco mais represen¬ tativos das suas origens e criação, como um dos seus fundadores, talvez mais como problemática do que propriamente como sistemática. Tônnies, Simmel, Durkheim e Weber muito possuem de comum e de diverso, mas todos, sem dúvida, ofereceram valiosas contribuições à teoria socio¬ lógica deste século, à qual se incorporaram em muitos temas como aquisições definitivas. Nota-Não podemos analisar o vocabulário riquíssimo de Simmel, inegavelmente um grande escritor, com invejável imaginação criadora, Basta-nos tomar o vocábulo central da sua exposição teórica - Vergesekhaftung -e que consta do título da sua Soziologie, de1908. Com ele, quis Simmel significar o permanente vir-a-ser da vida social, processo sempre in fieri, que está acontecendo sem que se possa dizer que já aconteceu. Não há propriamente sociedade feita, mas antes o fame sociedade. Através da interação, da relação recíproca, é que se constitui a Vergesekhaftung, que preferimos traduzir, à maneira dos simmelianos americanos, por sociação, Na terminologia atual, numerosos são os autores que o traduzem por socialização, mas o próprio Simmel utiliza-se, mais de uma vez, desta expressão -Sozialisierung, sem que os confunda. Alguns tradutores espanhóis servem-se de socialificação, bem dentro da conotação de processo em movimento, Abel, Martindale e Giddens optam, dentro da mesma linha, por societalização, Aparecem ainda, mais erroneamente: sociabilidade, socialidaâe e associação, Segundo Wolff, a voz sociation existe em inglês desde 1898, cunhada por J.H.W. Stuckenberg em Introduction to the study of sociology (p. 126-7). Seleção dos textos Ensaísta múltiplo, como se vê de sua bibliografia, escreveu Simmel praticamente sobre todas as disciplinas das ciências humanas: economia, sociologia, ciência política, filosofia, filosofia social, ética, estética, mú¬ sica, biografia, etc. Ficamos num dilema: tendo de optar entre a maior concentração de sua obra em torno da sociologia e a maior dispersão ( por todos os campos por onde passou, Entre a compreensão e a extensão, preferimos a primeira, fazendo da sociologia o campo de eleição. Os três primeiros textos são fundamentais para a sua concepção da sociologia formal, De épocas diversas, vêm sendo reelaborados, às vezes com um certo tom polémico, em 1896-7, 1908 e 1917, no ano anterior v 32 à sua morte, Embora sem ser sectário ou opinioso, Simmel manteve sempre a sua primitiva distinção forma-matéria social, levando-a até suas últimas consequências, em todos os campos da cultura humana, O texto 4 é bem demonstrativo da derradeira fase do pensamento de Simmel, pronunciadamente irracionalista, vitalista e adepto convicto da filosofia da vida, muito próximo de Bergson, Muito citada até hoje, "A determinação quantitativa dos grupos sociais" representou verdadeiro achado para a época, assemelhando-se muito com a construção da demografia social na escola de Durkheim, com argumentos e exemplos bem próximos uns dos outros, Os ensaios sobre a dominação e a subordinação (textos 6 e 7) preenchem um dos aspectos mais bem elaborados da sua doutrina dos processos sociais, especialmente da interação social, temas esses tão bem desenvolvidos por Leopold von Wiese, de Colónia, e Park e Burgess, de Chicago, Os textos 8, 9 e 10 sobre a teoria do conflito social em sentido amplo vêm sendo dos mais repetidos pelos tratadistas contemporâneos, depois que Bendix e Coser os republicaram em obras diferentes, respec¬ tivamente, em 1955 e 1956. A partir daí tornaram-se citações obriga¬ tórias de quantos cuidaram do tema, O texto 11 contém o inteiro teor do capítulo 3 -Die Geselligkeit (Beispíel der Reinen oder Fomalen Soziologie) do seu último livro de matéria sociológica, aparecido em 1911, e bastante significativo do pensamento de Simmel e da sua maneira de fazer sociologia, O ensaio "O estrangeiro" constituí uma das digressões, à margem do texto principal - como Simmel costumava fazer -, à maneira de ilustração da matéria maior do espaço e a sociedade, Com os outros textos reunidos neste volume, pensamos que o leitor terá uma visão satisfatória do universo,sociológico de Simmel, sem que seja necessário, nem possível, acompanhá-lo por todos os seus escritos, Bibliografia de Georg Simmel Livros 1881 - Das fesen der Materie nach Kants Physischer Monadotogie. Berlim, 1881, 34 p. 1890 - Úber soziale Dífferenzierung. Soziologische und psychologische Untersuchungen. Leipzig, Duncker & Humblot, 1890, VII -f 33 147 p, La différentiation sociale, Rem Internationale ' de Sociologie, 2, 1894, p, 198-213, Tradução de textos principais por Parazzoli.) 1892 - Die Problem der Geschichtsphilosophie. Eine erkenntnistheo- retische Mie, Leipzig, Duncker & Humblot, 1892, X -f 109 p, (Problemas de filosofia de la historia, Seguido de los estúdios "En tiempo histórico" y "La configuración histórica", Trad, de Elsa Tabernig. Buenos Aires, Editorial Nova, 1950, 266 p.) 1892-93 - Einleitung in die Moralvissenschaft. Eine KM der ethis- chen Grundbegriffe. Berlim, Hertz, 1892-1893. v, I-II, VIII + 467 p.; VIII -f- 526 p, (Moral deficíences as determining intellectual functions, Excertos, sem tradutor declarado, International Journal of Ethics, 3, 1893, p, 490- -507.) 1900 - Philosophie des Geldes, Leipzig, Duncker & Humblot, 1900, XVI A 554 p. (A chapter in the philosophy of value, Sem indicação de tradutor, The American Journalof Sociology, v, V, n, 5, março 1900, p, 577-603; The philosophy of money, Trad, de T, Bottomore e D. Frisby, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1978.) 1904 - Kant, Sechzehn Vorksungen gehalten an der Miner Univer- sitdt, Leipzig, Duncker & Humblot, 1904, VI A 181 p. (Kant. Sedici iezioni tenute alTUniversità de Berlino. Intr. e trad, de G. Nirchio. Milão, 1953, XIV A 111 p.) 1905 - Philosophie der Mode. Berlim, Pan-Verlag, 1905, 41 p, (Cultura femenina y otros ensayos. Trad, de E, Imaz, Pérez Bances, M, G, Morente e Fernando Vela, Madri, Revista de Occidente, 1934, 329 p.) 1906 - a) Kant und Goethe. Berlim, Bard, Marquardt, 1906, 71 p, (Goethe,Seguido del estúdio Kant y Goethe. Para la historia de la concepción moderna del mundo, Trad, de J, R, Armem gol, Buenos Aires, Editorial Nova, 1949, 312 p.) b) Die Religion. Frankfurt a, Main, Literatische Anstalt Riitten & Loening, 1906. 79 p, (A contribution to the sociology of religion, The American Journal of Sociology, 11, 1905-6, p. 359-76, Republicado: , Idem, 60, 1955, p. 1-18.) 1907 - Schopenhauer und Nietzsche. Ein Vortragszyclus. Leipzig, Duncker & Humblot, 1907, XII A 263 p, (Schopenhauer y "H i mi I! it1 !u«! [»| ÿHi ii- I' Ú4 t. 58 que constituem seu conteúdo, Nem a fome, nem o amor, nem o trabalho, nem a religiosidade, nem a técnica, nem. os produtos intelectuais são, por si mesmos, de natureza social; contudo, é o próprio fato da sociação que dá a todas essas coisas a sua realidade, Se bem que a reciprocidade de ação, a união, a oposição dos homens apareça sempre como a forma de algum conteúdo concreto, no entanto somente, isolando essa forma mediante a abstração é que se poderá constituir uma ciência da sociedade, no estrito sentido da palavra, Não importa que o conteúdo reaja sempre sobre o continente, isso em nada altera a questão. O estudo geométrico das formas dos cristais é um problema cuja especificidade de modo algum é diminuída pelo fato de que a maneira pela qual essas formas se realizam nos corpos particulares varie conforme a constituição química desses últimos, A quantidade de problemas que este ponto de vista permite, suscitar, parece fora de dúvida, Unicamente, dado que, até o presente, ainda não se soube fazê-lo servir para determinar um campo de estudos que seja específico à Sociologia, importa antes de tudo habi¬ tuar os espíritos a discernir, nos fenómenos particulares, aquilo que é propriamente sociológico e o que é da alçada de outras disciplinas; é a única maneira de impedir nossa ciência de ficar respigando eterna¬ mente no campo dos vizinhos, É a este fim propedêutico que responde l|íí a presente pesquisa, I .mih1 2, O PROBLEMA DA SOCIOLOGIA * Se deve existir uma Sociologia como ciência particular, é necessário que o conceito de sociedade como tal, por cima da agrupação exterior dos fenómenos, submeta os fatos sociais históricos a uma nova abstração e ordenação, de modo que se reconheçam como conexas e formando assim objeto de uma ciência, certas disposições que até então só foram observadas em outras e várias relações, Este ponto de vista surge agora mediante uma análise do conceito de sociedade, que se caracteriza pela distinção entre forma e conteúdo da sociedade - devendo ser acentuado queisso em realidade nada mais é do que uma metáfora para designar aproximadamente a oposição dos elementos que se deseja separar; esta oposição deve ser entendida em seu sentido peculiar, sem se deixar levar pela significação que tais designações provisórias possam ter em outros aspectos, Para chegar a esse objetivo, parto da mais ampla representação imaginável da sociedade, procurando evitar no possível a polémica das definições,  sociedade existe onde quer que vários indivíduos entram em ínteração, Esta ação recíproca se produz sempre por determinados instintos (Tríeben) ou para determinados fins, Instintos eróticos, religiosos ou simplesmente sociais; fins de defesa ou ataque, de jogo ou ganho, de ajuda ou instrução, ÿReproduzido de Simmel, G, Das Problem der Soziologie, In: -, Soziologie, Untemchungen iiber die Form der Vergesellsckftung, 5, ed., Berlim, Duncker & Humblot, 1968, p, 4-21, Trad, por Evaristo de Moraes Filo, ff! ! , estes e infinitos outros fazem com que o homem se encontre num estado de convivência com outros homens, com ações a favor deles, em conjunto com eles, contra eles, em correlação de circunstâncias com eles. Numa palavra, que exerça influência sobre eles e por sua vez as receba deles, Essas ínterações significam que os indivíduos, nos quais se encontram aqueles instintos e fins, foram por eles levados a unir-se, convertendo-se numa unidade, numa "sociedade". Pois unidade em sen¬ tido empírico nada mais é do que ínteração de elementos, Um corpo orgânico é uma unidade, porque seus órgãos se encontram numa troca mútua de suas energias, muito mais íntima do que com nenhum ser exterior. Um Estado é uma unidade, porque entre seus cidadãos existe a correspondente relação de ações mútuas, Mais ainda, o mundo não ;f(( poderia ser chamado de uno, se cada parte não influísse de algum modo 1 1| sobre as demais, ou se em algum ponto se interrompesse a reciprocidade ' |lí das influências, [j Aquela unidade ou sociação (VergeseUsckftmg) pode ter diversos graus, segundo a espécie e a intimidade que tenha a Ínteração — desde a união efémera para dar um passeio até a família; desde as relações li por prazo indeterminado até a pertinência a um mesmo Estado; desde j | ÿ[ a convivência fugitiva num hotel até a união estreita de uma corporação j já medieval. Pois bem, designo como conteúdo ou matéria da sociação ' ; I III ' : tudo quanto exista nos indivíduos (portadores concretos e imediatos de jjjj toda a realidade histórica) - como instinto, interesse, fim, inclinação, : ijj estado ou movimento psíquico -, tudo enfim capaz de originar ação i jii sobre outros ou a recepção de suas influências, Em si mesmas, estas matérias com que se enche a vida, estas motivações, ainda não chegam i a ser social. Nem a fome nem o amor, nem o trabalho nem a religio- >!!' sidade, nem a técnica nem as funções e obras da inteligência constituem ainda sociação quando se dão imediatamente e em seu sentido puro. A sociação só começa a existir quando a coexistência isolada dos indi¬ víduos adota formas determinadas de cooperação e de colaboração, que caem sob o conceito geral da ínteração. A sociação é, assim, a forma, . li: realizada de diversas maneiras, na qual os indivíduos constituem uma unidade dentro da qual se realizam seus interesses. E é na base desses interesses - tangíveis ou ideais, momentâneos ou duradouros, cons¬ cientes ou inconscientes, impulsionados causalmente ou induzidos teleolo- gicamente - que os indivíduos constituem tais unidades, Em qualquer fenómeno social dado, conteúdo e forma sociais cons¬ tituem uma realidade unitária, Uma forma social desligada de todo conteúdo não pode ter existência, do mesmo modo que a forma espacial 61 não pode existir sem uma matéria da qual seja forma, Tais são justa¬ mente os elementos, inseparáveis na realidade, de cada ser e acontecer sociais: um interesse, um fim, um motivo e uma forma ou maneira de ínteração entre os indivíduos, pelo qual ou em cuja figura aquele conteúdo alcança realidade social, Pois bem, o que faz com que a "sociedade", em qualquer dos sentidos válidos da palavra, seja sociedade, são evidentemente as di¬ versas maneiras de ínteração a que nos referimos, Um aglomerado de homens não constitui uma sociedade só porque exista em cada um deles em separado um conteúdo vital objetivamente determinado ou que o mova subjetivamente, Somente quando a vida desses conteúdos adquire a forma da influência recíproca, só quando se produz a ação de uns sobre os outros - imediatamente ou por intermédio de um terceiro - é que a nova coexistência social, ou também a sucessão no tempo, dos homens, se converte numa sociedade. Se, pois, deve haver uma ciência cujo objeto seja a sociedade, e nada mais, deve ela unicamente propor-se como fim de sua pesquisa estas interações, estas modalidades e formas de sociação. Tudo mais que se encontra no seio da "sociedade", tudo o que se realiza por ela e em seus limites, não é propriamente sociedade, mas simplesmente um conteúdo que desenvolve esta forma de coexistência ou é por ela desenvolvido; somente se produz a figura real chamada "sociedade", no mais amplo e costumeiro sentido do termo, quando se juntam conteúdo e forma. Separar por abstraçâo científi¬ ca estes dois elementos, forma e conteúdo, que são na realidade insepara¬ velmente unidos; sistematizar e submeter a um ponto de vista metódico, unitário, as formas de Ínteração ou sociação, mentalmente desligadas dos conteúdos, que só por meio delas se fazem sociais, me' parece a única possibilidade de fundar uma ciência especial da sociedade como tal. Somente tal ciência pode realmente projetar os fatos designados sob o nome de realidade social-históríca no plano do puramente social. Ainda que semelhantes abstrações - as únicas que produzem ciência da complexidade ou também da unidade do real - tenham surgido das necessidades internas do conhecimento, elas também exigem alguma justificação na própria estrutura da objetividade, Pois somente na existência de alguma relação funcional com o mundo dos fatos, pode-se encontrar garantia contra um problematismo. estéril, contra o caráter acidental da formação de conceitos científicos, Destarte, erra o natura¬ lismo ingénuo crendo que o dado na realidade já contém os princípios analíticos e sintéticos da ordenação, mediante os quais pode esta reali¬ dade dada ser conteúdo da ciência. Contudo, as características do dado 62 são mais ou menos suscetíveis de receber aquelas ordenações, como, por exemplo, um retrato transforma fundamentalmente a aparência natu¬ ral humana, mas há rostos que se acomodam melhor que outros a esta transformação radical, De acordo com isso, podemos avaliar a maior ou menor eficácia dos vários problemas e métodos científicos, O direito de submeter os fenómenos histórico-sociais a. uma análise de formas e conteúdos, e levar as primeiras a uma síntese, repousa em duas condições . que só nos fatos podem ser verificadas, De um lado, é preciso que uma mesma forma de sociação possa ser observada em conteúdos totalmente diversos e em conexão com fins totalmente diversos. Por outro lado, é necessário que o mesmo interesse apareça realizado em formas de sociação completamente diversas, que lhe serviriam de meio ou veículo, Encontra-se um paralelo no fato de que as mesmas formas "i| geométricas podem ser observadas nas mais diversas matérias e a mesma ili /III i» matéria nas mais diversas formas espaciais. O que se manifesta, de modo análogo, entre as formas lógicas e os conteúdos materiais do conhecimento. Estas duas condições são fatos inegáveis, Em grupos sociais que por seus fins e por toda sua significação são os mais diversos que se possam imaginar, encontramos as mesmas relações formais dos indivíduos entre si, Dominação e subordinação, competição, imitação, divisão do trabalho, formação de partidos, representação, coexistência da união para dentro e a exclusão para fora, e incontáveis formas semelhantes, se encontram tanto num Estado quanto numa comunidade religiosa, num bando
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