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Texto em inglês de Columba Stewart 1 . Tradução de Maria Amélia Reis de Castro Rodrigues e Paola Matheus Campero para a disciplina Filosofia da Religião IV oferecida por Marcus Reis Pinheiro em 2019.2 no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF, campus Niterói. 1 Evágrio Pôntico E os “Oito Pensamentos Genéricos” No fundo distante da matriz medieval de sete pecados capitais encontra-se o esquema dos "oito pensamentos genéricos", elaborado no deserto egípcio por Evágrio Pôntico (345-399 d.C). Evágrio criou seu sistema como um inventário para diagnóstico e prática ascética, descrevendo em sua lista gula, luxúria, avareza, tristeza, raiva, acídia ou "preguiça", vanglória e orgulho como os desafios que os monges enfrentam no deserto egípcio. João Cassiano (365-435 d.C) trouxe o esquema de Evágrio do Egito para o nascente monasticismo latino da Gália, na esperança de guiar novas comunidades para linhas tradicionais – e por tradicionais aqui quero dizer egípcias. Gregório Magno (540-604 d.C) ampliaria a audiência da matriz de Cassiano, revisando-a para o sistema mais genérico de sete vícios capitais que se provariam tão úteis aos moralistas medievais. Como Evágrio fez uma ponte entre várias culturas, ele estava em uma posição única para criar um sistema de diagnóstico para a alma a partir de uma matriz de fontes tradicionais, ambas escritas e orais. Nascido em uma família eclesiástica em Pontus, uma província do norte da Ásia Menor, ele recebeu uma clássica educação Helenística e cristã, aprendendo filosofia e teologia de algumas das maiores figuras de sua época, incluindo Basílio, o Grande (330-79 d.C), que lhe ordenou leitor e Gregório Nazianzeno (330-390 d.C), que o ordenou diácono. Com eles, ele estudou as obras de Orígenes (185-254 d.C), o brilhante teólogo e exegeta alexandrino cuja obra se tornaria cada vez mais suspeita por sua ousada exuberância e Cristologia pré-Nicena. Gregório levou 1 Mosteiro e Universidade de São João, Collegeville, Minnesota. Evágrio com ele para Constantinopla em 379 para ajudar o partido Niceno em dificuldades na capital. Apesar de sua posição ter triunfado no Segundo Concílio Ecumênico em 381 e Gregório ter se tornado bispo de Constantinopla, logo renunciou, ferido pela política. Evágrio, no entanto, prosperou com as oportunidades oferecidas a alguém com seus talentos e, segundo as fontes, seu charme pessoal. O último logo o colocou em apuros; dentro de alguns anos, um amor impossível e um sonho perturbador o levaram a partir repentinamente para Jerusalém. Lá, ele foi levado pela mão pelos astutos e aprendeu de Melania ("o Velho", 342-410 d.C), que com seu conselheiro teológico Rufinus Aquileia (345-411 d.C) havia estabelecido um mosteiro no Monte das Oliveiras. Com eles, Evágrio encontrou uma companhia intelectual agradável, eles compartilharam um amor pelos escritos de Orígenes. Quando as dificuldades pessoais de Evágrio começaram a se reafirmar, Melania o pressionou a vida monástica e mandou-o para o Egito, onde ele poderia encontrar verdadeiros especialistas da alma. Evágrio foi primeiro ao assentamento monástico de Nitria, acessível por barco de Alexandria, e depois para o posto mais remoto do deserto de Kellia ("as Células"), onde passou os últimos quinze anos ou mais de sua vida. Seus principais professores monásticos foram os famosos Macarii: Macarius, o Grande ("o Egípcio", 300-390 d.C), um ex-condutor de camelos, e Macarius, o alexandrino, ex-mímico e vendedor de doces na metrópole (393 d.C) 2 . Com eles, ele aprendeu as tradições do cardiognosis (conhecimento do coração) que foi formado no crisol da solidão do deserto, formulado por Antônio, o Grande (251-355 d.C) e outros talentosos professores espirituais e depois transmitidos aos seus discípulos. Evágrio foi um dos primeiros a pôr no papel essas tradições. Um pedagogo talentoso, Evágrio criou seu próprio modelo abrangente da vida monástica e os estágios da prática espiritual que trariam um monge ao conhecimento de Deus. Foi dentro dessa estrutura pedagógica que ele criou o sistema de oito pensamentos genéricos (logismoi) como um menu de moralidade e avaliação psicológica. Evágrio desenvolveu sua visão monástica geral de uma variedade de fontes bíblicas, teológicas e monásticas tradicionais, tudo esclarecido por sua familiaridade com a filosofia helenística. Os trabalhos de Orígenes forneceram uma síntese crucialmente importante para o esforço de Evágrio em criar uma estrutura teológica para a instrução prática que ele tinha recebido dos monges egípcios. 2 Nos dois Macarii, ver Aaroine Guillaumont, "Le Problème des deux Macaire," Irénikon 48 (1975): 41- 59; para sua influência sobre Evágrio, ver Gabriel Bunge, "Évagre le Ponrique et les deux Macaire,” Irénikon 56 (1983): 215-27, 323-60. O esquema de Evágrio de oito pensamentos mostra a interação da tradição e originalidade tão característica de sua obra. 3 Evágrio presume um padrão cristão de ensinamento sobre a atividade hostil dos demônios, mas interpreta a instigação demoníaca através de um modelo distinto da alma baseada nas tradições filosóficas não-cristãs. Para Evágrio, como para os antigos filósofos e pensadores religiosos judeus e cristãos, compreender o “eu” abraçou tanto o domínio pessoal das emoções e a agência quanto o domínio cósmico de influências e contingências externas (o que os Estóicos, em uma distinção usada por Evágrio, identificaram como "aquilo que depende de nós e “aquilo que não depende de nós” 4 ). O foco no domínio pessoal produziu modelos teóricos da alma humana e seus poderes. Essa modelagem auxiliou no reconhecimento e gerenciamento de emoções destrutivas. O corolário cósmico do desafio pessoal do mal é entender a presença e atividade do mal no universo. No mundo antigo, essa investigação levou a teorias do envolvimento de poderes espirituais em assuntos humanos. As tradições as quais Evágrio desenhou seu esquema de oito logismoi, abordava tanto perspectivas morais e cósmicas. Evágrio desenvolveu o próprio esquema e seus componentes a partir de seu conhecimento das obras de Orígenes, sua meditação em textos bíblicos chaves e sua própria experiência monástica. O estudo do sistema de Evágrio requer alguma atenção prévia ao surgimento de Demonologia cristã, o meio clássico de explicar a presença e a atividade de impulsos malévolos no coração humano. 1. DEMONOLOGIA CRISTÃ INICIAL 3 Os estudos clássicos são os de Otto Zöckler, Das Lehrstück von den sieben Hauptsünden: Beiträge zur Dogmen- und zur Sittengeschichte, in besonders der vorre-formatorischen Zeit, em O. Zöckler, Biblische und kirchenhistorische Studien, 3 (Munich, 1893); Stephan Schiwietz, "Die Achtlasterlebre des Evagrius Ponticus und die griechische Philosophie," Der Katholik 83 (3. Folge, 28) (1903): 311-22, reimpresso em Das morgenländische Mönchtum (Mainz, 1904), 1:265-74; L. Wrzol, "Die Hauptsündenlehre des Johannes Cassianus und ihre historischen Quellen," Divus Thomas 37 (1923): 385-404, 38 (1924): 84-91; Irénée Hausherr, "L'Origine de la théorie orientale des huit péchés capitaux," OC 30 (1933): 164-75; Anton Vögtle, "Wober stammt das Schema der Hauptsünden?" Theologische Quartalschrift 122 (1941): 217-37; Antoine Guillaumont and Claire Guillaumontna introdução do Praktikos de Evágrio, em Évagre le Pontique: Traité pratique ou le moine, SC 170 (Paris, 1971), 63-93; Rainer Jehl, “Die Geschichte des Lasterschemas und seiner Funktion," Franziskanische Studien 64 (1982): 261-359; Aimé Solignac, "Péchés capitaux," in DSp 12/1:853-62; Richard Newbauser, The Treatise on Vices and Virtues in Latin and the Vernacular (Turnhout, 1993). Morton W. Bloomfield, em seu influenteThe Seven Deadly Sins: An Introduction to the History of a Religious Concept, with Special Reference to Medieval English Literature (East Lansing, MI], 1952; reprint, 1967), adota uma abordagem diferente das fontes iniciais que se seguem aqui e não conseguiu se beneficiar dos recentes avanços na atribuição e cronologia de textos monásticos. 4 Praktikos, 6, SC 171:508. Background Evágrio e seus professores acreditavam na existência de uma criatura não humana e racional que pretende subverter a intimidade entre Deus e os seres humanos. A evolução desta teoria, envolvendo com ela os gregos, judeus, e vários sistemas religiosos do Oriente Médio, foi gradual. Somente nos escritos deuterocanônicos e intertestamentários e na literatura associada a Qumran, começa-se a encontrar, por exemplo, uma identificação da serpente da história de Gênesis com o diabo (Sb 2:24) ou avisos de que espíritos malignos estão no mundo 5 . O testamento apócrifo de Rubén (segundo século AEC?), escrito em grego, influenciado pela filosofia helenística, e um texto importante para a posterior reflexão cristã sobre demônios, lista sete "espíritos do erro" que o príncipe dos demônios opôs aos sete espíritos da ação humana. 6 Nestes textos, o foco demonológico na causalidade exterior facilmente coexiste com ênfase na disposição interior, como o dualismo cósmico das forças do bem e do mal encontra eco nas lutas dentro de cada pessoa. 7 A noção rabínica do yetzer ha-ra, uma má disposição do coração argumentando com a inclinação oposta, viver corretamente 8 , aparece na literatura pseudo-digital como boas e más inclinações (diaboulia) que compete pelo controle do coração humano 9 . O famoso lamento de Paulo sobre as duas "leis" em guerra dentro dele mostram a tradição rabínica em um novo disfarce (Rm 7: 14-25). O capítulo final da Carta aos Efésios, talvez escrita por um dos discípulos de Paulo, descreve uma luta contra poderes espirituais hostis nos níveis 5 Testament of Reuben, 3:2-7, trans in The Old Testament Pseudepigrapha, ed. James H. Charlesworth (Garden City, NY, 1983), 1:783; todas as referências a textos pseudoepigráficos são para esta edição de dois volumes, outros desenvolvimentos evidentes na literatura são a teoria de que os demônios são filhos de anjos caídos (1 Enoch, 6-16, esp. 15:8-9 [1:21]; cf. Jubilees, 5:1-2 [2:64]; Test. Reuben, 5:61:784); cf. Sir 16:7) e a nomeação de Satanás como Beliar (Belial), píncipe dos demônios (Test. Reuben, 4:8 [1:783]; cf. 2 Cor 6:15). 6 Test. Reuben, 2.1-3.7 (1:782-83). Os sete espíritos do engano são: luxúria, gula, discórdia, bajulação (e trapaça), orgulho, mentira e injustiça. Os sete espíritos da ação humana são quase idênticos às sete partes da alma identificadas pelos pensadores estóicos como sob a regra do oitavo, a faculdade do governo chamada de hegemonikon; ver Stoicorum veterum fragmenta, ed. Hans F.A. von (Iobanges ab) Arnim (Leipzig, 1903), 2:226-27, aos. 827-33. O uso dos conceitos filosóficos gregos em um texto judaico desse período não é incomum; uma interação semelhante entre uma série de forças demoníacas e um modelo helenístico da alma é encontrado no pensamento de Evágrio. 7 Testament of Asher, 1 (1:816-17); cf. os espíritos maus mencionados no Testament of Judah, 20 (1:800). 8 Ver Jean Daniélou, "Démon, I: Dans la littérature ecclésiastique jusqu'à Origène," in DSp 3:162. 9 Ver n6; cf. 4 Ezra, 3.20-26 and 4.30 (1:529 and 530-31). Philo também favoreceu essa abordagem mais psicológica, em vez de procurar espíritos malévolos fora do eu. (ver Daniélou, “Démon," 163, and Everett Ferguson, Demonology of the Early Christian World [Lewiston, NY, 1984), 81-84; Ferguson também examina a paisagem grega não-cristã, pp. 33-59). cósmico e pessoal (Ef 6:11-17). Este texto contribui para uma imagem amplamente utilizada na literatura posterior, as "flechas flamejantes" do maligno (Ef 6:16), interpretadas posteriormente como sugestões demoníacas ou logismoi, bem como a afirmação de que a palavra das escrituras pode ser usada defensivamente contra eles (Ef 6:17). 10 A história da própria tentação de Jesus no deserto forneceria inspiração bíblica crucial e apoio à demonologia aplicada dos monges do deserto egípcio. 11 O ditado mais importante de Jesus para a mais tarde demonologia monástica, era sua insistência em que os seres humanos são contaminados não por alimentos proibidos ou por não realizar a purificação ritual, mas por maus pensamentos (dialogismoi) decorrentes do coração humano (Mt 15:19). Orígenes e os escritores monásticos uniriam a isso uma visão mais psicológica e moral do pecado às teorias da sugestão demoníaca, equilibrando responsabilidade pessoal e tentação externa. Certos outros textos apoiariam teorias monásticas de ataque demoníaco, como Jesus expulsando dos sete "demônios" de Maria Madalena (Lucas 8:2) e a parábola do espírito imundo que é expulso de alguém e vagueia por lugares desertos até que finalmente retorna a sua antiga casa com “sete espíritos piores que ele” (Mt 12: 43-45, Lucas 11:24-26). 12 Essa fábula de advertência sobre vigilância também pode ter influenciado a escolha de Evágrio por oito para seu esquema de pensamentos genéricos. Crucial para o desenvolvimento da demonologia cristã na literatura sub- apostólica e apologética do primeiro-segundo século foi o visionário texto intitulado The Shepherd, escrito em Roma por Hermas, um ex-escravo, em meados do século II. Hermas escreveu sobre dois anjos, bem e mal, que disputam o coração humano, 13 e criou listas de vícios e virtudes. 14 Ele construiu seu texto sobre os escritos do Novo 10 Os escritos um pouco mais tarde de Plutarco (antes de 50 d.C - depois de 120 d.C) oferecem uma perspectiva não cristã que se sobrepõe aos ensinamentos cristãos sobre demônios maus, preservando a visão grega mais ampla de "demônio" aplicável a uma variedade de divinas, semi-divinas, e espíritos humanos. Ver Guy Soury, La Démonologie de Plu tarque (Paris, 1942) and Ferguson, Demonology, 33- 59. 11 Mat 4:1-11, Lc 4:1-13, Mc 4:12-13. O ensinamento de Evagnus sobre os três demônios "linha de frente" é baseado nas contas da tentação de Jesus no deserto; ver On the Thoughts (De malignis cogitationibus), 1, ed. Paul Gébin, Claire Guillau mont, and Antoine Guillaumont in Évagre le Pontique: Sur les pensées, SC 438 (Paris, 1998): 148-52, esp. 152, 11. 17-25. 12 Cf. Evagrius, Praktikos, 17, SC 171:542, com comentário de A. Guillau mont and C. Guillaumont; Thoughts, 14.9-11, SC 438:200; Scholia on Proverbs, 227, ed. Paul Géhin in Évagre le Pontique: Scholies aux Proverbes, SC 340 (Paris, 1987), 322. 13 Mand., 6.2, em Hermas, Le Pasteur, ed. e trans. Robert Joly, SC 53 (Paris, 1958), 172-74; cf. Mand., 5.1, SC 53:162-66. 14 Vícios: Mand., 8.3-5, SC 53:178; Virtudes: Mand., 6.1 (p. 170), Vis., 3.8.4-5 e 7 (p. 120). Testamento identificando os vícios humanos com demônios ou espíritos, 15 e insistiu na fraqueza fundamental dos espíritos malignos quando confrontados pela oração ou Espírito de Deus. 16 Sua maior contribuição para os pensadores posteriores foi seu conselho sobre como distinguir a presença de poderes bons ou maus através da análise de seus efeitos emocionais. 17 Isso se tornaria um ponto de partida para os ensinamentos de Antônio sobre o discernimento dos espíritos e, assim, também para Evágrio, Cassiano e Gregório. Orígenes O universo de Orígenes estava vivo com espíritos, tanto angelicais quanto demoníacos, e esses espíritos permeiam seus escritos. 18 Orígenes integrou tradições anteriores sobre as forças do mal em um sistema teológico e cosmológico abrangente, e equilibrou o foco externo da demonologia com um interesse no funcionamento da alma humana. Ele mostra muito mais interessena batalha espiritual contra maus pensamentos do que seu companheiro alexandrino Clemente de Alexandria (d.C 150-215). Sua análise das fontes dos maus pensamentos foi decisiva para tornar essa análise central para a teologia ascética do monasticismo egípcio. A demonologia de Orígenes é presumida e aplicada na Vida de Antônio [Life of Antony], e Evágrio, por sua vez, depende muito das teorias de Orígenes e o uso monástico delas. O exame de Orígenes em Sobre Primeiros Princípios do papel que os demônios desempenham na vida espiritual é de particular importância. 19 Lá, vemos sua dívida com pensadores anteriores, especialmente Hermas, bem como sua fixação nos parâmetros para a mais tarde, monástica, demonologia. Como veremos, o estudo de Orígenes da alma foi provavelmente a maior influência sobre Evágrio na formulação do sistema de oito logismoi. A importância de Orígenes para a Evágrio, no entanto, não se restringia as ideias psicológicas. Evágrio foi também profundamente interessado na visão brilhantemente imaginativa de Orígenes dos princípios e destino do universo criado, 15 Mand., 2.3, SC 53:146 mentira; Sim., 9.22 (pp. 336-38), orgulho; Sim., 9.23 (pp. 338-40), ressentimento. 16 Mand. 11.14-21, SC 53:194-98. 16. Mand. 6.2, SC 53:172-74; cf. Mand. 11.7-16 (pp. 194-96). 17 Mand. 6.2, SC 53:172-74; cf. Mand. 11.7-16 (pp. 194-96). 18 Ver a visão geral de Daniélou in "Démon," 182-89,com referências a textos chaves. O trabalho padrão sobre o assunto é de Stephanus Tavares Bettencourt, Doc trina ascetica Origenis seu Quid docuerit de ratione animae humanae cum daemonibus (Rome, 1945). 19 De menor importância aqui, embora de grande importância por si só, é a elucidação de Orígenes da relação entre cultos não-cristãos e os demônios em sua resposta às objeções do pagão Celso (Contra Celsum). conforme apresentado em Sobre Primeiros Princípios, 20 e aceitou sua teoria de que os demônios são um aspecto da “segunda criação”, a diferenciação dos intelectos criados em anjos, humanos e demônios. 21 Para Orígenes, a luta cósmica entre forças angelicais e demoníacas foi trazido a cada coração humano na luta contra maus pensamentos. 22 Orígenes mostra sua dívida com escritores cristãos anteriores em seu reconhecimento explícito dos ensinamentos de Hermas sobre os dois anjos, bom e o mal, que disputam a atenção humana, e a doutrina semelhante dos "dois caminhos" encontrados na Epístola de Barnabé. 23 Orígenes, como Hermas, propõe critérios para o discernimento entre intervenção benevolente e malévola. Enquanto Hermas estava preocupado principalmente com os critérios comportamentais para detectar a presença do anjo do mal, 24 Orígenes sonda a etiologia do pecado. Sua principal preocupação é o efeito desestabilizador dos demônios na mente através dos pensamentos, 25 pois se os maus pensamentos não são controlados, eles levam a ações pecaminosas. Orígenes comenta: “É justo dizer que a maior parte do reino do Diabo e a plenitude de seu poder domina os pensamentos; assim disse o Senhor: „do coração procedem os maus pensamentos, assassinato, adultério, roubo, falsas testemunhas, blasfêmia, e é isso que contaminam alguém‟.” 26 Os demônios querem abalar a confiança do crente em Deus a ponto de desespero e abandono da fé cristã. 27 Essa mudança de ênfase para uma patologia psicológica foi crucial, e está subjacente à ênfase monástica dos “pensamentos”. Para Orígenes, maus pensamentos e "desejos" (concupiscentiae) são o caminho dos "maus espíritos" para dentro da alma, e 20 Obras especulativas de Evágrio, a Carta a Melania (edição parcialmente síria ed. Frankenberg in Euagrius Ponticus (Berlin, 1912), 610-19; o restante ed. Gosta Vitestam em Seconde partie du traité qui passe sous le nom de "La grande lettre d'Evagre le Pontique à Mélanie l'Ancienne" (Lund, 1964); tradução inglesa, e com. Martin Parmentier, "Evagrius of Pontus' Letter to Melania" Bijdragen 46 [1985]: 2-38; tradução alemã, e com. Gabriel Bunge, Briefe aus der Wüste [Trier, 1986), 303-28) e a Kephalaia gnostika (ed. Antoine Guillaumont in Les Six Centuries des "Kephalaia gnostica" d'Évagre le Pontique, PO 28 (Paris, 1958]) desenvolve as teorias de Orígenes sobre a gênese de espécies angélicas, humanas e demoníacas e seu destino escatológico. 21 Ver a discussão dessa doutrina abaixo, pp. 20-22. 22 Poucos, ele observa, são poupados das "flechas de fogo" (Eph 6:16) do mall: De principiis, 3.2.4, ed. e trad. Henri Crouzel and Manlio Simoneri, SC 268 (Paris, 1980), 172, 11. 302-5. 23 De princ., 3.2.4, SC 268:170, 11. 256-64. 24 A lista de Hermas está em Mand., 6.2, SC 53:172; cf. Mand., 11.7-16 (pp. 194-96) em distinguir um falso profeta de um verdadeiro, uma preocupação também encontrada no Didaqué. 25 Orígenes nota três efeitos dos demônios: obturbatio, alienatio mentis, loss of iudicium liberum (De princ., 3.3.4, SC 268:194, 11. 172-76). 26 25. Homiliae in Numeros, 13.1.4, ed. W.A. Bachreos, nova ed. Louis Doutreleau, SC 442 (Paris, 1999), 122. 27 De princ., 3.2.6, SC 268:178-80. 27. Hom. in Num., 6.3.1, SC 415:148, 11. 62-67. o primeiro passo em direção ao pecado real. 28 A análise de Orígenes das três fontes de pensamentos (divinas ou angelicais, puramente humano, demoníaco) mostra a interação entre a causalidade interior e exterior que se tornaria significativa para os teólogos ascéticos posteriores como Antônio e Evágrio. 29 Orígenes retratou a vida cristã como uma vigilância contínua. 30 Os seres humanos carregam dentro deles "sementes do pecado", 31 e essas tendências latentes podem entrar em ação, criando uma abertura para o Adversário, que constantemente procura oportunidades para explorar condições pré-existentes. 32 Baseando-se fortemente na antropologia filosófica, 33 Orígenes explicou essas sementes do pecado como "movimentos naturais" do apetite humano que, quando não controlados, podem causar abuso de comida ou bebida, desejo sexual descontrolado, ganância, raiva ou tristeza. 34 Orígenes insiste que maus pensamentos sejam identificados e tratados de uma só vez, "apreendidos e arremessado contra a rocha que é Cristo", 35 antes que eles se transformem em más ações. A ênfase em Cristo é crucial, pois a resistência aos demônios sempre requer ajuda divina 36 e uma vontade de invocar o nome de Jesus e as palavras das escrituras. 37 Orígenes lida com o problema da teodicéia de maneira clássica, descrevendo a tentação como provação permitida pela providência divina. Orígenes tinha intenção em preservar a liberdade da vontade humana, e ensinou que, embora o grau da provação 28 Hom. In Num., 6.3.1, SC 268:178-80 29 De princ., 3.2.4, SC 268:168, 11. 233-38. Cf. Evágrio, Pensamentos, 8.1-2, SC 438:176, e 31 (pp. 260- 62). 30 De princ., 3.3.6, SC 268:196-98, 31 De princ., 3.2.2, SC 268:160, 1. 126. Cf. o conceito estóico de "sementes da virtude" usado por Evágrio (e.g., Pensamentos, 7.18, com note, SC 438:174-76, e 31.17 [p. 262]) e as sementes do mal semeadas dentro de nós pelo diabo (Pensamentos, 37.42-43 [P. 284] cf. Matt 13:25). Por causa de sua teoria de que as almas preexistem ao nascimento físico, Orígenes sugeriu que as almas podem experimentar influências benéficas ou demoníacas mesmo antes do nascimento, De princ., 3.3.5, SC 268:194-96, 11. 183-215. 32 De princ.; 3.2.2, SC 268:160, 1. 131. Cf. Atribuição de Atanásio do mesmo ensinamento a Antônio: Vita Antonii, 42.5-8, ed. e trad. G.J.M. Barrelink, SC 400 (Paris, 1994), 248-50. 33 Ver o comentário de Crouzel and Simonetti em SC 269:60-61 na 16 e 18. 33. De princ., 3.2.2, SC 268:160, 11. 113-21. 34 De princ., 3.2.2, SC 268:160,LL. 113-21. 35 Homiliae in Iesu Nave, 15.3, ed. e trad. Annie Jaubert, SC 71(Paris, 1960), 340-42; Hom. in Num., 20.2.4, SC 461:30; Contra Celsum, 7.22, ed.e trad. Marcel Borret, SC 150 (Paris, 1969), 65. A interpretação espiritual de Sl 136:9 ("Feliz é quem agarra seus bebês [babilônicos] e os arremessa contra a rocha”) junto com 1 Cor 10:4 ("e a pedra era Cristo") tornou-se um lugar-comum no comentário bíblico latino e aparece duas vezes na Regra de São Bento como um conselho para lidar com pensamentos pecaminosos: Benedict of Nursia, Regula, Prol, 28 e 4.50, trad. Adalbert de Vogüé, ed. Jean Neufville, SC 181 (Paris, 1972), 418 and 460. 36 De princ., 3.2.5, SC 268:174-78. 37 C. Cels., 1.6, SC 132:90-92; cf. Hom. in Iesu Nave, 1.7, SC 71:110-12. esteja de acordo com a virtude, a vitória sobre a tentação não é garantida. 38 No entanto, a perspectiva de Orígenes era fundamentalmente otimista: “quando uma força maligna começa a nos provocar ao mal, é possível lançar para longe de nós mesmos suas sugestões perversas, resistir a suas persuasões indignas e não fazer absolutamente nada de errado. E é igualmente possível para nós não seguirmos quando uma força divina nos chama para coisas melhores, pois o poder do livre arbítrio é preservado em ambos casos.”. 39 De fato, para Orígenes, o combate espiritual é inevitável, porque os demônios também têm liberdade de escolha e devem ser permitidos a poder seguir sua propensão ao mal. 40 Sua afirmação de que não se pode impedir os ataques dos demônios, mas pode-se optar por não os dar atenção, se tornará uma das pedras angulares do ensino de Evágrio sobre os demônios. 41 Em suas obras exegéticas e homiléticas, Orígenes leu as histórias das guerras no Antigo Testamento como alegorias da batalha espiritual entre os Cristãos e forças diabólicas. De fato, ele escreveu, os apóstolos devem ter tido essa interpretação em vista quando esses livros foram entregues para a Igreja, pois, caso contrário, as histórias não serviriam para nada aos Cristãos. 42 Como seria de esperar de Orígenes, ele vê esse combate ocorrendo nos níveis cósmico e psicológico. O último é o mais relevante aqui, e é melhor ilustrado pelas Homilias de Josué, 43 onde a conquista da Terra Prometida pelos Israelitas se transforma em metáfora para a vitória gradual de cada crente sobre os demônios, que dominam sua alma: “dentro de nós estão todas essas nações de vícios que constantemente e incessantemente atacam a alma. Dentro de nós estão os cananeus, os perizitas, os jebuseus”. 44 Nestas homilias Orígenes dá um passo importante em direção ao esquema de Evágrio dos oito logismoi quando associa demônios a pecados particulares: “a raiva tem um anjo de seu próprio tipo... da mesma forma o orgulho, inveja, avareza e luxúria, existem anjos que incitam e excitam esses males.” 45 Assim, enquanto o Diabo domina todos os espíritos malignos, os espíritos menores, "príncipes", 38 De princ., 3.2.3, SC 268:162-68. 39 De princ., 3.2.4, SC 268:170, 11. 268-73. 40 Hom, in Num., 13.7.2, SC 442:148, 11. 377-85. 41 Cf. Evágrio, Praktikos, 6.5-8, SC 171:508. 42 Ver Hom in lesu Nave, 15.1, SC 71:330: “Nisi bella ista carnalia figuram bello rum spiritualium gererent, numquam, opinor, Iudaicarum historiarum libri discipulis Chrisci, qui venit pacem docere, legendi in ecclesiis fuissent ab Apostolis traditi". 43 Orígenes joga muito com o fato de que "Josué" e "Jesus" são o mesmo nome em hebraico e grego, de modo que a conquista da Terra Prometida por Josué é realizada espiritualmente pela vitória de Jesus sobre o pecado e a morte. 44 Hom. in lesu Nave, 1.7, SC 71:110. 45 Hom. in lesu Nave, 1.6, SC 71:110. governam cada tipo de pecado (por exemplo, fornicação, raiva, avareza, orgulho), que por sua vez tem inúmeros demônios agentes que atacam os seres humanos individualmente. 46 A derrota dos demônios agentes é crítica, pois quando um deles é frustrado, é retirado de combate pelo julgamento de Cristo. 47 A conquista da “terra prometida”, que é defendida pelos demônios, rende demônio por demônio enquanto a paisagem da alma é gradualmente liberada de seu controle. 48 Orígenes afirma ter encontrado apoio para sua noção de demônios particulares “em um livrinho não contido no cânon, que é chamado Testamento dos Doze Patriarcas”. 49 Ele está se referindo aos "sete espíritos do erro" descritos no Testamento de Rúben. Essa seção do Testamento de Rúben. foi influenciada pelas teorias estóicas de a alma; O entrelaçamento de Orígenes nas tradições filosóficas, judaicas e cristãs, são típicas de sua abordagem. Demonologia Monástica Egípcia: Antônio, o Grande A formação ascética do Evágrio era bipartida, consistindo de uma em grande parte teológica devido a Orígenes e seus herdeiros da Capadócia, e uma tradição viva da prática ascética aprendida com os monges egípcios que o treinaram. De fato, os elementos básicos do ensino de Evágrio sobre os pensamentos e os demônios foram estabelecidos em círculos monásticos egípcios décadas antes de Evágrio chegar a Kellia. 50 Ambos representavam o legado de Antônio, o Grande (251-356 d.C), o mais famoso do início dos monges do Egito. 51 Evágrio conhecia os ensinamentos de Antônio através dos dois Macarii bem como através da Vida de Antônio de Atanásio, um texto que ele certamente conhecia mesmo antes de sua entrada na vida monástica, e as 46 Hom. in lesu Nave, 15,5, SC 71:348-50. Cf. Hom. in Num., 20.3.4, SC 461:38-40, sobre demônios serem associados a pecados particulares. 47 Hom. in lesu Nave, 15.6, SC 71:350. 48 Hom. in Iesu Nave, 1.6-7, SC 71:108-14. Na Vida de Antônio essa conquista será descrita mais em termos geográficos reais, à medida que os monges invadem a fortaleza dos demônios no deserto, V, Ant., 41.4, SC 400:246; cf. 44 (pp. 252-54) 49 Hom. in Iesu Nave, 15.6, SC 71:352. 50 Como Gabriel Bunge escreve, "Dans le domaine de l'ascèse le langage d'Évagre est largement stéréotype par la tradition antérieure. Ce que les deux Macaire sur tout, mais pas exclusivement, étaient pour lui comme autorités vivantes, la Vita Antonii l'était comme canon écrit" ("Évagre le Pontique et les deux Macaire,” 332). 51 Na Historia monachorum, Macarius, o Egípcio foi chamado de “discípulo” de Antônio (Hist. mon., 21.1-3, ed. A. J. Festugière, in Historia monachorium in Aegypto [Brussels, 1961), 123-25), apesar do Apophthegmata Patrum sugestionar uma relação menos intensa entre eles (Apoph. Alph., Macarius 4 and 26, PG 65:264CD and 273A). próprias cartas de Antônio. 52 Para colocar os ensinamentos de Evágrio em seu contexto monástico, é preciso começar com Antônio. Apesar das marcas da autoria de Atanásio, a Vida de Antônio é claramente baseado na própria experiência de Antônio, especialmente em sua demonologia ascética. 53 O retrato de Antônio feito por Atanásio deve ser complementado por recolhimentos das Cartas de Antônio, que embora em número reduzido e datando de um breve período em sua carreira, circulou amplamente no mundo monástico. 54 Teologicamente, eles diferem da Vida em ser mais evidentemente colorido pela cosmologia de Orígenes e uma correspondência a ênfase do conhecimento como base do progresso espiritual. Eles também fornecem uma janela para um mundo monástico diferente daquele propagado por Atanásio e desenvolvido por Evágrio. 55 Os demônios estão proeminentes nas Cartas e na Vida, no entanto, sugerindo que o ensino sobre o trabalho dos demônios e estratégias a serem empregadas contra eles eram centrais na perspectiva monástica de Antônio. Em ambos, vê-se enfatizar a atividade demoníaca via logismoi, estratégias fundamentais para ser implantado contra os demônios e suas sugestões, e a variedade de tentações particulares que mais tarde seriam esquematizadas por Evágrio em seus "pensamentos genéricos". A influênciade Orígenes no ensino de Antônio é manifesto; Evágrio recebeu assim a demonologia de Orígenes, tanto diretamente através de seu próprio estudo quanto através das tradições monásticas escritas e orais. Nas Cartas, Antônio descreve a vida monástica como luta constante contra os demônios, que procuram constantemente maneiras de separar os seres humanos uns dos outros e de Deus. 56 A Vida descreve vários quadros marcantes das batalhas de Antônio 52 Ver Samuel Rubenson, "Evagrios Ponçikos und die Theologie der Wüste," no Logos: Festschrift für Luise Abramowski zum 8. Juli 1993, ed. Hanns Christof Brennecke et al. (Berlin and New York, 1993), 384-401, esp. 394-99, e Michael O‟Laughlin, "Fechando a lacuna entre Antônio e Evagrius," em Origenes in den Auseinandersetzungen des 4. Jahrhunderts: Origeniana Septima, ed. W.A. Beinert and U. Kühneweg (Leuven, 1999), 345-54. 53 Ver Columba Stewart, "Anthony of the Desert," em The Early Christian World, ed. Philip Esler (London, 2000), 2:1088-101. 54 Embora o texto original (provavelmente Copta) e as primeiras traduções para o grego estejam perdidas, Jerome conhecia as duas, e traduções para siríaco, georgiano e árabe testemunham ampla circulação. Nas Cartas e sua influência, ver Samuel Rubenson, The Letters of St. Antony: Monasticism and the Making of a Saint Min neapolis, 1995). Todas as citações das Cartas se referem à tradução em inglês de Rubenson. 55 David Brakke descreve as diferenças em "The Making of Monastic Demonology: Three Ascetic Teachers on Wichdrawal and Resistance," Church History 70 (2001): 19-48, esp. 19-22 e 46-48. Como o presente ensaio se concentra no desenvolvimento de Evagrius do sistema de oito pensamentos, o Antônio da Vida de Atanásio desempenha o papel mais significativo. 56 Cartas 1 e 6 são as mais detalhadas sobre demônios e discernimento. contra a tentação demoníaca, 57 e um terço da obra (caps. 16-43) está na forma de um discurso Antônico que está amplamente preocupado em identificar e derrotar atividades demoníacas. Esse trecho explica a própria experiência de Antônio sobre os demônios e fornece uma cartilha ascética para interpretar as próprias lutas do leitor. A demonologia é convencional, em dívida com a síntese de Orígenes da tradição anterior. Os demônios são seres espirituais caídos que atacam seres humanos com raiva ciumenta para impedir seu progresso para uma intimidade restaurada com Deus, 58 e eles dirigem sua fúria particularmente aos monges que estenderam a busca pela virtude no refúgio dos demônios, no deserto. 59 Os demônios trabalham por sugestão, empregando logismoi que tenta ou distrai o monge: “se [os demônios] verem qualquer cristão, especialmente monges, devotos ao trabalho [espiritual] e progredindo, eles primeiro tentam colocar obstáculos ao longo do caminho. Seus obstáculos são pensamentos impuros (ruparoi logismoi)”. 60 O poder dos demônios, no entanto, é baseado em ilusão, pois eles foram derrotados pela ressurreição de Cristo. 61 Mesmo assim, sua capacidade de aparecer de várias formas, sua grande mobilidade sem corpo material, e sua habilidade em brincar com a fraqueza torna possível que eles enredem monges descuidados. 62 A estratégia de Antônio contra os demônios é dupla: discernimento e resistência. O primeiro exige constante autoconsciência 63 e identificação de uma emoção ou tentação como manipulação demoníaca, pela qual ele fornece critérios de discernimento semelhantes aos de Hermas e Orígenes. 64 Ele recomenda o uso de um interrogatório ("Quem é você? De onde você vem?"), desenvolvendo a matéria de Orígenes. 65 A resistência usa duas técnicas principais. Primeiro, apelo a Cristo, usando seu nome ou o sinal da cruz em oração. 66 O segundo é o uso “antirrético” das escrituras, cantando salmos ou outros textos bíblicos em voz alta como um contragolpe as insinuações 57 V. Ant., 5-6, 8-9, 13, 39-40, 51; SC 400:142-48, 156-62, 168-70, 240-44, 272-74. 58 V. Ant., 20-21, SC 400:186-94. 59 V. Ant., 13.1-2, 30, 41; SC 400:168-70, 218-20, 246-48. 60 V. Ant., 23.1, SC 400:198. 61 60. V. Ant., 28-29, SC 400:210-18. 62 V. Ant., 22-33, SC 400:194-200. 63 Para exemplos da terminologia estóica de "prestar atenção" a si mesmo, ver V. Ant., 3.1-2, 55,5-13, 91.3; SC 400:134-36, 282-86, 368. Auto conhecimento é o assunto principal das Cartas. 64 V. Ant., 35-37, SC 400:230-36. 65 Hom. in Iesu Nave, 6.2, SC 71:184-86, and Hom. in Num., 27.11.2, SC 461,320, como notado por G.J.M. Barcelink em SC 400:253 1. 1. 66 Nome de Cristo: V. Ant., 39.2, 40.2, 41,6, 63.3; SC 400:240, 242-44, 248, 302. Sinal da Cruz: V. Ant., 13.5, 35.2, 53.2, 80,4; SC 400:170, 230, 276-78, 338. demoníacas. 67 Essas técnicas, recomendadas por Orígenes, são trazidos por Antônio ao centro da prática ascética. A demonologia proeminente na Vida é complementada por uma ênfase em se proteger de pensamentos impuros. O discurso de Antônio na vida enquadra a interação entre emoção humana e sugestão demoníaca em termos de manipulação de condições emocionais pré-existentes pelos demônios. 68 Nas Cartas, Antônio segue Orígenes no ensino que sem a orientação da mente, alma e corpo podem ter "movimentos" patológicos associados a eles. 69 Essas tendências são facilmente exploradas pelos demônios quando um indivíduo perde a faculdade de discernimento. 70 A fronteira entre o demoníaco e o psicológico foi obscurecida nos escritos de Orígenes, e permanece assim nos textos monásticos. 2 Evágrio Pôntico Teologia Monástica de Evágrio Evágrio é geralmente aceito como autor do sistema dos oito pensamentos, embora seja impossível saber, com base nas evidências disponíveis para nós, exatamente o quanto é invenção dele e o quanto é o legado da tradição monástica oral. Não há menção do sistema antes dele, e há amplo uso depois. É óbvio que João Cassiano aprendeu o sistema a partir de Evágrio 71 , e Gregório Magno aprendeu a partir de Cassiano. Porque Evágrio trabalhou o esquema está ao nosso alcance: ele era um mestre em pedagogia monástica, que ensinou a seus seguidores ambos, introdução e 67 V. Ant., 9.3, 13.7, 37.4, 39,3, 39.6, 40.5, 52.3; SC 400:158, 170-72, 236, 240, 241, 244, 276. 68 V. Ant., 42.5-8, SC 400:248-52. Evagrius observa que os demônios não conseguem realmente ler corações e mentes, mas buscam pistas de sintomas observáveis; ver Praktikos, 47, SC 171:606, e Pensamentos, 37, SC 438:280-84. 69 Antônio escreve sobre o movimento corporal principalmente em termos de sexualidade, agravada pela gula, Cartas, 1.35-45 (pp. 199-200), 1.66-68 (p. 201). A alma tem movimentos próprios, como orgulho, auto-glorificação, raiva, etc. (1.74, p. 202). A linguagem estóica aponta para um ideal de ser "indiferente", especialmente diante as tentações. Ver V. Ant., 35.5 and 51.5, SC 400:232 and 274. 70 Cartas, 1.18-34 (pp. 198-99). 71 Para a influência de Evágrio em Cassiano, ver a clássica monografia de Salvatore Marsili, Giovanni Cassiano ed Evagrio Pontico (Rome, 1936) e Columba Stewart, Cassian the Monk (Nwe York, 1998), 36-37 e outros. tópicos avançados, através de resumos, textos altamente condensados tidos na memória para reflexões mais profundas. Seu estilo de ensino prestou-se naturalmente a esquemas, e apesar de Evágrio ter sido um pensador complexo e sutil, sua consistente adesão a um sistema teológico característico é notável. De fato, nenhum outro escritor asceta, antes ou desde Evágrio, foi tão sistemático. Como pedagogo monástico, era de sua preocupação prover sinais e solo comum aos seus estudantes. Alguém raramente vai longe nos escritos de Evágrio sem defrontar-se com termos ou conceitos fundamentais de sua visão teológica. Alguns temas básicos recorremem sua obra. Vida ascética, que ele chama praktike, um termo emprestado da filosofia grega, consiste em prestar atenção nos logismoi, “pensamentos”, por meio de análise e direção através de disciplinas físicas e espirituais. Fidelidade à praktike pode trazer um monge ao estado de tranquilidade integrada que Evágrio, seguindo Clemente de Alexandria, chama de apatheia, “impassibilidade”. Esse não é um estado emocional de anestesia, mas de capacidade de usar as faculdades do corpo e da alma da maneira como elas foram projetadas. O monge apathes é capaz de contemplar ambos, criação e Criador, com claridade de discernimento, e através da contemplação receber a dádiva do conhecimento. Evágrio ordena contemplação e conhecimento hierarquicamente, começando com estados de “contemplação natural” (teoria phusike) e culminando no conhecimento da Santíssima Trindade. O pano de fundo para esses estados do progresso espiritual humano é uma cosmologia complexa que Evágrio desenvolveu a partir das especulações de Orígenes da maneira como estavam contidas nas seções mais esotéricas de Primeiros Princípios [De Principiis]. Porque a praktike é a base para a possibilidade contemplativa, Evágrio devotava atenção considerável aos logismoi e sua condução. O termo logismos carregava algumas conotações negativas porque foi usado por Orígenes e na Vida de Antônio para se referir à maus pensamentos. Apesar de Evágrio tipicamente ter usado logismos como eles haviam, o termo não era necessariamente pejorativo 72 e era certamente menos crítico que “pecado” ou “vício”. Evágrio buscou certo afastamento de um diagnóstico, e usar logismos como um termo técnico o permitiu distinguir entre a fonte de um pensamento, que era frequentemente além do controle humano, e sua recepção, que requeria cooperação humana. Embora maus pensamentos sejam uma parte inevitável da 72 Deste modo em Praktikos, 80, SC 171:668, é usado para pensamentos de inspiração angélica. experiência humana, as paixões – entendidas como significando as faculdades irracionais de epithumia e thumos – não precisavam comprometer-se com eles. 73 Cultivar as virtudes era essencial para defender a si mesmo contra as inevitáveis investidas dos pensamentos. 74 Evágrio sustentava que apesar de sua inevitabilidade, sugestões demoníacas podem ser resistidas, 75 embora a instabilidade da mente humana prolongasse o galanteio com tais logismoi altamente perigosos. 76 Em sua apresentação da praktike, Evágrio usa dois principais artifícios pedagógicos: o modelo de tripartição platônica da alma e o esquema dos oito pensamentos “genéricos”. Ainda que o modelo de tripartição não fosse proeminente na maioria das fontes (os escritos de Orígenes, a Vida de Antônio, as aulas de Basil ou Gregório de Nazianzo), Evágrio usou a divisão da alma em intelecto (noûs), desejo (epithumia) e aversão (thumos) como um padrão para sua instrução na praktike em quase todos os seus escritos, dos introdutórios aos mais avançados. 77 Nas obras introdutórias, o esquema dos oito pensamentos proveu a agenda para a praktike. 78 Os oito pensamentos genéricos de Evágrio são gula (gastrimargia), luxúria (porneia), avareza (philarguria), tristeza (lupe), raiva (orge or thumos), acídia ou “preguiça” (akedia), vanglória (kenodoxia), e orgulho (huperephania). 79 Embora esses pensamentos sejam mencionados frequentemente em todos os escritos de Evágrio, o esquema dos oito logismoi como tal aparece apenas em poucas obras; em um texto ele trabalha com uma lista de nove. 80 Evágrio também explora a patologia dos logismoi 73 Ver Praktikos, 6.5-8, SC 171:508, usando a clássica terminologia estóica de “depender no” e “não depender no”. 74 Praktikos, 77, SC 171:664. 75 Diferente de logismoi angélicos, que não são inteiramente irresistíveis (Praktikos, 80, SC 171:668). 76 Pensamentos, 7.16-19, SC 438:174-76. 77 A maior exceção é o tratado Eulogios (Ad Eulogium), PG 79:1093C-140A, escrito no início em sua carreira monástica. 78 Praktikos, 6-14; Antirrhetikos (versão siríaca ed. Frankenberg in Evagrius Ponticus, 472-544); Eight Spirits (De octo spiritibus malitiae, PG 79:1145ª-64D); e Vices (De vitiis quae apposita sunt vistutibus, PG 79:1139-44) – mas não Eulogios. 79 Definições fundamentais podem ser encontradas em Praktikos, 6-14, SC 171:506-34, complementado pelas seções apropriadas de AntirrhetikosII, Oito Espíritos, e Vícios, que são estruturados de acordo com o esquema dos oito logismoi. 80 De fato, só em Praktikos, Antirrhetikos, e Oito Espíritos ele usa o sistema fixo de oito pensamentos. Em Vícios ele insere inveja (phthonos) entre vanglória e orgulho, para um total de nove. Em Pensamentos ele menciona todos os oito, apesar de não ser em um lugar, e dá atenção especial para cinco deles: porneia (cap. 16.4-16, SC 438:204-6); philarguria (caps. 6, pp.170-72, como “não sendo ansioso” sobre possessão material, e 21.1-9, p.226, usando o termo normal; cf. as muitas menções de pleonexia em Pensamentos); lupe (caps. 12, 28.1521, 36.13-17/ pp. 192-96, 252-54, 278); raiva (frequentemente usando o termo mais inclusivo thumos, caps. 5, 13, 16.22-33, 32; pp. 166-70, 196-98, 208, 262-66); kenodoxia (caps. 14-15, 21.9-22, 28.1.15; pp. 198-204, 226-28, 252). O mais peto de uma lista completa dos oito está em Pensamentos, 1, que nomeia sete, omitindo apenas akedia. Em Pensamentos, Evágrio também usa muitos outros esquemas, tal como o dos três demônios da “linha de frente”, gula, avareza e vangloria, além dos oito do sistema, particularmente em seu tratado Nos Pensamentos 81 . Não surpreendentemente, os pensamentos mesmos e a psicologia ascética subjacente pela qual Evágrio os interpreta eram mais concernentes a ele que o esquema dos oito pensamentos: era simplesmente uma artimanha pedagógica. O Modelo Tripartido da Alma Apesar de muitos escritores cristãos do princípio do cristianismo fazerem menção ao modelo platônico da alma e ocasionalmente usarem sua terminologia, Evágrio é o primeiro a fazer o modelo de noûs, epithumia, e thumos central para seu ensino na vida cristã. Esse modelo aparece ao longo de sua obra, facilmente identificável apesar das pequenas variações de terminologia. 82 Como notado anteriormente, o modelo tripartido da alma é muito mais evidente que o esquema dos “oito pensamentos genéricos”, sugerindo que este é mais fundamental para sua pedagogia ascética que o esquema dos oito logismoi e que o último pode até ser derivado daquele 83 . A antropologia de Evágrio é muito mais explícita que a de Antônio, cujas Cartas usam um modelo no qual a razão, guiada pelo Espírito, leva a alma e o corpo. 84 Na Vida de Antônio, o antropólogo platônico aparece acidentalmente. 85 Evágrio trouxe isso para a frente de seu ensino monástico. atrás dos quais os outros seguem (esse é o contexto para ele nomear sete de oito). Ele não menciona todos os oito em Gnostikos (versão siríaca ed. Frankenberg in Evagrius Ponticus, 546-52; existentes capítulos gregos ed. E trans. A. Guillaumont e C. Guillaumont em Évagre le Pontique: Le Gnostique, SC 356 [Paris, 1989]), Kephalaia Gnostika, Reflections (Skemata, Capita cognoscitiva, “Pseudo-suplemento para Kephaleia Gnostika,” ed. J. Muyldermans em “Evagriana,” Le Muséon 44 [1931]: 374-80) ou Oração (De oratione, PG 79:1165A-1200C). No primeiro, ele escreve mais sobre raiva; ele só menciona ou alude aos outros logismoi. Em Kephalaia Gnostika e Reflexões, raiva é mencionada mais frequentemente e os outros aparecem escassamente. Em Oração, sete dos oito são mencionados (exceto orgulho), com a lista completacontendo gastrimargia, porneia, philarguria, e orge (Oração, 50, PG 79:1177B). O mais frequentemente mencionado é raiva (47, 50, 64, cols. 1177AB, 1180D) e kenodoxia (72-73, 116; cols. 1181D-1184A, 1193A). 81 Logismoi adicionais não calculados além dos oito usuais que são destacados para atenção especial em Pensamentos: ansiedade (merimna: cap. 6, SC 438:170-72), o demônio “errante” (planos) (cap.9, pp. 180- 84), insensibilidade ou entorpecimento (anaisthesia: cap. 11, pp. 188-92), inveja e criticismo (phthonos e kategoria: cap. 18, pp. 214-16), e ressentimento (mnesikakia: caps. 24.16-22, 37.13-25, 43.4, cf. 32.22- 26; pp. 238, 280-82, 298; 266). Só o último é mencionado em Praktikos. Ele lista sete dos oito na breve coleção de máximas conhecidas como as Exortações, omitindo apenas vanglória (PG 79:1236A). 82 Quando se refere às “partes da alma” ele usa logistikon, epithumetikon, e thumikon (e.g., Praktikos, 84, 86, 89; SC 171:674, 676, 680); em outro lugar ele algumas vezes usa o termo estóico hegemonikon para se referir ao nous (e.g., Praktikos, Prol. 9, SC 171:484; Pensamentos, 2.21, 4.2/5/8, 41.1, 42.3, SC 438:156, 162-64, 290, 296; Oração, 21, PG 79:172B; Scholia on Proverbs, G 314, SC 340:404). 83 Essa sugestão foi primeiro feira por Shiwietz em “Achtlasterlebre des Evagrius Ponticus,” 317-19 (Morgenländishe Mönchtum, 1:270-73), e retomada por Lars Thunberg, Microcosm and Mediator: The Theological Anthropology of Maximus the Confessor (Lund, 1965), 265-70. Ver Jehl, “Geschichte des Lasterschemas,” 285. 84 Cartas, 1.46-49 (p.200). A alma é descrita basicamente em termos de atividade moral da vontade. Na antropologia das Cartas, ver Rubenson, Letters of St. Antony, 68-71. Em seu uso do modelo platônico da alma, Evágrio se afasta da preferência de Orígenes por outro, mais expansivo, modelo tripartido de espírito, alma e corpo basiado na antropologia semítica de Paulo apresentada em 1 Tessalonicenses 5:23. 86 Como qualquer autor cristão educado, Orígenes sabia o modelo platônico e ocasionalmente fez uso dele quando se referia especificamente à parte irracional da alma, mas ele notou a falta de paralelos bíblicos 87 ou qualquer lugar para o poder animador do “espírito”. 88 A preferência de Evágrio pelo foco mais limitado do modelo platônico da alma é explicável ambos, pelo contexto ascético de sua escrita, onde muita atenção era dada à psicodinâmica da tentação, e por sua ênfase teológica na função do intelecto (noûs) na vida espiritual. Para apreciar o significado do último, nós devemos passar a considerar brevemente a cosmologia que Evágrio aprendeu de Orígenes, tão bem como seus distintos realces nessa vasta história. Fundamental para a cosmologia de Orígenes e Evágrio – embora isso se ligue com outro, menos controverso, aspecto do pensamento deles que continua a ser debatido – era uma doutrina de duas criações. 89 No tratado Primeiros Princípios, Orígenes propõe que houve uma primeira criação de todos os intelectos (noes, pl. de noûs) com corpos etéreos, imateriais. Esses noes foram criados com a capacidade para aproximar-se cada vez mais de Deus através da contemplação. Porque eles eram dotados com uma vontade livre, contudo, era possível aos noes desviarem-se de seu progresso contemplativo. 90 Muitos deles fizeram assim, caindo para longe de seu estado original através de um “movimento” (kinesis) da vontade que perturbou o dinâmico repouso da contemplação. Por meio de uma “segunda criação,” os “intelectos” se tornaram “almas” (psuchai), consistindo de ambos, a faculdade racional do noûs e um 85 “Deixe nosso esforço ser, que thumos não nos tiranize, ou epithumia nos controle, ... porque nós temos violentos e viciosos inimigos, os malévolos demônios,” V. Ant., 21.1-2, SC 400:192; cf. 19.4 (p.186). 86 Ver Jacques Dupuis, “L’Esprit de l’homme”: Étude sur l’anthropologie religieuse d’Origène (Paris e Bruges, 1967), esp. 36-39. 87 De princ., 3.4.1, SC 268:200, ll. 30-33; cf. C. Cels., 5.47, SC 147: 12-13, onde Orígenes nota a rejeição estóica do modelo platônico tripartido. 88 Homiliae in Ezechielem, 1.16, ed. E trad. Marcel Borret, SC 352 (Paris, 1989), 94, ii. 9-19, interpretando a visão das quatro criaturas viventes de Ezequiel e notando que a água (espírito) é vista acima do homem (faculdade racional), o leão (reação), e o touro (desejo). Cf. Homiliae in Lucam, Frag. 79, ed. E trad. Henri Crouzel, François Fournier, and Pierre Perichon, SC 87 (Paris, 1962), 534-36. 89 Para o ensino de Orígenes o sumário mais acessível está em Henri Crouzel, Origen, trad. A.S. Worrall (San Francisco, 1989), 87-92. Para análises mais detalhadas, ver Crouzel, “L‟Anthropologie d‟Origène dans la perspective du combat spirituel,” RAM 31 (1955): 364-85, e Dupuis, “Esprit de l’homme.” 90 Ver Marguerite Harl, “Rechersches sur l‟origénisme d‟Origène: la „satiété‟ (kóros) de la contemplation comme motif de la chute des âmes,” em Papers Presented to the Fourth International Conference on Patristic Studies Held in Oxford, 1963 (Berlin, 1966), 373-405. novo aspecto irracional associado com as paixões. 91 Dependendo do grau de queda, eles se tornam o que conhecemos como humanos ou demônios. Para humanos, os corpos originalmente espirituais se tornam materiais, uma forma adequada ao ambiente terrestre culminando em homens e mulheres como o contexto para aprenderem como escolher o bem e desse modo começar seu retorno à unidade com Deus. 92 Orígenes não foi sempre consistente na maneira de descrever elementos particulares de seu ensino, e ele deliberadamente deixou aberta algumas questões cruciais, e. g. o estatuto último do corpo. Evágrio era cauteloso em quando ou como falar de assuntos esotéricos mas era mais preciso que Orígenes sobre os detalhes de seu sistema. 93 Seu cuidado é explicado como preocupação pedagógica com os estágios do treinamento monástico e como consciência de que as questões em aberto do tempo de Orígenes tinham sido respondidas pelo fim do quarto século, e frequentemente não como Orígenes e ele gostariam. Os dois, Orígenes e Evágrio, concordaram que o noûs carregava a imagem de Deus, o que do noûs o ponto de contato entre o divino e o humano. Diferente de Orígenes, Evágrio ensinou que toda encarnação era consequência da queda primordial, e ele foi mais exato que Orígenes [quando disse] que o noûs retorna para Deus sem nenhum tipo de corpo. 94 Para ele, só o noûs participa na inteira saga da existência, da “primeira criação” e a queda, pela “segunda criação” e o retorno último para o conhecimento de Deus na reunião final de todas as criaturas racionais. Quando Evágrio escreve sobre as partes da alma, ele se refere ao noûs como a parte racional (logistikón meros) da alma. Ainda que ele ocasionalmente use o termo estóico hegemonikón, 95 noûs 91 Ver De princ., 2.10.7, SC 252:390-92, e o comentário por Crouzel e Simonetti, SC 252:238-39. Para o ensino de Evágrio que epithumia e thumos não foram criados juntos com a natureza racional “antes do movimento,” ver e.g., Kephalaia gnostika, 6.85, PO 28:253. 92 Em contraste, os demônios têm corpos invisíveis e frios, “como gelo” (Pensamentos, 33, SC 438:266- 68), um tema que ressoa o uso de Orígenes de uma etimologia clássica que associa psuche, “alma,” com psykhos, “frio.” Portanto como os intelectos criados esfriaram no ardor de sua contemplação, eles se tornaram almas, psykhai. Os intelectos que caíram mais longe são aqueles que se tornaram demônios, consequentemente eles são amis frios. Para Orígenes, ver De princ., 2.8.3, SC 252:344-48. 93 Para um sumário do ensino de Evágrio comparado ao de Orígenes, com referências aos tetos chaveem Kephalaia gnostika e Carta à Melania, ver Columba Stewart, “Imageless Prayer and the Theological Vision of Evagrius Ponticus,” Journal of Early Christan Studies 9 (2001): 174-82. 94 O problema aqui é o estatuto do corpo ressuscitado. Para referências ao ensino de Evágrio, ver Stewart, “Imageless Prayer,” 177. 95 Por exemplo, ele usa logistikon [meros] em Praktikos, 84, 86, 89; SC 171:674, 676, 680, mas nunca em Pensamentos; hegemonikon é usado apenas uma vez em Praktikos (Prol. L. 9, p.484), mas muitas vezes em Pensamentos (2.21; 4.2, 5, 8; 41;1, 42.3; SC 438:156, 162-64, 290, 296); ambos ocorrem em Scholia on Proverbs (G 29 e 314, respectivamente; SC 340:122 e 404), nenhum deles em Scholia on Eclesiastes (ed. Paul Géhin em Évagre le Pontique: scholies à l’Ecclésiaste, SC 397 [Paris, 1993]). é sua palavra preferida. Como Orígenes, Evágrio faz uma ponte entre a terminologia religiosa tradicional e o vocabulário filosófico de seu próprio ensino interpretando o termo bílico “coração” como referente ao noûs. 96 Sua teologia monástica é portanto decididamente “noética”, orientada para o conheço de Deus como a metáfora primária para a união contemplativa. 97 A ênfase de Evágrio no noûs fez as lentes mais estreitas do modelo platônico de alma mais útil para ele que a tricotomia de Orígenes de espírito/alma/corpo. Focando na psykhe, com o noûs como seu aspecto superior e as faculdades de desejo e atração (epithumía) e aversão/reação (thumós) como seu aspecto inferior, Evágrio pôde evidenciar o noûs enquanto desenvolvia uma psicologia ascética da parte irracional da alma. Como Orígenes, Evágrio declara fortemente a liberdade da vontade. Ainda que o noûs tenha sido criado para o conhecimento de Deus, ele pode escolher outra opção. Parte do desafio ascético é que o noûs é “facilmente movido” (eukínetos), particularmente sob influência da parte irracional da alma. 98 “Movimento,” é claro, era um termo pejorativo para plantonistas, e para Evágrio como seguidor de Orígenes o termo lembrava o movimento primordial dos intelectos criados que levavam à queda e à segunda criação. As faculdades irracionais, também, são propensas ao movimento, criando uma névoa que encobre o noûs, obscurecendo sua capacidade de conhecer. A obtenção da apátheia permite ao noûs outra vez funcionar propriamente. Em seu estado animado e encarnado, o noûs tem duas tarefas primárias: contemplação natural (teoria phusike), i.e., discernir o propósito e função das coisas criadas, incluindo as estratégias dos demônios, e os desafios relacionados à administração dos poderes irracionais da alma, epithumia e thumós. 99 96 Na terminologia de Orígenes, ver Crouzel e Simonetti em SC 269:63 n29. Para uma visão abrangente, ver Antoine Guillaumont, “Cor et cordis affectus, 2: Le „coeur‟ chez les spirituels Gres à l‟époque ancienne,” em DSp 2:2281-88. 97 Aqui alguém pode ver paralelos com o neo-platonismo de filósofos como Plotino; Evágrio aprendeu sua ênfase ao nous a partir dos professores capadócios e seu interesse em Plotino? Ver Michael O‟Laughlin, “The Anthropology of Evagrius Ponticus and Its Sources,” em Origen of Alexandria: His World and His Legacy, ed. Charles Kannengiesser e William L. Petersen (Notre Dame, IN, 1988), 371- 73. 98 Ver Praktikos, 48 e o comentário que acompanha, SC 171:608-10. 99 Ver Praktikos, 82-83 e 86, SC 171:672 e 676, embora Praktikos, 66 (p.650) enfatize o desligamento da parte irracional da alma quando em apatheia; sobre esse ponto ser também Kephalaia gnostika, 5.75 e 6.55, PO 28:209 e 241. Em sua teologia ascética, Evágrio se mostra como o herdeiro da síntese da ética helenística e da demonologia bíblica de Orígenes, 100 apesar dele os enquadre dentro do modelo tripartido da alma. As faculdades de desejo e aversão tem um uso apropriado e virtudes próprias para eles; quando enfatiza suas funções positivas, Evágrio chama epithumia e thumos poderes (dunameis) da alma. 101 O uso de epithumia “de acordo com a natureza” (kata phusin) é o desejo da virtude. Thumos destina-se a resistir aos demônios ou a lutar pelo bem. 102 Se não são guiados pelo noûs, entretanto, epithumia e thumos atuam contra a natureza (para phusin), e são suscetíveis ao “movimento” pela memória, por dados sensíveis, por logismoi de origem demoníaca. Quando escreve sobre epithumia e thumos em seu aspecto destrutivo, Evágrio refere-se a eles como “paixões” (pathe), 103 um termo que ele usa em outro lugar como um sinônimo para logismoi (destrutivos). 104 Dessa maneira “paixão” seria epithumia ou thumos quando “movidos” para se ligar a um pensamento. Evágrio segue Orígenes e Antônio descrevendo a origem de maus pensamentos com uma certa ambiguidade, algumas vezes enfatizando a instigação demoníaca, algumas vezes o “movimento” natural do corpo ou da alma. 105 Epithumia e thumos, então, são como gases inflamáveis. Sob condições controladas, direcionados pelo noûs, eles podem ser usados construtivamente. Mas eles são sempre vulneráveis à inflamação pelos demônios, pelas memórias, ou apetites corpóreos. 106 Quando inflamados, a epithumia mal orientada procura prazer; o thumos pervertido ataca outros seres humanos (em vez de demônios) ou luta por 100 E.g., ensino de Orígenes sobre “movimentos naturais” dos apetites humanos suscetíveis à influência demoníaca (De princ., 3.2.2, SC 268:160, ll. 113-21) e as três fontes de pensamentos (De princ., 3.2.4, SC 268:168, ll. 233-38), discutido acima. 101 Praktikos, 49.9, 73.5, 79.2, 82.3, 98.8; SC171:612, 660, 666, 672, 706; Pensamentos, 2.16, SC 438:156. 102 Praktikos, 4, 86, 99, SC 171:502, 676, 708-10; Pensamentos, 17, SC 438:208-14. 103 Praktikos, 4, 6.7, 34, 38-39, 51, 54, 87, SC 171:502, 508, 578, 586-90, 616, 624-26, 678; Pensamentos, 3.5 e 8, 17.24, 18.7, 34.3-5, 36.4-7, 40, SC 438:158, 212, 214, 270, 278, 288-90. 104 Ver Praktikos, 11.1, 23.4, 35, 36.1, 58.13, 91.10, SC 171:516, 554, 580, 582, 638, 694; Pensamentos, 8.20, 19.10, 23.4, 24.27, SC 438:178, 218, 232, 238. 105 A interação de vontade, memória, sensação, e os demônios é complexa; ver Praktikos, 4, SC 171:502: sensação; 34 (p.578): memória; 37 (p.584): imagens mentais; 38 (p.586): sensação; 39 (p. 590): demônios; Pensamentos, 2-4, SC 438-154-64: demônios, vontade, sensação, memória, sonhos; 40.3-5 (p. 288): sensação; Reflexões, 59 (p.380): memória, sensação, demônios. Na teoria da operação mental de Evágrio, e o modo que algumas imagens mentais (noemata) “imprimem” o nous enquanto outras não, ver Stewart, “Imageless Prayer,” 186-91. 106 Evágrio gosta da metáfora do calor; ele normalmente fala de epithumia como passível de inflamação (e.g., Praktikos, 15.2, SC 171:536) e thumos como sujeito à ebulição (Praktikos, 11.1, p.517). prazeres desejados. 107 O uso e abuso do thumos aparece como um problema muito maior para Evágrio que o desejo mal direcionado. 108 Apesar do uso constante do modelo tripartido de Evágrio ter sido incomum, ele se esforçou para apresenta-lo, junto de outros aspectos de seu vocabulário conceitual, como cristão tradicional e doutrina monástica, mesmo quando isso não era inteiramente o caso. Sua apresentação mais extensa e formal do modelo tripartido começa, “Pois de acordo com o nosso sábio professor a alma racional é tripartida...” 109 O leitor nunca devia entender isso como uma referência à Gregório de Nazianzo, mentor teológico de Evágrio, 110 apesar de que tal antropologia não é uma característica dos escritos existentes de Gregório. 111 Como Orígenes, Gregório preferia uma antropologia mais compreensiva e era menos consistente em sua terminologia. Na verdade Evágrio parece ter recebido sua inspiração para a exposição que ele atribui a Gregório de um manual de ética que circulou amplamentena antiguidade como um tratado de (pseudo-)Aristóteles intitulado “Sobre as Virtudes e os Vícios.” 112 A partir dessa síntese do modelo tripartido platônico de alma e o ensino das virtudes estóico e aristotélico, ou de uma versão disso, Evágrio extraiu uma breve seção que relaciona oito virtudes às três partes da alma. O texto base começa, com mais precisão que a redação de Evágrio, “Pois de acordo com Platão pensa-se que a alma seja tripartida...” Evágrio cristianizou a lista de virtudes encontrada no texto base, embora mantendo cuidadosamente as quatro virtudes cardeais enfatizadas pelos estóicos (prudência, temperança, coragem, justiça) que começaram a prover elementos da ética helenística. Como na fonte, na versão de Evágrio essas quatro foram listadas primeiro 107 Pensamentos, 2, 5, 18, 36, SC 438:154-56, 166-70, 214-16, 276-78; Kephalaia gnostika, 3.59, PO 28:121-23. 108 Ver Praktikos, 24, 42, 86, 93, 99, SC 171:556, 596, 676, 696, 708-10; Gnostikos, 5, 7-8, 10, 31-32, 45, 47, SC 356:94, 98-100, 102, 146-48, 178, 184; Pensamentos, 10, 16, SC 438:184-86, 204-8; Reflexões, 8 (p. 374). Ver Columba Stewart, “Evagrius Ponticus on Prayer and Anger,” em Religions of Late Antiquity in Practice, ed. Richard Valantasis (Princeton, 2000), 65-81. 109 Praktikos, 89, SC 171:680. 110 Sobre essa identificação, ver Guillaumonts em SC 171:673-84n. 111 Gregório normalmente usa um modelo tripartido de psuche/nous/soma ou pneuma/nous/somma; ver Thomas Spidlík, Grégoire de Nazianze: Introduction à l’étude de as doctrine spirituelle, OCA 189 (Roma, 1971), 101, e Anna-stina Ellverson, The Dual Nature of Man: A Study in the Theological Anthropology of Gregory of Nazianzus (Uppsala, 1981), 21. Como Orígenes, Gregório faz poucas referências ao modelo platônico; o mais explícito é seu poema “Censura da [parte] irracional da alma,” no qual ele invoca a imagem da carruagem de Platão (Poemata, 2.1.47, PG 37:1381A-84A, notas por Guillaumonts em SC 171:684n). 112 O texto reproduzido em SC 171:682-83n; a seção essencial foi incluída no Peri Pathon falsamente atribuído ao filósofo peripatético Andrônico de Rodes (primeiro século a.C.). Para mais informações, ver pseudo-Andrônico de Rodes, “ΠΕΡΙ ΠΑΘΩΝ,” ed. A. Glibert-Thirry (Leiden, 1977), 5-9, e Newhauser, Treatise on Vices and Virtues, 106-8, embora Evágrio dependa de alguma forma desse tratado. entre as virtudes atribuídas à cada parte da alma. 113 O conjunto de quatro reaparece num capítulo de Gnostikos claramente planejado para uma discussão paralela das virtudes em Praktikos. Evágrio escreve, “Nós temos aprendido do justo Gregório que a contemplação por si mesma também tem quatro virtudes.” 114 O cultivo das virtudes abrange o aspecto ascético e contemplativo da vida monástica, enquanto a atenção ao esquema dos oito logismoi pertence apenas à dimensão ascética. 115 A ligação das virtudes às partes da alma é integral para a antropologia de Evágrio, especialmente o estabelecimento da temperança (sophrosune) como a virtude característica da faculdade do desejo e a coragem (andreia) como a virtude da faculdade reativa. 116 O objetivo da praktike, o aspecto ascético da vida monástica, é consolidação das virtudes e elas tornam possíveis a apatheia. Embora o texto base de Evágrio para a exposição detalha do modelo tripartido da alma inclua a discussão dos oito vícios associadas com as oito virtudes, em sua redação Evágrio não menciona nenhum vício. 117 De novo, nós vemos como a antropologia tripartida permeia o pensamento de Evágrio, ainda mais completamente que o esquema pedagógico dos oito logismoi genéricos, ela forneceu para a antropologia de Evágrio a matriz para a sistematização de seu conhecimento do deserto monástico sobre todos os aspectos da luta ascética. 118 Esquema dos Oito Pensamentos Genéricos de Evágrio O esquema dos oito pensamentos foi inspirado pela variedade de fontes bíblicas e extra-bíblicas. Uma vez mais, o trabalho de Orígenes fez uma contribuição decisiva. A 113 Portanto a prudência é ligada ao logistikon (=nous), temperança à epithumetikon, coragem ao thumikon, justiça à alma inteira. Ao logistikon Evágrio também liga as virtudes de discernimento e sabedoria (sunesis e sophia); para a parte desejante ele adiciona o amor (ágape) às bases temperança (sophrousune) e autocontrole (enkrateia); à parte reativa ele substitui gentileza (praotes) por resistência (hupomone); à alma inteira ele mantem a justiça (dikaiosune) mas exclui a liberdade (eleutheriotes) e a grandeza de espírito/liberalidade (megalopsuchia). Ele também modifica a terminologia para as três partes da alma e inverte a ordem na qual as faculdades desejante e reativa estão colocadas, colocando ao parte desejante da alma primeiro. 114 Gnostikos, 44, SC 356:172. Ele também alude a elas no início de Oração, cap. 1, PG 791168BC. 115 Cf. Philo, Legum Allegoriae, 1.57, como em Stoicorum veterum fragmenta, 3, sec. 202, ed. Arnim (p.49). 116 Cf. Scholia on Proverbs, G 258, SC 340:352-54, com seu breve esboço da antropologia psicológica de Evágrio: “Eu ouvi um dos velhos homens dizendo, „A alma é a mãe do intelecto, através das virtudes práticas ela traz o nous para a luz.‟ Ele chamou „alma‟ a parte apaixonada da alma, que é dividida em reação (thumos) e desejo (epithumia). „Por isso é através da coragem, ele diz, „e da temperança que nós obtemos sabedoria e conhecimento de Deus.‟ Sobre sophrosune, ver Praktikos, 73, SC 171:660. 117 Antoine Guillaumont e Claire Guillaumont explicam essa omissão como uma reflexão do foco dessa parte de Praktikos no alcance da apatheia (SC 171:688n). De qualquer forma, os oito vícios do texto base não incluem nenhum dos oito logismoi genéricos de Evágrio, com exceção da raiva. 118 Ver as observações de Thunberg em Microcosm and Mediator, 266. lista de virtudes e vícios foi um lugar comum de instrução moral na antiguidade. A Bíblia contém muitas dessas listas, mais evidentemente na literatura da Sabedoria e do Novo testamento. Elas eram abundantes na literatura deuterocanônica e pseudepígrafa, assim como nas obras filosóficas helenísticas. 119 Nós já temos visto um exemplo no texto ético helênico que influenciou o ensino de Evágrio sobre a estrutura da alma e das virtudes características de cada parte. Embora Evágrio soubesse todas essas tradições, identificar qual delas particularmente inspirou seu esquema é difícil. A hipótese adotada aqui é que a influência de Orígenes era mais importante, no conteúdo e sequência da lista; que o modelo tripartido da alma de Evágrio (com sua origem helênica) e sua experiência monástica moldaram a seleção dos logismoi para o esquema assim como seu arranjo; e que uma série de textos bíblicos e pseudepígrafos talvez tenham tido uma função decisiva para selecionar oito pensamentos, embora nenhuma evidência para tal influência tenha restado à partir do próprio Evágrio. Uma pesquisa prévia sobre o esquema dos oito pensamentos vasculhou os escritos de Orígenes, particularmente as obras exegéticas, em busca de listas de vícios que talvez tenha influenciado Evágrio. 120 O estudo das listas de Orígenes mostraram todos os oito pensamentos genéricos de Evágrio, embora não juntos, e outros além desses. Ele faz referências recorrentes particularmente à raiva, orgulho, avareza e luxúria. 121 Orígenes claramente não trabalhou a partir de um esquema fixo, mas simplesmente citou exemplo de exemplos de esforços morais relevantes para seu comentário bíblico. As afinidades mais próximas com a lista de Evágrio não estão nas obras exegéticas, mas na seção do Livro III de De Principiis que contém o ensino de Orígenes os demônios e o discernimento dos espíritos. O papel decisivo dessa síntese no desenvolvimento da teologia espiritual,particularmente nos círculos monásticos egípcios, já foi observado, assim como a apropriação de Evágrio da cosmologia especulativa encontrada em outro lugar na mesma obra. Os comentários de Orígenes mesmo sem incitação demoníaca, apetites intemperantes por comida e bebida, união sexual, e outras “agitações naturais... de avareza, raiva ou tristeza” podem levar ao pecado. 122 Aqui se encontram os cinco logismoi que Evágrio associou com a parte irracional da alma, e essencialmente na mesma ordem que no esquema de Evágrio. Não é surpreendente que a análise de 119 Ver Siegfried Wibbing, Die Tugend: und Lasterketaloge im Neuen Testament (Berlim, 1959). 120 Ver Hausherr‟s “L‟Origine de la théorie orientale des huit péchés capitaux” e o sumário de A. Guillaumont e C. Guillaumont em SC 170:68-73. 121 Ver o quadro sinóptico anexo na próxima página. 122 Ver De princ., 3.2.2, SC 268:160, ll. 113-20. Evágrio dos logismoi deve focar nas faculdades de desejo e reação; como ele escreve em seu tratado Sobre os Pensamentos, “é a partir dessas duas paixões [epithumia e thumos] que quase todos os logismoi demoníacos que capturam o noûs para „ruína e perdição‟ (1 Tim 6:9) são formados.” 123 A conexão entre epithuia e os três logismoi da gula, luxúria e avareza 124 é óbvia, assim como a sinonímia te thumos e raiva. Evágrio entende tristeza, também, como uma paixão reativa, causada pela frustração do desejo ou pela sequência de explosões de raiva. 125 Para os outros três logismoi genéricos, um dos textos preservados na coleção conhecida como Discípulos de Evágrio (Disciples of Evagrius) os explica nessa maneira: “três tipos de pensamentos são da faculdade racional do homem: acídia (preguiça), vanglória e orgulho. Eles surgem quando algum conquista os pensamentos das faculdades desejante e reativa.” 126 Tal função dos pensamentos da parte racional e irracional da alma foi um destaque da apresentação do sistema de Evágrio de João Cassiano. O texto Discípulos de Evágrio sugere que Cassiano talvez tenha aprendido a ligação entre um logismoi particular e as partes da alma a partir do próprio Evágrio. Dado o papel penetrante da antropologia tripartida da apresentação de Evágrio da doutrina ascética, associar os oito logismoi com as partes particulares da alma deve ter sido um movimento óbvio, embora nó não tenhamos nenhum texto existente no qual o próprio Evágrio faça isso. 127 Lista de Vícios de Orígenes Hom. In Exod. 8.5 Hom. In Lev 12.7 Hom. in Nom. 13.1.3 Hom. in Num. 27.12 Fornicatio Ira Stultitia Avaritia Avaritia Invidia Supervia Supervia Supervia Supervia Impietas Ira Ira Impudicitia Iactantia Invidia Formido Vana gloria Inconstantia 123 Pensamentos, 3.5-7, SC 438:158. 124 Sobre o entendimento de Evágrio de avareza e sua adaptação por João Cassiano, ver Richard Newhauser, The Early History of Greed: The Sin of Avarice in Early Medieval Thought and Literature (Cambridge, Eng., 2000), 47-70. 125 Ver Praktikos, 10, SC 171:514, para ambas as causas; a ligação com a raiva é enfatizada no tratado Oito Espíritos, no qual a sequência dos oito logismoi coloca a raiva antes da tristeza. Cassiano segue essa ordem em sua apropriação do esquema. 126 Disciples of Evágrius, 177. Dr Paul Géhin gentilmente proveu o texto e o comentário de sua próxima edição em SC. CF. Praktikos, 23, SC 171:554, na qual a acídia segue ataques de luxúria e raiva. 127 Ver o sumário de Jehl da evidência em “Geschichte des Lasterschemas,” 285, ao qual é necessário acrescentar o texto de Discípulos de Evágrio mencionado acima. Pusillanimitas Hom. in Iudic. 2.5 Hom. in Ierem. 5.4 (SC 232:284) (Lat.) 2.8 (greek from Catena trad.; SC 238:354) Hom. in Ezech. 6.11 Avaritia Orge Orge Ira Libido Lupe Lupe Fornicatio Iactantia Epithumia Erotes Tristitia Kenodoxia Desiderium auri Et argenti Hom. in Iesu Nave 1.6 1.7 10.3 12.2 Ira Ira [fornicatio] Ira Supervia Supervia Iracundia Cupiditas Zelus Invidia Avaritia Avaritia Libido Rapacitas Libido Avaritia Maliloquia Stultiloquia 13.4 15.3a 15.3b 15.3c Ira Lascivia Libido Ira Supervia Superbia Lascivia Concupiscentia Lascivia Supervia Tristia Ignorantia Levitas 15.4a 15.4b 15.5ª 15.5b Avaritia Avaritia Fornicatio Fornicatio Supervia Iactantia Ira Irancudia Mendacium Supervia Avaritia Avaritia Libido Libido Superbia Superbia Furor Comm. In Matt. De princ. 3.2.2 15.18 (GSC 40.2 [Origenes Werke 10.2], p.401) 15.18 (p.402) 15.19 (p. 404) (SC 268:160) Porneia Philoploutia Orgizesthai In escis et potu Thumos Philokosmia Lupeisthai Delinquere Katalalia Keodoxia Adpetendus coitu Epithumia Cupiditas Phobos Ira Hedone Tristitia orge Hom. in Luc. Greek, Frag. 56 (SC 87:502) 30.1 Hupnos Fornicatio Akedia Avaritia Deilia Populari rapiantur aura Gastrimargia Formae capiantur illecebris Cassiano colocou a acídia junto com raiva e tristeza como problemas de reação, atribuindo apenas vanglória e orgulho à parte racional da alma. 128 Porque vanglória e orgulho são distorções da própria identidade, sua associação com a parte racional da alma faz sentido. Como comenta Evágrio, “quando os demônios ao anoitecer não têm sido capazes de incomodar thumos ou epithumia, eles formam sonhos de vanglória e mergulham a alma no abismo dos pensamentos.” 129 Vanglória e orgulho aparecem frequentemente na lista de vícios de Orígenes nos escritos exegéticos, e ele os associou com as tentações de Jesus. 130 O mais inovador dos logismoi de Evágrio, acídia, é mais ambíguo. 131 O termo raramente aparece nos escritos de Orígenes e mantém seu significado padrão de cansaço, preguiça ou desânimo. 132 No meio monástico acídia adquiriu um significado distinto de desânimo inquieto, e Evágrio retrata acídia como uma das lutas mais desanimadoras para os anacoretas pois ela esgota a energia para oração, leitura, e outras práticas espirituais. Evágrio é o primeiro escritor que conhecemos a fazer uma análise sistemática da acídia, 133 e suas descrições de monges atormentados com essa aflição são 128 Conlationes patrum, 24.15.4, ed. Michael Petschenig, CSEL 13 (Viena, 1886), 691. Nesse texto, Cassiano inclui outros vícios em seu esquema embora os oito que ele recebeu da tradição de Evágrio sejam colocados proeminentemente. Guerric Couilleau interpreta o ensino de João Clímaco sobre as paixões em termos das três partes da alma, sugerindo uma ligação com Cassiano: “Jean Climaque (santo),” in DSp 8:377-78. Clímano refere-se à Cassiano por nome e conheceu pelo menos alguns de seus trabalhos; ver Stewart, Cassian the Monk, 25. 129 Pensamentos, 28.1-4, SC 438:252. 130 Hom. in Luc., 29.2-3 (= Frag. 56), SC 87:502. 131 Ver o sumário de A. Guill aumont e C. Guillaumont em SC 170:84-90; Dietrich Grau, Das Mittagsgespenst (daemonium meridianum): Untersuchungen über seine Herkunft, Verbreitung und seine Erforschung in der europäischen Volkskunde (Siegburg, 1966); Siegfried Wenzel, The Sino f Sloth: Acedia in Medieval Thought and Literature (Chapel Hill, NC, 1967); Rüdiger Augst, Lebensverwirklichung und christlicher Glaube: Acedia: Religiöse Gleichgültigkeit als Problem der Spiritualität bei Evagrius Ponticus (Frankfurt am Main, 1990). 132 No texto citado na nota anterior, acídia é associada com vanglória e orgulho. Cf. A discussão de Orígenes de taedium laboris (De princ., 2.9.2, SC 252:354, ll. 43-44) e satietas boni (De princ., 1.3.8, SC 252:164, l. 317) que leva à primeira queda dos intelectos criados da contemplação contínua de Deus: alguém talvez veja aqui outro elemento na formação do conceito de Evágrio de acídia como tédio com
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