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EDITORA CATARSE LTDA Rua Oswaldo Aranha, 444 Bairro Santo Inácio Santa Cruz do Sul/RS CEP 96820-150 www.editoracatarse.com.br facebook.com/editoracatarse CONSELHO EDITORIAL Antonio Fausto Neto – Unisinos Ernesto Söhnle Jr. – UNISC Eunice Piazza Gai – UNISC Fernando Resende – UFF Jesús Gallindo Cáceres – Benemérita Universidad Autónoma de Puebla (México) João Canavilhas – Universidade de Beira Interior (Portugal) Mario Carlón – Universidade de Buenos Aires (UBA) Marcos Fábio Belo Matos – UFMA. Raquel Recuero – UFPel. Walter Teixeira Lima – UMESP COLEÇÃO ACADÊMICA Fábio Cruz Gilmar Hermes Organizadores Jornalismo: Teoria e Prática - Abordagens culturais, interfaces e meios editora Pelotas 2017 J82 Jornalismo: teoria e prática – abordagens culturais, interfaces e meios [recurso eletrônico] / Fábio Cruz, Gilmar Hermes, organizadores - Santa Cruz do Sul: Catarse, 2017. 196 p. : il. Texto eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web. 1. Jornalismo. 2. Jornalismo - Teoria. 3. Telejornalismo. 4. Semiótica. 5. Jornalismo esportivo. 6. Redes sociais. I. Cruz, Fábio. II. Hermes, Gilmar. ISBN: 978-85-69563-18-1 CDD: 070.4 Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Diagramação: Mirian Flesch de Oliveira Editor: Demétrio de Azeredo Soster PREFÁCIO A Comunicação é essencial. Perpassa todos os saberes. Agencia a produção de conhecimentos. Está presente, de uma forma indissociável, na vida humana. A cada passo, desenha as transformações de todos os níveis da trajetória existencial. Possui um perfil multifacetado. É singular e, ao mes- mo tempo, se inscreve na pluralidade. O seu sentido plural tem abrangência. Diversifica-se em aspectos, circunstâncias e reali- dades. Uma de suas pronúncias é o Jornalismo, indissociável das sociedades democráticas. Falar em Jornalismo, escrevê-lo e criticá-lo nunca é pisar no excessivo e no demasiado. É conduzi-lo pelo caminho da reflexão, onde ele se depura e se faz melhor, mais significa- tivo, para cumprir a sua missão de atender à necessidade social de informação. O livro, Jornalismo, Teoria e Prática – interfaces cul- turais, tem um sabor especial, no conjunto dos seus saberes. Não separa teoria e prática. Faz o contrário, as une, porquanto uma só tem existência à medida que a outra exista. Encontram-se co- nectadas em uma relação. É um livro inteligente. Articula perspicácia e refle- xão. Transita por diferentes portos do Jornalismo, com uma vir- tude básica das práticas científicas. Possui equilíbrio, em suas escolhas teóricas e metodológicas. O que resulta em um conjun- to de textos com análises instigantes. Materializa-se, como uma leitura indispensável. Em um primeiro momento, com alunos, professores e pesquisadores de Jornalismo. Expande-se, todavia, para todos os segmentos, já que a Comunicação é transcendente e onipresente. A estrutura do livro possui três partes. A primeira, Abordagens Culturais, com os artigos, “O incessante rugido: Robert Plant e o mainstream inteseccional”, de Fábio Cruz, Gui- lherme Curi e Estevan Garcia, e “Uma metodologia semiótica 5 para estudos jornalísticos e estéticos, de Gilmar Hermes. A segunda parte, Interfaces, tem os artigos, “Cultu- ra e pós-modernidade no jornalismo de revista: uma leitura das formas da socialidade nas páginas de Veja”, de Larissa Azubel, “Jornalismo, ambiente e ethos”, de Carlos André Dominguez, e “Definição de Jornalismo Esportivo face à midiatização do Es- porte”, de Ricardo Fiegenbaum. A última, Meios, apresenta os artigos, “A elaboração de pautas jornalísticas e as redes sociais digitais”, de Sílvia Mei- relles Leite, “Mídia e Educação: Impactos da WebRádio e da WebTV no Universo Escolar Inclusivo”, de Marislei Ribeiro, e “Fundamentos para a realização de uma cobertura telejornalísti- ca”, de Michele Negrini e Roberta Brandalise. A todos, uma excelente leitura! Roberto Ramos Pós-Doutor em Ciências da Comunicação Professor do PPGCom da PUCRS 6 7 SUMÁRIO PRIMEIRA PARTE – ABORDAGENS CULTURAIS O incessante rugido: Robert Plant e o mainstream interseccional ............................................. ....................... 10 Fábio Cruz Guilherme Curi Estevan Garcia Uma metodologia semiótica para estudos jornalísticos e estéticos............................................................................ 30 Gilmar Hermes SEGUNDA PARTE – INTERFACES Cultura e pós-modernidade no jornalismo de revista: uma leitura das formas da socialidade nas páginas de Veja ....................................................................................... 55 Larissa Azubel Jornalismo, ambiente e o ethos ............................................. 74 Carlos André Echenique Dominguez Definição de Jornalismo Esportivo face à midiatização do Esporte ............................................................................. 98 Ricardo Z. Fiegenbaum 8 TERCEIRA PARTE – MEIOS A elaboração de pautas jornalísticas e as redes sociais digitais: relações possíveis ........................................ 125 Sílvia Porto Meirelles Leite Mídia e Educação: Impactos da WebRádio e WebTV no Universo Escolar Inclusivo .............................................. 145 Marislei da Silveira Ribeiro Fundamentos para a realização de uma cobertura Telejornalística ..................................................................... 169 Michele Negrini Roberta Brandalise 9 PRIMEIRA PARTE ABORDAGENS CULTURAIS O incessante rugido: Robert Plant e o mainstream interseccional Fábio Cruz1 Guilherme Curi2 Estevan Garcia3 1. Watching you4 Um homem com uma missão. Atemporal. Um vocalista com uma tradição a sustentar. Um músico que se recusa a seguir o caminho mais fácil. Um outsider/insider da cultura musical contemporânea, algo que está ao mesmo tempo fora e dentro do jogo mercadológico. Um artista que, segundo o próprio, está à esquerda do mainstream. Tudo isso consiste neste mosaico humano que é Robert Plant. Da vida com o Led Zeppelin aos voos solo, em quase cinco décadas, o cantor inglês vem mantendo acesa a tradição dos tempos do seu grupo. De um disco a outro, promove cruzamentos com as mais variadas possibilidades, a saber: hard rock, blues, música oriental, a 1 Pós-doutor em Direitos Humanos, Mídia e Movimentos sociais (Universidade Pablo de Olavide – Sevilha/Espanha). Doutor em Cultura Midiática e Tecnologias do Imaginário (PUCRS). Professor do curso de graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Coordenador do projeto de pesquisa “Cultura da mídia, rock e recepção” (UFPel). email: fabiosouzadacruz@gmail.com 2 Mestre em Sociologia pela University College Dublin. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Diaspotics. email: curi.guilherme@gmail.com 3 Graduando (8° semestre) do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista de pesquisa (UFPel) do projeto “Cultura da mídia, rock e recepção”. e-mail: estevanfreitasg@hotmail.com 4 Título de uma das músicas pertencentes ao álbum Manic Nirvana, lançado em 19 de março de 1990. 10 Fábio Cruz, Guilherme Curi, Estevan Garcia 12 sonoridade do norte da África, prog rock, baladas, música eletrônica, pop, new wave, break, rockabilly, folk, soul, a psicodelia dos anos de 1960, bluegrass etc. Conservando a sua essência do blues e dorock, Robert Plant transita por outros ambientes buscando desafios constantes. Todos esses diálogos fazem dele um artista “mainstream interseccional”, assim como também é o seu ex-grupo. Longe do “mainstream estático” de bandas como AC/DC5, Iron Maiden6 e o cantor Ozzy Osbourne7, os quais permanecem fiéis aos formatos que os consagraram, Plant pode personificar uma possível autenticidade do rock: a partir de um capital simbólico acrescido durante todos esses anos no cenário da música popular massiva (Janotti Junior, 2006; 2007), o vocalista estimula a criatividade em suas produções. Nesse sentido, considerando as colocações acima expostas, buscaremos, neste artigo, explorar conceitos como mainstream, autenticidade, autonomia e tradição em torno da carreira de Robert Plant. Levaremos em conta, também, algumas questões que permeiam o horizonte da música popular massiva como, por exemplo, os conflitos existentes entre os processos de criação e o mercado. Outrossim, baseados nesse arsenal de conceitos e reflexões, procuraremos postular algumas categorias analíticas previamente apresentadas no parágrafo anterior. Igualmente, cabe ressaltar que, através de uma pesquisa bibliográfica, esse arcabouço teórico será desenvolvido e tensionado conjuntamente com a trajetória de Robert Plant desde a era pré-Led Zeppelin até os últimos e mais recentes trabalhos. Mais especificamente, como corpus de análise, elegemos os seus dez discos 5 Grupo de rock australiano. 6 Conjunto britânico de heavy metal. 7 Ex-vocalista da banda inglesa Black Sabbath e artista solo. 11 O incessante rugido: 13 como artista solo, o que abarca um período que tem início em 1982, com Pictures at eleven, e vai até a sua última produção, Lullaby and... The ceaseless roar, lançado em 2014. 2. Come into my life8 Filho de um engenheiro civil e de uma dona de casa, Robert Anthony Plant nasceu no dia 20 de agosto de 1948, em West Bromwich, Staffordshire, Inglaterra (REES, 2014). Apaixonado pelo rock e o blues norte- americanos, formou as suas primeiras bandas na adolescência. Entre estas destacavam-se a Black Snake Moan e The Crawling King Snakes, aonde conheceu o baterista John Bonham, seu futuro melhor amigo e baterista do Led Zeppelin (Williamson, 2011). Depois do fracasso em alguns singles9 como artista solo, Plant integrou a Band of Joy, novamente com Bonham. Logo após, já na banda Hobbstweedle, o cantor recebe um telegrama de Peter Grant10 convidando-o a entrar nos Yardbirds11. Sob a batuta do guitarrista Jimmy Page e contando ainda com o baixista e tecladista John Paul Jones e o baterista – sugerido por Plant – John Bonham, surgiria o Led Zeppelin. De 1968 até 1980, o grupo vendeu milhões de discos ao redor do mundo, quebrou recordes de público em seus shows e estabeleceu-se como a principal banda da década de 1970. Neste sentido, uma das principais características do Led Zeppelin consistiu na constante 8 Nome de uma música do cantor presente no disco Fate of Nations, de 1993. 9 Canção considerada viável comercialmente o suficiente pelo artista e pela companhia para ser lançada individualmente. 10 Futuro empresário do Led Zeppelin. 11 Então banda de Jimmy Page, guitarrista e mentor do Led Zeppelin. 12 Fábio Cruz, Guilherme Curi, Estevan Garcia 14 busca por desafios musicais dentro de um novo mercado direcionado ao público jovem que cada vez mais crescia. Já nos dois primeiros trabalhos – intitulados Led Zeppelin I e Led Zeppelin II –, o conjunto mesclaria hard rock com passagens acústicas, blues, heavy metal, psicodelia e baladas. Do peso bluseiro de Communication Breakdown e Whole lotta Love aos momentos acústicos de Babe i’m gonna leave you; do blues de You shook me e Bring it on home até a psicodelia de Your time is gonna come; das pegadas heavy de Dazed and confused e The lemon song às influências indianas de Black mountain side e baladas como Thank you. Lançando mão de um mix de influências, o Led Zeppelin construiria sua música cortejando a inovação e a criatividade, predicados que lhe conferiram autenticidade. Em consonância com esta reflexão, recorremos a Janotti Junior (2007), o qual afirma: A autenticidade envolve, então, o polêmico aspecto da criatividade nas indústrias culturais e a busca por distinções e diferenciações em meio ao universo musical. Afinal, ser reconhecido significa alcançar uma certa autonomia criativa, mas, ao mesmo tempo, encontrar um lugar no mercado (Janotti Junior, 2007, p.10). Portanto, fazendo coro ao cenário contraditório da chamada ideologia do rock (Frith, 1996), o Led Zeppelin buscava a inovação como forma de distinção e supremacia com relação aos demais concorrentes da sua época ao passo que produzia para uma massa de consumidores que recrudescia gradativamente. Era desse modo que a banda habitava a morada aonde “a tensão permanente que 13 O incessante rugido: 15 envolve os processos criativos e as lógicas comerciais” (Janotti Junior, 2007, p.3) reina absoluta. Transcendendo o cenário estabelecido, mas, paradoxalmente ou não, fazendo parte dele, Led Zeppelin III, lançado em 5 de outubro de 1970, foi então mais além. Recheado de números acústicos, o álbum deixou atônitos alguns fãs e fez com que os integrantes da banda fossem chamados de traidores por alguns críticos (Wall, 2009). Mesmo assim, o disco atingiu o primeiro lugar entre os mais vendidos tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos (Williamson, 2011). Sucesso similar aconteceu também com o quarto álbum, de novembro de 1971. Repleto de sucessos como Rock and roll, Black dog e Stairway to heaven – considerada por muitos especialistas de música e fãs o grande momento musical do grupo – o lançamento colocou o conjunto definitivamente no mainstream da música popular massiva dos anos de 1970. Tido como uma “estratégia de consumo amplo”, segundo Janotti Junior e Cardoso Filho (2006, p.19), o mainstream consiste em fazer “escolhas de confecção do produto reconhecidamente eficientes, dialogando com elementos de obras consagradas e com sucesso relativamente garantido. [Implica um] sistema de produção/circulação das grandes companhias musicais”. Seguindo a lógica estabelecida pela indústria cultural, neste sentido, significaria afirmarmos que o material construído é balizado pela égide corporativa da produção de mercadorias e pela troca (Thompson, 1995). Estaria, então, o Led Zeppelin produzindo peças que não passariam de construções simbólicas moldadas de acordo com certas fórmulas preestabelecidas e impregnadas de estereotipias e elementos de identificação do consumidor? A chamada autenticidade do grupo não 14 Fábio Cruz, Guilherme Curi, Estevan Garcia 16 passaria logo de uma estratégia mercadológica para vender o grupo? No caso do Led Zeppelin, a resposta mais sensata parece ser o não. Mesmo não esquecendo o mercado, o conjunto mantinha-se criativo. Portanto, ao promover diálogos com outras possibilidades além do blues e do hard rock, podemos situar o grupo como “mainstream interseccional” quando esse promove uma espécie de “ir além” do mainstream no sentido clássico trabalhado anteriormente. Ele se emancipa das premissas dessa categoria e a renova de maneira orgânica. Reforçando isso, com exceção de Presence (1976), que, com raríssimas exceções, adota como linha de frente o blues e o hard rock, os outros três álbuns de estúdio produzidos pela banda– Houses of the holy (1973), Phisical Graffiti (1975) e In through the out door (1979) – alcançariam igualmente destaque por comprovar a sua veia criativa. Além das habituais influências pesadas e blueseiras, passando pelas baladas e os momentos acústicos, nos três álbuns acima elencados, o Led Zeppelin expandiu os seus horizontes e, por conseguinte, os da música produzidana década de 1970. Números que flertavam com o soul (The Crunge), o pop (Dancing days), o reggae (D’yer Mak’er) e o prog rock (No quarter) apareciam em Houses of the holy com a mesma falta de cerimônia com que a funkeada Trampled under foot, a oriental Kashmir, a psicodélica In the light e o boogie woogie de Boogie with Stu brotavam em Phisical Graffiti. No entanto, In through the out door, o último trabalho do grupo em estúdio, sinalizava caminhos ainda mais ousados e diferentes de tudo o que já havia sido feito e comercializado. A fórmula do que era vendido mais uma vez era quebrada. 15 O incessante rugido: 17 Num momento em que os integrantes do Led Zeppelin “pareciam determinados [mais uma vez] a abraçar novos e diferentes estilos, mas mantendo a fé nas raízes do rock and roll” (Welch, 2012, p.54), o que vimos foi tudo isso e algo mais. Com John Paul Jones e Robert Plant tomando a frente, In through the out door é, de longe, o trabalho mais desigual já produzido pela banda. Em que pesem os diálogos com o blues e algumas passagens mais pesadas, os teclados são a tônica da obra. Neste novo e sempre complexo cenário, o grupo flertaria até mesmo com o tecnopop. 3. Life Begin again12 O que o futuro reservaria para o Led Zeppelin ou o que o Led Zeppelin reservaria para o futuro? Nunca saberemos. Mas talvez Robert Plant possa sinalizar alguns rumos. Ou pelo menos uma quarta parte dessa possibilidade. Após o término da banda, o cantor, então com 32 anos, confessou: “Me vi parado em uma esquina, agarrando doze anos da minha vida, com um nó na garganta e lágrimas nos olhos, sem saber em que direção seguir” (Welch, 2012, p.60). Almejando sentir segurança novamente, “no início de 1981, [Plant] explorou as suas raízes de R&B, [rock and roll] e blues com os Honeydrippers (...)” (Bream, 2011, p.239). Com um grupo de amigos, saiu em turnê pela Inglaterra. “Voltei aos poucos, tocando em clubes 12 Canção gravada em 2001 pelo grupo Afrwo Celtic Sound System, para o álbum Volume 3: Further in Time. A música tem a participação de Robert Plant nos vocais e também está presente na coletânea Sixty six to Timbuktu, lançada pelo cantor em 2003. 16 Fábio Cruz, Guilherme Curi, Estevan Garcia 18 com Robbie Blunt, para duas, três pessoas – sem ser anunciado, só para sentir meus pés no chão13”. Dessa equipe, apenas Blunt gravou com Plant o seu primeiro disco solo. Lançado em 1982, Pictures at eleven apresentava um músico renovado que mantinha elementos da sua antiga banda, mas que, ao mesmo tempo, já dava mostras do que viria posteriormente. Se Burning down one side remetia a In through the out door e Slow dancer era uma sequência de Kashmir, Pledge pin e Fat lip soavam como linhas de fuga do passado, demonstrando que o cantor começava a vislumbrar novos caminhos. Robert Plant fez 33 anos naquele verão. Segundo os termos juvenis do pop, ele pertencia a uma geração antiga, distanciada do pulsar da época. Mas Plant teve a curiosidade de conferir se podia usar o que acontecia na música para criar um marco indicativo de sua próxima atitude. Já que o som dominante era o electro-pop, (...) ele comprou uma bateria eletrônica Roland (Rees, 2014, p. 178). Surpreendentemente, Plant optou por não sair em turnê para divulgar Pictures at eleven. Segundo ele, não fazia sentido executar músicas da sua ex-banda. O cantor precisava ampliar o seu repertório de composições próprias. Sendo assim, The principle of moments não tardou a sair. O novo material foi arremetido às lojas em julho de 1983 (Williamson, 2011). Se em Pictures at eleven a semelhança com o Led Zeppelin ainda se fazia presente, em The principle of moments, a distância foi alargada sobremaneira. Neste, os diálogos com o ex-grupo do 13 Em entrevista publicada na extinta revista musical brasileira Bizz, em junho de 1988. 17 O incessante rugido: 19 cantor aparecem de forma tímida como na levemente oriental Wreckless love ou em Other arms, tema de abertura do disco. De resto, o álbum soa como um típico produto musical dos anos de 1980, carregado de roupagens eletrônicas. Dessa vez, Plant lançou mão de novas sonoridades e, nesse sentido, o uso de sintetizadores começava a reinar sobre o seu trabalho. Novamente, o músico provava que a busca incessante pela autenticidade ressurgia com ainda mais força e que essa não era exclusividade do âmbito underground, ao contrário do que habita o “imaginário dos fãs, críticos e colecionadores” desse cenário, conforme sustentam Janotti Junior e Cardoso Filho (2006, p. 18). Destarte, a inovação e a criatividade tornariam a aparecer de forma mais cristalina e, assim, novas composições começaram a surgir. Entre elas, o primeiro sucesso do cantor como artista solo: Big log. “(...) Com seu senso de mistério profundo e serpenteante, acentuado por um misericordiosamente sutil arranjo de sintetizador, (...) a faixa deu a Plant seu maior sucesso como um single quando entrou para o Top 20 em ambos os lados do Atlântico em julho de 1983” (Williamson, 2011, p.195). Intencionalmente ou não, com Big Log, Plant manteve viva a, para nós, discutível contradição que permeia a ideologia do rock, de Frith (1996): o perdurável movimento pendular entre a criação e o mercado, o que confere ao artista uma “autonomia simbólica relativa” (Janotti Junior, 2007, p.5). Por outro lado, se The Principle of moments obteve grande êxito de vendas a exemplo de Pictures at eleven, Shaken ‘N’ stirred, lembrou a petulância de Led Zeppelin III. Mas não em termos sonoros. Nesse lançamento de 1985, Plant surpreendeu a muitos com uma gama infinita de variedades musicais 18 Fábio Cruz, Guilherme Curi, Estevan Garcia 20 jamais vista em seus trabalhos tanto no Led Zeppelin quanto em sua carreira solo. Enveredando ainda mais pelo tecnopop, a criatividade do músico parecia expandir-se para caminhos duvidosos e tomados de artificialidade. Shaken ‘N’ stirred tinha um break (Too Loud) e era permeado por elementos da new wave, bastante popular na época. Apesar de Little by little atingir boa receptividade nos Estados Unidos, a maior parte do disco decepcionou tanto os fãs quanto os críticos na época. No entanto, o cantor mostrava mais uma vez que estava disposto a correr riscos e a não seguir padrões estáticos, ou, em outras palavras, ao que a indústria musical esperava dele. Três anos se passariam até o lançamento de Now and Zen, em 1988. Com uma banda inteiramente reconstruída, o inglês, ainda abusando dos teclados em alguns momentos, promoveu uma conversação com o seu passado, algo constante em suas produções. O disco é repleto de refrãos, os quais, segundo Janotti Junior e Cardoso Filho (2006, p. 14-15), consistem no “elemento básico da canção popular massiva [e] pode ser definido como um modelo melódico de fácil assimilação que tem como objetivos principais sua memorização por parte do ouvinte e a participação (‘cantar junto’) do receptor no ato de audição”. O resultado disso foi uma mistura de sons que acertaram em cheio os então céticos apreciadores do cantor. Do sucesso de Heaven Knows e o rockabilly de Tall cool one – ambas com participação de Jimmy Page – à balada Ship of fools, a obra devolveu ao músico a confiança dos fãs e da crítica especializada. E mais: resgatou outra vez o reconhecimento de Plant como um artista singular no cenário musical massivo. Sobre isso, à época, ele afirmava: [a música] Tem de comunicar alguma coisa. Eu sou sério. Dou muita risada, mas esta música é 19 O incessante rugido: 21 vital. Não vou me contentar com um mingauzinho mainstream. Não preciso de uma Ferrari. Quero manter este fio de corte que tenho preservado e amado durante tanto tempo. É uma combinação de humor e obsessão com um pouco de talento. Não quero me dissolverna estrutura básica que as pessoas consideram uma feliz meia-idade14. Nessa declaração do artista, percebemos mais uma vez um discurso que demonstra a tentativa de não estar preso unicamente ao mercado e aos modelos pré- determinados da indústria musical. Além também de uma auto-percepção da própria carreira, no que Plant denomina de “fio de corte”, na própria experiência do artista e da relação com sua criação. Algo tão caro aos preceitos de Walter Benjamin (1987, p.119), o qual afirma que não devemos imaginar que os “homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso”. Esta perspectiva benjaminiana nos ajuda a reforçar o argumento do porquê considerarmos Plant um artista que habita o chamado mainstream interseccional. Esta intersecção, ao nosso ver, é, sim, um diálogo entre a possibilidade de liberdade e a experiência do artista dentro dos ditames mercadológicos no mundo capitalista. Talvez o limite, a zona de fronteira entre o fazer musical e a possibilidade de comercializá-lo. Essa pobreza ao qual Benjamin se refere é interpretada como o limite que as fronteiras do mercado impõem. Já a decência seria não respeitá-las, cruzá-las em prol da própria arte, que deveria ser maior que o valor mercadológico que ela possui. 14 Em entrevista à Revista Bizz, em junho de 1988. 20 Fábio Cruz, Guilherme Curi, Estevan Garcia 22 Talvez Plant venha tentando isso, por vezes aceitando o mercado, mas, no entanto, não se colocando numa zona de conforto ao confrontá-lo com sua obra. Isso posto, dois anos depois, Manic nirvana é lançado causando furor. A semelhança com o Led Zeppelin era explícita. À vista disso, agora, eram as guitarras que tomavam a frente. Exemplos não faltavam: as três primeiras faixas – Hurting kind (i’ve got my eyes on you), Big love e S S S & Q – soavam como a ex-banda do vocalista. De modo semelhante, mas com menos peso, I cried e Liar’s dance lembravam os momentos acústicos do seu passado. Com Fate of Nations, de 1993, Plant robustecia novamente a volta ao passado sem, é claro, deixar de olhar para frente. As duas primeiras faixas do disco já simbolizam bem este processo dialógico proposto pelo artista. Calling to You soa quase com um blues pesado, como se um chamado às origens. Em seguida, em Down To Sea, o cantor se joga literalmente no mar de influências orientais com tablas indianas e harmonias árabes, elementos sempre presentes na carreira do artista. Vale destacar também a canção Memory Song, marcada por uma sonoridade de guitarras sujas, acordes menores e batidas com caixa de bateria aguda, emblemática do movimento grunge, demonstrando o quanto o cantor estava conectado com o que estava acontecendo na época, mas com letras que remetem a memórias e sonhos. Fica aqui mais uma vez essa clara relação que o artista possui com a tradição, tida com um constante processo, redescoberta, nunca estática e muito menos imóvel e imersa no passado. Algo semelhante ao que Coutinho (2002) observa na obra de Paulinho da Viola, que poderia perfeitamente dialogar com a trajetória de Plant, dentro, é claro, dos contextos sociais, culturais e 21 O incessante rugido: 23 históricos de cada um. Não como algo cristalizado e sem vida, mas em constante mudança: como vir a ser, como história. O passado resgatado tem importância na medida em que diz aos interlocutores atuais alguma coisa sobre o presente e, desta forma, permite uma ação voltada para o futuro. Nessa perspectiva, a "tradição" aparece como um projeto consciente de transformação da realidade, isto é, como práxis criadora (Coutinho, 2002, p.6). Aqui, a música popular (e, por vezes, não massiva) se caracterizaria a partir de uma perspectiva ideológica, pela sua atitude com relação à tradição (no caso de Plant com o rock e o blues), ou seja, pela maneira como reelabora os signos culturais do passado e constrói uma historicidade conveniente às perspectivas de determinado contexto social e cultural. Essa característica de Plant seduz até mesmo aqueles que estão dentro do jogo da indústria musical. De acordo com o produtor do disco, Chris Hughes, “tem que se aplaudir o cara, porque ele está sempre atrás de ideias novas e de gente nova para trabalhar”. E acrescenta: “Ele não é do tipo que fica sentado esperando que tudo aconteça, e, nesse sentido, ele não é só cantor de rock, mas artista de verdade” (Rees, 2014, p.215-216). Consequentemente, Fate of Nations apresenta um ecletismo considerável em termos sonoros o que reforçava a imagem de autenticidade e autonomia do distinto músico. Já na abertura, com a já citada Calling to you, o cantor apresenta boa parte do estilo que marca a sua trajetória: hard rock e toques orientais temperados pelo solo de violino do britânico Nigel Kennedy. I believe e 29 22 Fábio Cruz, Guilherme Curi, Estevan Garcia 24 palms marcam as passagens mais pop do álbum enquanto Colours of a shade lembra o lado folk do Led Zeppelin. Depois de um hiato de nove anos, no qual Plant gravou e excursionou com o seu ex-companheiro Jimmy Page, Dreamland aparece em 2002. Mais uma vez com uma nova banda, a Strange Sensation, o músico desfilou por músicas que marcaram a sua vida como as baladas Song to the siren, de Tim Buckley, e Darkness, darkness, composta por Jesse Colin Young. A parceria com os mesmos colegas ganhou força com Mighty Rearranger, de 2005. Segundo a crítica especializada: [o álbum] soou como uma importante declaração de um homem que tinha muito o que dizer. “Another tribe”, “Takamba” e a brilhante “Freedom fries” pareciam fazer um cortante e angustiado comentário sobre o mundo pós 11 de setembro. “Tin Pan Valley” é uma singela análise sobre os perigos de se viver de glórias passadas (...) Incursões no misticismo (“The enchanter” e “Dancing in heaven”), (...) riffs de rock (“Shine it all around”), lamentos do blues (a faixa-título), (…) violões estilo Led Zeppelin III (“All the king’s horses”) e influências árabes e norte-africanas (“Another tribe” e “Takamba”) colidem de maneira inesperada e, muitas vezes empolgante. Acompanhado mais uma vez pela Strange Sensation, (...) Plant acredita que é seu melhor trabalho com muitas nuances e sutilezas e com aquele rugido leonino, com garganta aberta, solto apenas quando estritamente necessário. (Williamson, 2011, p.200). Uma banda nova e dois álbuns depois, o cantor dá uma pausa na carreira solo para gravar um disco de muito sucesso mercadológico com a cantora norte-americana de 23 O incessante rugido: 25 bluegrass Alison Krauss, em 2007. Já Band of joy, título em homenagem à antiga banda de Plant, é lançado três anos depois, apresentando, mais uma vez, músicos diferentes. Sendo bem sucedido tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos, o material engloba momentos bem díspares. No entanto, tudo parece se encaixar. As músicas iam desde o arcaico, como a tradicional “Satan, your kingdom must come down” e uma balada folk dos apalaches, “Cindy, i’ll marry you someday”, até seleções mais contemporâneas, como “Angel Dance”, de Los Lobos, banda tex-mex de Los Angeles, e um par de faixas contemplativas da Low, banda de drone rock de Minnesota –, “Silver rider” e “Monkey”. Plant cantou com freio e firmeza, a voz encaixando-se em cada canção como se fosse um velho terno favorito (Rees, 2014, p.272). Por fim, ou, no caso de Plant, até o momento, o último registro do vocalista, Lullaby and... The Ceaseless Roar, lançado em setembro de 2014, promove novas fusões musicais. O que segue lhe atribuindo um alto grau de autonomia e a possibilidade sempre vislumbrada de “ruptura com as formas [padronizadas e consequentemente previsíveis] estabelecidaspelo mainstream” (Janotti Junior, 2007, p.11), as quais fazem parte daquilo que chamamos de mainstream estático. Contando novamente com a maior parte dos músicos da Strange Sensation, a agora nomeada Sensational Space Shifters ajuda o cantor a namorar com a world music em composições como Little Maggie e Rainbow; a criar climas envolventes como em Embrace another fall; e a não esquecer do peso em Turn it up; e também de soar pop e, ao mesmo tempo, intimista em House of Love. 24 Fábio Cruz, Guilherme Curi, Estevan Garcia 26 Não seguir o mesmo formato ou os trilhos do trem que a indústria musical procura traçar. Este parece ser o mantra que Robert Plant vem evocando há quase cinquenta anos. Dialogando com a tradição, com o passado, o presente e o futuro, o artista busca desafios constantes. Seria ele uma espécie de “esquerda do mainstream”? Segundo o próprio, “sim. Eu crio os desafios. Ainda porque não existe outra maneira de se fazer as coisas. A não ser que se esteja compondo só para manter a carreira em pé, manter a casa em Malibu. Se o jogo é este, então entrei para a profissão errada. Não quero seguir essa linha (...)”15. E acrescenta: Sei que é apenas música, entretenimento, mas para mim é muito importante. O principal é que me divirta. Meu negócio é evoluir, mudar, mas manter aquela coisa especial do Led Zeppelin. Nossa intenção sempre foi desenvolver a música. Hoje, as grandes gravadoras contam com fórmulas prontas para sobreviver. Sempre foi uma luta conseguir que eu fosse tocado nas rádios. Ninguém confia em mim, comercialmente. E isso é uma vitória. Tenho um ego enorme... eu me lembro que uma vez um jornal me chamou de “o príncipe do antipop”. Adorei. Me afasta dos Bon Jovis da vida16. Assim, mais uma vez constatamos esse perfil outsider/insider de Plant, de uma quase total consciência de estar dentro e fora da lógica de mercado. De forma orgânica, em contato direto com as diferentes histórias das músicas (Wisnik, 2006), o artista tenta constantemente habitar outros possíveis mundos, reafirmando as 15 Em entrevista publicada na extinta revista musical brasileira Bizz, em junho de 1988. 16 Em entevista à revista Bizz (1993). 25 O incessante rugido: 27 contradições e ambiguidades do próprio sistema não somente através de sua obra, mas também do seu discurso. 4. e ∞ Entre todas as considerações produzidas até agora, talvez não existam outras maneiras que traduzam melhor as intenções artísticas de Robert Plant para concluir este artigo que não sejam coda ( ) e infinito (∞). Um indivíduo disposto a encarar o fazer artístico em meio a tantas amarras que a contemporaneidade propõe, sejam elas positivas ou negativas. Robert Plant é um daqueles indivíduos que percebem o tempo de outra forma, não linearmente, muito similar à perspectiva de Jorge Luis Borges (2011, p. 16). Para o escritor argentino, o tempo é um tenebroso e exigente problema, especialmente para a matemática, que busca sincronizar o tempo individual de cada um. Assim, nenhuma das várias eternidades criadas pelos homens “pode ser concebida como uma agregação mecânica do passado, do presente e do futuro. É uma coisa mais sensível e mágica: a simultaneidade destes tempos”. Não por acaso, esse símbolo foi tão utilizado para propagar os tempos zeppelinianos, que, segundo os próprios protagonistas da história, nunca findaria. Da mesma forma que o símbolo coda, título do álbum póstumo da banda, o nono é também uma notação musical que significa algo que retorna ao primeiro compasso, circular, que se repete, indefinidamente. O fim, mas também o início. Wisnik (2006, p.58) nos ajuda a melhor elucidar o conceito de coda na criação sonora tomando como base, segundo o autor, algo que se tornou evidente, que a música passa a “requisitar uma escuta propriamente musical, isto 26 Fábio Cruz, Guilherme Curi, Estevan Garcia 28 é, polifônica. É possível reouvir a sua história dentro de uma base sincrônica. É preciso produzir novos mapas. É possível ouvir tudo de novo e estar soando já diferentemente (...) Tocar a primeira escala”. Percebemos assim que, passando por cima dos ditames da indústria cultural, inerentes ao contexto da música popular massiva, Robert Plant mantém a essência, porém conversa serena e tranquilamente com outras possibilidades, em busca de mapas ainda desconhecidos, de antigas e novas geografias sonoras. Reforçando a nossa afirmação, temos as palavras do próprio músico17: Bem, é quase como ter uma missão. Por que Plant não cala a boca e simplesmente volta com Jimmy Page? Porque ele tem uma missão. Se tiver de dançar sozinho, vai dançar sozinho. Acho que é isso, nada muito profundo. Você sabe que eu sou e não sou uma pessoa séria, e que tudo que quero é ser visto... como eu me vejo. Como alguém que faz uma ou duas coisas com uma ligeira inclinação para o passado mas que, ao mesmo tempo, busca dar um passo adiante. Não quero seguir o caminho mais fácil. Não quero uma parceria com Chris Squire ou seja lá qual for a opção disponível. Quero tentar alcançar “aquela” luz (...) Genuíno representante do mainstream interseccional, Robert Plant foge das amarras previsíveis pelas quais passam os adeptos do mainstream estático. Constrói, desta forma, a sua identidade a cada produção, aperfeiçoando-a e/ou modificando-a se for o caso. Não para no tempo e muito menos vive somente das glórias do passado. É fiel apenas ao que ele mesmo canta em Tin Pan 17 Em entevista à Revista Bizz, junho de 1988. 27 O incessante rugido: 29 Valley: a mover-se para terrenos mais elevados. Cada vez mais, infinitamente. 5. Referências BENJAMIN, W. Obras Escolhidas. Magia, Técnica e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. BORGES, J. L. Historia de la eternidad. Buenos Aires: Debolsillo, 2011. BREAM, J. Whole lotta Led Zeppelin: a história ilustrada da banda mais pesada de todos os tempos. Rio de Janeiro: Agir, 2011. CURI, G. The Music from the sea. Social and cultural aspects on the creation of jazz and samba. Dissertação de mestrado. Dublin: University College Dublin, 2006. COUTINHO, E. 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As questões estéticas foram relacionadas à linha teórica de estudos de comunicação que investiga a produção jornalística, na perspectiva da teoria interacionista (TRAQUINA, 2004). Observou-se como os profissionais ilustradores praticam essa atividade de caráter artístico, inseridos nas rotinas jornalísticas do jornal Folha de São Paulo e, também, em outros três veículos impressos de grande circulação, Zero Hora, Jornal da Tarde e Estado de São Paulo (Estadão). Esses veículos foram escolhidos pelo fato de, no momento da pesquisa de campo, dedicarem um espaço gráfico significativo às ilustrações. O jornal Folha de São Paulo foi o ponto de partida do problema de pesquisa em virtude de publicar ilustrações feitas por autores que se identificam como “artistas plásticos” e também aqueles que se identificam como “ilustradores jornalísticos”. Foram feitas considerações semióticas às ilustrações publicadas no decorrer dos anos de 2003 e 2004 nesses veículos, ao lado do relato das investigações das rotinas jornalísticas através de entrevistas e acompanhamento dos trabalhos, junto às redações. 1 Este trabalho parte do artigo apresentado no NP de Semiótica do VI Encontro de Núcleos de Pesquisa da Intercom, em 2005. 30 Gilmar Hermes 32 A aparição das ilustrações geralmente abstratas, feitas por artistas plásticos, nas edições de domingo do jornal Folha de São Paulo, foi tomado como algo bastante significativo sobre os limites e as perspectivas da elaboração gráfica de um jornal. Além disso, foram feitas considerações a outros projetos, que tiveram a participação de artistas plásticos, como o desenvolvido em 1989, no Jornal da Tarde, e a obra do artista plástico Leonilson, considerada como uma referência dessa atividade pelos entrevistados. A Teoria Geral dos Signos, de Peirce (2000), fornece os fundamentos lógicos apropriados tanto para a análise das ilustrações como para a investigação dos desdobramentos de sua produção, exatamente por possibilitar a compreensão da dimensão estética dos processos midiáticos. A teoria perciana pode ser tomada como uma fonte lógica, que possibilita um maior rigor em todo estudo que se pretende científico. Afinal, Peirce, voltado em toda a sua vida para problemas da lógica, esteve preocupado em elucidar as diferentes formas de pensamento e o modo como nos aproximamos de uma melhor compreensão da realidade. Trabalhou-se o assunto, teoricamente, na linha das pesquisas sobre a produção jornalística, numa perspectiva semiótica, utilizando as concepções de Peirce. A escolha desse referencial teórico é decorrente do fato de ele permitir uma abordagem mais comunicativa dos problemas estéticos. O pensamento de Peirce tem um espectro muito amplo. Por isso, foi tratado, sobretudo, como um elucidador do problema do signo, como uma forma de compreensão das mediações, tendo como foco os problemas estéticos. Peirce (2000) pensou que tudo pode funcionar como um signo e, dessa forma, vinculou a Semiótica a um 31 Uma metodologia semiótica 33 amplo leque epistemológico. O autor trata a problemática do signo através de relações triádicas. De uma maneira geral, seu pensamento considera, positivamente, que ocorre uma transformação da nossa compreensão da realidade, através das semioses. Enquanto os tipos de signos estão para seus objetos e interpretantes, os diferentes tipos de mediações estão para as suas conexões com a realidade e os conhecimentos estabelecidos. Em processos relacionais, processos semióticos contínuos, nosso vínculo com a realidade está sempre em mudança. A teoria peirceana ajuda a pensar essas relações e a estabelecer um olhar semiótico em torno delas. Podem-se destacar, como ocorre neste caso, as conexões que se dão no plano estético da experiência. Nesse sentido, procurou- se estabelecer um olhar semiótico sobre a prática profissional das ilustrações jornalísticas, problematizando a relação que ocorre nessa atividade, entre os campos do jornalismo e da produção artística. Através da Teoria Geral dos Signos, Peirce trouxe uma contribuição fundamental, tratando de uma forma relacional as formas de conhecimento a priori e a posteriori, da ordem dos conceitos e da ordem das intuições da sensibilidade. Interessa tomar a obra de Peirce como a de um pensador que contribuiu para o conhecimento da comunicação. A comunicação poderia ser definida como campo, sobretudo como um fenômeno moderno, que, em função da especialização de outros campos, configura-se como um lugar de fluxo. Esse lugar de fluxo é próprio para conexões, inter-relações e jogos entre os planos da experiência que se configuram através dos conceitos e da sensibilidade, manifestados em diferentes áreas do trabalho e do conhecimento. Neste sentido, o que é da ordem da sensibilidade dialoga com aquilo que 32 Gilmar Hermes 34 corresponde ao conceitual, constituindo não só um problema retórico, mas, evidentemente, de comunicação, de mediações semióticas. Tratou-se a comunicação como contexto de inserção de aspectos do campo artístico. Nesse lugar de fluxo, a comunicação, observou-se o papel de elementos artísticos, em que o papel da disciplina estética pode ser observado de maneira mais nítida. Essa disciplina é voltada para problemas da sensibilidade, o que é inerente a todas as atividades humanas e, portanto, também à comunicação e não só às artes. Dessa forma, o que pode ser reconhecido como artístico é o que de mais estético existe na comunicação. A comunicação e a estética são duas disciplinas que podem ser abordadas interdisciplinariamente ou, até, transdisciplinariamente. O ponto de encontro entre as duas ocorre, de acordo com o objeto de pesquisa, naquilo que pode ser reconhecido como artes visuais no jornalismo impresso. O campo das artes visuais é caracterizado, na Modernidade, pela sua ênfase estética, pois não precisa mais ser, necessariamente, vinculado, por exemplo, aos temas históricos, às representações naturalísticas ou à religiosidade, como ocorreu nos séculos anteriores à Modernidade. E, na Modernidade, esse campo perdeu o caráter instrumental que caracterizou, principalmente, o seu vínculo às religiões. As abstrações – um fenômeno artístico tipicamente moderno – fazem com que o espectador se depare com um sentido complexo, que aponta para um enigma semiótico, que pode ser, por sua vez, estudado através da teoria peirceana. A estética, esse campo voltado para a questão do sensível, é explicitada da melhor forma pela categoria peirceana da primeiridade (qualidade). Essa, ao lado da secundidade (singularidade) e da terceiridade 33 Uma metodologia semiótica 35 (generalidade), é uma das balizas das relações entre signo, objeto e interpretante.2 Assim como as demais, a categoria da primeiridade não é um conceito classificatório e, sim, relacional. Por ser relacional, serve à comunicação, atividade que produz intermediações entre diferentes campos. Apesar de lançar-se um olhar estético sobre o jornalismo, buscando-se vê-lo sobretudo do ponto de vista da primeiridade, muitos exemplos de imagens estudadas foram caracteristicamente midiáticos. Esses se impõem prioritariamente pela terceiridade, a inteligibilidade (própria dos símbolos), que é uma característica mais diretamente relacionada ao texto verbal, do que pela primeiridade, que é aquilo que nos atinge mais pela sensibilidade (própria dos ícones). Do ponto de vista da terceiridade, também aparecem os valores/notícia, que Traquina considera como um “elemento fulcral da cultura jornalística” (TRAQUINA, 2005, p.77). Esses valoressurgem, tanto como critérios de noticiabilidade, como formas de apresentação do conteúdo noticioso. Hoje, pode-se observar o uso de muitos procedimentos artísticos, percebidos ao longo da história da arte, na produção de ilustrações. Isso se intensifica, 2 Nas suas dez classes sígnicas mais conhecidas, apresentadas nas traduções brasileiras de seus textos, Peirce está atento aos diferentes efeitos dos signos, que decorrem dos tipos de representamens e relações com os objetos. Ele começa com os tipos de signos mais marcados pelos aspectos qualitativos, na categoria da primeiridade, o que seria o caso de um qualissigno (remático, icônico, qualissigno) e finaliza com uma relação triádica plena no âmbito lógico do signo, que seria um argumento (argumento, simbólico, legissigno). Há uma transição de uma experiência no nível de primeiridade, que estaria mais ligada às sensações, para a experiência no nível de terceiridade, de caráter mais lógico. A tríade que corresponde ao próprio signo, o representamen, é a do qualissigno, sinsigno e legissigno. Esses três tipos de signos correspondem, no ponto de vista do representamen, às categorias fenomenológicas da primeiridade, secundidade e terceiridade. 34 Gilmar Hermes 36 inclusive, pelo uso das técnicas de computação gráfica. Uma das diferenças fundamentais da estética midiática está no fato de as mensagens serem submetidas às regras de produção do jornalismo. Dentre essas, a da “simplificação” ou “clareza” é uma das que atinge mais diretamente às ilustrações, vinculando-as às definições estéticas mais tradicionais, que relacionam a arte à imitação da natureza. Os procedimentos estéticos, nesse sentido, são tratados de forma a corresponderem a um interesse instrumental, lembrando momentos da história da arte anteriores à abstração moderna, quando o trabalho artístico se justificava pelo vínculo que tinha em relação ao mundo exterior, não assumindo plenamente o seu caráter de qualissigno, sobretudo de potencialidade semiótica, aberto às múltiplas significações. Poderíamos estabelecer comparações entre as teorias do jornalismo, conhecidas como “teorias do espelho”, e as tradicionais formas de representação naturalísticas da arte. A arte moderna, com a sua pretensão de um fazer puramente estético, em geral, tentou evitar esse caráter que, inevitavelmente, compromete o jornalismo do ponto de vista artístico. Neste estudo, foram feitas observações durante o acompanhamento das rotinas dos jornais Zero Hora, Estado de São Paulo (Estadão) e Jornal Tarde; entrevistas com os artistas plásticos participantes do projeto no jornal Folha de São Paulo; entrevistas com os editores de arte dos jornais Zero Hora, Folha de São Paulo, Estadão e Jornal da Tarde, e com os ilustradores do jornal Folha de São Paulo, que trabalham em suas casas ou estúdios, fora da redação. Na pesquisa de campo, ainda foram realizadas as entrevistas com os ilustradores Gilmar Fraga, Bebel (ambos da Zero Hora) e Carlinhos Muller (do Estadão), 35 Uma metodologia semiótica 37 que não estavam presentes no momento do acompanhamento das rotinas. Foram analisadas ilustrações de todos os jornais e de todos os artistas plásticos, participantes do projeto da Folha, identificadas como núcleo de problematização desta pesquisa. Além de ilustrações vinculadas à observação das rotinas, foi realizada a leitura de, pelo menos, um trabalho publicado, de cada um dos ilustradores entrevistados, tecendo considerações semióticas, pensando nas suas concepções e nas suas rotinas de trabalho. Fazem parte do resultado final diferentes vozes: a do pesquisador, as dos ilustradores, as dos artistas plásticos, as dos editores e as vozes dos autores tomados como referenciais teóricos. A leitura semiótica textual das imagens publicadas foi feita à luz dessas observações, que somam à semiótica as perspectivas das teorias do jornalismo, voltadas aos aspectos organizacionais e construcionistas dessa atividade. As observações feitas durante o acompanhamento das rotinas, ao lado das entrevistas e de alguns registros materiais, constituem signos, ideias, conceitos, definições, à medida em que são relacionadas com o produto final, que se vê nas edições dos jornais. Durante a elaboração do texto da tese, pouco a pouco, viu-se os exemplares dos jornais estudados, cada vez mais, como a materialização de uma série de relações e preceitos profissionais. Em função do caráter dinâmico das mudanças, no quadro profissional das redações, é importante considerar que essas constatações se referem a momentos específicos, que não são exatamente os mesmos, para todos os veículos e profissionais analisados. Embora as observações tenham sido feitas entre janeiro de 2003 e fevereiro do ano de 2004, por uma questão de organização e, até mesmo, 36 Gilmar Hermes 38 física, foi impossível fazer todas as anotações em períodos simultâneos ou muito próximos. Nesse sentido, há algo de inevitavelmente fictício nesta construção textual, em termos de relação temporal. Todos os depoimentos e considerações, por isso, foram notificados quanto à sua data de realização. É possível que, atualmente, as visões particulares dos artistas e dos ilustradores já não sejam as mesmas. Por esse motivo, nas considerações às ilustrações publicadas, procurou-se usar exemplos da época das observações das rotinas e das entrevistas. O objetivo é, a partir de ocorrências e de seus respectivos dados qualitativos, produzir conhecimento nessa área jornalística, na ordem da terceiridade, quanto à identificação de práticas e conceitos comuns ou, na ordem da primeiridade, indicando tendências ou possíveis definições, que possam criar insights em torno desta prática profissional, o que corresponde à lógica da abdução, teorizada por Peirce (2000). Em termos peirceanos, procurou-se observar, no contexto codificado do jornalismo, ocorrências singulares (secundidade) que, à medida em que são recorrentes, podem configurar regras profissionais (terceiridade) ou tendências de mudança ou questionamentos (primeiridade), ainda sendo esboçadas, não plenamente evidenciadas como signos dessa prática. Assim, chegou-se a resultados voltados para o futuro, em termos de compreensão dessa atividade jornalística nas suas práticas atuais, nas suas tendências e nas suas possibilidades. Foram transcritos depoimentos ou relatos próximos aos processos de produção, vistos como objetos dinâmicos3 – a medida em que possam ser percebidos 3 Peirce (2000) diferencia o objeto dinâmico do objeto imediato. O objeto dinâmico é aquele que está fora do signo, mas também é em relação ao 37 Uma metodologia semiótica 39 como manifestações na ordem da secundidade – segundo os quais é possível se aproximar da realidade de uma prática jornalística. Muitas falas têm um caráter mais geral, pelo fato de representarem as práticas através de leis ou pontos de vista. Outras podem ter um caráter mais indicial4, por estarem vinculadas a uma prática singular observada presencialmente. Ao lidar com a produção de signos imediatos, nos depoimentos, e com profissionais acostumados a atuarem no plano da linguagem, foram observados, sobretudo, signos do tipo simbólico, na ordem da terceiridade. Em relação às suas práticas, contudo, como é próprio das pesquisas voltadas às rotinas jornalísticas, foram registrados signos na ordem da primeiridade e da secundidade, que, contudo, ainda permitem vislumbrar possíveis argumentos na ordem da terceiridade. Essas perspectivas estão presentes, também, nos resultados impressos das práticas, analisados posteriormente. Para compreender os processos de trabalho dos ilustradores, a partir de observação das ilustrações jornalísticas e de sua relação com o projeto artístico da Folha, foram elaboradas questões a serem respondidaspelos editores dos jornais Estadão, Zero Hora e Folha. Na Zero Hora, foram feitas as primeiras observações de rotinas, o que permitiu preparar questionários a serem aplicados posteriormente junto aos demais ilustradores e artistas plásticos. Durante o trabalho de observação das qual o signo existe. A maneira como ou sob quais aspectos esse objeto dinâmico aparece no signo vem a ser o objeto imediato. 4 Entre as diversas classes de signos definidas por Peirce, as mais conhecidas são as do ícone, índice e símbolo, que tratam da relação do signo com seu objeto. O ícone (primeiridade) é marcado por relações de semelhança, o índice (secundidade), pela coexistência ou relação física com seu objeto, e o símbolo (terceiridade), por estabelecer vínculo com o objeto através de uma generalização lógica (HERMES, 2013). 38 Gilmar Hermes 40 rotinas no Estadão, foram entrevistados os editores e ilustradores enquanto acompanhava-se os seus trabalhos. Teve-se o cuidado de fazer as mesmas questões, previstas para os artistas plásticos e ilustradores da Folha, no sentido de colher dados que pudessem ser trabalhados, comparativamente, e, assim, identificar elementos na ordem da terceiridade (leis ou regras) e da primeiridade (possibilidade de tendências). Evidentemente, houve uma diferença em relação às entrevistas realizadas, tendo como pano de fundo a presença na redação e a observação das práticas. Considera-se, no entanto, que este estudo chegou às conclusões, sobretudo, pelas comparações entre os diversos depoimentos, observando singularidades (diferentes ocorrências ou tendencialidades) e recorrências (signos da ordem da terceiridade). Na tentativa de compreender o funcionamento de cada um dos jornais, colheu-se diversos testemunhos. Esses situam-se muito na ordem da terceiridade, demonstrando, através dos discursos as regras praticadas, manifestações de valores/notícia ou valores estéticos. Há também a expressão de desejos e configurações pessoais mais próximas da ordem da primeiridade. Isso ocorre, pois essas representam, prioritariamente, tendências e possibilidades que cercam a concepção da atividade, mais do que regras convencionalizadas. Foi transcrito digitalmente todo o material gravado (depoimentos orais, de caráter indicial e simbólico) e anotadas em papel todas observações (índices e ícones, que caracterizam as práticas das redações). A transcrição do acompanhamento das rotinas e das entrevistas fez parte do processo de análise dos dados. A reflexão produzida nessa tese resultou das questões desenvolvidas ao longo da pesquisa de campo. Pouco a pouco, passou-se 39 Uma metodologia semiótica 41 das primeiras observações às entrevistas e, depois, às novas observações de rotinas. Elas ganharam um caráter de terceiridade, à medida em que explicitam conceitos e regras de caráter geral, que podem esclarecer a atividade de ilustração jornalística. Constatou-se a existência de elementos na ordem da primeiridade e secundidade, que possivelmente pudessem configurar elementos na ordem da terceiridade, e, nesse sentido, procurou-se revê-los ou questioná-los em novas abordagens. O pesquisador reagiu aos depoimentos dos entrevistados percebendo novas questões, gerando novos índices, que poderão configurar novos conceitos, na ordem da terceiridade. A tese reúne, em torno de questões centrais que emergiram durante o processo de pesquisa, afirmações feitas por um ou mais profissionais em diferentes momentos. É importante observar que o contato com os entrevistados – especialmente os ilustradores – pode ter levantado questões que, para eles, ainda não teriam emergido como motivo de reflexão. Surgiram contradições entre depoimentos feitos em diferentes momentos ou nas respostas de diferentes perguntas, de um mesmo ilustrador. Entre os signos das suas falas, pode-se configurar objetos imediatos na ordem da primeiridade, secundidade e terceiridade. No decorrer do texto da tese, alguns aspectos permanecem na ordem da primeiridade e secundidade. Por se tratar de um trabalho científico, entretanto, ressalta-se aspectos na terceiridade, de forma a poder confirmar ou não a hipótese de que a atividade de ilustração situa-se na fronteira de concepções jornalísticas e artísticas. Há um pouco de caráter jornalístico na forma deste trabalho, em função do grande número de entrevistas realizadas para a sua realização. O material dessa pesquisa são depoimentos, ou seja, objetos imediatos, mas o objeto 40 Gilmar Hermes 42 dinâmico que se tem em vista são as práticas jornalísticas e artísticas. Há que se considerar, no entanto, que existe muita dificuldade para entendê-las fora da ordem do discurso (plano simbólico), pois elas estão cercadas de elementos conceituais. O que se busca na comparação, justaposição e relação entre as falas – citadas sempre com a fonte em itálico – é aquilo que as ultrapassa no seu conjunto e que pode configurar a atividade de ilustração jornalística, entre elementos da ordem da estética e das teorias do jornalismo, numa abordagem semiótica. As ilustrações são uma prática de ordem estética e jornalística. Elas tendem a ser negligenciadas nas abordagens da imprensa, como se não integrassem o jornal. Não podemos pensar somente os textos verbais jornalísticos e as fotografias, sem a indispensável consideração a essa parte do jornal. É limitada, nesse sentido, a visão de que somente o discurso verbal e as fotografias constituem o jornalismo em essência, o que repercute nas limitações do mercado de trabalho para ilustradores. Uma atenção crescente aos aspectos estéticos da produção jornalística torna-se importante pela relevância da visualidade das diferentes mídias de caráter impresso, especialmente com a influência cada vez maior da multimídia. As ilustrações são, geralmente, vinculadas aos textos, mas, nesta pesquisa, em entrevistas e acompanhamento do trabalho de editores de arte e ilustradores, observou-se a possibilidade de um certo grau de autonomia, o que é próprio do plano estético. Entre as tendencialidades, uma das questões mais importantes pode ser a "liberdade" no momento de sua criação. Isso é, sem dúvida, um problema de ordem estética, que se depara, também, com paradigmas jornalísticos, entre os 41 Uma metodologia semiótica 43 quais a busca de autonomia caracteriza o processo de profissionalização. Os artistas e os ilustradores comentam que o que caracteriza e diferencia a arte é a “liberdade” de criação. Os estudos teóricos de jornalismo também pressupõem que a “liberdade” é inerente à prática jornalística, especialmente quanto às diferentes formas de censura às quais os jornais podem ser submetidos (TRAQUINA, 2004). Então, evidentemente, essa é uma questão importante a ser tratada na relação dos campos “artístico” e “jornalístico”. Ao longo do trabalho, apresenta-se inicialmente os pressupostos teóricos da semiótica peirceana, as bases teóricas do jornalismo, as definições de ilustração jornalística e os conceitos relacionados, como os de caricatura e de história em quadrinhos; e noções fundamentais de estética e de história da arte. Explicita-se as propostas dos artistas plásticos em relação à realização de ilustrações no jornal Folha de São Paulo e como eles veem esse meio e suas características, analisando o resultado concreto de suas ideias em imagens publicadas. Através da observação das rotinas e análise de ilustrações, nota-se como são os processos produtivos dos ilustradores profissionais. Define-se o que vem a ser o estilo, as técnicas utilizadas, a relação estabelecida com as atividades jornalísticas de infografia e fotografia, as relações estabelecidas com editores e redatores, e a maneira como as concepções artisticas dialogam com a ilustração. Chega-se à problematização da dimensão estética comoum espaço de liberdade. Para pensar as ilustrações jornalísticas, é necessário situá-las em relação ao modo que o jornalismo vem sendo estudado e também à reflexão estética e da 42 Gilmar Hermes 44 história da arte. Nesse sentido, visando à análise dessa forma de produção, situa-se junto às pesquisas conhecidas como interacionistas – que seguem à tradição dos estudos de newsmaking. Opta-se por um viés semiótico e tem-se, como pano de fundo, como um efeito colateral produtor de sentido, elementos da história da arte. Os estudos sobre jornalismo inserem-se no conjunto de teorias da comunicação, associando-se a estudos científicos que analisam a ação das mídias nas sociedades e suas estruturas internas. Revelam a construção de concepções de comunicação, tendo como um dos aspectos principais o “valor/notícia”. O estudioso Nelson Traquina vem contribuindo, de uma maneira singular, com trabalhos que informam sobre os principais estudos que hoje são tópicos da pesquisa em jornalismo. Além disso, ele oferece suas investigações que contribuem para a compreensão e o aperfeiçoamento da atividade jornalística. No nosso contexto acadêmico, os referenciais teóricos do jornalismo passaram, pouco a pouco, de um suporte técnico das práticas profissionais e da configuração de uma atividade específica, para uma visão crítica, cada vez mais complexa, dessa forma de trabalho. Buscam entender o seu papel, em termos epistemológicos, bem como sobre o seu tipo de ação social. Na leitura de uma obra para outra de Nelson Traquina, percebe-se como a abordagem científica do jornalismo amadurece, definindo-se marcos e questões cada vez mais evidentes desse campo, ao lado de novas abordagens. Também a teoria semiótica, através do conceito de semiose, de acordo com Ronaldo Henn (2002), é uma importante ferramenta metodológica para estudos da produção jornalística. 43 Uma metodologia semiótica 45 Apesar de o compromisso ético dos jornalistas consistir, evidentemente, em não transgredir as fronteiras entre realidade e ficção, Traquina (2004) questiona a ideologia profissional que apresenta o jornalismo como sinônimo de realidade. Por trás dessas ideias que perpassam as rotinas, está a Teoria do Espelho, que se constituiu a partir da própria configuração do jornalismo como campo profissional. A teoria do espelho e a ideia de objetividade estão plenamente associadas e correspondem à tentativa de definir eticamente e logicamente o papel social do jornalismo. São o ponto de partida que se depara hoje com diversos limites críticos. Os jornais, na sua ação efetiva, demonstram pretensas maneiras de tratar a realidade. Essas, de certa forma, podem ser contestadas pelas teorias da linguagem, semióticas e de análise do discurso. A definição de uma categoria profissional e um modo específico de tratar a realidade, em função de prestar a informação, no entanto, levou à constituição de um tipo de conhecimento relacionado a essa atividade. Isso evidencia a necessidade das teorias do jornalismo. Traquina (2004) vincula a atividade do jornalismo à democracia e, assim, questiona as relações que se estabelecem entre jornalismo e poder. O relacionamento com as fontes de informação, por exemplo, é uma questão fundamental do jornalismo. Esse aspecto se depara com o problema da “autonomia”, com o tipo de ação profissional almejado por todo jornalista, mas se torna problemática diante das formas conceituais e organizacionais da atividade. O jornalismo pode ser observado nas práticas e ter, nas teorias, um ponto de vista constatador e crítico. Diferente do pesquisador italiano Mauro Wolf (2001), que menciona as consagradas teorias do agenda- settting, do gatekeeper e de newsmaking, Traquina (2004) 44 Gilmar Hermes 46 cita as teorias do espelho, do gatekeeper, a organizacional, de ação política, as construcionistas, a estruturalista e a interacionista – essa última da qual se diz partidário. Considera que elas não se excluem e que não são, obrigatoriamente, independentes umas das outras. As teorias do agenda-setting e gatekeeper estão intimamente relacionadas, por trabalharem com a ideia de seleção. No segundo volume de suas Teorias do Jornalismo, Traquina (2005) afirma que sua intenção é “[...] testar as conclusões principais da já vasta literatura de ‘newsmaking’ que se acumulou durante os últimos cinquenta anos.” (TRAQUINA, 2005, p.14.). Dessa forma, mostra que o termo newsmaking pode estar englobando teorias voltadas para a produção jornalística, como é o caso da organizacional e da interacionista. Ao descrever estudos teóricos sobre o jornalismo, no livro Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias”, Traquina (1993) informou que as análises de conteúdo foram enriquecidas com as análises etnometodológicas de cientistas sociais. Esses, “[...] seguindo o exemplo do jornalista em reportagem, foram aos locais de trabalho, [...] e observaram com olhos analíticos e críticos” (TRAQUINA, 1993, p.15). Observando as rotinas jornalísticas, os procedimentos que se repetem, os constrangimentos e os valores norteadores das atividades diárias, pesquisadores como Gaye Tuchman, John Soloski, Philip Schlesinger e Warren Breed teceram observações questionadoras dos preceitos que guiam as práticas profissionais e os resultados alcançados, entre os quais a teoria do espelho. John Soloski (1993) nota que a “[...] ideologia do profissionalismo tem fortes componentes anti-lucro e antimercado que estão manifestos na idéia de serviço à sociedade”. Enquanto haveria a formação “educacional” 45 Uma metodologia semiótica 47 do jornalismo, é no exercício da profissão, porém, que os jornalistas compartilham de uma base cognitiva. Dessa forma, apesar de um idealismo “anti-lucro”, que poderia existir, os profissionais tenderiam a se harmonizar com as regras de empresas capitalistas. A ideia de “objetividade”, conforme Soloski (1993), seria uma das regras mais importantes, que consiste em relatar os fatos da maneira mais equilibrada e imparcial. “Cabe ao jornalista procurar os fatos de todos os lados ‘legítimos’ de um assunto, e relatar depois os fatos de um modo imparcial e equilibrado.” (SOLOSKI, 1993, p.96.) Para o autor, esta é uma maneira prática de lidar com as necessidades dos profissionais, das empresas e dos públicos. A teoria semiótica5, através das noções de “semiose” e “interpretante”, demonstra como as mediações sígnicas são complexas. Por maior que seja a correspondência com o objeto dinâmico, as representações sempre dão conta desse objeto sob algum aspecto. Isso pode ser realizado, de acordo com conceitos pré- existentes, na categoria fenomenológica da terceiridade, que pode ser também entendida como “ideologia” no contexto jornalístico, expresso pelos valores/notícia. Pelas “normas do profissionalismo”, poderíamos entender a cultura profissional. Essa, segundo Soloski, está em constante negociação com as políticas editoriais. A natureza organizacional das notícias é determinada pela interação entre o mecanismo de controle transorganizacional representado pelo profissionalismo jornalístico e os mecanismos de controle representados pela política editorial. [...] 5 Ao longo da tese, reelabora-se também as Teorias do Jornalismo a partir de apropriações oriundas da Teoria Geral dos Signos. 46 Gilmar Hermes 48 As fronteiras são suficientemente amplas para permitir aos jornalistas alguma criatividade na reportagem, edição e apresentação das ‘estórias’. Por outro lado, as fronteiras são suficientemente estreitas para se poder confiar que os jornalistas agem no interesse da organização jornalística. (SOLOSKI, 1993, p. 100.) Esses aspectos podem ser observados nas entrevistas realizadas nessa pesquisa, nas quais os ilustradores afirmam que realmente existem regras não- explícitas, percebidas nas práticas cotidianas. Mesmo assim,os entrevistados demonstram que almejam uma maior autonomia, em cuja definição entrariam concepções vinculadas à cultura profissional do jornalismo e uma visão do caráter artístico dessa atividade. Mauro Wolf (2001) explica que os estudos de newsmaking colocam-se entre a “[...] a cultura profissional dos jornalistas e a organização do trabalho e dos processos produtivos” (WOLF, 2001, p. 188.) Esse tipo de pesquisa busca identificar as relações e as conexões entre esses dois aspectos. Dentre eles é que vai se compreender como, por exemplo, entre uma abundância de fatos, somente alguns passarão a ser notícia para o veículo. O que é notícia não teria um valor idiossincrático, mas faz parte de um reconhecimento coletivo do que é notável e do que pode ser trabalhado de maneira planificada. [A cultura profissional seria uma mistura de retóricas e táticas,] de códigos, estereótipos, símbolos, tipificações latentes, representações de papéis, rituais e convenções, relativos às funções dos mass media e dos jornalistas na sociedade, à concepção do produto-notícia e às modalidades 47 Uma metodologia semiótica 49 que superintendem à sua confecção. (GARBARINO, 1982, apud WOLF, 2001, p.189.) Wolf evidencia que o produto jornalístico resulta de uma série de acordos, praticamente orientados, em torno do que é escolhido para a publicação e como isso é publicado. Os “valores/notícia (news values)” ajudam a determinar o que deve ser publicado. “[São] critérios de relevância espalhados ao longo de todo o processo de produção; isto é, não estão presentes apenas na seleção das notícias, participam também as operações posteriores, embora com um relevo diferente.” (WOLF, 2001, p. 196.) Considerando os estudos partilhados sobre os valores/notícia pelos autores Johan Galtung e Marie Holmboe Ruge, além dos de Richard V. Ericson, Patricia M. Baranek e Janet B. L. Chan, Traquina (2005) observa que Wolf foi o primeiro a perceber que os valores-notícia estão presentes ao longo de todo o processo de produção jornalística, não somente na seleção dos acontecimentos, mas ainda no processo de elaboraçao da notícia. Em termos peirceanos, os valores/notícia seriam hábitos, princípios-guias que dão sentido às coisas das práticas cotidianas, nas rotinas jornalísticas. Os jornalistas não podem, obviamente, decidir sempre ex novo como devem selecionar os fatos que surgiram: isso tornaria o seu trabalho impraticável. A principal exigência é, por conseguinte, rotinizar tal tarefa, de forma a torná- la exequível e gerível. Os valores/notícia servem, exatamente, para esse fim. [...] [Os] valores/notícia devem permitir que a seleção do material seja executada com rapidez, de um modo quase ‘automático’, e que essa decisão se caracterize por um certo grau de flexibilidade [...] (WOLF, 2001, p. 197.) 48 Gilmar Hermes 50 Mudando com o tempo, os valores/notícia pressupõem uma semiose que se produz nas práticas jornalísticas. Essas podem ser vistas como réplicas ou não, através dos sentidos que se reproduzem e que, efetivamente, são criados em torno desses conceitos, na ordem da terceiridade. Wolf (2001) aponta, como exemplo, as páginas voltadas para os chamados assuntos culturais. Elas abordam espetáculos e artes, que antes não constituíam notícia e, hoje, são qualificadas desse modo, em função das mudanças. Essas mudanças são produzidas no interior dos veículos, na relação com outras mídias, nas relações com os públicos, correspondendo às respectivas transformações dos contextos sociais. Os valores/notícia derivam de pressupostos implícitos ou de considerações relativas ao conteúdo da notícia, à disponibilidade do material e aos critérios relativos ao produto informativo, ao público e à concorrência. Quanto ao seu conteúdo, a notícia se valoriza pelo nível hierárquico dos indivíduos envolvidos no fato, o impacto sobre o interesse no contexto geográfico ou sociopolítico, a quantidade de pessoas que o fato envolve ou a relevância que o acontecimento possa ter no seu futuro desenvolvimento. O professor Ronaldo Henn contribui com as pesquisas na linha interacionista, ao apropriar-se das teorias semióticas, para pensar a produção jornalística, nos seus livros Pauta e Notícia (1996) e Os Fluxos da Notícia (2002). Segue a linha de pesquisa conhecida como “crítica genética”, com o aporte peirceano desenvolvido por Cecília Salles (2000). Busca observar as rotinas jornalísticas através de “documentos de processo”, que servem como uma forma de registro dos movimentos de produção. 49 Uma metodologia semiótica 51 São documentos processuais que mostram o acompanhamento metalinguístico do processo ou registros de reflexões de uma maneira geral. Como exemplo teríamos as anotações, diários e correspondências. (SALLES, 2000, p.37.) Tomando o conceito de semiose como um aspecto central, Henn (1996) questiona como os elementos da realidade são transformados em notícia, considerando que os procedimentos de pauta já produzem interpretantes antes da reportagem e que os fatos são mediados pelas fontes. Na observação das práticas em jornais brasileiros de grande circulação, esse autor nota que o texto jornalístico é um produtor de sentido sobre a realidade, a partir de interpretantes gerados no interior das organizações. Isso ocorre com mediações estabelecidas por meio dos valores/notícia, além de estar circunscrito às mediações feitas sobre os fatos pelo acesso às fontes de caráter oficial geralmente. Esse autor, no entanto, chama a atenção para o aspecto da “causação final”, a partir da semiótica peirceana. Apesar de todos os signos poderem mediar o objeto dinâmico somente sob algum aspecto, determinando assim interpretantes, esse objeto mantém a sua potencialidade de gerar novas semioses. “Possui uma ‘verdade’ inerente, cuja revelação potencial é a essência da causação final, que, no fundo, nunca se completa, dado o caráter infinito desse processo.” (HENN, 2002, p.63.) Tendo como pano de fundo a teoria falibilista de Peirce, Henn, no conjunto da sua pesquisa, questiona as práticas jornalísticas do ponto de vista ético. Afirma que a diversificação de linguagens e modos de produção pode contribuir para uma melhor compreensão da realidade, com diferentes formas de mediação. 50 Gilmar Hermes 52 No sentido de identificar esses critérios e preceitos do jornalismo, na atividade da ilustração, foram realizadas entrevistas com os editores, ilustradores e artistas plásticos, ao lado do exercício de observação das rotinas nas redações dos jornais Zero Hora, Estado de São Paulo e Jornal da Tarde. Na Folha de São Paulo, optou-se por somente entrevistar os ilustradores, pois a observação das rotinas voltadas especificamente para o veículo se tornou impossível, já que eles trabalham separadamente, em seus estúdios particulares ou residências. As entrevistas feitas com os artistas plásticos se diferenciam daquelas feitas com os ilustradores, pois, no seu caso, optou-se por uma perspectiva que considere o seu posicionamento como artistas, indagando mais diretamente o papel da arte no contexto jornalístico. No caso dos ilustradores, nem sempre eles podem falar nessa perspectiva artística, embora alguns sejam também artistas plásticos. Foi, no entanto, com os ilustradores que se pode obter, com maior propriedade, elementos que evidenciam as rotinas jornalísticas, sem desconsiderar uma possível perspectiva artística diante do seu trabalho. Principalmente pelo referencial das teorias voltadas à produção jornalística, a pesquisa está embasada em estudos de campo, com entrevistas e observações do cotidiano profissional, demonstrando aspectos dos trabalhos de dezenas de ilustradores e artistas plásticos consultados, ao lado da análise semiótica dos seus produtos. Nesse conjunto de observações, buscou-se identificar semioticamente como os valores/notícia se manifestam na práticas das
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