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Matos - Acertei no milhar

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Coleção LITERATURA E TEORIA LITERÁRIA
VoL 46
Direção2 Amonio Callado
Antonio Candido
Roberto Schwarz
n
M
À
l
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Maxos. Cláudia Neiva de.
Acertei no milhar : malandragem e samba no
lempo de Getúlio / Cláudia Neíva de Matos. -
Rio de Janeiro : Paz e Terra, l982.
M38|a
(Coleçã0 Litcratura e teoria literáría; v. 46)
Bibliografia.
1. Música popular - Brasíl - Híslória e crítica
2. Músicns brasileirns I. Título II. Série
CDD - 780.420981
927.8042
CDU - 784.4(81 )
78,071(8] )82-0448
 
EDITORA PAZ E TERRA
 
Coruelho Editorial:
Antonio Candido
Celso Furlado
Fernando Gasparian
Fernando Henríque Cardoso
l'\_____*r
CLÁUDIA MATOS
ACERTEI NO MILHAR
Malandragem e Samba no
Tempo dc Getúlío
PAZ E TERRA
2. 0 SAMBA E SEU LUGAR
A diversidade encomrada denlro do conjunto dc textos que
formam o corpus deste Irabalho aponta para a necessidade de
considerar 0 tema da malandragem não de maneira isolada. mas
dentro do conjunto de temas c linguagens com os quais ele se
relaciona, pela idenlídadc de veículo c pelo supone sócio›cultural:
o samba e a produção culxural das classes popularesA Não é inútil
lembrar aqui Todorov quc, cm Eslruzuralismo e Poética, insiste
sobre uma idéia aparcntemente simples e óhvia_ mas ainda assím
fundamentalz que 0 sentido de uma obra só se revela por imeiro
se a considerarmos dentm do conjumo de obras que lhe são
relacionadas no tempo, no espaç0. na oricnlação ideológica e
formal; e que um conjunto de obras também deve ser apreciado
dentro do Conjumo maior da cultura onde elas brmam, e assim
sucessivamenlc. O que temarei elucidar a partir da inserção da
tendência malandra do samba no universo de lendências identifi-
cáveis nas letras de nossa canção popular urbana. é dc que ma-
neira ela apresema simultaneamente uma idemidade e um desvio
em relação a esse universo.
No início do século XX. anles de ganhar versos, o samba
surge como ritmo. dança c folguedo coletivos - palmas. batuqu.=.
eslribilhos cantados, aos quais posterinrmcnte se acrescemariam
estâncias mais longas. Algumas décadas antcs. como gônero exclu-
sivamemc inslrumemaL havia aparecido o choro. Tais sa'o. com
certeza, as duas mais impormntcs modalidadcs da músíca popular
can'oca.
Uma breve comparação entre elas servirá para esclarecer
melhor as implicações sócio c político~cullurais do samba. Este é
de orígem negra e proletáría_ enquanlo o Choro vem de matriz
25
branca c das classes mais favorccidas: nn origem_ cm um modo
parucular de o múswo populur cxecutar a muswa Imponadn quc
na scgunda mctade do scculo XIX animava nossos bzulcs c salõcs
eleganles.
O samba sc conslro'i, sobreludo no início de sua histo'ria.
sobre uma cstrulura rítmiczl c melódica baslame simplcs_ possibi-
litando a parlicipaçào de todos os presenlcs, pelo menos no batcr
das palmas. O choro, desde seu aparec1'menlo, exige c exibc alta
sofisncação musícal na execuçãa Já o primeiro nome do choro
de quem sc tem nolícia, o flautislu Joaquim Anlônío da Silva
Calado, ainda no século XIX. tinha aprimorada formação musical
e ccrcava~se de instrumemistas igualmentc quulificados.
Desse confron¡0. porém. n que mais nos intcressa é 0 lugar
ocupado por cada um d05 géncros dentro da socicdadc da época.
Tanto o samba quanlo 0 choro cmm cuIIivados principalmenle
por músicos negros e mestiços, mas difcriam no grau de accnação
que alcançavam por parte da comunidade branca de Classe média.
Não quer dizer que as duas formas de música se opusessem entre
sí. Ao contrário_ coexistiam de maneira complemenlar. como sc
verá em seguida. ao lado de outros ritmos praticados pclas pcs-
soas de cor. Mas ocupavam Iugares diversos no corpo sociaL aIé
mesmo se considerarmos a acepção própria dessa palavra.
O samba e 0 choro sc pralicavam e desenvolviam em reu~
niões promovidas nas residências de ccrtas famílias, de origem
predom1'nantememe baiana, que no final do século XIX se haviam
instalado no bairro da Saúde e dcpois lambém na Cidade Novzl,
Riachuclo e Lapa. Em Samba, o Duno du Corpo, Muniz Sodré
conta que “naquela região, famosos chefes de culto (ialorixás,
babaloríxa's_ babalaôs) conhecidos como liox e IÍtI.Y, pmmoviam
encontros de dança (samba), à parte dos riluais religiosus (can-
domblés)”,1 Tais reuníões constituíam uma das maneiras de as
pessoas de cor no Rio de Janeiro reforçarem suas próprias formas
de sociabilidade e ssus padrões culturais, marginalizados e con-
ludo sobreviventes em séculos de escravalura.
Destas residéncias, a mais famosa ficou sendo a de Hilária
Balista de Almeida, a lia Ciata. casada com o médico negro
João Balista da Silva, E ainda Muniz Sodré quem explicaz “Me-
láfora víva das posiçóes de re.s*istência adotadas pela comunidade
1. SODRÉ. Muniz. op. cit., p. 19.
26
negra, a casa continha os elementos idcologicamente necessários
ao comato com a sociedade glohalz 'responsabilidade' pequeno~
burguesa dos donos (0 marido era profissional Jiberal valonzado
c a esposa, uma mulata bonila e de porte gracioso); os bailes
na frcnte da casa (já que ali se execulavam músicas e danças
mais conhecidas. mais 'respeitáveis'), os sambas (onde atuava a
elite negra da ginga e do sapateadoJ nos fundos; também nos
fundos, a batucada - zerreno próprio dos negms mais velhos,
onde sc fazia presente o elememo religioso - bem pmtegido por
seus ^biombos' culturais da sala de visilas (noutras casas. poderia
deixar de haver tais 'bi0mbos': cra 0 alvará policial puro e sim-
ples)".”-
A palavra do estudioso sobre tais reuniões e a divisão de
seu cspaço é referendada pelos que delus paru'c1pavam e ajuda-
ram a fazer a hislória do choro e do samba, como Pixinguinhaz
“O choro tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, você
sabe, era mais camado nos terreiros, pelas pessoas muito humil-
des. Se havia uma festa, o choro era tocado na sala de visitas
e o samba, só no quinía|, para os empregados".3
A comparação entre os lugares reservados ao samba e ao
choro ajuda a perceber 0 enraizamento do primeiro num deter-
minado grupo sociaL o dos negros e mestiços das classes mais
desfavorecidas. Samba era coisa de preto e de pobre, e sem
dúvida por isso mcsmo, socíalmente estigmalizada. Donga nos
conta que o samba era “Considerado Coisa de negros e desordeíros,
ainda andavzl muito pers<-:guido".4 Se o choro já ganhara a sala
de visitas e podia ser percebido por quem quer que passasse, sem
risco de chocar o hurguês, o samba ainda precísava Confinar-se
no quinIaL E esse mesmo quintal já constituía uma pn'meira etapa
no processo de sua íntegração à cultura oficiaL visto que seu
lugar de eleíção, aquele que maís estreitamente Ihe estava asso-
ciad0, era o morro.
E possível que o samba não tenha se originado no morro,
c isso é negado pela maioria dos velhos sambíslas, como Heitor
dos Prazeres: “A música era feita nos bairrosz ainda não havía
favelas, nem os chamados rompnsilores de morro. O morro da
 
2› SODRE, Muniz. op› cit.. pA 20.
3. ldem, ibid. p. 62.
4. IbitL p. 53.
J
__.__,.-4
-.
i-›
.4
._.-4._.
.._.____
_......___._
.___-
Favcla era habilado só pela genle quc Irabalhava no leíto das
eslradas de ferm (mineiros.. pernambucanos c remanescenlcs da
Guerra dc Canudos). O samba original não linha, porlamo, ne-
nhuma Iigaçãn com os mnrros".-" Mas sc no morm o sambn não
nasceuv foi aí que ele se dcsenvolveu. pamlelamente à criação
e ao crcscimento das favelas_ quc vicram a ser uma espécic de
refúgio dos Sambislas c do samba, Joào da Baianm ao conteslar
lambém a origcm do szlmba no morro. só faz ratificar a estrcita
ligação que havia emre os doís. Tal Iigação se dava justamcme
em função das fronteiras quc pareciam existir enlre o morro c
o “Iá-fura". "L'\'~cmbaixo". de maneíra quc “cá-cm cima" e "cá-
dcnlro" sc pcdia escapar às pressõcs sociaís c pnlicia1's. Diz o
velhn sambistaz “O samba saiu da cidade. Nós fugíamos da
polícia e íamos para os morros fazcr samba, Não haviam essas
favelas lodasa Exi.s(iam a Favela 'dos Meus Amorcs e 0 Morru
de SãoCarlos, mais conhecido por Chácura do Céu. Nós sam-
bávamos nesscs dois morms. [. . ,] Mas o samba não nasccu no
morroy nós é que o levávamos. para fugir da polícia que nos per-
seguia. Os dclegados Meira Lima e o DrA Querubim não queriam
o samba" “
Um confronto entre a cmnología do dcsenvolvimento do
samba e a do processo de favelização dos morros cariocas reforça
a associação enlre samba e morr0/favela. O samba nasce na
virada do sc'culo. mas só comcça a scr vciculado pelo rádio no
início da década de 30. As favclas já cxislíam desde o final dn
século pasado. mas apenas a panir dos anos 40 inlegram-se ofi~
cialmeme ao complexo urbano carioca, Ambos porlanlo surgem,
crescem e adquirem parlicipação oficial na cultura da sociedadc
global cm movimenlos mais ou menos paralelos.
E preciso dcler-se na eslruturação sócio~políúca das favelas
para pcrceber o papel que o samha represenla dentro delas.
Anlhony c Elizabclh Lceds, num esludo sobre a sociologia urbana
no Bmsil e cspeciulmcme do Rio de Jancirq chamam a atenção
para o alm grau de nrganizaçãn interna observudo nas favelas
cariocas. Essa organização faz das favelas verdadeiras “localí-
dades" ((crmo que prefcrem ao de “comunidades"), as quais
5. IbitL p. 69.
ó. SECRETARIA DE EDUCAÇÀO c MUSEU DA IMAGEM E DO SOM.
in As Vazcs Desaxsombrallax do Muscu, n. l, Arlcnova, 1970. p4 63.
28
 
señam “segmentos altamente organizados da populacân Incal ca-
raclerizados por diversos graus de comrole sobrc cerlos rccursos.
cspccialmente recursus lerritoriais e de pessoaL bem como um
cenn montame de capitaL mesmo pequeno".7 Em vinudc da
organização e do controle dc recursos, toda “Iocalidade" pode
ser considerada como um Iocux de poden ainda quc Iimítado.
gcrando, potcncial ou efen'vamente. antagonismos em relação aos
poderes supralocais. como_ por exemplo. todos aqueles que cma-
nam das auloñdades constiluídas.
E evidenlc que no caso das favelas. o comrole de recurso
mais imporlante não é o que incidc sobre o lcrrl'tórío_ visto não
serem gcralmenle os moradores proprietários do imóvel quc
0cupam. nem o que íncide sobrc o capilaL mas o que se rcfere à
massa de gente. lsso vale lanlo do pomo de vista inlemo (Lceds
salienta repelidas vezes a imponância quc 05 favelados atribucm
à união, organização e Iealdade internas) como exrerno (no Rio
de Janeiro. a população das favelas e bairros mais pobrcs Cons-
lilui uma enorme parcela do eleitorado e da força dc trabalho),
A imponância da massa de geme enquanm recuno gerador
de poder é acrescida pelo fato de os favelados manlerem enlre
si lambém uma associação étnica. No fim da década de 40 c
início da de 50, 60, 95% da população das favelas cariocas era
consliluída de negros e mulalos, contra um índice de apenas 27%
de gente de cor na população geral da cidade. A predomináncna
de negros e mesliços nas favelas faz delas redutos de uma aulo-
afirmação racial que nào cnconlra Iugar fora dclas. no cspaço
domínado pelos brancos. Aí se gera a possibilidade e a necessidade
de cultivar e preservar internameme manifeslações cullurais pró-
prías à etniu negra, uma das quais é o sambal
Assim, se a idenlificação quamo à caréncia econômicaL às
formas de vida e habitação. à etnia, elc.. é um fator que motiva
e justifica a lcndência para a união e organização imernas cntre
os favcludos, o samba scrá uma das manifestaçõcs práticas dessa
lendéncia ao mesmo lcmpo que a susrcnla e impulsíona Ele não é
evídenlemente a única forma de organização ínterna nas favelas.
mas é pmvavelmente a mais importanlc. Segundo Leeds, supera
ínclusive o futeboL rcsponsável pelo aparccimento de vários clubcs
e equipes em cada favela. “O samba é um interesse tão difundido
7, LEEDS. Anrhony c Elizabelh. A Saciulogia do Brasil urbuna Rio de
laneiro, Zahar Edilorea |978. p, 38,
29
«-
«-~
-v-_
vwvmzzuzi
como o fulebol e tem uma gama c uma complexidadc de orga-
nização que provuvclmeme cxcedem cm muno às do futeboL
[. 4 .] Os Imeresses do samba tornaram~se basicamenle formall-
zadm cm escolas de sambas. blocos c Cordões, bcm como em
dubes sncials_ fcstas e assim por dianle".*
A signifxcação polílico-cullural do samba é sempre, de uma
forma ou de oulra, mais ou mcnos conscienlemcnte. percebida
pelo sambisla e manifestada em seus versos, influmdo em sua
visão do mundo em que vive e do mundo que 0 Cerca. seja esta
visão crílica ou idealizante_ Tanlo para o estudioso comu para os
sambislas em geraL o samba está associado, pclo menos nos pri-
meiros tempos de sua hislória, ao elemento negro. às classes
populares. às favelas. Enquanlo expressão das vivéncias desta
comunidade. ganha a imponância e o sentido de uma criação cole-
u'va que enseja a união e conseqüenle forlalecimento do meio
socíal no qual en1erge.
E verdade que as transformações económicas e lecnológicas
ocorridas no país a partir dos anos 30 vieram modificar pauxati-
namente o sislema de relações internas e externas das comunidades
negras e faveladelsy dc Ial maneira que se alterou o sígnificadp
do samba aos olhos dos próprios sambistas. São freqüentes as
queixas dos antigos compositores a esse respeitm como se o samba.
arrancado de seu território físico-socia1 de origem, perdesse com
isso algo de seu vigor e de seu poder de expressão_ ao mesmo
tempo que se oficíaliza enquanzo cultura nacional turística c exp0r-
tável e se desvincula de um caráter margínal quc contribuíra para
resguardar sua especificidade culturaL Em “História de Criança",
de 1940, Wilson Balista e Germano Auguslo recordam “as histórías
dc malandros / que eram lipos assím / Chinelo cara de gato / bem
brasileíro mulato / trazendo uma ginga no passo / violão debaixo
do braço". Em seguida, lamcntam 0 declínio paralelo do perso-
nagcm malandro e do samba, evídenciando uma estreita conti›
guidade entre este e aqucle: “mas agora é clifercnte ai aí / a his-
tória 1erminou / branco pode ser malandro / o samba desceu o
morro / ninguém mais escurou."
Na nostalgia melancólica da Ielra, neste samba que ninguém
mais escula, deixa-se perceber o medo do sambista de perder sau
nbjeto precioso_ seu brinqucdo exclusivo que desde criança se
8. lbid.. p. 126.
30 
associa à sua mitologia individual e comun¡'lária. Isso me leva
a considerar outro significado essencial do samha, com cerlcza
o mais evidcme de Iodos. Sc atcnlarmos para o objetivo mais
imedialo e manifesto do acontecnmemo~samba. veremos quc se
trala antes de mais nada de uma brincadeira. de uma fonte de
prazer Iúdíco para os que dele panicipaml Diversameme dos
ritmos direlamenle Iigados uos cantos de lrabalho e ao Cullo rcli~
gioso. o samba vincuIa-se essencialmente ao Iazer e ao Judismo.
E nessa clave que ele congrega parle da massa proletária: para
criar alcgria e vigor coletivos. Criar um lerritório prolegÍdO das
pressócs exIernas_ que é, simullaneamcntev um lerrilório de prazer.
com valores prÓprÍOS, que prucura preservaHe excluindo de si
os fatores que rcpresentam opressão e desprazer.
E 0 que é. no caso, o desprazer7 Para o proletário, são
antes de mais nada as caréncias materiaís da vida. ainda mais
prememes nos países do Tcrcciro Mundo, e agravadas pelas dis-
criminações c pressões de toda ordan Quais são os fatores
associados ao desprazcr? O trabalho mal remunerado e excessiva
a enorme defasagem entre as classes sociais, as relações descqui-
Iibradas c injustas entrc 0 capilal e a força dc trabalho. O sielema
de relaçóes de produção que oprime c marginalíza o trabalhador
é Iegitimado por uma ideologiu no poden e cssa ideologia con~
sagra determinados valoresz o dinheiro. o lrabalho. a família. o
respeilo à auloridade constiluída. elc. Ora. tais valores funcionam
freqüentcmentc para os eslrams suballernos como fatnree da
opressão: o dinheiro é parco. o trabalho é um imperarivo de
sobrevivência que não ofcrece compensação suficienle_ a aulori-
dade cstá sempre nas mãos do outro. Assim, esses valores que
sustcmam n desprazen dcvem ser excluídos do espaço do samha.
subsliluídns por outros, dos quaís o maior é o própriosamba
_ o próprio prazer lúdico. Estudarei adiame com maís pmfun-
didade o processo de questionamcmo e descoroamento de algum
valores burgueses c pequenmburgueses nn tcxlo do samba. cm
especial do samba malandm.
Por enquan!0, o que imporla é destacar que, nào somenle
pelo divertimento que proporc1'ona. mas sobretudo pelo seu papel
de agente unificador e mantenedor da identidade sócio-cultural
do grupu que o pralica, o samba ganha um estatuto de palri-
mônio Coletivo a ser cultuado e prcservado. Da mesma maneíra, o
31
m
nowc
3
 
espaço a ele deslinado deve ser preservado. Ele pode ser geogra-
íicamenle des|ocado, mas nào supnmido.
Quando a polícxa persegue os sambistas no início da hislória
do samba. estes vão tazer do morro o seu reduto. E o morro
passa a representar para sambistas e favelados em geral um domí-
nio com lugar rcscrvado à alegria e à liberdade, onde tem lugar
o rito do samba e onde o sujeixo se Iiherta das pressões colidianas.
da falta de dinheiro, da imposição do trabalho.
Em “Ganha-se pouco mas é divertido“. de 1940, Wilson
Batista e Cyro de Souza fazem o retrato de um morador comum
da favcla_ trabalhador e pai de famíliaz
"EIe Irabalha de segunda a sábado
Com muito goslo sem reclamar
Mas no domingo ele lira o macacão
Embandeira 0 barracão
Bota a família pra sambar
Lá no morro ele pinta 0 sele
Com ele ninguém se mete
Ali ninguém é fingido
Ganha-se pouco mas é divenido“.
Apesar de cumprir ordeiramente sua ron'na de trabalho dc
segunda a sábado. fica evideme que é só no domingo que o per~
sonagem se realiza plenamente enquanlo ser individual e comuni-
tário. quc é no espaço reservado do morro que elc se sente a
salvo das pressões exlernas. E Iá que ele “pinta o sele” e “com
ele ninguém se mete", e tudo isso se dá sob a égide de um
aconlecimenm sóci0-cuhura| parlícular, onde a padronização dos
indivíduos imposta pelo macacão deixa de vigoran Apesar da
tendéncia à idealização patente nesses versos, observa-se que eles
configuram uma verdadc particular à comunidade da favela e do
samba. verdade que se idenlifica à noção de uma sinceridade ou
autenticidade de todo o grupoz “ali ninguém é fingido".
E no morrn e no samba que 0 prolelárío lem ocasião dc
vivenciar uma realidade própria que não se confunde com a que
ele encontra “Iá-fora”, no universo onde vígoram os cànones das
classes dominanles. A oposição entre os dois universos eslá re~
forçada pelo “mas" do Ierceiro verso, e a valorização do univcrso
do samba/morro em detrimenlo do universo do dinheiro/trabalho
32
se apóia no critério do prazer e do ludísmo coletivos_ num con-
t'romo quc se eslende do personagem indiwdual para mdos os
oulros, no sujeito 1'nde¡erm¡nado: "ganha-se pouco mas é dlver-
tido".
Em 1928_ surgc no Estácio de Sá o Bloco Carnavalcsco
Deixa Falar, que viria a ser consíderado como a primeira escola
de samba. Oulras das primeiras escolas imponantes eram Iígadas
a morros e favelas. como a Mangueira (Morro de Mangueira)
e 0 Salguelro (Morro do Salgueiro). Havia também escolas de
samba fora das morros, nos subúrbios, mas estes funcionavam
ígualmenle como redutos das classes populares e do samba, ^°loca-
lidades". na terminologia de Amhony e Elizabelh Leeds. De
qualquer maneira. o samba sempre se fazia em espaços bem deter-
minados e apanados das zonas burguesas da cidade. A esse res-
pei¡o, escreveu Sérgio Cabral em Ax Escolas de Samhaz “os
mesmos fatores do desenvolvimento urbano que determinaram o
crescimento das favelas contribuíram também para o aumemo da
população suburbana carioca. Tal como os favelados, grande
pane da populaçãn suburbana era de cariocas, flum1'nenses, capi-
xabas. pemambucanos, mineiros e baianos _ nessa ordem. Em-
bora seja de bom senso acreditar~se que as camadas da população
com maiores oporlunidades no mercado de trabalho tenham pre-
ferido os subúrbios às favelas, em muilas regiões suburbanas -
entre as quais o antigo Distrito de lrajá [0nde se criaram a Por~
Iela e o Império Serrano] _ a diferença social e econômica entre
favelados e suburbanos não era muito grande“." Da semelhança
emre a composição sócio~econômica e étnica da população das
favelas e de delerminadas regiões suburbanas decorre pois a sa-
melhança entre as manifestações culluraís nos dois tipos de
localídade. Mas o espaço culturalmeme associado ao samba é
mais o morro que o subúrbio. Em 1934_ no samba “Feitiço da
Vila“. ununciando o surgimento de um novo reduto do samba
em Vila Isabel, Noel Rosa celebra os já existemesz "Salve Eslá-
cío / Salgueiro c Mangueira / Osvaldo Cruz e Matriz". Como
observa Sérgio CabraL “desses locais sÓ o Estácio e Osvaldo
Cruz não estavam nos morros, embora quando se fale em Estácio
seja obrigatório uma alusão ao Morro de São Carlos"."'
9. CABRAL Sérgio. As escolas de samba; o quê, quem. como. quanda e
porquê, Rio de Ianeiro. Fontana, 1974. p. 61.
10. lbidcm
33
4.›.-
Vm
.«.A~
A partir de 1932, a organizaçâo dos desfiles de escolas de
samba em forma de compeu'çào, e a progressiva cemralização do
imeresse turístico do carnaval nesses desílles vieram hlpenrohar
a importância das escolas demm do mundo do samba. Mas o
que podemos chamar de mundo do samba não era e não é so
a cscola. c sim um sislema de relações que se estabelecem entre
aqueles que. de alguma forma, pralicam e aprcciam o sambaA
Ele cngloba o conjunto de manifeslaçóes culturais. sociais, polí-
u'cas. que se rclacionam com o samba e todos os que dcle pam'-
cipam.
O atual gigamismo das cscolas e seu funcíonamcnto e orga-
nízação cada vez mas empresariais afaslaram delas velhos sam-
bislas quc. desgostosos com a descaractcrizaçâo que a cxplora-
çãn comercial e turística inflingiu às associações camavalescas.
dclas se retiraram c passaram a trabalhar isoladamcntc, como foi
o caso de Canola, um dos fundadores da Estação Primcira de
Mangueira. Também se constatam lemativas de reagir às imposi~
ções de natureza comercial que cada vez mais afetam a estrutura
e o funcionamemo das escolas. Assim foí que, sob ínspiração e
oríenlação do falecído Candeia, organizou-se desde alguns anos
a escola dc samba Quilombo dos Palmares. Para ela migraram
vários sambistas anligos e também jovens, como Paulinho da
Viola_ egresso da Ponela O Quilombo não participa do dcsfils
compelitivo que a Riolur promove todos os anos num investimento
milionário de capitaL e cobrando ingressos para o público espec-
tador que os próprios participantes do desfile cenameme não leriam
condíçoe's de pagar. Ele sai no camaval pelas ruas do subúrbio,
e na terça-feira desfila na Avcnida Rio Branco a part_ír da meía-
noite. Ao mcsmo tempo, procura enfatizar as origcns ncgras do
samba. Este objetivo, e a rebeldia da cscola aos cânoncs oficiais
do desfiie_ já eslão patenles no próprio nome que Ihe foi dad0, e
também nos enredos que escolhe e no plancjamenlo do desfi1e,
mais voltado para a exibição de dançañnos e inslrumemistas do
que para a opulência e sofisticação do "vísual".
Mas voltemos a 1932. Com os desfíles das escolas, o samba
desce do morro para ganhar o asfalto_ a avenida. A instítuição
do desfile, conferindo ao samba um caráter de espetáculo a ser
presenciado por um público cada vez mais heterogêneo, vem jun-
tamente com outras novidades da mcsma épocaz a difusão da
música popular pelo rádio c o incrememo da indústria fonográ-
34
fica, ocorrêncías cuja ínfluência nas funções sócío-cullurais do
samba detalharei adiante. O que imporla p.or enquamo é pcrceber
que. à mcdida que ganhava a cidade, o samba deixava de ser
fundamentalmcnte um acontecimemo no qual se promovia uma
integração ativa de um grupo socíal com caractcrísticas própñas
- ncgros, proletários, favelados, suburbanos - para íngressar
no hclcrogénco e vasto mercado do consumo culturaL
A princípio o dcsfile oficial era na Praça Onzc, transfcrin-
do-se em 1943 para a Avcnida Rio Branc0. Já em 1942 pore'm.
a Praça Onze tinha pratícamentc desaparecido com as obras dc
construção da Avcnida Presidente Vargas. A supressão de um
espaço tradicíonal do samba, o que a Praça já represcntava mcsmu
anlesdos dcsfües (era alí, na rua Visconde de Itaúna, 117. que
havia a famosa casa da tia Ciala, refcrida no início dcsle capítulo),
lança a constcrnação no meio dos sambisxas e motiva um dos
maiores sucessos carnavalescus de 1942, o samba “Praça Onze",
de Herivehço Marlins e Grande Ote|o:
“Va'o acabar com a Praça Onze
Não vai haver mais escola de samba não vai
Chora o lamborim
Chora o morro inteiro
Favela Salgueiro
Mangueira Estação Primeira
Guardai os vossos pandeiros guardai
Porque a escola de samba não sai”.
Q/
No mesmo ano porem, da autona dc Geraldo Pereira e Mo-
reira da Silva_ é lançado o samba “A Voz do Morro”, que, ao
contrário do conformismo lamcmoso dó “Praça 0nze", revela uma
disposíção dc luta para preservar o espaço do samba, deslocand0-o
sc neccssário, mas suslentando-o pela e para a união da comuní-
dadc do samba.
“Sabemos que já acabou a Praça Onze
E quc as cscolas de samba não saem
Mangueira já participou a Ponela
E está retransmitindo para o Salgueiro e Favela
Preparem seus tamboñns [. . .]
35
nw
.q.<
~...«›~w
..
Mesmo sem a Praça lodos hão de ver
Que as escolas náo delxarão de desccr
A Praça Onze acabou
Mas nÓs temos onde brincar
Por isso não vamos chorar".
A necessidade de preservar o espaço da brincadeim, seja ele
0 morm ou a avenida. sobrevinha de par com a necessidade de
preservar um espaço culturaL evitando sua comaminação e con-
lrole pelos valores que regem o “lá-f0ra". o cspaço burguês. o
espaço do trabalhnv onde vigoravam os valores c 0 poder do
rico. do branco. do outro. enfim. o sistema de valores e de poder
supralocais
Mesmo hoje em dia, quando o mundo do samba parece ler
dissolvido quase completamenle suas fromeiras e se descaracte~
rizado enquamo formação sócio-cultural hgada a uma comunidade
especificamente proletária e negm-mesliça. o impulso de auloprc›
servação cullural dessas classes que o samba represenla e velcula
ainda se pode verificar. Ainda exislem os redutos de samba nos
morros e nos subúrbios, formas de resistência se organizam, 0
signifmado do samba para a determinação de uma idemidade cole~
Iiva conlinua vivo. Tudo isso é que permíte a José Sávio Leopoldi
afirman em l977. em Escula de Samba, Rilual e Satiedade: “O
aspecto crucial para a caracterização do mundo do samba é justa~
meme a contextualízação dessa expressão musical, islo é, a deter~
mínação de seu significado cnquanlo produlo quc lransccnde a
individualidade e se idenlifica com o “ethos' de um grupamento
social específico. Esta colocação nos permilc. por cxemplo, dis-
linguir um agente do mundo do samba - um sumbisla ~ de um
compositor qualquer (de oulrus grupcs sociais) de sambas. pnis.
enquanto aquele possui o sentimemo de se definir coletivamente
em' função de sua relação Com 0 samba, islo é. que o percebe
como um elemcnto significativo no conjumo das relações quc
vivenciav para este o samba é expressão da criação artística indi~
viduaL pelo menos no sentido de que a música não desempenha
papel relevante no conjunto da atividade social do grupo a que
se integra. Impona, porlanto, destacar que o sambísta panicipa de
uma rede dc relações consubstanciadas pelo significado que o
samba assume enquanto calegoria valorízada colctivamcntc e, em
36
conseqüência. como elememo eslralégico de definição de seu uni~
verso soc1'al”.“
Para esle trabalho. importa observar um aspecto. uma forma
da eslralégia de que fala Leopoldí, talvez o maís eficaz de todos
os gêneros de samha quamo à identificação e preservação dc
seu universo cullural: o samba«malandr0.
|1. LEOPOLDL Iosé Sávio. Escolu de samba. rirual e sociedade. PelrópolíL
Vozcs, 1978, p. 4l.
37
 
3. MALANDRO: UM SER NA FRONTEIRA
3.I Ox Bamhm dn Eslário
A noção de malandro está associada à de sambísta dcsde os
anos 2(). A associação é simultânea ao processo de derivação do
samba para sua versão rítmica "moderna“. aquela que se divulgou
a partir dos fins da década de 20 nas cnaçóes do pessoal do
Estácio.
Considera-se em geral que o primeim samba a ser gravado
foi o “Pelo Telefonc“ de Donga e Mauro de Almeida, lançado
em 1917 na voz de Baiano. Na realidade. tratava-se de uma mis-
tura de samba e maxixe, conforme reconheceria o próprio Donga,
em depoimenlo que prestou em 1969 para o Museu da Imagem
e do Som: “fiz o samba, não procurando mc afastar muito do
maxixe_ música que estava bastante em voga“4' Efetivamente. no
início do século, o maxixe já conquislara um lugar nos hábixos
culturais da classe média, chegando a motivar, nos anos 20, exibi-
ções de dança em palcos curopeus. Os chamados sambistas ^°pr¡-
mitivos“, que freqüentavam a casa da Tia Ciala e outras baianas
da Saúde e da Praça Onze, que saíam nos ranchos sob a lide-
rança do Tcnente Hilário Jovino, faziam ainda, freqüememente.
um tipo de samba amaxixado, corrido Desse grupo faziam pane.
além de Donga_ João da Bahiana. Caninha, Sinhô. e, na área do
choro. Pixinguinha.
Pouco mais de dez anos separavam essa primeira geração de
sambistas, quase todos nascidos antes de 1890, do pessoal do
Eslácío, já deste séculnz Ismacl Silva_ Nílton Bastos, Bide_ Mano
Rubem, Mano Edgar. Baiaco. Brancura e outros. A nova moda-
l. As Vazes Desassombrudus do Museu, op. cíl. p. 80.
39
..._--.-......
..
 
lidade de samba que eles começaram a fazer na década de 20 se
amoldavn melhor às necessidades camavalescas. naquele tempo
em que o carnaval se popular1'zava. Iornava-se mais amplo e
movimenlado. e também, num certo sentido, mais brasileuo e mes~
u'ço. Depois das grandes sociedades e corsos de modelo europeu,
depois do império dos ranchos_ surgiam os blocos que preparavam
a futura supremacia das escolas de samba. A primena delas nas-
ceu ali mesmo no Estácio. a Deixa Falar, fundada pclos já cilados
sambistas, cntre outros. E Ismael Silva quem conta, cm entrevista
a Sérgio Cabralz “E que quando comecei, o samba da época não
dava para os grupos carnavalescos andarem na rua, conforme a
geme vê hoje em dia. O estilo não dava pm andar. Eu comecei
a notar que havia essa coisa. O samba era assimz lan taman Ian
taman. Não dava. Como é que um bloco ia andar na rua as-
sim? Aí, a geme começou a fazer um samba assim: bum bum
paticumbumprugurudum“.'-”
Breve 0 novo tipo de samba vai ¡omar coma du carnaval e
do gosto popular, mmivando inclusive uma rivalidade entre os
novos sambislas e u pessoal da velha guarda. Ainda em fins dos
anos 60, essa rivalidade veio à tona numa conversa entre Donga
e Ismael Silva, relatada por Sérgio Cabralz
^^DONGA - Ué. Samba é isso há muíto tempoz
“0 chefe da polícia
Pelo xelefone
Mandou me avisar
Oue na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogarl
ISMAEL SILVA - Isso é maxixc.
DONGA - Então_ o que é samba?
ISMAELz
^Se vocé jurar
Que me tem amor
Eu posso mc regenerar
Mas se é
Para fingir mulher
A orgia assim não vou deixar.'
2. Apud CABRAL Sérgio. op. Cít.. p. 28.
40
DONGA - lsso não é samba, E marcha".'*
Os sambistas do Estácio, que juntameme com a Cidade Nova,
Saúde, Morro da Favela, Gamboa, CatumbL Morro de São Carlos,
etc.. formava um reduto de ex-escravos e seus descendenles, foram
os primeiros a oslentar a designação de “maladros" e a orgu-
Ihar-se delal A música que eles faziam. com sua cadéncia mais
sincopada. mais apoiada na percussãa surgiu para o público com-
prador de discos com um sabor exótico que fazia realçar uma
diferença de classe. O caminho da sincopaçâo mais acentuada que
o samba tomava já era um índice de sua nova posição sócio-
culluraL Ou como disse Muniz Sodré: "A insisténcia da síncopa,
sua nalureza iteraliva, consliluem o índice de uma diferença -
entre dois modos dc significar musicalmente o temp0. enlre a
constância da divisão rílmica africana e a neccssária mobilidadz
para acolher as variadas influências brancas. Emre 0 xempo fraco
e 0 fone, irrompe a mobilização do corpov mas também o apelo a
uma volta impossíveL ao que de essencíal se perdeu com a diás-
pora negra"."
A síncopa consisle num som articulado sobre um tempo fra-
co que se prolonga no lempoforte seguime. Se a definição não
ajuda muito a compreender a que isso corresponde em ritmo vivo,
0 “bum bum palicubumprugurudum" de Ismael Snlva dá uma idéía
do que 0 samba ganhava na modalidadc do Eslácioz ginga, fnexí-
bilidade e mobilização simultáneas. A observação de Muniz Sodré
me parece muito importante na medida em que detecta, ao nível
da estrulura rítmica. um processo que se verificava Iambém a nível
sócio~cullura|. A insistência da síncopa que se acentuava no samba
do Eslácio revelava a incursão do rilmo ncgro no sistema musical
branc0. Paralelamentc, era toda uma cultura negra que enlrava
pela avemda dos brancos, pelo consumo dos brancos. Ismael Sílva
foi bem claro: aquele samba novo era feito para o bloco poder
andar, E quando 0 bloco and0u, foi para levar sua bandeira negra.
seu ritmo e sua voz própria. O samba dito ^°malandro" já surgia
em movimento, e transitando na fronteirzL Paradoxalmeme. era
pela afirmação de sua estranheza, de sua diferença_ que este sam-
ba ingressava no reconhecimento du sociedade globaL
“Pe|o lelefnne“ e outros sambas da primeira fase construíam-
3. Ibíd., p. 22.
44 SODRE. Muniz. op. ciL, p. 47,
41
 
SC ainda sobre motivos folclóricog o que engendrou freqüemes
disputas dc autoria c cn'ou terreno para a já cilada e famosa frase
de Sinhôz “Samba é como passan'nh0. E de quem pegarf Com
os sambistas do Estácio. com Ismael Sílva sobretud0, 0 samba
especificava seus autores, mas lambém sua etnia e sua classm Es-
ses sambistas Iogo ganharam na terminologia da imprensa e do
púhlico consumidor o apelido de “malandros"A Sua vocação car-
navalesca instanu-se na fesla popularÀ E a direção do samba do
Eslácio que gera e fortalece as escolas de samba. cujo primeiro
desfile competilivo, promovido pelo jomal Mundo Sporliva moti-
va neste periódico uma maléria onde se diz: “As escolas mais
célcbres da cidade, os príncipes da melodia do malandm, as *altas
patemes' do samba concorrerão ao grande campeonato. Pode-se
resumir o espetáculo assimz é a alma sonora dos morros que vai
descer para a cidadc. Todas as ladeíras. todos os morros virão.
respectivameme para a Praça Onze, teatro da Iinda cccmpeu'ção".ñ
O samba negro e prole¡a'rio irrompia no asfalto travestido de
príncipe. buscando patenle de suas criaçóes nas gravadoras da
classe dominanle branca e burguesa Mas era por aí mesmo que
ele sublinhava sua diferença e vendia seu peixe. a preços aliás
irrisórios para o “fn'sson" que provocava. Dizia o mesmo jornalr
“O público que conhece o *malandro' pelo disco ainda não sentiu\
talvez, o sabor que tem a melodia na boca do próprio “malandr0'.
O efeito é muito maior c a sugcslão é muilo inlensa. [. . .] Com
seus inslrumemos bárbaros, as escolas conseguem verdadeíros mi-
lagres, cfeitos impressionames, Para julgar, só vendo com os pró-
prios olhos. Nos morros da cidadq existem melodias ignoradas.
Nem sempre a publicidade seduz o 'malandro'_ que não raro
faz música para recreio interno ou por uma necessidade de ex-
pressão, independenle de qualquer idéia de fama ou de dinheiro".'I
A Deixa Falar e outras escolas em desfile surgiram na ave«
nida como formas de expressão em lrânsito, movimemando-se na
fronleira de Culluras e classes. Por isso lambém estes sambistas
eram vislos e se apresenlavam como “malandros“. A partír desta
posíção é que o samba tomaria diversos rumos.
Por outro Iado_ a melodia do ma|andro falava juslamente de
malandragem, orgia, vida boêmia. Também isso serviria dc pre~
5. CABRAL Sérgio. op. cít., p. 97,
64 Id. lbid, p. 95.
42
texlo para as críticas que lhc dirigiam os sambislas mais antigos.
Em 1930, Sinhô afirmou em cntrevista ao Diârio Carioca: “A
evolução do samba! Com franqueza, eu não sei se ao quc se ora
observa. devemos Chamar evoluçã0. Repare bem as músicas deslc
an04 Os seus autores. querendo introduzir-lhes novidades ou em-
bclczá~las. fogem por complelo ao ritmo do samba. O samba, mcu
caro amigo. lem a sua toada e não pode fugir dela. Os modernis-
1as. porém, escrevem umas coisas muito parecidas com marcha e
dizem 'samba'. E lá vem sempre a mesma co¡sa. 'Mulher! Mulherl
Vnu deixar a malandragem.' “A malandragem eu deixei.' 'Nossa
Senhora da Penha.' 'Nosso Senhor do Bonfim.' Enfim_ não fo›
gem disto“.7
No entanlo, o próprio SinhÕ. cenameme o compositor da
velha guarda que mais se acercou do estiln e dos assunlos do pes-
soal do Eslácio. viria a dizer num sambaz
“A malandragem
E um curso primário
Que a qualquer é bem necessário
E o arranco da prálica da vida
Que sÓ a morle decide o contra'n'o.
n~
Para a prática da vida e do samba, a malandragem fm com
efeito um “arranco“, mas que logo tomou diversos caminhos. Dos
malandros e sambístas do Estácio, uma parte iria se “regenerar"
e adolar novas posturas poéticas e ideológicas, outra permaneceria
em sua poslura malandra, Conservand0. ou não. um lugar dentro
da música popular comercializada na ép0ca. O primeiro compo-
silor do Eslácio a ter um samba gravado foi Alcebíudes Barcelos.
0 Bide. Chamava~se “A Malandragem” e foi comprado por Fran~
cisco Alves. que o lançou no carnaval de l928. Mas esle samba
já diziaz
“A^malandragem
Eu vou deixar
Eu não qucro outra vez a orgia
Mulher do meu bem querer
Esta vida não tem mais valia."
7. lbiah p. 35.
8. Apud SODRE. Muniz. op. cit.. p. 34.
43
'
I
mf
..._
wmp
 
Desta forma, o malandro surgia no disco já pronzo a se
regenerar, dividido entre a poslura malandra e a postura apaixo-
nada, a lendôncia lírica e sentimental do samba que se desenvoL
veria enormememe nus décadas seguinlcs. De fato. pouco tempo
depois. Bide abandonaria quase completamenle a primeira pela
segunda. As criaçóes de sua longa e ativa parceria com o letrista
MurçaL que formam a parte mais vasta e exprcssiva de sua obra,
restringem-se pranicamenle à lemálica Iíric0~am0rosa
Outro sambislu do Eslácio, Ismael Silva, lambém permaneceu
por muilo Iempo em atividade, Mas scu parceiro Nillon Bastos
morreu de luberculose ao 32 an05. O irmão de Bide, Rubem
Barcelos. apelidado Mano Rubem, morreu lambém tuberculoso
aos 23 anos, pouco anles dc a Deixa Falar sair às ruas pcla pri-
meíra vez, Baiaco desapareceu em I935. vitimado por uma úlcera
eslomacaL Brancura morrcu maluco no mesmo ano. Mano Edgar
foi assassinado numa briga motivada por um jogo de canas. no
Nalal de l931. Como a confirmar a imagem romântíca e desre-
grada que porlavam, os sambistas malandros do Estácio desapa-
reciam prcmalura e às vezes lragicameme. enquanto Donga, João
da Bahiana. Píxinguinha e outros da velha guarda Chegaram até
os anos 70. Poucos, como Bide c Ismael Silva. sobreviveram e
ajeilaram-se a padrões diferemes de vida e de poesia, No lugar
desses pionciros, surgiu uma nova geração de malandragem e
samba. a de Geraldo Pereira e Wilson Batisla.
3.2. Divcrsos rumos do samba
A conversão de Bide à lemálica Iírico~amorosa, no início
dos anos 30. ocupava um lugar que se abrira recenlemenle na
música popular enlão comercializada. Foi ncsta mesma época que
o samba acenluou sua d1'versificação. criando-se várias modalida-
des de melodia. ritmo e poélica
Além da oficialização dos desfiles carnavalescos em 1932,
a difusão da música popular pelo rádio a partír da mesma época
e a expansão da indúslria fonográfíca comribuíram para ímrodu-
zir o samba nu paula do consumo Cullural das classes mais abas-
ladas.” A ascensão de Getúlio Vargas na híerarquiu poh'¡ica bra~
9. A divulgação de nossa músíca popular urbana vínha sendo feila dcsde
1880 pclo leatro de rcvisla, mas aí os géncros musicais em voga eram o
lango. o Iundu. a polca e o max|x:. A partir dc 1920, princípnlmcnlc cm
44
sileira huscaria cada vez mais apoio nos sambistas para conquistar
a simpulia das massas, ao mesmo Iempo que a censura se loxnava
mais rigorosa. até alingir o ápice em l940, Com a lransformação
dos órgãos de Censura da imprensa já existcntes no Departamenm
de Imprensa e Propaganda.
Essas ocmrências e suu influência na criação poélico-musical
do samba nos anos 30e 40 serão observadas adianlc Com maior
cuidado. Por agora, basla ver car que a diversifiwção do samba
no início da década de 30 não cstava certamenle dissocíada de
sua apropriação pelas classes política c cconomicamente dom1-
nanles. enquamo instrumento de propaganda e produlo comercia~
1izável.
Em meados dos anos 30, 0 samba~canção ou samba-de-meio-
de-ano fixa-se como modalidade diversa do samba Carnavalesca
Através das emissões radiofónicas, o novo gênero rapidamenle
conquista grandes contíngentes do público urbano. Na mesma épo-
ca_ surge 0 samba-choro, produto híbrido que não chegou a sc
consliluir como um esxilo definido e duradouro. E um pouco mais
tarde. o samba “Jog0 proibid0", lunçado em 1936 na voz de Mo-
reira da Silva_ inaugura o gênero que viria a ser conhecido como
samba~de-brcque.
A diversificação rítmica do samba se faña acompanhar de
uma diversificação poética que nem sempre obedecia à delimita-
ção entre carnaval c meio-dc-ano. embora as composições muilo
melancólicas e pessímistas não fossem geralmcme lançadas no car-
navaL E nas décadas de 30 e 40 que se dão a perceber e come-
çam a lomar formas mais ou menos defínidas três grandes veios
temáticos e esulíslicos na produção de sambasz o Iírico~amoroso.
o apologétíco›nacionalisla, e o que estou chamando aqui de sam~
ha malandro. A muioria dos autores e intérpreles praticou as trés
modalidade5_ mas nunca com igual frequ"ência. O nome de Nelson
 
funcão da concorréncia oÍerecida pelo cinema e da criação do chamado
'lcnlro dc scsso'es' (o que provocuvu o cncurlamcnlo dos espcláculos)_ o
lealro de rcvisla Íoi sendo conduzido para os caminhos do 'show' e pcr-
dcndo suu imporlância no lunçamcnlo de sucessos musicais popularcs.
lá o cincma da década de 30 comribui lumbém cmbom pouco nmís
tarde que u disco c o rádio, puru u promoção socíal do samba. Em I933,
o filmc musical dc Humbcrlo Mauro "Voz do carnaval' ínaugum o chamado
ciclo curnavalcsco da indúslria cincmalogrólica brasilcirzL A parlir de 1935.
os estúdios Cinédin c Brasil-Vila produziram muilos musicais sobre lemas
ligados ao carnaval c à música populcm cnlrc os quais sc distmguiu o Íamoso
'Alô. alô, curnavn|'. dc 1936.
45
 
Gonçllves_ por exemplo. está ligndo ao veio lírico-nmoroso. en-
quanm Morcin da Silva pennanece como um dos mms notórios
represemanles da malandragem no samba. enquanlo imérprele e
evemual composnon ao lado de Jorge Vciga e oulrosq Também
se nota uma van'ação pen'ódicn na incidência de um ou oulro
ve|o. ggundo o nmor ou menor rigor da ccnsunL A propósito do
camavnl dc 1938'. diz Edigar de Alencar: “A ccnsura agorn mais
do que nunca sc faz scnlir. lsso parece. esximula a musa lín'ca dos
compositores. que fugindo aos comenlários polílicos. buscam no
folclore e na fantasia motivo para suas produçoc's".“'
0 vem Iín'co-amomso lcm como pn'ncipais temas o Amor
c a Mulhcr. vistos numa perspcctiva idcahzante c falalisuL no
mais das vczes com expressão pessimista e Iamuriosa. Molivou
composilores noláveis como Carlola. Nclson Cavaquinho e Lupi~
cínio Rodn'gucs. Canola faleceu recenlemcnle. a 30 de novembrn
de 1980. Um anigo no Jornal do Brasil do dia seguintc falava dos
poucos livros que ele dexxnra na estan¡e. “scus poelas de cabe-
ccira": Olavo Bilac, Caslro Alves. Gonçalves Dias.“ E-..tc dclalhc
vem conflrmar algo nilidamcme observávcl nas lelras dos sambas
nio npenas de Canola. mas dc Iodos aqueles que versaram a
musa lírico-amorosa naqueles anosr a influência de um discurso
literán'o. branco, burgue's. que sc faz n0lar no rebuscamento das
meláforas como nas coloraçócs idealizames. mclnncólicas c fre-
qücnlememc escapnstaç que marcam sua visão dc mundo. 'lal
obscrvaçio nio visa nbsolulamemc desvalorizar csta línha de pro›
dução_ a qual fomeceu sambas de incgável valor musical e poéli-
co. A influência não sc dá aí à mancira dc uma imilaçâo suhser-
viente do produlo origináño das classcs dom1'nanles. mas como um
manejo geralmenlc scnsível e crintivo de um lipo de linguagcm que
nâo deixavn de cxpressar siluações e cmoçôes por assim dizer
"univcrsais". Mas lambém é inegável que a univcrsidade do tema
amoroso_ favoreccndo a contaminação do discurso proletário por
valores semelhantes aJs dc um discurso burguês previamcnte es-
crilo, prcviamenlc inscrilo na cullura, tendia à oblileraçâo das
fromciras dc classc. c não à lomada de consciéncia de tais fron-
lciras. Em busca do Amor, envolvido na caréncia do 0utro, 0
sambista deíxa dc buscar c dc pôr em relevo sua própría indi-
10. ALENCAR, Edigar de, 0 camavul cariocu arravés da müxicm 3 ed..
Rlo' de llneiro, Frlncisco Alve¡, I979. p. 26|À
ll lorml do BruiL lf dc janeiro de l980. cnd. B, p I.
vidualidade culturaL Ao mesmo tempo, é possível lalvez dislinguir
nesse discurso um certo mccanismo de projcçáo. em que a Mulher
e o Amor assumem uma relevância e um poden'o. uma Caplcldlv
de de oprcssão e delcrminaçâo dos destinos do indivíduo prole~
lário. comparáveis à dominaçào cxcrcida pelos podercs econômi-
cos e polílicos. Dc qualquer maneirm o mundo du snmbista ai se
revela “invadido", regido por leis quc nâo são especnficamente ns
suas próprias. mas alheias e superiores. sejam elas o dcsu'no_ Deus
ou a fúña da paixão.
Já o samba apologético-nacionalisla. caracreríslico por exem-
plo da obra dc Ari Barroso. vinha aliar~se adequadamente às di-
relrizes ideológicas do Estado Novo. A “Aquarela do Brasi|" é
de l939. O ufanismo palrioteirq como o vcio lírico-amoroso de
cunho româmico. linha importantes antcccdemcs na produção lile~
rária culta de nossa hislória. Elc alravessa quasc toda a nossn
lu'eratura. esltá nas páginas de Alencar como nos versos de Bilac.
Por outro lado, parecc corresponder a uma tendéncia que apomci
acima no samba cm gcralz a de funcionar como catcgona da
idenlidade dc um grupo. scrvir para manIê-lo coeso c dar~|hc
consciência dc sn mesmo c de sua grandeza própria. Essa tendên~
cia deve ter facililado a difusã0, por mcio do samba. de um na-
cionalismo ingênuo c ufanisla quc vinha ao cncontro dos interes~
ses políticos do governo Vargas, Aí se formulavam as fábulas do
Brasil pobre mas alegrc, unido. alivu, o paraíso ImpicaL o Deus
brasileirm Iomando por vezcs coloraçócs chauvinislns c quase
xenófobas, como neslc samba de Wilson Batisla:
"Nào danço lango
Nem swing c nem rumba
Gosto do choro
Do baluquc e da macumba
Sou brnsilcira
Tenho a pelc da cor do sapoli
Goslo du sambu porque faz
Mcu corpo sacudir."
(“Oucro um Samba")
Como o discurso lírico~amoroso. o discurso apologético-na-
cionalista é uma postura romântica quc lende a suprimir as conlra-
47
I
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Á
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mq
l
dições inlernas, meter no mesmo saco toda a variedade de brasis
que cxistem
0 samba-malandro toma caminho diverso. O discurso apolo-
gélico-nacionalista é raro na obra de Geraldo Pereira e Wilson
Batista, muito mais ainda que o líriCo-amoroso. Não se encontra
nenhum exemplar do gênero enlre os 65 sambas estudados de
Geraldo Pereira, e apcnas 5 entre os 173 de Wílson Balista. Se
o que há de mals cxpressivo na obra de ambos, tanto do ponto de
visla da qualidade como da quantidade. é um lipo de discurso que
tende, como 0 do samba apologéliCo-nacionalista, a reforçar os
laços cullurais que conferem ao grupo sua idenlidadc, não se trata
aqui do vasto grupo dos brasilel'ros, nem do grupo também vasto
e indefinido dos cariocas. TraIa-se ao Comrário de um grupo rela~
tivamenIe restritoz o das classes baixas que habitam os morros e
alguns bairros da cidade, e mais reslritamenle ainda. do grupo
específico de semi~marginais de toda ordem. sem trabalho cons-
tanle, sem lugar bem definido no sislema sociaL a que se chamou
malandros.
Importa ver como e por quá o samba~malandro. nas décadas
de 30 e 40, parece ¡er sido o único género que. embora de ma-
neira ambivalente e dissimulada, talvez mesmo inconsciente. se
opõe à polílica simullaneamenle paternalista e conlroladora im-
posta pelo Estado Novo à culturu proletária e popular. Num certosemido, o sambista malandro é o único que continua a promover,
sob o Estado Novo, a importância da liberdade de criação popu-
Iar e da identidade cultural dos grupos negro-pro|etáríos.
3.3. 0 Carnaval e suas franteiras
Vimos que o samba do Estácio emergiu para a notoriedade
no comexto do carnavaL E preciso então que me detenha um pou-
co sobre o significado do carnaval e veja em que medida suas
formas simbólicus eslão Iigadas à linguagem malandra que procuro
caracteñzan
E sabído que o carnavaL em sua origem é uma forma de
espetáculo síncrético de caráter riluaL ligado ao culto dionisíaco.
Entre as particularidades da sítuação carnavalesca primordiaL des~
taca-se 0 fato de todos os participanles serem ativos e eslabelece~
rcm entre si um comalo Iivre e familiar que se opõe à organização
rígida e hierárquica da soc1'edade. O camaval antigo criu pois a
48
possibilidade efêmera de uma vida às avessas, ou mundo às aves-
sas. Ele proccssa simullaneamenle um coroamcnlo e um descoroa~
mento rituais. sendo a festa do tcmpo destruidor e rcgenerador,
um momento de passagem onde se exprime a relalividade alegre
de qualquer estrutura sociaL qualquer ordem, poder ou szalu quo.
Aí se festeja 0 proccsso de mudança, c não o que é mudado. Suas
categorias são funcionais, e não substanciais. Assim sendo, a lin-
guagcm carnavalcsca não arvora realidade absolutas ou perma-
ncnles. mas se fundamenta na ambivalêncía de loda realidadtL Por
isso tcnde à profanação de lodo sagrad0, à combinação e imera-
ção das coisas mais 0poslas. O carnaval está aberto para Iodos,
seu Iugar é popular e universaL mas também não propõe a inver-
sâo definitiva da ordem de poder. O Coroamemo/descoroamemo
é sempre reversíveL todos os símbolos carnavalescos comém em
perspecliva a negação e seu contrán'o.
Estes e oulros aspecms do carnaval primitivo são apontados
e estudados por Mikhail Bakhtine em La poétique de Dostoievski.
Bakhtine pane da descríção do sistema símbólico do díscurso ritual
carnavalesco para caracterizar um gênero de discurso lizerárío ao
qual ele chama “carnavah'zado“, Segundo o ensaísta. a percepção
Carnavalesca transforma o abstrato em realídade langíveL colocan-
do em cena símbolos concretos e sensíveis, dificilmentc transpo-
níveis para a linguagem falada normaL mas passívcis de incor-
poração à linguagem literária. E a essa transposição do sistema
simbólico do carnaval para a literatura que Bakhtine chama
carnavalizaçã0. O discurso carnavalizado terá assim características
ligadas à ínversão e relativização dos valores e “reais“, à ambigüi~
dade. à coexistência de elementos díspares. Ele carrega uma poliva-
lência ou polifonia interna, uma díalogia constante entre elementos
opostos que jamais chega a se resolver numa afirmação ou nega~
ção peremptória. Opo'e-se por conseguinte ao caráter monológico
da literatura clássica. a qual se apóia em verdades bem acabadas
e constituídas
Obviameme, já não existe o carnaval ritual lal como ele
era em seus primórdios gregos. O próprio carnaval popular no
Brasil e no Rio de Janeiro perdeu quase Iodos os seus traços
originais, e já começara a perdê-los ao tempo de Wilson Batista e
Geraldo Pereira, cm função sobreludo de ter sofrido um controle
e influência progrcssivos por parte do Estado e de inleresses ec0-'
micos que an carnaval se associaram. Mas os elememos fundamen~
49
 
[.
lais da situaçâo camavalesca - reviramcnto dos comportamemos
cotidianos, ludismo coleu'vo, liberação provisória cm rclação às
normas de condula 50cial e moral --, bem como suas formas de
manifestação simbólica - como a fantasia e a dança _ perma-
necem em vigon O carnaval cominua a ser para o brasileiro, ainda
que precariamcnte, uma espécie de “r¡to sem dono”, como o cha-
mou Robeno da MamL12
Por outro lado, o mundo do samba, no camaval ou fora
dele, é um mundo carnavalesco. A relação que aí se cstabclcce
entre os panicipamcs é a de uma integração no prazcr lúdico que
nega provisoñamente as fromeiras hierárquicas do sistema e pos-
sibllita a ínlegração do indivíduo no grupo através do excitamen-
to da emoção e das scnsações.
Coloca-se ponamo a queslão: a música carnavalesca vei-
cularia por princípio uma percepção carnavalizada do mundo? As
letras dos sambas e marchas de camaval seguiriam preferencial~
mente a vida do discurso dialógico e polífônico, segundo o enlen-
de Bakhlíne7
As músicas de carnaval freqüentementc exaltam a alegria
coletiva, num aparente nivelamemo das diferenças sociais que. à
primeira vis¡a, corresponde perfeitamente à vocação camavalesca
primordiaL Mas é preciso não esquecer quc, conforme salientou
Bakhtíne, esla não é somenle a festa do descoroamento da estru-
lura social vigcme, mas também de seu rccoroamento. Para um
símbolo ser carnavalesco ou carnavah'zado, ele não dcve apenas
conter em si a negação do real co¡1'díano. mas lambém o contrário
dessa negaça'o. As fantasias nunca encobrem inteiramentc os indi-
víduos reais, como os indivíduos reais não encobrem imeiramentc
suas fantasias. Aí ficam permanentemente postas em causa as pró«
prías noções de real e de famasia, e a essa oscilação e questiona-
mento conslantes das categorías da percepção é que sc pode dar
o nome de dialogia.
Com efeito, sc observarmos as letras da música camavalesca
brasileira, especialmenle as do período de que me ocupo_ verífi-
caremos que nem todo discurso que poe' em cena o ludismo cole-
tivo e oblítera as fronteiras sociais pode ser consíderado díalo'gico.
Um tipo de texto carnavalcsco -_ porém não carnavalizado _
12› Cf. DA MATTA, Robeno, CumavaiL malamlros e heróís: para uma
sociologia do dilema brasileira Rio de Ianciro. Zahar, 1979. p. 92.
50
muito comum é o que pretende esquecer, recalcar os aspeclos
negativos das relações socíais, descambando freqüemememc para
a direção da apologia nacionalista ou regionahsla. Essc discuxso
utópico~olimísta permanece cxtremameníe monológico na medida
que em que recusa ver a outra face da moeda, a da realidade
cotidiana e suas agruras; recusa deixar falar a outra voz, aquela
que revelaria as caréncias materiais e afetivas de toda ordem Nesse
tipo de samba (ou marcha, em se xratando de composição para o
carnaval), tudo aparece sob a mesma luz de grandeza e alegria
esfuziantesz a terra pátria, a mulher, as condiçõcs dc vida, tudo
fica rísonho no ¡empo de camavaL como nesta marchinha de
Lamanine Babo_ grandc sucesso de 1939:
“Salve a morena
A cor morena do Brasil fagueíro
Salve o pandeiro
Que dcsce o morro pra fazer a marcação
São são são são
Quinhemas mil morenas
Lonras cor de laranja cem mil
Salve salvc
Meu carnaval Brasil
Salve a Iourinha
Dos olhos verdcs cor da nossa mata
Salve a mulata
Cor do café a nossa grande produção
São são são são
Quínhcntas mil morenas
Louras cor de laranja cem mil
Salvc salve
Meu carnaval Brasilf
(“Hino do Camaval Brasileíro")
Nesse texto. desaparecem efetivamente as gradações hierár-
quicas entre elnias e Classes sociais. Morenas, louras e mulalas se
equivalem em brilho e brasilx'dade, o pandeiro e o café parecem
nivelar-se em imponância enquamo coisas nossas, sígnos de Bra-
sil, tudo misturado no mesmo vigor e boa disposição camavales-
cos. Porém o chto é perfeitamentc monológico, tanto quamo um
Sl
 
outro que se encarníçasse em apresentar o povo brasileíro como
um eterno sofredor que só tivesse para sí a fome, a ignorância, a
miséria. a opressão.
A modalidade mais grandiloqüente do samba apologético-na-
cionalista, cujo modclo e marco inicial é a “Aquarela do Brasil”,
de Ari Barroso, de l939, chegou a ser considerada como um
gênero específico, designado por samba-exaltação. Com a “Aqua-
rela". exaltado Iouvor das grandezas e belezas brasileiras - o que
vinha ao encontro da mítica nacionalista do Eslado Novo -, a
nossa música vai conhccer um de seus primciros grandes sucessos
de exportação. 0 próprio Ari Barroso faria a partir de emão mui~
tos outros sambas do mesmo gênero, figurando alguns deles nas
trilhas sonoras de filmes none-americanos. Em termos musicais,o samba›exallação caracterizava-se pela imponência dos arranjos
orquestrais, enquanto 0 samba, até então, normalmente se fazía
acompanhar de um simples regionaL A mesma imponência, ao
nívcl da letra, derivou numa longa linhagem da qual alé hoje
fazem parle muitos dos sambas-enredo Iançados pelas escolas em
desfüe.
Ao lado do samba-exa1tação e do otímismo nacionalista em
geraL eram lançados no meio-de-ano - e também no camaval
- composições que falavam das desgraças do coração. Assim.
ao mesmo tempo em que o veio apologético-nacionalista glorifi-
cava prazeirosamente as delícias do puís tropicaL o lírico-amoroso
comprazia-se em chorar resignadamente as mágoas que o destino
írrcdutivelmenle reservava aos corações apaixonados. Emre o oti-
mísmo despreocupado do samba~exaltação e a melancolia confor-
místa do samba-canção, ficou o samba-malandr0, a relatívizar
trístezas e alegrias em geraL
O samba-malandro jamais se reduz a um otimísmo ou pessi-
mismo exclusívos Sua poética está na fronteira entre o carnaval
e o meio-de-anov é uma poélica de dialogia. Trata~se de um dis›
curso carnavalizadq e não propriameme carnavalesco. AssinL por
exemplo. sempre que nele se exalta a inversão hierárquica produ›
zída no espaço do samba ou do carnavaL o nivelamento das
classes sociais que esse espaço enseja, é conservada uma brecha
por onde entra a voz da realidade “de fora". a realidade cotidia-
na, em que o rci não é Momo. mas o patrão, o capitaL a polícia
ou quaisquer outros famres da dominação.
52
Grcve da Alegria
“H0je amanhã e depois
Eu não vou trabalhar
Chega
Já fui escravo o ano inteíro
Mas quando chega fevereiro
O que cu quero o que eu quero é sambar
Quando a fábrica apítar
Eu quero estar na orgia
O patrão já sabe
Que eu em fevereiro
Faço a greve da alegria."
Este samba, da autoria de Wilson Balista, Roberto Robeni c
Arlíndo Marques Jr., foi lançado no carnaval de 1955, portamo
já longe do controle exercido pela diladura de Vargas. Às vezes,
também. o que se opõe à fruição carnavalesca não é 0 paVrão, mas
a “patroa". como neste samba de Geraldo Pereíra e Jorge de
Castro, de 19432
“A batucada começou
Adeus adeus
Oh minha querida eu vou
Não sei pra quê você chorar
Se quarta-feira
Eu tenho que voltar" (. . . )
(“A¡é Quarta~Feira")
Nas duas letras acima citadas, a Iiberação proporcionada
pelo carnavnl é vista como efeu'va porém transitória, relativizada
por uma outra realidade. Assim_ 0 discurso do samba-malandro
funciona de maneira semelhante à simbologia do carnaval primor~
dial, unalisada por Bakhline: ele põe em cena simultancamcme,
em perspectíva, tanto 0 descoroamemo das normas que regem a
Vída cotidiana do sujeito quanto o seu recoroamento.
Se o samba-malandro se mantém na fronteira entre a fruição
53
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lolal do espaço do samba e a problemática que aguarda 0 prole-
tário fora desse espaço, enlre 0 descoroamento carnavalesco das
classes dominantes e o seu recoroamento no reslo do ano. é por-
que o próprio malandro é um ser da fronteira. da margem Seus
domínios geográficos não são nem o morro nem os bairros dc
classe média. mas os lugares de passagem como a Lapa e o Está~
cio. Ele não sc pode classificar nem como operáño bem compor-
tado nem como criminoso comumz não é honesto mas também
não é ladrão, é malandro_ Sua mobilidade é permanente, dcla
depcnde para escapar. ainda que passage1'ramente, às pressões do
sislcma.
Verificaremos que, a todos os níveis e em Iodos os domínios
temázicos. a figura do malandro no samba e o lipo de discurso
que lhe está associado se constrói sobre esta linha fromeiriça entre
afirmação e negaçãq topia e utopia, realidade e fantasia_ A poé-
tica da malandragem é_ acima de tudo, uma poética da fronteira,
da carnavalização, da ambigu"idade.
3.4. lmagens do Malandro
“Meu Deus. eu ando
Com o sapato furado
Tenho a mania
Dc andar engravatado."
(“Cabíde de molambo". João da Bahiana)
Os conteúdos Culluralmente assocíados ao personagem ma-
landro passam pela questão baslante sígnificativa de sua imagem
visual e das transformações que ela sofreu, Já assinaleí na intro-
dução a este trabalho que o conceilo de malandragem passou por
uma grande mudança da década de 30 para a de 40, na medida
em que também mudou a forma de a socíedade e o governo an-
cararem essc personagem dentro da cultura. O malandro dos anos
30 não é o mesmo nem se vesle da mesma forma que o dos anos
40. Sob a pressão das diretrízes esladonovistas, o malandro que
era moda, o malandro anti-herói. transforma-se no “ma]andro
regenerado".
Em 1933, quando o folclore da malandragem está ainda em
plena voga e é divertidameme consumido pela sociedade em gc-
raL sobrctudo alravés da música popular, o malandro apresema
54
uma imagem bastante próxima e idenlificada com a marginalidadc
das classes economicamente subaltcrnas, conforme se podc noKar
neste samba de Wilson Batista:
“Meu chapéu de lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
De ser tão vadio."
(“Lcnço no Pescoço”)
Cínco anos depois, em pleno Estado Novo, que vinha ptos-
crever o cullo da malandragem e instaurar uma ordem ideológi-
ca bem mais rígida, voltada para o culto do trabalhador, Noel
Rosa, dando início à famosa polêmica que o oporia a Wílson
Batista_ retorquec
“Deixa de arraslar o seu tamanco
Pois mmanco nunca foi sandália
E tíra 0 lenço branco do pescoço
Compre sapato c gravata
Jogue fora esta navalha
Que lhe atrapalha
Com chapéu de lado deste rata
Da polícia qucro que escapes
Fazendo samba-canção
Eu já lhe deí papel e lápis
Arranje um amor e um violão."
(“Rapaz Folgado")
Realmente o malandr0, sob o Eslado Novo, ccdendo às
pressões da nova ordcm político-social, comprou sapato e gravala
e até passou a recusar a denominação de “malandro". Moveu-o,
sem dúvida, a preocupação de escapar à polícia. Porém não ar-
ranjou um amor. nem passou a fazer samba-canção (ao contrário_
criou o samba-de-breque, com implicações semiológicas que verei
adianle). Contínuou a ser. apesar de tudo, uma entidade da fron-
55
_
....4›
uma
Lu
w
teira, sempre perseguido pelos representantes da lei e da ordem e
scmpre se esquivando sob sua caricatura de pequcno-burguês. A
caricatura permanece todavia xão ambígua e translúcida que con-
tribui para chamar sobre ele a atenção da polícia, ao invés de des-
viá-la. Em “Senhor Delegado", Amoninho Lopes e Jaú retratam
a siluação dc um indivíduo que vai preso sob suspeita de vadia-
gem. A mancira de cle se defender perame o delcgado deixa a
entender que um dos móveis de sua detenção foi juslameme 0
trajc bem posto. E o aprumo da imagem_ que despertara as sus-
peitas dos policiais:
“Senhor delegado
Seu auxilíar eslá equivocado comigo
Eu já fui malandro
Hoje estou regenerado
Os meus documentos
Eu esqueci mas foi por distração
Comigo não
Sou rapaz honesto
Trabalhador veja só mínha mão
Sou tecelão
Se ando aIinhado
E porque gosto de andar na moda
Pois é
Se piso macio é porque tenho um calo
Que me incomoda na poma do pé."
(“Senhor Delegado")
Em relação ao proletárío, o malandro se dístingue por sua
maneíra de andar sempre bem vestído, terno branco impecáveL
elementos que aparentemente poderiam aproximá-lo dos padrões
burgueses. Mas ele não é um burgués, senão uma caricatura. uma
paródia do burguês. E por ser uma paródia, seu modo de se
apresentar íncluí aspectos de exagero e deformação tão evidentes
que o próprio trajar elegame é um dos elementos pelos quais a
polícia o identifica como malandro, e que portanto tornam a j0-
gá-lo no universo das classes oprimidas (pois burguês de verdade.
e bem vestido, não vai preso a todo momento).
Sua imagem visual se caracteriza pois por uma preocupação
56
estética (“gosto de andar na moda”), mas ao mesmo tempo pela
ambivalência, pela impressão de fanlasia ou disfarce que trans-
mite. Tal impressão advém da Conllgüidade de signos de uma
modernidade pequeno-burguesa com sxgnos de outra ordem. rela-
livos à condiçãonegra e proletária (0 “¡amanco". evidcnciado na
letra de Noel como sendo diferente de “sandália”, a “gínga"), à
postura margínal em relação à sociedade bem Comportada (“na-
valha no bolso“, falta de documentos) e finalmenle à manuiem
Ção de uma tradição étnica e sociaL Por tudo isso. mesmo quando
se veste no rigor da moda, o malandro apenas parece um “'bom
moço" (onde fica sublendido que ele não é um “bom moço"),
como na evocação de Wilson Batista e Nássara em 19522
“Fave|a
Não perdeu a Iradiçào
Eu morei lá
No Iempo do lampião
Minha cabrocha ao lado
Eu parecia um bom moço
Tinha um chinelo charlote
E um lenço no pescoço."
(“Hislória da Favela")
Tal é o estilo ambivalente do malandro. que marcará analo-
gamenle sua linguagem, sua poética. Eleganlemenle vestido_ está
1ravestido de bom moçoz é malandro.
Em ^'Olha o Padilha“, Moreira da Silva, Bruno e Ferreira
Gomes contam uma história baseada em personagem real, o
comissário Deraldo Padilha, o quaL segundo relato do próprio
Moreíra, atuava na área do centro da cidade e era muito temid0.
Na época estava em moda a calça “boca de chorro", isto é, com_
a boca estreiuL O Padilha. quando pegava um indivíduo vestido
daquele jeit0, Costumava enfiar-lhe um limão pelas calças adentro
para tcstar a eslreiteza da boca. Se o limão ficasse retido na bai-
nha, o comissário mandava cortar as calças do sujeito.
Quando Moreira da Silva me contou essa hislória, pergun-
teí-lhe se a tal calça de boca estreita era uso corrente apenas
entre os delinqüentes ou gente suspeila. Não, respondeu cle, era
moda que Iodo mundo usava, “filhinho de papai lambém". Para
o comissário Padilha no entanto (pelo menos no texto). tal moda
57
se convcrtc cm signo de malandragem, ainda mais se combinada
ao uso da cabeleira grande, esla sim, segundo Moreira. “coisa de
malandro“, Por aí cxplica-se então a hislória de “Olha o Padilha".
em que 0 sujeit0, ao sair da gafieira com sua “nega Cecília", tcm
o azar de cair nas mãos do temido deJegadm
“Pra se Iopar uma encrenca
Basla andar distraído
Quc ela um dia aparece
Não adianta fazer prece
Eu vinha da gafieira com a minha nega Cecília
Quando alguém grilou: _ Olha o Padilha!
Ames que eu me desviasse
Um lira fone aborrecido me abotoou
E dissc tu és o Nonô hein
Mas eu me chamo Francísco
Trabalho como um mouro sou estivador
Posso provar ao senhor
Nisso o moço de óculos rayban
Me deu um pescoção
Bati com a cara no chão
E foi dizendo eu só queria saber
Quem disse que és trabalhador
Tu és salafra achacador
Essa macaca a Ieu lado
E uma mina mais forte que o Banco do Brasil
Eu manjo ao longe esse tiziu
E jogou uma melancia
Pela minha calça adentro que engasgou no funil
Eu bambcci ele sorriu
Apanhcu uma 1esoura
E o resuhado dessa opcração
Foi que a calça virou calção
Na chefatura um barbeíro sorridentc estava à minha espcra
Ele ordenou raspa o cabelo dessa fera
Não eslá direito seu Padilha
Me deixar Com o coco raspado
Eu já apanhei um resfríado
lsso não é brincadeira
Pois meu apelido era Chico Cabele1'ra."
São ponanto lrcs os elementOS que tornam o indivíduo sus-
peito aos olhos do policíalz a calça boca de funiL a presença da
negra a seu Iado (desper¡ando no comissário uma amude precon-
ccituosa revelada nos termos “macaca" e “tizíu". que é um pas-
sarinho preto), e a cabeleira comprída, O Padilha acrcdita pois
que o sujeito é um malandro. com “profíssão" típica de malandro:
gigolô sustentado pcla prostituta (“essa macaca a leu lado / é
uma mina mais forte quc o Banco do Brasil")4 E a puníção un'›
posla ao sujcito é juslamcntc a deslruição de seu aparato visuaL
0 desnudamento do malandro que lhc rouba os sígnos e a idemi~
dade malandra.
Aniculando signos de dois mundos e não pertencendo intei-
ramente a nenhum. o malandro se caracteriza, em todas as ins›
tâncias, pela dialogía e pela ambigu"idade, o que faz com que elc
nunca se estratifique numa posiçâo definitiva. Como os persona-
gens carnavalizados estudados por Bakhtine, ele se dirige para uma
autodefinição que todavia permanece incompleta, e que também
nunca é estalicamcnle formulada no samba.
Diz o malandro ao delegadoz “se piso macio é porque lenho
um calo / que me incomoda na poma do pé“. Como o símbolo
carnavalesco, ele comém em si. em perspecliva, a negação (o
“pisar macio”, negação de sua condição subaltema, “grosseira“,
na escala social) e seu contrário (o calo no pé. a dificuldade de
viver_ o recoroamcnto de uma realidadc que o condiciona e
oprime).
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