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Coleção LITERATURA E TEORIA LITERÁRIA VoL 46 Direção2 Amonio Callado Antonio Candido Roberto Schwarz n M À l CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Maxos. Cláudia Neiva de. Acertei no milhar : malandragem e samba no lempo de Getúlio / Cláudia Neíva de Matos. - Rio de Janeiro : Paz e Terra, l982. M38|a (Coleçã0 Litcratura e teoria literáría; v. 46) Bibliografia. 1. Música popular - Brasíl - Híslória e crítica 2. Músicns brasileirns I. Título II. Série CDD - 780.420981 927.8042 CDU - 784.4(81 ) 78,071(8] )82-0448 EDITORA PAZ E TERRA Coruelho Editorial: Antonio Candido Celso Furlado Fernando Gasparian Fernando Henríque Cardoso l'\_____*r CLÁUDIA MATOS ACERTEI NO MILHAR Malandragem e Samba no Tempo dc Getúlío PAZ E TERRA 2. 0 SAMBA E SEU LUGAR A diversidade encomrada denlro do conjunto dc textos que formam o corpus deste Irabalho aponta para a necessidade de considerar 0 tema da malandragem não de maneira isolada. mas dentro do conjunto de temas c linguagens com os quais ele se relaciona, pela idenlídadc de veículo c pelo supone sócio›cultural: o samba e a produção culxural das classes popularesA Não é inútil lembrar aqui Todorov quc, cm Eslruzuralismo e Poética, insiste sobre uma idéia aparcntemente simples e óhvia_ mas ainda assím fundamentalz que 0 sentido de uma obra só se revela por imeiro se a considerarmos dentm do conjumo de obras que lhe são relacionadas no tempo, no espaç0. na oricnlação ideológica e formal; e que um conjunto de obras também deve ser apreciado dentro do Conjumo maior da cultura onde elas brmam, e assim sucessivamenlc. O que temarei elucidar a partir da inserção da tendência malandra do samba no universo de lendências identifi- cáveis nas letras de nossa canção popular urbana. é dc que ma- neira ela apresema simultaneamente uma idemidade e um desvio em relação a esse universo. No início do século XX. anles de ganhar versos, o samba surge como ritmo. dança c folguedo coletivos - palmas. batuqu.=. eslribilhos cantados, aos quais posterinrmcnte se acrescemariam estâncias mais longas. Algumas décadas antcs. como gônero exclu- sivamemc inslrumemaL havia aparecido o choro. Tais sa'o. com certeza, as duas mais impormntcs modalidadcs da músíca popular can'oca. Uma breve comparação entre elas servirá para esclarecer melhor as implicações sócio c político~cullurais do samba. Este é de orígem negra e proletáría_ enquanlo o Choro vem de matriz 25 branca c das classes mais favorccidas: nn origem_ cm um modo parucular de o múswo populur cxecutar a muswa Imponadn quc na scgunda mctade do scculo XIX animava nossos bzulcs c salõcs eleganles. O samba sc conslro'i, sobreludo no início de sua histo'ria. sobre uma cstrulura rítmiczl c melódica baslame simplcs_ possibi- litando a parlicipaçào de todos os presenlcs, pelo menos no batcr das palmas. O choro, desde seu aparec1'menlo, exige c exibc alta sofisncação musícal na execuçãa Já o primeiro nome do choro de quem sc tem nolícia, o flautislu Joaquim Anlônío da Silva Calado, ainda no século XIX. tinha aprimorada formação musical e ccrcava~se de instrumemistas igualmentc quulificados. Desse confron¡0. porém. n que mais nos intcressa é 0 lugar ocupado por cada um d05 géncros dentro da socicdadc da época. Tanto o samba quanlo 0 choro cmm cuIIivados principalmenle por músicos negros e mestiços, mas difcriam no grau de accnação que alcançavam por parte da comunidade branca de Classe média. Não quer dizer que as duas formas de música se opusessem entre sí. Ao contrário_ coexistiam de maneira complemenlar. como sc verá em seguida. ao lado de outros ritmos praticados pclas pcs- soas de cor. Mas ocupavam Iugares diversos no corpo sociaL aIé mesmo se considerarmos a acepção própria dessa palavra. O samba e 0 choro sc pralicavam e desenvolviam em reu~ niões promovidas nas residências de ccrtas famílias, de origem predom1'nantememe baiana, que no final do século XIX se haviam instalado no bairro da Saúde e dcpois lambém na Cidade Novzl, Riachuclo e Lapa. Em Samba, o Duno du Corpo, Muniz Sodré conta que “naquela região, famosos chefes de culto (ialorixás, babaloríxa's_ babalaôs) conhecidos como liox e IÍtI.Y, pmmoviam encontros de dança (samba), à parte dos riluais religiosus (can- domblés)”,1 Tais reuníões constituíam uma das maneiras de as pessoas de cor no Rio de Janeiro reforçarem suas próprias formas de sociabilidade e ssus padrões culturais, marginalizados e con- ludo sobreviventes em séculos de escravalura. Destas residéncias, a mais famosa ficou sendo a de Hilária Balista de Almeida, a lia Ciata. casada com o médico negro João Balista da Silva, E ainda Muniz Sodré quem explicaz “Me- láfora víva das posiçóes de re.s*istência adotadas pela comunidade 1. SODRÉ. Muniz. op. cit., p. 19. 26 negra, a casa continha os elementos idcologicamente necessários ao comato com a sociedade glohalz 'responsabilidade' pequeno~ burguesa dos donos (0 marido era profissional Jiberal valonzado c a esposa, uma mulata bonila e de porte gracioso); os bailes na frcnte da casa (já que ali se execulavam músicas e danças mais conhecidas. mais 'respeitáveis'), os sambas (onde atuava a elite negra da ginga e do sapateadoJ nos fundos; também nos fundos, a batucada - zerreno próprio dos negms mais velhos, onde sc fazia presente o elememo religioso - bem pmtegido por seus ^biombos' culturais da sala de visilas (noutras casas. poderia deixar de haver tais 'bi0mbos': cra 0 alvará policial puro e sim- ples)".”- A palavra do estudioso sobre tais reuniões e a divisão de seu cspaço é referendada pelos que delus paru'c1pavam e ajuda- ram a fazer a hislória do choro e do samba, como Pixinguinhaz “O choro tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, você sabe, era mais camado nos terreiros, pelas pessoas muito humil- des. Se havia uma festa, o choro era tocado na sala de visitas e o samba, só no quinía|, para os empregados".3 A comparação entre os lugares reservados ao samba e ao choro ajuda a perceber 0 enraizamento do primeiro num deter- minado grupo sociaL o dos negros e mestiços das classes mais desfavorecidas. Samba era coisa de preto e de pobre, e sem dúvida por isso mcsmo, socíalmente estigmalizada. Donga nos conta que o samba era “Considerado Coisa de negros e desordeíros, ainda andavzl muito pers<-:guido".4 Se o choro já ganhara a sala de visitas e podia ser percebido por quem quer que passasse, sem risco de chocar o hurguês, o samba ainda precísava Confinar-se no quinIaL E esse mesmo quintal já constituía uma pn'meira etapa no processo de sua íntegração à cultura oficiaL visto que seu lugar de eleíção, aquele que maís estreitamente Ihe estava asso- ciad0, era o morro. E possível que o samba não tenha se originado no morro, c isso é negado pela maioria dos velhos sambíslas, como Heitor dos Prazeres: “A música era feita nos bairrosz ainda não havía favelas, nem os chamados rompnsilores de morro. O morro da 2› SODRE, Muniz. op› cit.. pA 20. 3. ldem, ibid. p. 62. 4. IbitL p. 53. J __.__,.-4 -. i-› .4 ._.-4._. .._.____ _......___._ .___- Favcla era habilado só pela genle quc Irabalhava no leíto das eslradas de ferm (mineiros.. pernambucanos c remanescenlcs da Guerra dc Canudos). O samba original não linha, porlamo, ne- nhuma Iigaçãn com os mnrros".-" Mas sc no morm o sambn não nasceuv foi aí que ele se dcsenvolveu. pamlelamente à criação e ao crcscimento das favelas_ quc vicram a ser uma espécic de refúgio dos Sambislas c do samba, Joào da Baianm ao conteslar lambém a origcm do szlmba no morro. só faz ratificar a estrcita ligação que havia emre os doís. Tal Iigação se dava justamcme em função das fronteiras quc pareciam existir enlre o morro c o “Iá-fura". "L'\'~cmbaixo". de maneíra quc “cá-cm cima" e "cá- dcnlro" sc pcdia escapar às pressõcs sociaís c pnlicia1's. Diz o velhn sambistaz “O samba saiu da cidade. Nós fugíamos da polícia e íamos para os morros fazcr samba, Não haviam essas favelas lodasa Exi.s(iam a Favela 'dos Meus Amorcs e 0 Morru de SãoCarlos, mais conhecido por Chácura do Céu. Nós sam- bávamos nesscs dois morms. [. . ,] Mas o samba não nasccu no morroy nós é que o levávamos. para fugir da polícia que nos per- seguia. Os dclegados Meira Lima e o DrA Querubim não queriam o samba" “ Um confronto entre a cmnología do dcsenvolvimento do samba e a do processo de favelização dos morros cariocas reforça a associação enlre samba e morr0/favela. O samba nasce na virada do sc'culo. mas só comcça a scr vciculado pelo rádio no início da década de 30. As favclas já cxislíam desde o final dn século pasado. mas apenas a panir dos anos 40 inlegram-se ofi~ cialmeme ao complexo urbano carioca, Ambos porlanlo surgem, crescem e adquirem parlicipação oficial na cultura da sociedadc global cm movimenlos mais ou menos paralelos. E preciso dcler-se na eslruturação sócio~políúca das favelas para pcrceber o papel que o samha represenla dentro delas. Anlhony c Elizabclh Lceds, num esludo sobre a sociologia urbana no Bmsil e cspeciulmcme do Rio de Jancirq chamam a atenção para o alm grau de nrganizaçãn interna observudo nas favelas cariocas. Essa organização faz das favelas verdadeiras “localí- dades" ((crmo que prefcrem ao de “comunidades"), as quais 5. IbitL p. 69. ó. SECRETARIA DE EDUCAÇÀO c MUSEU DA IMAGEM E DO SOM. in As Vazcs Desaxsombrallax do Muscu, n. l, Arlcnova, 1970. p4 63. 28 señam “segmentos altamente organizados da populacân Incal ca- raclerizados por diversos graus de comrole sobrc cerlos rccursos. cspccialmente recursus lerritoriais e de pessoaL bem como um cenn montame de capitaL mesmo pequeno".7 Em vinudc da organização e do controle dc recursos, toda “Iocalidade" pode ser considerada como um Iocux de poden ainda quc Iimítado. gcrando, potcncial ou efen'vamente. antagonismos em relação aos poderes supralocais. como_ por exemplo. todos aqueles que cma- nam das auloñdades constiluídas. E evidenlc que no caso das favelas. o comrole de recurso mais imporlante não é o que incidc sobre o lcrrl'tórío_ visto não serem gcralmenle os moradores proprietários do imóvel quc 0cupam. nem o que íncide sobrc o capilaL mas o que se rcfere à massa de gente. lsso vale lanlo do pomo de vista inlemo (Lceds salienta repelidas vezes a imponância quc 05 favelados atribucm à união, organização e Iealdade internas) como exrerno (no Rio de Janeiro. a população das favelas e bairros mais pobrcs Cons- lilui uma enorme parcela do eleitorado e da força dc trabalho), A imponância da massa de geme enquanm recuno gerador de poder é acrescida pelo fato de os favelados manlerem enlre si lambém uma associação étnica. No fim da década de 40 c início da de 50, 60, 95% da população das favelas cariocas era consliluída de negros e mulalos, contra um índice de apenas 27% de gente de cor na população geral da cidade. A predomináncna de negros e mesliços nas favelas faz delas redutos de uma aulo- afirmação racial que nào cnconlra Iugar fora dclas. no cspaço domínado pelos brancos. Aí se gera a possibilidade e a necessidade de cultivar e preservar internameme manifeslações cullurais pró- prías à etniu negra, uma das quais é o sambal Assim, se a idenlificação quamo à caréncia econômicaL às formas de vida e habitação. à etnia, elc.. é um fator que motiva e justifica a lcndência para a união e organização imernas cntre os favcludos, o samba scrá uma das manifestaçõcs práticas dessa lendéncia ao mesmo lcmpo que a susrcnla e impulsíona Ele não é evídenlemente a única forma de organização ínterna nas favelas. mas é pmvavelmente a mais importanlc. Segundo Leeds, supera ínclusive o futeboL rcsponsável pelo aparccimento de vários clubcs e equipes em cada favela. “O samba é um interesse tão difundido 7, LEEDS. Anrhony c Elizabelh. A Saciulogia do Brasil urbuna Rio de laneiro, Zahar Edilorea |978. p, 38, 29 «- «-~ -v-_ vwvmzzuzi como o fulebol e tem uma gama c uma complexidadc de orga- nização que provuvclmeme cxcedem cm muno às do futeboL [. 4 .] Os Imeresses do samba tornaram~se basicamenle formall- zadm cm escolas de sambas. blocos c Cordões, bcm como em dubes sncials_ fcstas e assim por dianle".* A signifxcação polílico-cullural do samba é sempre, de uma forma ou de oulra, mais ou mcnos conscienlemcnte. percebida pelo sambisla e manifestada em seus versos, influmdo em sua visão do mundo em que vive e do mundo que 0 Cerca. seja esta visão crílica ou idealizante_ Tanlo para o estudioso comu para os sambislas em geraL o samba está associado, pclo menos nos pri- meiros tempos de sua hislória, ao elemento negro. às classes populares. às favelas. Enquanlo expressão das vivéncias desta comunidade. ganha a imponância e o sentido de uma criação cole- u'va que enseja a união e conseqüenle forlalecimento do meio socíal no qual en1erge. E verdade que as transformações económicas e lecnológicas ocorridas no país a partir dos anos 30 vieram modificar pauxati- namente o sislema de relações internas e externas das comunidades negras e faveladelsy dc Ial maneira que se alterou o sígnificadp do samba aos olhos dos próprios sambistas. São freqüentes as queixas dos antigos compositores a esse respeitm como se o samba. arrancado de seu território físico-socia1 de origem, perdesse com isso algo de seu vigor e de seu poder de expressão_ ao mesmo tempo que se oficíaliza enquanzo cultura nacional turística c exp0r- tável e se desvincula de um caráter margínal quc contribuíra para resguardar sua especificidade culturaL Em “História de Criança", de 1940, Wilson Balista e Germano Auguslo recordam “as histórías dc malandros / que eram lipos assím / Chinelo cara de gato / bem brasileíro mulato / trazendo uma ginga no passo / violão debaixo do braço". Em seguida, lamcntam 0 declínio paralelo do perso- nagcm malandro e do samba, evídenciando uma estreita conti› guidade entre este e aqucle: “mas agora é clifercnte ai aí / a his- tória 1erminou / branco pode ser malandro / o samba desceu o morro / ninguém mais escurou." Na nostalgia melancólica da Ielra, neste samba que ninguém mais escula, deixa-se perceber o medo do sambista de perder sau nbjeto precioso_ seu brinqucdo exclusivo que desde criança se 8. lbid.. p. 126. 30 associa à sua mitologia individual e comun¡'lária. Isso me leva a considerar outro significado essencial do samha, com cerlcza o mais evidcme de Iodos. Sc atcnlarmos para o objetivo mais imedialo e manifesto do acontecnmemo~samba. veremos quc se trala antes de mais nada de uma brincadeira. de uma fonte de prazer Iúdíco para os que dele panicipaml Diversameme dos ritmos direlamenle Iigados uos cantos de lrabalho e ao Cullo rcli~ gioso. o samba vincuIa-se essencialmente ao Iazer e ao Judismo. E nessa clave que ele congrega parle da massa proletária: para criar alcgria e vigor coletivos. Criar um lerritório prolegÍdO das pressócs exIernas_ que é, simullaneamcntev um lerrilório de prazer. com valores prÓprÍOS, que prucura preservaHe excluindo de si os fatores que rcpresentam opressão e desprazer. E 0 que é. no caso, o desprazer7 Para o proletário, são antes de mais nada as caréncias materiaís da vida. ainda mais prememes nos países do Tcrcciro Mundo, e agravadas pelas dis- criminações c pressões de toda ordan Quais são os fatores associados ao desprazcr? O trabalho mal remunerado e excessiva a enorme defasagem entre as classes sociais, as relações descqui- Iibradas c injustas entrc 0 capilal e a força dc trabalho. O sielema de relaçóes de produção que oprime c marginalíza o trabalhador é Iegitimado por uma ideologiu no poden e cssa ideologia con~ sagra determinados valoresz o dinheiro. o lrabalho. a família. o respeilo à auloridade constiluída. elc. Ora. tais valores funcionam freqüentcmentc para os eslrams suballernos como fatnree da opressão: o dinheiro é parco. o trabalho é um imperarivo de sobrevivência que não ofcrece compensação suficienle_ a aulori- dade cstá sempre nas mãos do outro. Assim, esses valores que sustcmam n desprazen dcvem ser excluídos do espaço do samha. subsliluídns por outros, dos quaís o maior é o própriosamba _ o próprio prazer lúdico. Estudarei adiame com maís pmfun- didade o processo de questionamcmo e descoroamento de algum valores burgueses c pequenmburgueses nn tcxlo do samba. cm especial do samba malandm. Por enquan!0, o que imporla é destacar que, nào somenle pelo divertimento que proporc1'ona. mas sobretudo pelo seu papel de agente unificador e mantenedor da identidade sócio-cultural do grupu que o pralica, o samba ganha um estatuto de palri- mônio Coletivo a ser cultuado e prcservado. Da mesma maneíra, o 31 m nowc 3 espaço a ele deslinado deve ser preservado. Ele pode ser geogra- íicamenle des|ocado, mas nào supnmido. Quando a polícxa persegue os sambistas no início da hislória do samba. estes vão tazer do morro o seu reduto. E o morro passa a representar para sambistas e favelados em geral um domí- nio com lugar rcscrvado à alegria e à liberdade, onde tem lugar o rito do samba e onde o sujeixo se Iiherta das pressões colidianas. da falta de dinheiro, da imposição do trabalho. Em “Ganha-se pouco mas é divertido“. de 1940, Wilson Batista e Cyro de Souza fazem o retrato de um morador comum da favcla_ trabalhador e pai de famíliaz "EIe Irabalha de segunda a sábado Com muito goslo sem reclamar Mas no domingo ele lira o macacão Embandeira 0 barracão Bota a família pra sambar Lá no morro ele pinta 0 sele Com ele ninguém se mete Ali ninguém é fingido Ganha-se pouco mas é divenido“. Apesar de cumprir ordeiramente sua ron'na de trabalho dc segunda a sábado. fica evideme que é só no domingo que o per~ sonagem se realiza plenamente enquanlo ser individual e comuni- tário. quc é no espaço reservado do morro que elc se sente a salvo das pressões exlernas. E Iá que ele “pinta o sele” e “com ele ninguém se mete", e tudo isso se dá sob a égide de um aconlecimenm sóci0-cuhura| parlícular, onde a padronização dos indivíduos imposta pelo macacão deixa de vigoran Apesar da tendéncia à idealização patente nesses versos, observa-se que eles configuram uma verdadc particular à comunidade da favela e do samba. verdade que se idenlifica à noção de uma sinceridade ou autenticidade de todo o grupoz “ali ninguém é fingido". E no morrn e no samba que 0 prolelárío lem ocasião dc vivenciar uma realidade própria que não se confunde com a que ele encontra “Iá-fora”, no universo onde vígoram os cànones das classes dominanles. A oposição entre os dois universos eslá re~ forçada pelo “mas" do Ierceiro verso, e a valorização do univcrso do samba/morro em detrimenlo do universo do dinheiro/trabalho 32 se apóia no critério do prazer e do ludísmo coletivos_ num con- t'romo quc se eslende do personagem indiwdual para mdos os oulros, no sujeito 1'nde¡erm¡nado: "ganha-se pouco mas é dlver- tido". Em 1928_ surgc no Estácio de Sá o Bloco Carnavalcsco Deixa Falar, que viria a ser consíderado como a primeira escola de samba. Oulras das primeiras escolas imponantes eram Iígadas a morros e favelas. como a Mangueira (Morro de Mangueira) e 0 Salguelro (Morro do Salgueiro). Havia também escolas de samba fora das morros, nos subúrbios, mas estes funcionavam ígualmenle como redutos das classes populares e do samba, ^°loca- lidades". na terminologia de Amhony e Elizabelh Leeds. De qualquer maneira. o samba sempre se fazia em espaços bem deter- minados e apanados das zonas burguesas da cidade. A esse res- pei¡o, escreveu Sérgio Cabral em Ax Escolas de Samhaz “os mesmos fatores do desenvolvimento urbano que determinaram o crescimento das favelas contribuíram também para o aumemo da população suburbana carioca. Tal como os favelados, grande pane da populaçãn suburbana era de cariocas, flum1'nenses, capi- xabas. pemambucanos, mineiros e baianos _ nessa ordem. Em- bora seja de bom senso acreditar~se que as camadas da população com maiores oporlunidades no mercado de trabalho tenham pre- ferido os subúrbios às favelas, em muilas regiões suburbanas - entre as quais o antigo Distrito de lrajá [0nde se criaram a Por~ Iela e o Império Serrano] _ a diferença social e econômica entre favelados e suburbanos não era muito grande“." Da semelhança emre a composição sócio~econômica e étnica da população das favelas e de delerminadas regiões suburbanas decorre pois a sa- melhança entre as manifestações culluraís nos dois tipos de localídade. Mas o espaço culturalmeme associado ao samba é mais o morro que o subúrbio. Em 1934_ no samba “Feitiço da Vila“. ununciando o surgimento de um novo reduto do samba em Vila Isabel, Noel Rosa celebra os já existemesz "Salve Eslá- cío / Salgueiro c Mangueira / Osvaldo Cruz e Matriz". Como observa Sérgio CabraL “desses locais sÓ o Estácio e Osvaldo Cruz não estavam nos morros, embora quando se fale em Estácio seja obrigatório uma alusão ao Morro de São Carlos"."' 9. CABRAL Sérgio. As escolas de samba; o quê, quem. como. quanda e porquê, Rio de Ianeiro. Fontana, 1974. p. 61. 10. lbidcm 33 4.›.- Vm .«.A~ A partir de 1932, a organizaçâo dos desfiles de escolas de samba em forma de compeu'çào, e a progressiva cemralização do imeresse turístico do carnaval nesses desílles vieram hlpenrohar a importância das escolas demm do mundo do samba. Mas o que podemos chamar de mundo do samba não era e não é so a cscola. c sim um sislema de relações que se estabelecem entre aqueles que. de alguma forma, pralicam e aprcciam o sambaA Ele cngloba o conjunto de manifeslaçóes culturais. sociais, polí- u'cas. que se rclacionam com o samba e todos os que dcle pam'- cipam. O atual gigamismo das cscolas e seu funcíonamcnto e orga- nízação cada vez mas empresariais afaslaram delas velhos sam- bislas quc. desgostosos com a descaractcrizaçâo que a cxplora- çãn comercial e turística inflingiu às associações camavalescas. dclas se retiraram c passaram a trabalhar isoladamcntc, como foi o caso de Canola, um dos fundadores da Estação Primcira de Mangueira. Também se constatam lemativas de reagir às imposi~ ções de natureza comercial que cada vez mais afetam a estrutura e o funcionamemo das escolas. Assim foí que, sob ínspiração e oríenlação do falecído Candeia, organizou-se desde alguns anos a escola dc samba Quilombo dos Palmares. Para ela migraram vários sambistas anligos e também jovens, como Paulinho da Viola_ egresso da Ponela O Quilombo não participa do dcsfils compelitivo que a Riolur promove todos os anos num investimento milionário de capitaL e cobrando ingressos para o público espec- tador que os próprios participantes do desfile cenameme não leriam condíçoe's de pagar. Ele sai no camaval pelas ruas do subúrbio, e na terça-feira desfila na Avcnida Rio Branco a part_ír da meía- noite. Ao mcsmo tempo, procura enfatizar as origcns ncgras do samba. Este objetivo, e a rebeldia da cscola aos cânoncs oficiais do desfiie_ já eslão patenles no próprio nome que Ihe foi dad0, e também nos enredos que escolhe e no plancjamenlo do desfi1e, mais voltado para a exibição de dançañnos e inslrumemistas do que para a opulência e sofisticação do "vísual". Mas voltemos a 1932. Com os desfíles das escolas, o samba desce do morro para ganhar o asfalto_ a avenida. A instítuição do desfile, conferindo ao samba um caráter de espetáculo a ser presenciado por um público cada vez mais heterogêneo, vem jun- tamente com outras novidades da mcsma épocaz a difusão da música popular pelo rádio c o incrememo da indústria fonográ- 34 fica, ocorrêncías cuja ínfluência nas funções sócío-cullurais do samba detalharei adiante. O que imporla p.or enquamo é pcrceber que. à mcdida que ganhava a cidade, o samba deixava de ser fundamentalmcnte um acontecimemo no qual se promovia uma integração ativa de um grupo socíal com caractcrísticas própñas - ncgros, proletários, favelados, suburbanos - para íngressar no hclcrogénco e vasto mercado do consumo culturaL A princípio o dcsfile oficial era na Praça Onzc, transfcrin- do-se em 1943 para a Avcnida Rio Branc0. Já em 1942 pore'm. a Praça Onze tinha pratícamentc desaparecido com as obras dc construção da Avcnida Presidente Vargas. A supressão de um espaço tradicíonal do samba, o que a Praça já represcntava mcsmu anlesdos dcsfües (era alí, na rua Visconde de Itaúna, 117. que havia a famosa casa da tia Ciala, refcrida no início dcsle capítulo), lança a constcrnação no meio dos sambisxas e motiva um dos maiores sucessos carnavalescus de 1942, o samba “Praça Onze", de Herivehço Marlins e Grande Ote|o: “Va'o acabar com a Praça Onze Não vai haver mais escola de samba não vai Chora o lamborim Chora o morro inteiro Favela Salgueiro Mangueira Estação Primeira Guardai os vossos pandeiros guardai Porque a escola de samba não sai”. Q/ No mesmo ano porem, da autona dc Geraldo Pereira e Mo- reira da Silva_ é lançado o samba “A Voz do Morro”, que, ao contrário do conformismo lamcmoso dó “Praça 0nze", revela uma disposíção dc luta para preservar o espaço do samba, deslocand0-o sc neccssário, mas suslentando-o pela e para a união da comuní- dadc do samba. “Sabemos que já acabou a Praça Onze E quc as cscolas de samba não saem Mangueira já participou a Ponela E está retransmitindo para o Salgueiro e Favela Preparem seus tamboñns [. . .] 35 nw .q.< ~...«›~w .. Mesmo sem a Praça lodos hão de ver Que as escolas náo delxarão de desccr A Praça Onze acabou Mas nÓs temos onde brincar Por isso não vamos chorar". A necessidade de preservar o espaço da brincadeim, seja ele 0 morm ou a avenida. sobrevinha de par com a necessidade de preservar um espaço culturaL evitando sua comaminação e con- lrole pelos valores que regem o “lá-f0ra". o cspaço burguês. o espaço do trabalhnv onde vigoravam os valores c 0 poder do rico. do branco. do outro. enfim. o sistema de valores e de poder supralocais Mesmo hoje em dia, quando o mundo do samba parece ler dissolvido quase completamenle suas fromeiras e se descaracte~ rizado enquamo formação sócio-cultural hgada a uma comunidade especificamente proletária e negm-mesliça. o impulso de auloprc› servação cullural dessas classes que o samba represenla e velcula ainda se pode verificar. Ainda exislem os redutos de samba nos morros e nos subúrbios, formas de resistência se organizam, 0 signifmado do samba para a determinação de uma idemidade cole~ Iiva conlinua vivo. Tudo isso é que permíte a José Sávio Leopoldi afirman em l977. em Escula de Samba, Rilual e Satiedade: “O aspecto crucial para a caracterização do mundo do samba é justa~ meme a contextualízação dessa expressão musical, islo é, a deter~ mínação de seu significado cnquanlo produlo quc lransccnde a individualidade e se idenlifica com o “ethos' de um grupamento social específico. Esta colocação nos permilc. por cxemplo, dis- linguir um agente do mundo do samba - um sumbisla ~ de um compositor qualquer (de oulrus grupcs sociais) de sambas. pnis. enquanto aquele possui o sentimemo de se definir coletivamente em' função de sua relação Com 0 samba, islo é. que o percebe como um elemcnto significativo no conjumo das relações quc vivenciav para este o samba é expressão da criação artística indi~ viduaL pelo menos no sentido de que a música não desempenha papel relevante no conjunto da atividade social do grupo a que se integra. Impona, porlanto, destacar que o sambísta panicipa de uma rede dc relações consubstanciadas pelo significado que o samba assume enquanto calegoria valorízada colctivamcntc e, em 36 conseqüência. como elememo eslralégico de definição de seu uni~ verso soc1'al”.“ Para esle trabalho. importa observar um aspecto. uma forma da eslralégia de que fala Leopoldí, talvez o maís eficaz de todos os gêneros de samha quamo à identificação e preservação dc seu universo cullural: o samba«malandr0. |1. LEOPOLDL Iosé Sávio. Escolu de samba. rirual e sociedade. PelrópolíL Vozcs, 1978, p. 4l. 37 3. MALANDRO: UM SER NA FRONTEIRA 3.I Ox Bamhm dn Eslário A noção de malandro está associada à de sambísta dcsde os anos 2(). A associação é simultânea ao processo de derivação do samba para sua versão rítmica "moderna“. aquela que se divulgou a partir dos fins da década de 20 nas cnaçóes do pessoal do Estácio. Considera-se em geral que o primeim samba a ser gravado foi o “Pelo Telefonc“ de Donga e Mauro de Almeida, lançado em 1917 na voz de Baiano. Na realidade. tratava-se de uma mis- tura de samba e maxixe, conforme reconheceria o próprio Donga, em depoimenlo que prestou em 1969 para o Museu da Imagem e do Som: “fiz o samba, não procurando mc afastar muito do maxixe_ música que estava bastante em voga“4' Efetivamente. no início do século, o maxixe já conquislara um lugar nos hábixos culturais da classe média, chegando a motivar, nos anos 20, exibi- ções de dança em palcos curopeus. Os chamados sambistas ^°pr¡- mitivos“, que freqüentavam a casa da Tia Ciala e outras baianas da Saúde e da Praça Onze, que saíam nos ranchos sob a lide- rança do Tcnente Hilário Jovino, faziam ainda, freqüememente. um tipo de samba amaxixado, corrido Desse grupo faziam pane. além de Donga_ João da Bahiana. Caninha, Sinhô. e, na área do choro. Pixinguinha. Pouco mais de dez anos separavam essa primeira geração de sambistas, quase todos nascidos antes de 1890, do pessoal do Eslácío, já deste séculnz Ismacl Silva_ Nílton Bastos, Bide_ Mano Rubem, Mano Edgar. Baiaco. Brancura e outros. A nova moda- l. As Vazes Desassombrudus do Museu, op. cíl. p. 80. 39 ..._--.-...... .. lidade de samba que eles começaram a fazer na década de 20 se amoldavn melhor às necessidades camavalescas. naquele tempo em que o carnaval se popular1'zava. Iornava-se mais amplo e movimenlado. e também, num certo sentido, mais brasileuo e mes~ u'ço. Depois das grandes sociedades e corsos de modelo europeu, depois do império dos ranchos_ surgiam os blocos que preparavam a futura supremacia das escolas de samba. A primena delas nas- ceu ali mesmo no Estácio. a Deixa Falar, fundada pclos já cilados sambistas, cntre outros. E Ismael Silva quem conta, cm entrevista a Sérgio Cabralz “E que quando comecei, o samba da época não dava para os grupos carnavalescos andarem na rua, conforme a geme vê hoje em dia. O estilo não dava pm andar. Eu comecei a notar que havia essa coisa. O samba era assimz lan taman Ian taman. Não dava. Como é que um bloco ia andar na rua as- sim? Aí, a geme começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbumprugurudum“.'-” Breve 0 novo tipo de samba vai ¡omar coma du carnaval e do gosto popular, mmivando inclusive uma rivalidade entre os novos sambislas e u pessoal da velha guarda. Ainda em fins dos anos 60, essa rivalidade veio à tona numa conversa entre Donga e Ismael Silva, relatada por Sérgio Cabralz ^^DONGA - Ué. Samba é isso há muíto tempoz “0 chefe da polícia Pelo xelefone Mandou me avisar Oue na Carioca Tem uma roleta Para se jogarl ISMAEL SILVA - Isso é maxixc. DONGA - Então_ o que é samba? ISMAELz ^Se vocé jurar Que me tem amor Eu posso mc regenerar Mas se é Para fingir mulher A orgia assim não vou deixar.' 2. Apud CABRAL Sérgio. op. Cít.. p. 28. 40 DONGA - lsso não é samba, E marcha".'* Os sambistas do Estácio, que juntameme com a Cidade Nova, Saúde, Morro da Favela, Gamboa, CatumbL Morro de São Carlos, etc.. formava um reduto de ex-escravos e seus descendenles, foram os primeiros a oslentar a designação de “maladros" e a orgu- Ihar-se delal A música que eles faziam. com sua cadéncia mais sincopada. mais apoiada na percussãa surgiu para o público com- prador de discos com um sabor exótico que fazia realçar uma diferença de classe. O caminho da sincopaçâo mais acentuada que o samba tomava já era um índice de sua nova posição sócio- culluraL Ou como disse Muniz Sodré: "A insisténcia da síncopa, sua nalureza iteraliva, consliluem o índice de uma diferença - entre dois modos dc significar musicalmente o temp0. enlre a constância da divisão rílmica africana e a neccssária mobilidadz para acolher as variadas influências brancas. Emre 0 xempo fraco e 0 fone, irrompe a mobilização do corpov mas também o apelo a uma volta impossíveL ao que de essencíal se perdeu com a diás- pora negra"." A síncopa consisle num som articulado sobre um tempo fra- co que se prolonga no lempoforte seguime. Se a definição não ajuda muito a compreender a que isso corresponde em ritmo vivo, 0 “bum bum palicubumprugurudum" de Ismael Snlva dá uma idéía do que 0 samba ganhava na modalidadc do Eslácioz ginga, fnexí- bilidade e mobilização simultáneas. A observação de Muniz Sodré me parece muito importante na medida em que detecta, ao nível da estrulura rítmica. um processo que se verificava Iambém a nível sócio~cullura|. A insistência da síncopa que se acentuava no samba do Eslácio revelava a incursão do rilmo ncgro no sistema musical branc0. Paralelamentc, era toda uma cultura negra que enlrava pela avemda dos brancos, pelo consumo dos brancos. Ismael Sílva foi bem claro: aquele samba novo era feito para o bloco poder andar, E quando 0 bloco and0u, foi para levar sua bandeira negra. seu ritmo e sua voz própria. O samba dito ^°malandro" já surgia em movimento, e transitando na fronteirzL Paradoxalmeme. era pela afirmação de sua estranheza, de sua diferença_ que este sam- ba ingressava no reconhecimento du sociedade globaL “Pe|o lelefnne“ e outros sambas da primeira fase construíam- 3. Ibíd., p. 22. 44 SODRE. Muniz. op. ciL, p. 47, 41 SC ainda sobre motivos folclóricog o que engendrou freqüemes disputas dc autoria c cn'ou terreno para a já cilada e famosa frase de Sinhôz “Samba é como passan'nh0. E de quem pegarf Com os sambistas do Estácio. com Ismael Sílva sobretud0, 0 samba especificava seus autores, mas lambém sua etnia e sua classm Es- ses sambistas Iogo ganharam na terminologia da imprensa e do púhlico consumidor o apelido de “malandros"A Sua vocação car- navalesca instanu-se na fesla popularÀ E a direção do samba do Eslácio que gera e fortalece as escolas de samba. cujo primeiro desfile competilivo, promovido pelo jomal Mundo Sporliva moti- va neste periódico uma maléria onde se diz: “As escolas mais célcbres da cidade, os príncipes da melodia do malandm, as *altas patemes' do samba concorrerão ao grande campeonato. Pode-se resumir o espetáculo assimz é a alma sonora dos morros que vai descer para a cidadc. Todas as ladeíras. todos os morros virão. respectivameme para a Praça Onze, teatro da Iinda cccmpeu'ção".ñ O samba negro e prole¡a'rio irrompia no asfalto travestido de príncipe. buscando patenle de suas criaçóes nas gravadoras da classe dominanle branca e burguesa Mas era por aí mesmo que ele sublinhava sua diferença e vendia seu peixe. a preços aliás irrisórios para o “fn'sson" que provocava. Dizia o mesmo jornalr “O público que conhece o *malandro' pelo disco ainda não sentiu\ talvez, o sabor que tem a melodia na boca do próprio “malandr0'. O efeito é muito maior c a sugcslão é muilo inlensa. [. . .] Com seus inslrumemos bárbaros, as escolas conseguem verdadeíros mi- lagres, cfeitos impressionames, Para julgar, só vendo com os pró- prios olhos. Nos morros da cidadq existem melodias ignoradas. Nem sempre a publicidade seduz o 'malandro'_ que não raro faz música para recreio interno ou por uma necessidade de ex- pressão, independenle de qualquer idéia de fama ou de dinheiro".'I A Deixa Falar e outras escolas em desfile surgiram na ave« nida como formas de expressão em lrânsito, movimemando-se na fronleira de Culluras e classes. Por isso lambém estes sambistas eram vislos e se apresenlavam como “malandros“. A partír desta posíção é que o samba tomaria diversos rumos. Por outro Iado_ a melodia do ma|andro falava juslamente de malandragem, orgia, vida boêmia. Também isso serviria dc pre~ 5. CABRAL Sérgio. op. cít., p. 97, 64 Id. lbid, p. 95. 42 texlo para as críticas que lhc dirigiam os sambislas mais antigos. Em 1930, Sinhô afirmou em cntrevista ao Diârio Carioca: “A evolução do samba! Com franqueza, eu não sei se ao quc se ora observa. devemos Chamar evoluçã0. Repare bem as músicas deslc an04 Os seus autores. querendo introduzir-lhes novidades ou em- bclczá~las. fogem por complelo ao ritmo do samba. O samba, mcu caro amigo. lem a sua toada e não pode fugir dela. Os modernis- 1as. porém, escrevem umas coisas muito parecidas com marcha e dizem 'samba'. E lá vem sempre a mesma co¡sa. 'Mulher! Mulherl Vnu deixar a malandragem.' “A malandragem eu deixei.' 'Nossa Senhora da Penha.' 'Nosso Senhor do Bonfim.' Enfim_ não fo› gem disto“.7 No entanlo, o próprio SinhÕ. cenameme o compositor da velha guarda que mais se acercou do estiln e dos assunlos do pes- soal do Eslácio. viria a dizer num sambaz “A malandragem E um curso primário Que a qualquer é bem necessário E o arranco da prálica da vida Que sÓ a morle decide o contra'n'o. n~ Para a prática da vida e do samba, a malandragem fm com efeito um “arranco“, mas que logo tomou diversos caminhos. Dos malandros e sambístas do Estácio, uma parte iria se “regenerar" e adolar novas posturas poéticas e ideológicas, outra permaneceria em sua poslura malandra, Conservand0. ou não. um lugar dentro da música popular comercializada na ép0ca. O primeiro compo- silor do Eslácio a ter um samba gravado foi Alcebíudes Barcelos. 0 Bide. Chamava~se “A Malandragem” e foi comprado por Fran~ cisco Alves. que o lançou no carnaval de l928. Mas esle samba já diziaz “A^malandragem Eu vou deixar Eu não qucro outra vez a orgia Mulher do meu bem querer Esta vida não tem mais valia." 7. lbiah p. 35. 8. Apud SODRE. Muniz. op. cit.. p. 34. 43 ' I mf ..._ wmp Desta forma, o malandro surgia no disco já pronzo a se regenerar, dividido entre a poslura malandra e a postura apaixo- nada, a lendôncia lírica e sentimental do samba que se desenvoL veria enormememe nus décadas seguinlcs. De fato. pouco tempo depois. Bide abandonaria quase completamenle a primeira pela segunda. As criaçóes de sua longa e ativa parceria com o letrista MurçaL que formam a parte mais vasta e exprcssiva de sua obra, restringem-se pranicamenle à lemálica Iíric0~am0rosa Outro sambislu do Eslácio, Ismael Silva, lambém permaneceu por muilo Iempo em atividade, Mas scu parceiro Nillon Bastos morreu de luberculose ao 32 an05. O irmão de Bide, Rubem Barcelos. apelidado Mano Rubem, morreu lambém tuberculoso aos 23 anos, pouco anles dc a Deixa Falar sair às ruas pcla pri- meíra vez, Baiaco desapareceu em I935. vitimado por uma úlcera eslomacaL Brancura morrcu maluco no mesmo ano. Mano Edgar foi assassinado numa briga motivada por um jogo de canas. no Nalal de l931. Como a confirmar a imagem romântíca e desre- grada que porlavam, os sambistas malandros do Estácio desapa- reciam prcmalura e às vezes lragicameme. enquanto Donga, João da Bahiana. Píxinguinha e outros da velha guarda Chegaram até os anos 70. Poucos, como Bide c Ismael Silva. sobreviveram e ajeilaram-se a padrões diferemes de vida e de poesia, No lugar desses pionciros, surgiu uma nova geração de malandragem e samba. a de Geraldo Pereira e Wilson Batisla. 3.2. Divcrsos rumos do samba A conversão de Bide à lemálica Iírico~amorosa, no início dos anos 30. ocupava um lugar que se abrira recenlemenle na música popular enlão comercializada. Foi ncsta mesma época que o samba acenluou sua d1'versificação. criando-se várias modalida- des de melodia. ritmo e poélica Além da oficialização dos desfiles carnavalescos em 1932, a difusão da música popular pelo rádio a partír da mesma época e a expansão da indúslria fonográfíca comribuíram para ímrodu- zir o samba nu paula do consumo Cullural das classes mais abas- ladas.” A ascensão de Getúlio Vargas na híerarquiu poh'¡ica bra~ 9. A divulgação de nossa músíca popular urbana vínha sendo feila dcsde 1880 pclo leatro de rcvisla, mas aí os géncros musicais em voga eram o lango. o Iundu. a polca e o max|x:. A partir dc 1920, princípnlmcnlc cm 44 sileira huscaria cada vez mais apoio nos sambistas para conquistar a simpulia das massas, ao mesmo Iempo que a censura se loxnava mais rigorosa. até alingir o ápice em l940, Com a lransformação dos órgãos de Censura da imprensa já existcntes no Departamenm de Imprensa e Propaganda. Essas ocmrências e suu influência na criação poélico-musical do samba nos anos 30e 40 serão observadas adianlc Com maior cuidado. Por agora, basla ver car que a diversifiwção do samba no início da década de 30 não cstava certamenle dissocíada de sua apropriação pelas classes política c cconomicamente dom1- nanles. enquamo instrumento de propaganda e produlo comercia~ 1izável. Em meados dos anos 30, 0 samba~canção ou samba-de-meio- de-ano fixa-se como modalidade diversa do samba Carnavalesca Através das emissões radiofónicas, o novo gênero rapidamenle conquista grandes contíngentes do público urbano. Na mesma épo- ca_ surge 0 samba-choro, produto híbrido que não chegou a sc consliluir como um esxilo definido e duradouro. E um pouco mais tarde. o samba “Jog0 proibid0", lunçado em 1936 na voz de Mo- reira da Silva_ inaugura o gênero que viria a ser conhecido como samba~de-brcque. A diversificação rítmica do samba se faña acompanhar de uma diversificação poética que nem sempre obedecia à delimita- ção entre carnaval c meio-dc-ano. embora as composições muilo melancólicas e pessímistas não fossem geralmcme lançadas no car- navaL E nas décadas de 30 e 40 que se dão a perceber e come- çam a lomar formas mais ou menos defínidas três grandes veios temáticos e esulíslicos na produção de sambasz o Iírico~amoroso. o apologétíco›nacionalisla, e o que estou chamando aqui de sam~ ha malandro. A muioria dos autores e intérpreles praticou as trés modalidade5_ mas nunca com igual frequ"ência. O nome de Nelson funcão da concorréncia oÍerecida pelo cinema e da criação do chamado 'lcnlro dc scsso'es' (o que provocuvu o cncurlamcnlo dos espcláculos)_ o lealro de rcvisla Íoi sendo conduzido para os caminhos do 'show' e pcr- dcndo suu imporlância no lunçamcnlo de sucessos musicais popularcs. lá o cincma da década de 30 comribui lumbém cmbom pouco nmís tarde que u disco c o rádio, puru u promoção socíal do samba. Em I933, o filmc musical dc Humbcrlo Mauro "Voz do carnaval' ínaugum o chamado ciclo curnavalcsco da indúslria cincmalogrólica brasilcirzL A parlir de 1935. os estúdios Cinédin c Brasil-Vila produziram muilos musicais sobre lemas ligados ao carnaval c à música populcm cnlrc os quais sc distmguiu o Íamoso 'Alô. alô, curnavn|'. dc 1936. 45 Gonçllves_ por exemplo. está ligndo ao veio lírico-nmoroso. en- quanm Morcin da Silva pennanece como um dos mms notórios represemanles da malandragem no samba. enquanlo imérprele e evemual composnon ao lado de Jorge Vciga e oulrosq Também se nota uma van'ação pen'ódicn na incidência de um ou oulro ve|o. ggundo o nmor ou menor rigor da ccnsunL A propósito do camavnl dc 1938'. diz Edigar de Alencar: “A ccnsura agorn mais do que nunca sc faz scnlir. lsso parece. esximula a musa lín'ca dos compositores. que fugindo aos comenlários polílicos. buscam no folclore e na fantasia motivo para suas produçoc's".“' 0 vem Iín'co-amomso lcm como pn'ncipais temas o Amor c a Mulhcr. vistos numa perspcctiva idcahzante c falalisuL no mais das vczes com expressão pessimista e Iamuriosa. Molivou composilores noláveis como Carlola. Nclson Cavaquinho e Lupi~ cínio Rodn'gucs. Canola faleceu recenlemcnle. a 30 de novembrn de 1980. Um anigo no Jornal do Brasil do dia seguintc falava dos poucos livros que ele dexxnra na estan¡e. “scus poelas de cabe- ccira": Olavo Bilac, Caslro Alves. Gonçalves Dias.“ E-..tc dclalhc vem conflrmar algo nilidamcme observávcl nas lelras dos sambas nio npenas de Canola. mas dc Iodos aqueles que versaram a musa lírico-amorosa naqueles anosr a influência de um discurso literán'o. branco, burgue's. que sc faz n0lar no rebuscamento das meláforas como nas coloraçócs idealizames. mclnncólicas c fre- qücnlememc escapnstaç que marcam sua visão dc mundo. 'lal obscrvaçio nio visa nbsolulamemc desvalorizar csta línha de pro› dução_ a qual fomeceu sambas de incgável valor musical e poéli- co. A influência não sc dá aí à mancira dc uma imilaçâo suhser- viente do produlo origináño das classcs dom1'nanles. mas como um manejo geralmenlc scnsível e crintivo de um lipo de linguagcm que nâo deixavn de cxpressar siluações e cmoçôes por assim dizer "univcrsais". Mas lambém é inegável que a univcrsidade do tema amoroso_ favoreccndo a contaminação do discurso proletário por valores semelhantes aJs dc um discurso burguês previamcnte es- crilo, prcviamenlc inscrilo na cullura, tendia à oblileraçâo das fromciras dc classc. c não à lomada de consciéncia de tais fron- lciras. Em busca do Amor, envolvido na caréncia do 0utro, 0 sambista deíxa dc buscar c dc pôr em relevo sua própría indi- 10. ALENCAR, Edigar de, 0 camavul cariocu arravés da müxicm 3 ed.. Rlo' de llneiro, Frlncisco Alve¡, I979. p. 26|À ll lorml do BruiL lf dc janeiro de l980. cnd. B, p I. vidualidade culturaL Ao mesmo tempo, é possível lalvez dislinguir nesse discurso um certo mccanismo de projcçáo. em que a Mulher e o Amor assumem uma relevância e um poden'o. uma Caplcldlv de de oprcssão e delcrminaçâo dos destinos do indivíduo prole~ lário. comparáveis à dominaçào cxcrcida pelos podercs econômi- cos e polílicos. Dc qualquer maneirm o mundo du snmbista ai se revela “invadido", regido por leis quc nâo são especnficamente ns suas próprias. mas alheias e superiores. sejam elas o dcsu'no_ Deus ou a fúña da paixão. Já o samba apologético-nacionalisla. caracreríslico por exem- plo da obra dc Ari Barroso. vinha aliar~se adequadamente às di- relrizes ideológicas do Estado Novo. A “Aquarela do Brasi|" é de l939. O ufanismo palrioteirq como o vcio lírico-amoroso de cunho româmico. linha importantes antcccdemcs na produção lile~ rária culta de nossa hislória. Elc alravessa quasc toda a nossn lu'eratura. esltá nas páginas de Alencar como nos versos de Bilac. Por outro lado, parecc corresponder a uma tendéncia que apomci acima no samba cm gcralz a de funcionar como catcgona da idenlidade dc um grupo. scrvir para manIê-lo coeso c dar~|hc consciência dc sn mesmo c de sua grandeza própria. Essa tendên~ cia deve ter facililado a difusã0, por mcio do samba. de um na- cionalismo ingênuo c ufanisla quc vinha ao cncontro dos interes~ ses políticos do governo Vargas, Aí se formulavam as fábulas do Brasil pobre mas alegrc, unido. alivu, o paraíso ImpicaL o Deus brasileirm Iomando por vezcs coloraçócs chauvinislns c quase xenófobas, como neslc samba de Wilson Batisla: "Nào danço lango Nem swing c nem rumba Gosto do choro Do baluquc e da macumba Sou brnsilcira Tenho a pelc da cor do sapoli Goslo du sambu porque faz Mcu corpo sacudir." (“Oucro um Samba") Como o discurso lírico~amoroso. o discurso apologético-na- cionalista é uma postura romântica quc lende a suprimir as conlra- 47 I _ 4_ Á mw mm mq l dições inlernas, meter no mesmo saco toda a variedade de brasis que cxistem 0 samba-malandro toma caminho diverso. O discurso apolo- gélico-nacionalista é raro na obra de Geraldo Pereira e Wilson Batista, muito mais ainda que o líriCo-amoroso. Não se encontra nenhum exemplar do gênero enlre os 65 sambas estudados de Geraldo Pereira, e apcnas 5 entre os 173 de Wílson Balista. Se o que há de mals cxpressivo na obra de ambos, tanto do ponto de visla da qualidade como da quantidade. é um lipo de discurso que tende, como 0 do samba apologéliCo-nacionalista, a reforçar os laços cullurais que conferem ao grupo sua idenlidadc, não se trata aqui do vasto grupo dos brasilel'ros, nem do grupo também vasto e indefinido dos cariocas. TraIa-se ao Comrário de um grupo rela~ tivamenIe restritoz o das classes baixas que habitam os morros e alguns bairros da cidade, e mais reslritamenle ainda. do grupo específico de semi~marginais de toda ordem. sem trabalho cons- tanle, sem lugar bem definido no sislema sociaL a que se chamou malandros. Importa ver como e por quá o samba~malandro. nas décadas de 30 e 40, parece ¡er sido o único género que. embora de ma- neira ambivalente e dissimulada, talvez mesmo inconsciente. se opõe à polílica simullaneamenle paternalista e conlroladora im- posta pelo Estado Novo à culturu proletária e popular. Num certosemido, o sambista malandro é o único que continua a promover, sob o Estado Novo, a importância da liberdade de criação popu- Iar e da identidade cultural dos grupos negro-pro|etáríos. 3.3. 0 Carnaval e suas franteiras Vimos que o samba do Estácio emergiu para a notoriedade no comexto do carnavaL E preciso então que me detenha um pou- co sobre o significado do carnaval e veja em que medida suas formas simbólicus eslão Iigadas à linguagem malandra que procuro caracteñzan E sabído que o carnavaL em sua origem é uma forma de espetáculo síncrético de caráter riluaL ligado ao culto dionisíaco. Entre as particularidades da sítuação carnavalesca primordiaL des~ taca-se 0 fato de todos os participanles serem ativos e eslabelece~ rcm entre si um comalo Iivre e familiar que se opõe à organização rígida e hierárquica da soc1'edade. O camaval antigo criu pois a 48 possibilidade efêmera de uma vida às avessas, ou mundo às aves- sas. Ele proccssa simullaneamenle um coroamcnlo e um descoroa~ mento rituais. sendo a festa do tcmpo destruidor e rcgenerador, um momento de passagem onde se exprime a relalividade alegre de qualquer estrutura sociaL qualquer ordem, poder ou szalu quo. Aí se festeja 0 proccsso de mudança, c não o que é mudado. Suas categorias são funcionais, e não substanciais. Assim sendo, a lin- guagcm carnavalcsca não arvora realidade absolutas ou perma- ncnles. mas se fundamenta na ambivalêncía de loda realidadtL Por isso tcnde à profanação de lodo sagrad0, à combinação e imera- ção das coisas mais 0poslas. O carnaval está aberto para Iodos, seu Iugar é popular e universaL mas também não propõe a inver- sâo definitiva da ordem de poder. O Coroamemo/descoroamemo é sempre reversíveL todos os símbolos carnavalescos comém em perspecliva a negação e seu contrán'o. Estes e oulros aspecms do carnaval primitivo são apontados e estudados por Mikhail Bakhtine em La poétique de Dostoievski. Bakhtine pane da descríção do sistema símbólico do díscurso ritual carnavalesco para caracterizar um gênero de discurso lizerárío ao qual ele chama “carnavah'zado“, Segundo o ensaísta. a percepção Carnavalesca transforma o abstrato em realídade langíveL colocan- do em cena símbolos concretos e sensíveis, dificilmentc transpo- níveis para a linguagem falada normaL mas passívcis de incor- poração à linguagem literária. E a essa transposição do sistema simbólico do carnaval para a literatura que Bakhtine chama carnavalizaçã0. O discurso carnavalizado terá assim características ligadas à ínversão e relativização dos valores e “reais“, à ambigüi~ dade. à coexistência de elementos díspares. Ele carrega uma poliva- lência ou polifonia interna, uma díalogia constante entre elementos opostos que jamais chega a se resolver numa afirmação ou nega~ ção peremptória. Opo'e-se por conseguinte ao caráter monológico da literatura clássica. a qual se apóia em verdades bem acabadas e constituídas Obviameme, já não existe o carnaval ritual lal como ele era em seus primórdios gregos. O próprio carnaval popular no Brasil e no Rio de Janeiro perdeu quase Iodos os seus traços originais, e já começara a perdê-los ao tempo de Wilson Batista e Geraldo Pereira, cm função sobreludo de ter sofrido um controle e influência progrcssivos por parte do Estado e de inleresses ec0-' micos que an carnaval se associaram. Mas os elememos fundamen~ 49 [. lais da situaçâo camavalesca - reviramcnto dos comportamemos cotidianos, ludismo coleu'vo, liberação provisória cm rclação às normas de condula 50cial e moral --, bem como suas formas de manifestação simbólica - como a fantasia e a dança _ perma- necem em vigon O carnaval cominua a ser para o brasileiro, ainda que precariamcnte, uma espécie de “r¡to sem dono”, como o cha- mou Robeno da MamL12 Por outro lado, o mundo do samba, no camaval ou fora dele, é um mundo carnavalesco. A relação que aí se cstabclcce entre os panicipamcs é a de uma integração no prazcr lúdico que nega provisoñamente as fromeiras hierárquicas do sistema e pos- sibllita a ínlegração do indivíduo no grupo através do excitamen- to da emoção e das scnsações. Coloca-se ponamo a queslão: a música carnavalesca vei- cularia por princípio uma percepção carnavalizada do mundo? As letras dos sambas e marchas de camaval seguiriam preferencial~ mente a vida do discurso dialógico e polífônico, segundo o enlen- de Bakhlíne7 As músicas de carnaval freqüentementc exaltam a alegria coletiva, num aparente nivelamemo das diferenças sociais que. à primeira vis¡a, corresponde perfeitamente à vocação camavalesca primordiaL Mas é preciso não esquecer quc, conforme salientou Bakhtíne, esla não é somenle a festa do descoroamento da estru- lura social vigcme, mas também de seu rccoroamento. Para um símbolo ser carnavalesco ou carnavah'zado, ele não dcve apenas conter em si a negação do real co¡1'díano. mas lambém o contrário dessa negaça'o. As fantasias nunca encobrem inteiramentc os indi- víduos reais, como os indivíduos reais não encobrem imeiramentc suas fantasias. Aí ficam permanentemente postas em causa as pró« prías noções de real e de famasia, e a essa oscilação e questiona- mento conslantes das categorías da percepção é que sc pode dar o nome de dialogia. Com efeito, sc observarmos as letras da música camavalesca brasileira, especialmenle as do período de que me ocupo_ verífi- caremos que nem todo discurso que poe' em cena o ludismo cole- tivo e oblítera as fronteiras sociais pode ser consíderado díalo'gico. Um tipo de texto carnavalcsco -_ porém não carnavalizado _ 12› Cf. DA MATTA, Robeno, CumavaiL malamlros e heróís: para uma sociologia do dilema brasileira Rio de Ianciro. Zahar, 1979. p. 92. 50 muito comum é o que pretende esquecer, recalcar os aspeclos negativos das relações socíais, descambando freqüemememc para a direção da apologia nacionalista ou regionahsla. Essc discuxso utópico~olimísta permanece cxtremameníe monológico na medida que em que recusa ver a outra face da moeda, a da realidade cotidiana e suas agruras; recusa deixar falar a outra voz, aquela que revelaria as caréncias materiais e afetivas de toda ordem Nesse tipo de samba (ou marcha, em se xratando de composição para o carnaval), tudo aparece sob a mesma luz de grandeza e alegria esfuziantesz a terra pátria, a mulher, as condiçõcs dc vida, tudo fica rísonho no ¡empo de camavaL como nesta marchinha de Lamanine Babo_ grandc sucesso de 1939: “Salve a morena A cor morena do Brasil fagueíro Salve o pandeiro Que dcsce o morro pra fazer a marcação São são são são Quinhemas mil morenas Lonras cor de laranja cem mil Salve salvc Meu carnaval Brasil Salve a Iourinha Dos olhos verdcs cor da nossa mata Salve a mulata Cor do café a nossa grande produção São são são são Quínhcntas mil morenas Louras cor de laranja cem mil Salvc salve Meu carnaval Brasilf (“Hino do Camaval Brasileíro") Nesse texto. desaparecem efetivamente as gradações hierár- quicas entre elnias e Classes sociais. Morenas, louras e mulalas se equivalem em brilho e brasilx'dade, o pandeiro e o café parecem nivelar-se em imponância enquamo coisas nossas, sígnos de Bra- sil, tudo misturado no mesmo vigor e boa disposição camavales- cos. Porém o chto é perfeitamentc monológico, tanto quamo um Sl outro que se encarníçasse em apresentar o povo brasileíro como um eterno sofredor que só tivesse para sí a fome, a ignorância, a miséria. a opressão. A modalidade mais grandiloqüente do samba apologético-na- cionalista, cujo modclo e marco inicial é a “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, de l939, chegou a ser considerada como um gênero específico, designado por samba-exaltação. Com a “Aqua- rela". exaltado Iouvor das grandezas e belezas brasileiras - o que vinha ao encontro da mítica nacionalista do Eslado Novo -, a nossa música vai conhccer um de seus primciros grandes sucessos de exportação. 0 próprio Ari Barroso faria a partir de emão mui~ tos outros sambas do mesmo gênero, figurando alguns deles nas trilhas sonoras de filmes none-americanos. Em termos musicais,o samba›exallação caracterizava-se pela imponência dos arranjos orquestrais, enquanto 0 samba, até então, normalmente se fazía acompanhar de um simples regionaL A mesma imponência, ao nívcl da letra, derivou numa longa linhagem da qual alé hoje fazem parle muitos dos sambas-enredo Iançados pelas escolas em desfüe. Ao lado do samba-exa1tação e do otímismo nacionalista em geraL eram lançados no meio-de-ano - e também no camaval - composições que falavam das desgraças do coração. Assim. ao mesmo tempo em que o veio apologético-nacionalista glorifi- cava prazeirosamente as delícias do puís tropicaL o lírico-amoroso comprazia-se em chorar resignadamente as mágoas que o destino írrcdutivelmenle reservava aos corações apaixonados. Emre o oti- mísmo despreocupado do samba~exaltação e a melancolia confor- místa do samba-canção, ficou o samba-malandr0, a relatívizar trístezas e alegrias em geraL O samba-malandro jamais se reduz a um otimísmo ou pessi- mismo exclusívos Sua poética está na fronteira entre o carnaval e o meio-de-anov é uma poélica de dialogia. Trata~se de um dis› curso carnavalizadq e não propriameme carnavalesco. AssinL por exemplo. sempre que nele se exalta a inversão hierárquica produ› zída no espaço do samba ou do carnavaL o nivelamento das classes sociais que esse espaço enseja, é conservada uma brecha por onde entra a voz da realidade “de fora". a realidade cotidia- na, em que o rci não é Momo. mas o patrão, o capitaL a polícia ou quaisquer outros famres da dominação. 52 Grcve da Alegria “H0je amanhã e depois Eu não vou trabalhar Chega Já fui escravo o ano inteíro Mas quando chega fevereiro O que cu quero o que eu quero é sambar Quando a fábrica apítar Eu quero estar na orgia O patrão já sabe Que eu em fevereiro Faço a greve da alegria." Este samba, da autoria de Wilson Balista, Roberto Robeni c Arlíndo Marques Jr., foi lançado no carnaval de 1955, portamo já longe do controle exercido pela diladura de Vargas. Às vezes, também. o que se opõe à fruição carnavalesca não é 0 paVrão, mas a “patroa". como neste samba de Geraldo Pereíra e Jorge de Castro, de 19432 “A batucada começou Adeus adeus Oh minha querida eu vou Não sei pra quê você chorar Se quarta-feira Eu tenho que voltar" (. . . ) (“A¡é Quarta~Feira") Nas duas letras acima citadas, a Iiberação proporcionada pelo carnavnl é vista como efeu'va porém transitória, relativizada por uma outra realidade. Assim_ 0 discurso do samba-malandro funciona de maneira semelhante à simbologia do carnaval primor~ dial, unalisada por Bakhline: ele põe em cena simultancamcme, em perspectíva, tanto 0 descoroamemo das normas que regem a Vída cotidiana do sujeito quanto o seu recoroamento. Se o samba-malandro se mantém na fronteira entre a fruição 53 r mw v vr-›-- ,4.....›. m e mmm '*~.; .$ lolal do espaço do samba e a problemática que aguarda 0 prole- tário fora desse espaço, enlre 0 descoroamento carnavalesco das classes dominantes e o seu recoroamento no reslo do ano. é por- que o próprio malandro é um ser da fronteira. da margem Seus domínios geográficos não são nem o morro nem os bairros dc classe média. mas os lugares de passagem como a Lapa e o Está~ cio. Ele não sc pode classificar nem como operáño bem compor- tado nem como criminoso comumz não é honesto mas também não é ladrão, é malandro_ Sua mobilidade é permanente, dcla depcnde para escapar. ainda que passage1'ramente, às pressões do sislcma. Verificaremos que, a todos os níveis e em Iodos os domínios temázicos. a figura do malandro no samba e o lipo de discurso que lhe está associado se constrói sobre esta linha fromeiriça entre afirmação e negaçãq topia e utopia, realidade e fantasia_ A poé- tica da malandragem é_ acima de tudo, uma poética da fronteira, da carnavalização, da ambigu"idade. 3.4. lmagens do Malandro “Meu Deus. eu ando Com o sapato furado Tenho a mania Dc andar engravatado." (“Cabíde de molambo". João da Bahiana) Os conteúdos Culluralmente assocíados ao personagem ma- landro passam pela questão baslante sígnificativa de sua imagem visual e das transformações que ela sofreu, Já assinaleí na intro- dução a este trabalho que o conceilo de malandragem passou por uma grande mudança da década de 30 para a de 40, na medida em que também mudou a forma de a socíedade e o governo an- cararem essc personagem dentro da cultura. O malandro dos anos 30 não é o mesmo nem se vesle da mesma forma que o dos anos 40. Sob a pressão das diretrízes esladonovistas, o malandro que era moda, o malandro anti-herói. transforma-se no “ma]andro regenerado". Em 1933, quando o folclore da malandragem está ainda em plena voga e é divertidameme consumido pela sociedade em gc- raL sobrctudo alravés da música popular, o malandro apresema 54 uma imagem bastante próxima e idenlificada com a marginalidadc das classes economicamente subaltcrnas, conforme se podc noKar neste samba de Wilson Batista: “Meu chapéu de lado Tamanco arrastando Lenço no pescoço Navalha no bolso Eu passo gingando Provoco e desafio Eu tenho orgulho De ser tão vadio." (“Lcnço no Pescoço”) Cínco anos depois, em pleno Estado Novo, que vinha ptos- crever o cullo da malandragem e instaurar uma ordem ideológi- ca bem mais rígida, voltada para o culto do trabalhador, Noel Rosa, dando início à famosa polêmica que o oporia a Wílson Batista_ retorquec “Deixa de arraslar o seu tamanco Pois mmanco nunca foi sandália E tíra 0 lenço branco do pescoço Compre sapato c gravata Jogue fora esta navalha Que lhe atrapalha Com chapéu de lado deste rata Da polícia qucro que escapes Fazendo samba-canção Eu já lhe deí papel e lápis Arranje um amor e um violão." (“Rapaz Folgado") Realmente o malandr0, sob o Eslado Novo, ccdendo às pressões da nova ordcm político-social, comprou sapato e gravala e até passou a recusar a denominação de “malandro". Moveu-o, sem dúvida, a preocupação de escapar à polícia. Porém não ar- ranjou um amor. nem passou a fazer samba-canção (ao contrário_ criou o samba-de-breque, com implicações semiológicas que verei adianle). Contínuou a ser. apesar de tudo, uma entidade da fron- 55 _ ....4› uma Lu w teira, sempre perseguido pelos representantes da lei e da ordem e scmpre se esquivando sob sua caricatura de pequcno-burguês. A caricatura permanece todavia xão ambígua e translúcida que con- tribui para chamar sobre ele a atenção da polícia, ao invés de des- viá-la. Em “Senhor Delegado", Amoninho Lopes e Jaú retratam a siluação dc um indivíduo que vai preso sob suspeita de vadia- gem. A mancira de cle se defender perame o delcgado deixa a entender que um dos móveis de sua detenção foi juslameme 0 trajc bem posto. E o aprumo da imagem_ que despertara as sus- peitas dos policiais: “Senhor delegado Seu auxilíar eslá equivocado comigo Eu já fui malandro Hoje estou regenerado Os meus documentos Eu esqueci mas foi por distração Comigo não Sou rapaz honesto Trabalhador veja só mínha mão Sou tecelão Se ando aIinhado E porque gosto de andar na moda Pois é Se piso macio é porque tenho um calo Que me incomoda na poma do pé." (“Senhor Delegado") Em relação ao proletárío, o malandro se dístingue por sua maneíra de andar sempre bem vestído, terno branco impecáveL elementos que aparentemente poderiam aproximá-lo dos padrões burgueses. Mas ele não é um burgués, senão uma caricatura. uma paródia do burguês. E por ser uma paródia, seu modo de se apresentar íncluí aspectos de exagero e deformação tão evidentes que o próprio trajar elegame é um dos elementos pelos quais a polícia o identifica como malandro, e que portanto tornam a j0- gá-lo no universo das classes oprimidas (pois burguês de verdade. e bem vestido, não vai preso a todo momento). Sua imagem visual se caracteriza pois por uma preocupação 56 estética (“gosto de andar na moda”), mas ao mesmo tempo pela ambivalência, pela impressão de fanlasia ou disfarce que trans- mite. Tal impressão advém da Conllgüidade de signos de uma modernidade pequeno-burguesa com sxgnos de outra ordem. rela- livos à condiçãonegra e proletária (0 “¡amanco". evidcnciado na letra de Noel como sendo diferente de “sandália”, a “gínga"), à postura margínal em relação à sociedade bem Comportada (“na- valha no bolso“, falta de documentos) e finalmenle à manuiem Ção de uma tradição étnica e sociaL Por tudo isso. mesmo quando se veste no rigor da moda, o malandro apenas parece um “'bom moço" (onde fica sublendido que ele não é um “bom moço"), como na evocação de Wilson Batista e Nássara em 19522 “Fave|a Não perdeu a Iradiçào Eu morei lá No Iempo do lampião Minha cabrocha ao lado Eu parecia um bom moço Tinha um chinelo charlote E um lenço no pescoço." (“Hislória da Favela") Tal é o estilo ambivalente do malandro. que marcará analo- gamenle sua linguagem, sua poética. Eleganlemenle vestido_ está 1ravestido de bom moçoz é malandro. Em ^'Olha o Padilha“, Moreira da Silva, Bruno e Ferreira Gomes contam uma história baseada em personagem real, o comissário Deraldo Padilha, o quaL segundo relato do próprio Moreíra, atuava na área do centro da cidade e era muito temid0. Na época estava em moda a calça “boca de chorro", isto é, com_ a boca estreiuL O Padilha. quando pegava um indivíduo vestido daquele jeit0, Costumava enfiar-lhe um limão pelas calças adentro para tcstar a eslreiteza da boca. Se o limão ficasse retido na bai- nha, o comissário mandava cortar as calças do sujeito. Quando Moreira da Silva me contou essa hislória, pergun- teí-lhe se a tal calça de boca estreita era uso corrente apenas entre os delinqüentes ou gente suspeila. Não, respondeu cle, era moda que Iodo mundo usava, “filhinho de papai lambém". Para o comissário Padilha no entanto (pelo menos no texto). tal moda 57 se convcrtc cm signo de malandragem, ainda mais se combinada ao uso da cabeleira grande, esla sim, segundo Moreira. “coisa de malandro“, Por aí cxplica-se então a hislória de “Olha o Padilha". em que 0 sujeit0, ao sair da gafieira com sua “nega Cecília", tcm o azar de cair nas mãos do temido deJegadm “Pra se Iopar uma encrenca Basla andar distraído Quc ela um dia aparece Não adianta fazer prece Eu vinha da gafieira com a minha nega Cecília Quando alguém grilou: _ Olha o Padilha! Ames que eu me desviasse Um lira fone aborrecido me abotoou E dissc tu és o Nonô hein Mas eu me chamo Francísco Trabalho como um mouro sou estivador Posso provar ao senhor Nisso o moço de óculos rayban Me deu um pescoção Bati com a cara no chão E foi dizendo eu só queria saber Quem disse que és trabalhador Tu és salafra achacador Essa macaca a Ieu lado E uma mina mais forte que o Banco do Brasil Eu manjo ao longe esse tiziu E jogou uma melancia Pela minha calça adentro que engasgou no funil Eu bambcci ele sorriu Apanhcu uma 1esoura E o resuhado dessa opcração Foi que a calça virou calção Na chefatura um barbeíro sorridentc estava à minha espcra Ele ordenou raspa o cabelo dessa fera Não eslá direito seu Padilha Me deixar Com o coco raspado Eu já apanhei um resfríado lsso não é brincadeira Pois meu apelido era Chico Cabele1'ra." São ponanto lrcs os elementOS que tornam o indivíduo sus- peito aos olhos do policíalz a calça boca de funiL a presença da negra a seu Iado (desper¡ando no comissário uma amude precon- ccituosa revelada nos termos “macaca" e “tizíu". que é um pas- sarinho preto), e a cabeleira comprída, O Padilha acrcdita pois que o sujeito é um malandro. com “profíssão" típica de malandro: gigolô sustentado pcla prostituta (“essa macaca a leu lado / é uma mina mais forte quc o Banco do Brasil")4 E a puníção un'› posla ao sujcito é juslamcntc a deslruição de seu aparato visuaL 0 desnudamento do malandro que lhc rouba os sígnos e a idemi~ dade malandra. Aniculando signos de dois mundos e não pertencendo intei- ramente a nenhum. o malandro se caracteriza, em todas as ins› tâncias, pela dialogía e pela ambigu"idade, o que faz com que elc nunca se estratifique numa posiçâo definitiva. Como os persona- gens carnavalizados estudados por Bakhtine, ele se dirige para uma autodefinição que todavia permanece incompleta, e que também nunca é estalicamcnle formulada no samba. Diz o malandro ao delegadoz “se piso macio é porque lenho um calo / que me incomoda na poma do pé“. Como o símbolo carnavalesco, ele comém em si. em perspecliva, a negação (o “pisar macio”, negação de sua condição subaltema, “grosseira“, na escala social) e seu contrário (o calo no pé. a dificuldade de viver_ o recoroamcnto de uma realidadc que o condiciona e oprime). 59
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