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autor PEDRO PAULO ALVES DOS SANTOS 1ª edição SESES rio de janeiro 2018 TEOLOGIA SISTEMÁTICA I Sumário Prefácio 7 1. Revelação natural 11 Criação: Contexto do encontro com Deus com os homens 13 O livro da criação: Gênesis 15 O Pentateuco 16 Tradições bíblicas 17 Javista – Eloísta – Sacerdotal e Deuteronomista 18 O livro do Gênesis 20 A história das origens (1,1-11,32) 23 Criação do universo e dos seus habitantes (Gn 1,1-2,4a). 23 O Salmo 19: Deus se autocomunica na criação 24 Revelação natural: Entre a idolatria e o louvor da criação 25 O Novo Testamento e Revelação natural 29 Jesus e a Revelação natural 30 São Paulo e nova criação 34 2. Revelação especial 37 A Revelação: conceito fundamental para a teologia e a religião 40 Em torno do conceito de Revelação na teologia 42 Modernidade e religião: contexto das discussões atuais da Revelação 45 A Revelação e a história das religiões 47 Uma tipologia da religião? 48 A religião eclesiástica 48 A religião política 49 A religião cultural 50 A religião popular 50 A religião pessoal 51 A religião e a Revelação no antigo testamento 51 Contexto das religiões antigas 51 A compreensão da revelação no AT 53 O Cristo e a revelação plena de Deus 58 A compreensão da revelação do Novo Testamento 60 Quatro princípios da Revelação especial 63 3. Modos de revelação divina 67 Os modos da Revelação Divina 69 A história e a Revelação especial 70 História da salvação: um conceito prévio à Revelação? 76 Deus e história: a crise moderna 77 A perspectiva judaico-cristã da história: o testemunho da fé. 82 O Cristianismo e a história: cumprimento ou futuro? 90 Filosofia da religião, theologia da história ou cultura política? 92 Heródoto, Tucídides e Políbio: o contexto ‘historiográfico’ de Agostinho 93 Teologia do tempo e eternidade: uma ‘Dialética’ historiográfica em Agostinho 95 Conclusões 96 4. Atributos divinos 99 Os nomes de Deus: as tradições de Israel 102 Abraão e os nomes divinos 105 O livro do Gênesis e os nomes divinos 107 Deus se dá conhecer a Abraão pelo nome divino 109 Gn 17: a renovação da Berith 109 Moisés e os nomes de Deus 111 Os nomes de Deus no antigo testamento 115 5. Implicações da Revelação na vida religiosa 119 As relações entre Revelação especial e história 121 Agostinho de Hipona e as relações entre Revelação e história 122 Filosofia da religião, ‘theologia’ da história ou cultura política? 123 Heródoto, Tucídides e Políbio: o contexto ‘historiográfico’ de Agostinho 124 Teologia do tempo e eternidade: uma ‘Dialética’ historiográfica em Agostinho 126 Conclusões: Agostinho e a Revelação na história 127 Criteriologia religiosa da Revelação judaico-cristã 128 A perspectiva judaico-cristã da história: o testemunho da fé. 129 O Decálogo (Ex 20): salvação e conhecimento de Deus 131 Direitos de Deus: Ex 19, 2-11! 132 Revelação e sabedoria 133 7 Prefácio Prezados(as) alunos(as), Este livro se insere no percurso do aprendizado da Teologia em suas premissas, isto é, aquilo que a teologia precisa explicar primeiro, o que inaugura e justifica seu percurso acadêmico. São conceitos indispensáveis ao pensar teológico, aqueles do conhecimento de Deus, que se recebe através da Revelação. Conhecer a Deus pela intervenção especial de Deus, mas também pela sua obra criadora, a revelação natural. O conhecimento de Deus é a base do conhecimento teológico. O saber e a pesquisa que caracterizam a teologia baseiam-se na Verdade da Existência de Deus e naquilo que Ele nos revelou sobre Si mesmo. Por isso, o estudo da teologia deve percorrer os caminhos da ‘fala’ de Deus aos homens e mulheres. A este processo de ‘expor-Se’ aos homens, a teologia o denomina de Revelação. O termo Revelação, tirar o véu, define toda a Ação de Deus, ao longo da História da Salvação, para que conhecêssemos a Verdade e fôssemos salvos: ‘Pois isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade’ (1 Timóteo 2, 3-4). Este ter- mo possui duas acepções: a Revelação Natural e a Especial ou Sobrenatural. Nosso livro está organizado em cinco capítulos que disporão os conteúdos sobre Deus em sua Revelação, isto é, os conceitos fundamentais da Teologia. O Primeiro Capítulo foi denominado ‘A REVELAÇÃO NATURAL’. Nele iremos conhecer a os significados do conhecimento de Deus que brotam da reali- dade comunicativa da Criação. Do que se trata? Do papel da Criação na universalização do conhecimento de Deus. De que maneira a natureza nos ‘fala’ de Deus, ou ainda como Deus se utiliza da sua própria obra criadora para comunicar-se indiretamente às suas cria- turas humanas. Vivemos imersos no mundo na natureza, contra a qual, às vezes, agimos mal e destrutivamente. Além disso, conhecemos pessoas que se submetem inadequa- damente à natureza, por causa de uma mentalidade supersticiosa e mítica. Estes imaginam que animais e coisas possuem carácter divino (idolatria) e mágico. Conhecer a verdadeira relação entre Deus, que se revela, e a Natureza será muito importante para nosso conhecimento teológico e para a nossa experiência de fé. Espero que este capítulo sobre a ‘REVELAÇÃO NATURAL’ seja uma ferra- menta útil. O Segundo Capítulo foi designado com o título ‘A REVELAÇÃO ESPECIAL’. Revelação é o termo técnico pelo qual se expressa o fenômeno mais arrebatador da Historia Humana, que Deus seja Sujeito do Conhecimento que temos d’Ele. Ele se auto-manifestou. Aprenderemos neste Capitulo que Deus aproximou-se de nós e livre e sobera- namente, apresentou-Se a Si Mesmo. Revelou-se. Assim, Deus se tornou aos nossos olhos distinto de sua Criação. A Revelação especial envolve assim uma pergunta fundamental: Como conhecemos a Deus? Por Ele mesmo! Conhecemos a Deus e à sua Vontade Salvífica, porque Deus mes- mo quis auto-revelar-Se aos homens, a começar por Israel. Outro aspecto importante é a historicidade. Por isso, segue o terceiro Capitulo: ‘OS MODOS DA REVELAÇÃO DIVINA’. A Revelação como processo comunicativo ocorreu de modo exemplar no de- correr do desenvolvimento do Povo de Israel. E teve seu auge, na Revelação do Cristo, plenitude do Conhecimento de Deus, por Ele mesmo: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai” (Jo 1,14). Segundo a carta aos Hebreus 1,1, “Deus falou de diversos modos”. Isso reitera ao menos dois elementos que são indicados na Constituição Teológica sobre a Revelação no Vaticano II: “Dei Verbum” (A Palavra de Deus), quando afirma que na Sagrada Escritura Deus fala com palavras e sinais conectados entre si: O Quarto Capítulo foi denominado ‘OS ATRIBUTOS DIVINOS’. Neste capítulo trataremos do fato que a Revelação especial, na verdade, coloca o problema da Identidade Divina. Deus se dá a conhecer para ser invocado, cul- tuado, amado e obedecido! O tema em questão, portanto é aquele do Nome Divino. Deus que supera qualquer ‘nomeação’ entrega aos interlocutores escolhidos por Ele. Abraão, Moisés em particular. Ao longo da história da História de Israel encontramos na questão do Nome Divino a chave para entender as diversas tradições que compõem a lon- ga elaboração, compilação e canonização dos textos massoréticos. Por fim, o Quinto e Último Capítulo de nosso livro sobre Teologia Fundamental, denominado ‘IMPLICAÇÕES DA REVELAÇÃO NA VIDA RELIGIOSA’, tratará sobre a especial relação que se estabelece ao longo da cons- ciência religiosa de Israel entre o conhecimento especial de Deus e a vida ética. O Deuteronômio será o livro que estrutura esta relação expressa no auge do Êxodo: a experiência do Decálogo, no Sinai. A teologia profética estabele- ceu o mais denso fio condutor entre o culto e a ética, entre Fé e a vida, através dos mandamentos. No Cristianismo, que herda esta sólida relação: o crente tem uma vida ética baseada na religião dos mandamentos. A vida cristã deveexpressar as consequên- cias de conhecer a Verdade, isto é, a Cristo! Espero que este exigente itinerário de estudo e de reflexão nos conduza para dentro do núcleo central da Teologia: conhecer a Deus através da experiência da REVELAÇÃO. Bons estudos! Revelação natural 1 capítulo 1 • 12 Revelação natural O conhecimento de Deus é a base do conhecimento teológico. O saber e a pesquisa que caracterizam a teologia baseiam-se na verdade da existência de Deus e naquilo que Ele nos revelou sobre Si mesmo. Por isso, o estudo da teologia deve percorrer os caminhos da ‘fala’ de Deus aos homens e mulheres. A este processo de ‘expor-Se’ aos homens, a teologia denomi- na Revelação. Conhecemos a Deus por causa de sua própria Iniciativa, assim se lê, por exem- plo em Hbr 1, 1: Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias a nós nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por quem fez também o mundo; sendo ele o resplendor da sua glória e a expressa imagem do seu Ser, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo ele mesmo feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas alturas, feito tanto mais excelente do que os anjos, quanto herdou mais excelente nome do que eles. O termo Revelação, tirar o véu, define toda a Ação de Deus, ao longo da História da Salvação, para que conhecêssemos a Verdade e fôssemos salvos: ‘Pois isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade’ (1 Timóteo 2, 3-4). Este termo possui duas acepções: a Revelação Natural e a Especial ou Sobrenatural. Neste Capítulo iremos conhecer a REVELAÇÃO NATURAL. Do que se trata? Do papel da Criação na universalização do conhecimento de Deus. De que maneira a natureza nos ‘fala’ de Deus, ou ainda como Deus se utiliza da sua própria obra criadora para comunicar-se indiretamente às suas cria- turas humanas. Vivemos imersos no mundo, na natureza, contra a qual, às vezes, agimos mal e destrutivamente. Além disso, conhecemos pessoas que se submetem inadequa- damente à natureza, por causa de uma mentalidade supersticiosa e mítica. Eles imaginam que animais e coisas possuem carácter divino (idolatria) e mágico. Conhecer a verdadeira relação entre Deus, que se revela e a natureza será mui- to importante para nosso conhecimento teológico e para a nossa experiência de fé. Espero que este capítulo sobre a ‘REVELAÇÃO NATURAL’ seja uma ferra- menta útil. capítulo 1 • 13 Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos. Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há fala, nem palavras; não se lhes ouve a voz (Sl. 19, 1-3). Tradução de FERREIRA, João de Almeida. Disponível em: <http://biblia.com.br/joao-ferreira-almeida-atualizada/salmos/sl-capitulo-19/>. Acesso em: 30 out. 2017. Neste texto da poesia hebraica, misto de prece litúrgica e de obra literária, os Salmos, (150 ao todo na Bíblia) encontramos uma interessante perspectiva para entendermos o que significa a Revelação NATURAL. Neste Capítulo iremos estudar e refletir sobre os significados bíblico-teológi- cos do termo ‘Revelação Natural’. O que significa dizer que há uma Comunicação Divina através da natureza? Quais são as diferentes concepções de revelação que encontramos no Antigo e no Novo Testamento? A Criação possui e transmite uma Mensagem da parte de Deus, que possamos reconhecer e receber como sua Palavra? Assim, estudaremos neste Capítulo, a partir do Salmo 19, as principais ques- tões colocadas à teologia sobre a Revelação Divina no contexto do livro do Gênesis e da tradição salmódica do Salmo 19. Num segundo momento, passa-se em revista a questão da Revelação natu- ral no Novo Testamento, primeiramente no âmbito dos Evangelhos: Jesus e a Natureza e depois a teologia da ‘nova criação’ em São Paulo. OBJETIVOS • COMPREENDER melhor o papel da Natureza, no âmbito da Sagrada Escritura; • ESTUDAR os aspectos principais da problemática da Criação que desempenha um papel de revelar a ‘Glória’ de Deus a toda criatura; • CONHECER a teologia da Criação no Antigo e Novo testamento. Criação: Contexto do encontro com Deus com os homens Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos (Sl. 19,1). capítulo 1 • 14 E, o Salmo 19 merece especial atenção por destacar estes aspectos duplos: de um lado, temos a experiência da Revelação, do outro, a Criação, O Salmo 19 descreve dois modos da revelação de Deus: a “natural” (pela criação) e a “especial” (pela Escritura). A revelação natural sugere que Deus revelou seus atributos por meio do mundo criado. No entanto, a revelação natural precisa ser completada pela revelação especial, que é apresentada no Salmo 19 como a constituição dos ensinos revelados na torah (“lei”), provinda de Javé para Israel, e escrita de forma autêntica, ver- dadeira e confiável. O Salmo 19 apresenta um enfoque especial na revelação especial, que é descrita não somente como conceito teológico, mas também como meio através do qual um caráter íntegro e verdadeiro é produzido naquele que crê. PETERLEVITZ, L. A Revelação Natural e a Revelação especial no Salmo 19. In: Revista Batista Pioneira. V. 3, n. 2, Dezembro/2014. Disponível em: http://revista.batistapioneira.edu.br/index. php/rbp/article/view/67/83. Acesso em: 30 out. 2017. Segundo Peterlevitz (2014), deve-se considerar o termo Revelação em dois níveis: aquele da Revelação ‘Natural’, uma voz divina que ecoa da Criação ou da natureza, e outra, dita ‘especial’ ou ‘sobrenatural’ que é A Voz mesma de Deus, sua auto-Revelação (Pessoal) à Humanidade. Trata-se de uma mesma e única Revelação. Pois não se pode imaginar que esteja- mos falando do ‘Deus da Natureza’, ou da ‘natureza divinizada’ e do Deus de Israel. Por isso, a história de Israel, como história da Salvação, tem nas Escrituras, como moldura e princípio, os relatos da Criação, a afirmação teológica da interven- ção de Deus sobre o ‘nada’ (as sombras sobre as águas, na linguagem do Gênesis). A definição inicial de Revelação natural insere-se numa dupla fisionomia. De um lado, trata-se do Fenômeno religioso da Comunicação Divina, isto é, Deus que se mostra à consciência humana, do outro, que este contexto da Fala Divina se dá na relação do homem com a natureza circundante. Como isso ocorre? Qual seu significado? Segundo Peterlevitz (2014): ‘A revelação natural sugere que Deus revelou seus atributos por meio do mundo criado’. Para estabelecer o significado e a relevância da Revelação que se dá no processo da escuta, da contemplação e do estudo da na- tureza é preciso entender o conceito de mundo criado, ou simplesmente Criação. Por que o salmista afirma que ‘Os céus’ proclamam a Glória de Deus? E, em paralelo, ‘o firmamento’ anuncia a obra da Mão Divina? Parece que devemos estabelecer pelo livro do Gênesis, uma relação entre a Comunicação Divina e a ‘obra de suas Mãos’. Algo que na história da consciência capítulo 1 • 15 de Israel não será trabalho simples, pois que eles conheceram o risco mais custoso para a Fé no Deus Criador, o fenômeno da ‘idolatria’. Falemos um pouco do primeiro livro da Bíblia. O Gênesis. Para a questão da Revelação Natural interessa-nos os primeiros Onze Capítulos. O Livro do Gênesis foi escrito originalmente em hebraico, língua oficial da Religião Judaica. Escrita da esquerda para a direita, onde se lê:” Bereshit areh elohim et hashamaim ve haertez’: No Princípio criou o Senhor os céus e a terra. Fonte: <http://kolhamashiach.org/weekly-portions.html>: O livro da criação: Gênesis No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas. E viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. E foi a tarde e a manhã,o dia sexto (Gn 1, 1. 31). Tradução de FERREIRA, João de Almeida. Disponível em: <http://biblia.com.br/joao-ferreira -almeida-atualizada/salmos/sl-capitulo-19/>. Acesso em: 30 out. 2017. Ao primeiro livro da Bíblia dá-se o nome de GÊNESIS. Mas antes de falarmos sobre o Gênesis, é preciso que entendamos um pouco seu lugar na Bíblia. capítulo 1 • 16 O Pentateuco Divisão O PENTATEUCO (Torá para os judeus) GÊNESES Narra as origens do universo e do gênero humano até à formação paulatina do povo de Israel na sua estada no Egito ÊXODO Narra a saída dos israelitas do Egito, conduzidos por Moisés aos pés do Sinai, para aí receberem de Deus a sua lei religiosa e civil e se constituírem, por meio de um pacto sagrado, em peculiar "povo de Deus (YAHWÉ ou Jeová).”. LEVÍTICO Regula o culto religioso à maneira de ritual, dirigido especialmente aos levitas, que formavam o clero consagrado ao serviço do santuário. NÚMEROS DEUTERONÔMIO Trata do recenseamento do povo contido na primeira parte, estendendo-se, depois, em referir fatos e providências legislativas correspondentes aos cerca de 40 anos de vida nômade no deserto da península do Monte Sinai. A “segunda lei”, emanada pelo fim da jornada no deserto, foi escrito quando Moisés retoma a legislação precedente para adaptá-la às novas condições de vida sedentária, em que o povo viria a se encontrar com a conquista iminente da Palestina (Terra de Canaã = A Terra Prometida). O livro do Gênesis encontra-se entre os livros de uma coleção de cinco livros, intitulada posteriormente de PENTATEUCO, isto é, os cinco (penta) livros da Lei (a Torah). Esta coleção não se estruturou por sua vastidão narrativa, apenas através de uma única mão escrivã, pois os cinco primeiros livros da Bíblia cobrem todos os fundamentos histórico-teológicos da história e da memória do povo de Israel. Uma ampla narração histórica que se inicia com a chamada de Abraão (Gen 12) e vislumbra o conjunto da epopeia de Israel, com as narrações dos des- centes de Abraão: Isaac, seu Filho (Gn 21-29) e de Jacó, seu neto (Gn 30-37). E nos outros quatro livros narra-se a História de Moises (Ex 1-4), da liberta- ção do Egito, da passagem do Mar Vermelho, da peregrinação no deserto por 40 anos, e, sobretudo, o período da Revelação da Lei (Torah) e do culto provisório no deserto, até o momento em que, depois da entrada na Terra Prometida, será plenamente organizado e celebrado nos dois grandiosos Templos em Jerusalém. Os cinco primeiros livros da Bíblia cobrem um extenso panorama da Memória das Façanhas Divinas realizadas em favor de Israel. capítulo 1 • 17 Tudo isso para dizer que somente a partir de uma concepção baseada em tra- dições religiosas, literárias e teológicas pode-se entender um pouco melhor a com- plexa dinâmica da formação destes livros, que só podem ser lidos adequadamente em conjunto, como histórias que se entrecruzam. Mas o que são tradições bíblicas? Tradições bíblicas Tradição é uma palavra com origem no termo em latim traditio, que significa "entregar" ou "passar adiante". A tradição é a transmissão de costumes, comportamentos, me- mórias, rumores, crenças e lendas para pessoas de uma comunidade, sendo que os elementos transmitidos passam a fazer parte da cultura. Fonte: <https://www.significados.com.br/tradicao/>. A palavra tradição é proveniente do latim: tradere (transmissão). Supõe uma valiosa informação, experiência, conhecimento que deva por isso mesmo ser trans- mitida, oral ou por escrito, de uma geração à outra. A ideia de tradição, que inicialmente designava o ato de transmitir objetos materiais, foi, em seguida, aplicada à perpetuação de doutrinas e de práticas reli- giosas, e levada de uma geração à outra pela palavra e pelos exemplos vivos. Dali o termo se estendeu ao conjunto dos conteúdos assim comunicados. Neste contexto é preciso entender que tradições não se justificam sem a pre- sença de uma forma social que as exijam, construam e transmitam. Ou seja, não tem sentido falar de uma transmissão se esta não diz respeito aos afetos e interesses de um grupo social. Por isso, o contrário da tradição é o esquecimento. As tradições, por isso, são molduras de crenças e concepções essenciais da identidade de um grupo (tribo, sociedade ou civilização). As tradições funcionam como ‘cápsulas do tempo’ que permitem e doam so- brevida e perpetuação às ideias, aos conceitos, a cosmovisões, isto é, auto-concep- ções de vida, que determinam a identidade de uma coletividade e, por isso, exigem sua proteção, transmissão e perpetuação por parte deste grupo social. Ora, no longo processo histórico entre a vivência da ação divina, a Revelação e a sua transmissão oral e, em seguida, por escrito, ocorre que estes eventos sagrados que identificam o Povo de Israel como destinatário e portador de uma Mensagem Divina sejam preservados e comunicados em sua plena significação. capítulo 1 • 18 Estes fatos e narrações além de ouvidos e lidos são ritualizados pela liturgia, e se estruturam como regras (normas) do comportamento moral da comunidade ligada a estas tradições. Dada a complexidade da Revelação Divina, inicialmente entregue aos pa- triarcas (Abraão) e depois, mais efetivamente a Moisés (A Libertação Pascal e o Decálogo), e porque isto implicou em uma grande extensão de tempo, não é de se admirar que em torno deste legado histórico e teológico tenha-se construído uma multiplicidade de vozes e interpretações. Tudo isso encontramos nos eventos fundadores da história de Israel. Desde o período patriarcal de Abraão a Jacó, incluindo seu filho José, que de- termina a ida e permanência de Israel no Egito. E, depois a longa saga de Moisés, entre a libertação no Egito e os ‘40 anos’ (tradição) no deserto. Esta grande variedade de modos de ver e acentuar os significados da identi- dade Divina (Quem era o Deus que lhes falava?) registrado nas sagas e narrações Pentateuco apresenta e justifica os fatos e as direções tomadas por Israel ao longo de sua História. Javista – Eloísta – Sacerdotal e Deuteronomista Não por acaso, as primeiras tradições em torno das quais os exegetas no fim do século XIX, início do século XX, irão nomear serão as seguintes: Javista e Eloísta. E por quê? Era evidente que a designação divina nestes ambientes, reconhecidamente presente em cada conjunto de textos ou coleções tornou-se o critério para expli- car-lhes como pertencentes a esta ou àquela tradição. Dois ‘nomes’ Divinos se destacam e de certa maneira organizam estas coleções: Javé e Elohim. Nestas coleções designadas por estes dois distintos designativos divinos, perce- bem-se características do Único Deus, tratadas de modo exclusivo. Ora, se afirma a proximidade de Deus, acentuada pelo tratamento descritivo de Deus, através de ‘antropomorfismos’, isto é, atribui-se a Deus adjetivos e ca- racteres (morfismos) humanos (ântropos) como ciúme, ira, violência, paixão (...) em busca de intensificar a proximidade divina do humano, isto é sua imanência. Ora, ao contrário, acentua-se a sua distância da vida humana. Sendo santo, Ele é sempre o “Outro”, não se confunde nem se mistura, como os ‘ídolos’, com as realidades humanas, Ele é essencialmente Transcendente. capítulo 1 • 19 Encontraremos também outras designações das tradições do Pentateuco que indicam não somente as características divinas, mas os grupos envolvidos na ela- boração e transmissão das tradições. Trata-se da chamada tradição P ou Sacerdotal, (Priester – Sacerdote), pois indica um grupo específico, portador de uma herança e de um espaço privilegia- do de produção, comunicação e transmissão de tradições religiosas: a Liturgia, o Templo, e a conservação das ‘Escrituras’. Os sacerdotes, escribas e doutores são agentes especializados nesta expertise. Pensa-se neste horizonte que a liturgia é a fonte das tradições, isto é, templos e oratórios teriam sido as ‘fábricas’ das tradições mais arcaicas de Israel. Por fim, percebe-se que o longo itinerárioda formação do universo fundador da Fé e da prática de formação da identidade de Israel exige constantes revisões, seja porque a extensão narrativa tornou-se considerável, seja porque a mudança de mentalidade no correr dos tempos exige acertos, em vista de novas perguntas, novos contextos e novas gerações. Pense, por exemplo, como foi diverso o entendimento do passado, cada vez mais longínquo, entre gerações em espaços sociais tão diversos. No momento em que Israel se estabiliza na terra prometida, constrói-se uma identidade política, com uma soberania monárquica (Saul – Davi – Salomão), com a ereção de um Templo Nacional em Jerusalém. Neste contexto não se entende mais a vida e a presença de Deus como foram sentidas e recebidas no ambiente nômade do deserto, não se cultua mais a Deus na Tenda entre tendas (...). Por isso, são necessárias revisões e releituras que englobem novas e permanen- tes interpretações da Lei, da Presença de Deus, da Identidade de Israel. Por isso, a coleção destes textos chamar-se-á ‘Deuteronomista’. Ser fiel às origens exige constantes revisões e aprofundamentos, que, sabemos são inspirações do Espírito de Deus e torna, assim, dinâmica a experiência viva de Deus, aquele de Abraão e de Moisés. Tradição, ao contrário do que pode parecer é uma realidade e uma força dinâmicas. Pois, ao contrário, o que sobraria às novas e seguintes gerações de crentes seria o anacronismo de antigas legendas, incompreensíveis no presente, arcaicas demais para exprimirem no presente e no futuro da consciência dos crentes aquela Beleza e Verdade que as fundou e que as obriga à transmissão perene. capítulo 1 • 20 © E V E R E TT - A R T | S H U TT E R S TO C K .C O M O livro do Gênesis Depois desta digressão, para entender o lugar do livro do Gênesis na Bíblia, voltemos à nossa investigação sobre a questão da revelação ‘natural’ colocada pelo Sl. 19 e que se apoia na compreensão do ato criador de Deus, nos relatos do livro do Gênesis 1-2. Gênesis é um termo grego e significa “origem”, “nascimento” ou ‘surgimento’. Os livros da Bíblia Hebraica não tinham qualquer título. Eram chamados, sim- plesmente, pela primeira ou pelas primeiras palavras. Assim, este foi denominado, simplesmente de ‘Bereshit’1. Os autores da tradução da Bíblia Hebraica para o grego (Bíblia dos Setenta)2 acharam por bem dar aos livros um título de acordo com o seu conteúdo. Como este livro trata do princípio de tudo, chamaram-lhe GÊNESIS, isto é, Livro das Origens. 1 Bereshit (do hebraico ְֵּבראשיִׁת, Bereshít, "no início", "no princípio", primeira palavra do texto) é o nome da primeira parte da Torá. Bereshit é chamado comumente de Gênesis pela tradição ocidental e trata-se praticamente do mesmo livro apesar de algumas diferenças, principalmente no que lida com interpretações religiosas com outras religiões que aceitam o livro de Gênesis. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Bereshit>. 2 Septuaginta é o nome da versão da Bíblia hebraica traduzida em etapas para o grego koiné, entre o século III a. C. e o século I a. C., em Alexandria. Dentre outras tantas, é a mais antiga tradução da bíblia hebraica para o grego, língua franca do Mediterrâneo oriental pelo tempo de Alexandre, o Grande. A tradução ficou conhecida como a Versão dos Setenta (ou Septuaginta, palavra latina que significa setenta, ou ainda LXX), pois setenta e dois rabinos (seis de cada uma das doze tribos) trabalharam nela e, segundo a tradição, teriam completado a tradução em setenta e dois dias. A Septuaginta, desde o século I, é a versão clássica da Bíblia hebraica para os cristãos de língua grega e foi usada como base para diversas traduções da Bíblia. A Septuaginta inclui alguns livros não encontrados na bíblia hebraica. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Septuaginta>. capítulo 1 • 21 Em seus cinquenta capítulos este livro responde a duas formas de origem da aparição de Deus aos olhos humanos. O que em suas respostas colocariam o livro em uma ordem inversa aquela que lemos. Primeiro teríamos o plano história de Israel (12-50,26) e depois o plano Universal, com as narrativas da Criação e do Pecado Humano (1-11,32). De um lado, temos as origens de Israel, uma pergunta histórica, na lógica da Salvação, como a encontramos descrita na saga de Abrão, o Caldeu. Do outro, um campo mais vasto, a História da Criação e do Pecado. Mas, como afirmamos acerca das tradições, a primeira questão das ‘origens’ re- fere-se a Deus, sua Identidade, sua Palavra e os eventos em torno de sua Revelação. Em outras palavras, quem é o ‘Deus de Abraão, Isaac e Jacó’? E ainda, quem é o Deus Criador? A segunda parte do atual livro do Gênesis relata uma destas respostas: Gn 12-50,26 nela se reúne em diversas tradições esta questão. Israel se autocom- preende na medida em que aceita e aprofunda a Revelação aos Pais. Enquanto isso, na primeira parte do Livro do Gênesis está a ação soberana de Deus como criador no Universo. Sabemos que este grau de afirmação da Fé do Povo de Israel em Deus é uma exigência nascida da dura experiência do Exílio, isto é, em torno do sexto século a. C. quando o povo de Israel foi conquistado e exilado para a Babilônia por Nabucodonosor3. 3 O reino do norte (Israel) terminou em 722 com a tomada da Samaria pelos assírios e em 587, quando Jerusalém foi saqueada e o templo destruído pelos babilônios, grande parte da população foi deportada para a Babilônia, terminando, praticamente, também o reino do sul (Judá). Com isso, chega ao fim a monarquia em Israel. Boa parte do povo se encontra no exílio, onde, sem templo, sem rei e sem terra, tenta se adaptar a novas formas de vida e de compromisso com seu Deus. No exílio babilônico, floresce uma literatura que retrata certa desolação, mostra a saudade pela terra que ficou distante, mas também tira, dessa experiência, certas lições de vida e incentiva o povo a não desanimar. Refaz a compreensão de Deus e reconstrói sua imagem a partir dessa experiência de vida. Há grande reflexão em torno desses fatos trágicos e o porquê disso. Desde a destruição de Jerusalém em 587 AC, por Nabucodonosor, até 70 DC, quando acontece nova destruição, agora pelos romanos, esse período é chamado de “período do segundo templo”. São seis séculos de incertezas e decisivos para o “futuro da religião e da sociedade judaica”. Cf. <https://www.paulus.com.br/portal/colunista/nilo-luza/etapas-da-historia-de-israel-o-exilio-na- babilonia.html#.WmciY7xl_IU>. capítulo 1 • 22 Fonte: <https://www.google.com.br/search?biw=1366&bih=588&tbm=isch&sa=1&ei= CmJnWqrSOMasU6z5iZAC&q =nabucodonosor&oq=Nabuc&gs_l=psy-ab.1.0.0l6j0i30k1l4 .708895.712347.0.716400.7.7.0.0.0.0.370.1031. 0j5j0j1.7.0....0...1c.1.64.psy-ab..0.6.1025.0 ...91.1MEipzVj2X0#imgrc=YXXrT8kccD8yGM>: Foi neste período de escravidão e exílio, que o Povo de Israel com a orientação dos profetas (Isaias, Jeremias, Ezequiel, Daniel entre outros) aprende a superação do modelo cosmogônico (gênesis do mundo ou do cosmos) dos pagãos. A religião da Babilônia é politeísta e cria na divinização da natureza como expressão dos deuses. Pela teologia da Criação de Israel torna-se possível pela afir- mação do ‘dogma’ judeu da Criação divina pelo Deus Único e Verdadeiro, aquele de Abrão, Isaac e Jacó. O Amigo de Moisés. Além da questão das origens, colocada nos dois relatos da Criação, temos também a questão delicada da origem do mal, das desgraças, colocada pela menta- lidade pagã, comum à Israel, no Egito e na Babilônia, assim como pela Grécia, em sua mitologia. Israel guarda e comunica uma verdade sobre o Mal humano, que se afasta da confusão panteísta pagã e mesmo, da indiferença ética do mundo pagão, por causa do mistério da liberdade humana. capítulo 1 • 23 A história das origens (1,1-11,32) No primeiro livro da Bíblia Hebraica, o Bereshit (Gênesis), encontramos dois relatos da criação do ser humano. O primeiro está em 1,26-27 (colocado pelos estudiosos como sendo de tradi-ção sacerdotal) e o segundo em 2:7, 18, 21-23 (indicado como tradição Javista). Na verdade, temos a sequência setenária da criação das coisas e das criaturas (ani- mais e vegetais). © C R E AT IV E L A B | S H U TT E R S TO C K .C O M Criação do universo e dos seus habitantes (Gn 1,1-2,4a). Estes textos colocam o acento na certeza que o mundo não é o ‘locus malis’ (lugar do Mal), mas, que o mundo material também vem de Deus. Por isso, depois de cada dia criado, lê-se um refrão, em cinco dias de criação temos cinco juízos de valor positivo sobre o Criado: “E Deus viu que isso era bom”! (cf. vv. 10, 12, 18, 21, 25). O mundo é apresentado como fruto dos ‘lábios’ de Deus, de seu ‘Dabar’ 4, sua palavra criadora. O Deus de Israel é a Gênese de tudo! 4 O termo ‘dabar’ em hebraico significa ao mesmo tempo “palavra” e “coisa”. Cf. <http://www.deldebbio.com. br/2009/07/27/dabar-yod-heh-vav-heh/>. Precisa-se sair de um logos grego que significa palavra e passar para o dabar hebraico que também significa palavra, contudo a diferença gritante entre estas duas alocuções é que para o capítulo 1 • 24 Enfim, chegamos aos v. 26, com o centro da Criação. Neste versículo ocorre uma afirmação até então inédita, que Deus se deixa traçar em sua própria obra criadora: “Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra”. OS SETE DIAS DA CRIAÇÃO (GÊNESIS 1:1 ATÉ 2:3) PRIMEIRO DIA APARECIMENTO DA LUZ (GÊNESIS 1:1-5). SEGUNDO DIA CRIAÇÃO DO FIRMAMENTO (GÊNESIS 1:6-8). TERCEIRO DIA A TERRA É SEPARADA DO MAR (GÊNESIS 1:9-10). SURGIMENTO DE PLANTAS (GÊNESIS 1:11-13). QUARTO DIA CRIAÇÃO DOS LUMINARES (SOL, LUA...) (GÊNESIS 1:14-19). QUINTO DIA CRIAÇÃO DE PEIXES E PÁSSAROS (GÊNESIS 1:20-23). SEXTO DIA CRIAÇÃO DE ANIMAIS E DO HOMEM (GÊNESIS 1:24-31). SÉTIMO DIA DEUS DESCANSOU E SANTIFICOU O SÉTIMO DIA (GÊNESIS 2:1-3). O Salmo 19: Deus se autocomunica na criação Dabar significa, em hebraico, “palavra”. Pode também ser traduzida por “coisa” ou mes- mo “ação”. Lógos é também “palavra”, podendo ser também “coisa”, “fato” e muitas ve- zes aparecem traduzidas como Verbo. A palavra gera uma ação em Gênesis 1,1-2,4a, o poema da criação da escola sacerdotal. (NEGRO, 2009, p. 43). NEGRO, M. A teologia da Revelação a partir da Escritura na Igreja: Anotações de Alguns Pontos relativos à Teologia da Revelação. Revista de Cultura teológica - v. 17 - n. 68 - Jul/dez – 2009. A partir da noção de ‘dabar’, categoria da teologia ou compreensão da Palavra de Deus, a expressão de seu desempenho criador, entendemos que salmo 19 é uma peça entre inumeráveis relatos pelos quais encontramos o cerne da ‘teologia da Criação’ do Antigo Testamento. O Deus dos Pais, de Abraão, Isaac e Jacó é o Deus da Criação. Mas porque isso se relaciona com a Revelação? grego esse logos é no sentido contemplativo e para o hebreu o dabar é no sentido de ação criativa. Cf. <http://blog. cancaonova.com/seminario/do-logos-ao-dabar/>. capítulo 1 • 25 No ato da Criação Deus expressa-se a si mesmo, Ele, de certa forma plasma nas coisas, algo de sua Transcendência. O mundo tem em sua estrutura ‘marcas inefáveis’ do seu Criador. Agostinho de Hipona, no século V, chamava a Criação de ‘vestigia Dei’ (os vestígios de Deus), porque Deus quis que se encontrasse na beleza, na harmonia, na legalidade da Natureza um caminho para Si. O mundo criado antes das criaturas humanas era o berço no qual, pela primeira vez se pode- ria interpretar a Presença amorosa e onipotente de Deus: Então plantou o Senhor Deus um jardim, da banda do oriente, no Éden; e pôs ali o homem que tinha formado. Tomou, pois, o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Édem para o lavrar e guardar (Gn 2, 8.15). Fonte: <http://biblia.com.br/joao-ferreira-almeida-atualizada/genesis/gn-capitulo-2/>. Acesso em: 31 out. 2017. Segundo o livro do Gênesis no ato criador das coisas (mundo ou natureza) Deus presenteia suas criaturas humanas, com todos os dons necessários à vida, ao trabalho (‘para o lavrar e guardar’), à contemplação. No centro do mundo criado, qual ‘jardim oriental’ (um oásis em meio ao deserto) estabelecia-se o campo de relacionamento entre Deus, o Criador e suas criaturas. O ‘Paraíso’ era um espaço de condivisão entre Deus e os homens. Este é o motivo porque também os ídolos das nações serão julgados, porque, na criação de Deus, eles se tornaram uma abominação, objetos de escândalo para os homens, e la- ços para os pés dos insensatos. É pela idealização dos ídolos que começou a apostasia, e sua invenção foi a perda dos humanos. Eles não existiam no princípio e não durarão para sempre; a vaidade dos homens os introduziu no mundo. E, por causa disso, Deus decidiu a sua destruição para breve. Contudo, o castigo os atingirá por duplo motivo: porque eles desconheceram a Deus, afeiçoando-se aos ídolos, e porque são culpados, por desprezo à santidade da religião, de ter feito juramentos enganadores (Sb 14, 11-14. 30). Revelação natural: Entre a idolatria e o louvor da criação Tudo seria muito simples, quase automático, isto é, encontrar a Deus em suas coisas criadas, se não tivesse ocorrido o ‘pecado’ (Gn 3, 1- 24): O texto pode ser visto através da ótica narrativa como uma obra de arte da sequencialidade narrativa. Encontramos as circunstâncias do ‘delito’, no diálogo entre a serpente, “o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus capítulo 1 • 26 tinha formado” 5, preparando a atmosfera de leitura/audição. Algo de ruim poderia acontecer. Fonte: <https://int.search.tb.ask.com/ search/AJimage.jhtml?&searchfor=a+se rpente+do+pecado+original&n=783ad9 2f&p2=%5EBYJ%5Exdm143%5ETTAB 02%5Ept&ptb=1433B53E-FB1C-4C54- 86DD-9A38B4918EF0&qs=&si=&ss=su- b&st=sb&tpr=sbt&ts=1516727344937&i mgs=1p&filter=on&imgDetail=true>. A serpente é usada como símbolo da fertilidade, da prostituta sagrada. É sím- bolo da religião Cananéia: É símbolo da sabedoria, da esperteza (por isso tem que ser esmagada, pisada) e carre- ga consigo o conhecimento da vida; com ela está o saber econômico, que domina o ter, o trabalho, a mão de obra; o saber religioso e o saber político que diz ao homem ‘sereis como deuses’, tens poder para decidir sobre a vida e a morte, o destino. Fonte: <http://bibliaecatequese.com/genesis-3/>. O texto com toda a sua roupagem ‘fabulística’ e legendária (cobras falam, e andam...) mergulhando o leitor numa atmosfera mais densa que a dimensão prosaica poderia oferecer, coloca-nos diante de um dado muito profundo, a saber, a serpente dialoga com a consciência de Eva. Pois, ela o interroga sobre os man- damentos de Deus no Paraíso: “Ela disse a mulher: É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?”(Gn 3,1). 5 “A serpente é um símbolo poderoso em várias religiões. No judaísmo e no cristianismo, por exemplo, está associada ao mal, por lembrar o fálus e o desejo sexual. No judaísmo, está ligada à transcendência humana pela ligação com Deus, acima do pecado do comportamento sexual, relacionado a Adão e Eva”. Cf. <http://leiturasdahistoria.uol.com. br/veneracao-da-serpente-nas-religioes/>.. capítulo 1 • 27 Está lançado o desafio e a circunstância adequada para a configuração da gra- vidade humana do pecado: estar informado do preceito e por isso, segui-lo ou transgredi-lo livremente! E, eles, estranhamente escolhem a parte errada! A segunda parte do texto inicia-se com a última cena bucólica do entrecru- zamento de Deus e do primeiro Casal, no v.8: “E eis que ouviram o barulho (dos passos) do Senhor Deus que passeava no jardim, à hora da brisa da tarde”. O rumor dos passos de Deus (perspectiva Javista sobre Deus) código da intimidade, agora é alerta e sinal de terror: “O homem e sua mulher esconderam-se da face do Senhor Deus, no meio das árvores do jardim”! Esta reação tão paradoxalrepercutirá na poesia dos Salmos, quando o cantor- poeta se interrogará acerca deste paradoxal comportamento humano diante de Deus (o Criador!): Sl. 139, 7: “Para onde me irei do teu espírito, ou para onde fugirei da tua face?” No v. 7, temos parte deste motivo ou a razão desta reação: eles estavam nus! Diálogo denso, de novo, a partir do pretexto da ‘nudez’, que exprime um en- contro entre o novo estado de consciência das criaturas com o Criador, no v. 11: “O Senhor Deus disse: “Quem te revelou que estavas nu? Terias tu porventura comido do fruto da árvore que eu te havia proibido de comer?”. Deus desmascara a raiz do es- condimento, nus? Não! Mas, despidos de inocência e pureza em sua relação a Deus! Por fim, encontramos a maneira semítica de exprimir as irreparáveis conse- quências da perda da intimidade absoluta com Deus: as maldições ou castigos! v. 16: “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio.” Estão associados agora, a geração e a dor (seria absurdo ler aqui o Sl. 50, 5 quan- do diz “Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe”?) Também o equilíbrio entre homem e mulher, harmonioso e équide na aurora da Criação se transforma em dominação e dependência (desejo). De uma forma inédita se afirma que as relações de dominação entre homem e mulher estão mer- gulhadas na aurora nebulosa do pecado original! Para o homem a situação também não permanecerá a mesma de antes: Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proi- bido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida” (Gn 3, 17). capítulo 1 • 28 Suor, trabalho penoso e fatiga. O fim do estado paradisíaco? Para muitos pen- sadores antigos, no paraíso não há trabalho servil (v. 19: “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto”). Sinais iniludíveis de um estado degradante de vida! Quanto mais longe de Deus, mais a vida humana é árdua e fatigante! Não menor será o próximo sinal do desagrado Divino com Adão: v. 19: “até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar”. Que declínio! Da expressão máxima do Cap. 1, 26s na qual se afirmara a ori- gem humana como ‘imago et similis Dei’, encontramos aqui, o homem definido como ‘pó’. É bem verdade que no Cap. 2, fora dito que nossa origem era o ‘barro’ (2,7: “o homem do barro da terra”). Mas aqui, trata-se da perda de uma semelhança com Deus, a vida perene! Agora a morte entrara na existência humana. O Crepúsculo mais sombrio virá com a expulsão do Paraíso, descrito até en- tão, como o lugar mais adequado ao humano: intimidade com Deus, fartura e harmonia. Tudo perdido! Nos v.23 e 24 se afirma: “O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden”. Eles já não tinham as condições adequadas para permanecer na Presença de Deus. Neste contexto, a visão do mundo sofre uma devastadora ambivalência. De um lado, o mundo criado não pode desmentir ou negar as marcas de seu Criador, do outro, o homem, na situação de ‘expulsão do Paraíso’ tem uma leitura diversa daquela em que ele tinha amizade com Deus. Os teólogos de Israel, pelos salmos e hinos, reconhecem o canto das criaturas como expressão da Teologia da Revelação natural, como lemos em Daniel: Então os três jovens elevaram suas vozes em uníssono para louvar, glorificar e bendizer a Deus dentro da fornalha, neste cântico: 57. Obras do Senhor, bendizei todas o Se- nhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 58. Céus, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 59. Anjos do Senhor, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamen- te! 60. Águas e tudo o que está sobre os céus, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 61. Todos os poderes do Senhor, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 62. Sol e lua, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! capítulo 1 • 29 63. Estrelas dos céus, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 64. Chuvas e orvalhos, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 65. Ó vós, todos os ventos, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 66. Fogo e calor, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 67. Frio e geada, bendizei o Senhor, louvai -o e exaltai-o eternamente! 68. Orvalhos e gelos, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 69. Frios e aragens, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 70. Gelos e neves, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 71. Noites e dias, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 72. Luz e trevas, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 73. Raios e nuvens bendizei o Senhor, louvai -o e exaltai-o eternamente! 74. Que a terra bendiga o Senhor, e o louve e o exalte eter- namente! 75. Montes e colinas, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 76. Tudo o que germina na terra, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 77. Mares e rios, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 78. Fontes, ben- dizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 79. Monstros e animais que vivem nas águas, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 80. Pássaros todos do céu, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 81. Animais e rebanhos, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! (Dn 3, 57-81). Mas, por outro lado, não podem negar que o termo ‘idolatria’, como o lemos no livro da Sabedoria (Cap. 14), a abominação da criação, é um fenômeno dis- perso pelas culturas e experiências religiosas. A Criatura é adorada, venerada e se torna referência de pessoas e povos. Agora é hora de concluirmos nossa reflexão sobre a Revelação Natural com os ensinamentos que provem do Novo Testamento. O Novo Testamento e Revelação natural O tema da ‘’Revelação natural’ não ocupa de modo algum, um espaço central os escritos do Novo Testamento, em particular, nos Evangelhos. Na verdade, Jesus, Revelador escatológico, isto é, O Definitivo, o Último, Aquele por quem exclusivamente se vai ao Pai, ocupa todo o interesse narrativo destes textos, fundamentos da Revelação especial ou propriamente dita. Porém, há testemunhos espalhados por todo Novo Testamento a cerca do papel da natureza nos discursos de Jesus, na Teologia de Paulo. capítulo 1 • 30 © V U K K O S TI C | S H U TT E R S TO C K .C O M Jesus e a Revelação natural Mas o que dizer sobre o papel da natureza na narrativa sobre Jesus? Em diversos contextos a natureza aparece como ‘figurante’ do Cristo em seu desempenho taumatúrgico ou em suas parábolas. Ele modifica a natureza como sinal de sua potência ou simplesmente para exemplificar os fins dos tempos. Outras vezes a natureza constitui o contexto de suas narrações parabólicas, ambientadas no universo campestre (O ‘semeador’, por exemplo: Mc 4,1-20). No seu nascimento, como afirmam os Evangelhos de Lucas (1-2) e Mateus (1-2), a natureza nada revela, simplesmente serve de contexto, Ele nasce entre animais em um estábulo e seu berço uma manjedoura, lugar onde comem os animais domésticos. Enquanto estavam lá, chegou o tempo de nascer o bebê, e ela deu à luz o seu primo- gênito. Envolveu-o em panos e o colocou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria (Lucas 2, 6,-7). No início de sua missão, ele vai para o deserto e convive com as ‘feras’, como se lê em Mc 1, 12s: ‘E logo o Espírito o impeliu para o deserto, onde permaneceu quarenta dias, sendo tentado por Satanás; estava com as feras, mas os anjos o serviam’. capítulo 1 • 31 Neste contexto a natureza simbolizada pelo deserto e as ‘feras’ indica a hostili- dade ao bem, a proximidade do mal, os resquícios da natureza sob os auspícios do demônio em confronto com Jesus. Na sua ação milagrosa, diversas vezes modifica a natureza para indicar seu poder e mistério. © Z V O N IM IR A TL E TI C | S H UTT E R S TO C K .C O M O que se lê em Mc 4, 35-41: ‘Então repreendeu o vento e disse ao mar: “Aquieta- te!”, e o vento parou, fazendo-se uma grande calma. 40 “Porque estavam com tanto medo? Ainda não têm confiança em mim?”’. Na verdade, a natureza não revela nada, mas é palco para que se revele o Cristo, verdadeiro Senhor da natureza. A não ser em Mt 24, 32, onde se lê: ‘Aprendei, pois, da figueira a sua parábola: Quando já o seu ramo se torna tenro e brota folhas, sabeis que está próximo o verão’. Aqui, como no sermão da Montanha, a natureza é Mestra em relação às ‘coisas’ de Deus e do Julgamento: capítulo 1 • 32 Logo depois da tribulação daqueles dias, escurecerá o sol, e a lua não dará a sua luz; as estrelas cairão do céu e os poderes dos céus serão abalados. Então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem, e todas as tribos da terra se lamentarão, e verão vir o Filho do homem sobre as nuvens do céu, com poder e grande glória. E ele enviará os seus anjos com grande clangor de trombeta, os quais lhe ajuntarão os escolhidos desde os quatro ventos, de uma à outra extremidade dos céus (Mt 24, 29-31). Nos discursos escatológicos6 (Mc 13/ Mt 24/ Lc 21) percebe-se que a natureza no processo de destruição e de decomposição é o contexto e o argumento para o tema da nova criação, ou do novo mundo que há de vir, ou seja, da redenção do mundo. Por isso vos digo: Não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer, ou pelo que haveis de beber; nem, quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não valeis vós muito mais do que elas? Ora, qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado à sua estatura? E pelo que haveis de vestir, por que andais ansiosos? Olhai para os lírios do campo, como crescem; não trabalham nem fiam; contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a sua glória se vestiu como um deles. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé? Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de comer? ou: Que havemos de beber? ou: Com que nos havemos de vestir? (Pois a todas estas coisas os gentios procuram.) Porque vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso. Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. 6 “Discurso Escatológico”. Você deve estar se perguntando, o que é a escatologia? São as reflexões que nasceram na comunidade de Marcos, sobre as últimas coisas que vão acontecer antes do fim dos tempos. Se você olhar na margem da Bíblia de Jerusalém, no capítulo 13 de Marcos, você irá encontrar a citação de Mateus 24 e de Lucas 21, que tratam do mesmo assunto. Contudo, Mateus, por exemplo, fala sobre a ruína de Jerusalém, do Templo e do mundo. Enquanto Marcos fala apenas, da destruição de Jerusalém. Como ele é o primeiro evangelho que foi escrito, os estudiosos reconhecem neste texto, um pequeno apocalipse judaico, que se inspirou no livro de Daniel e, foi completado por Jesus. Quais são estas últimas coisas que irão acontecer no fim dos tempos? São fatos assustadores, que metem medo no povo. Este discurso em Marcos, começa com Jesus e os discípulos saindo do templo de Jerusalém. Um dos discípulos chama a atenção de Jesus: “Mestre, vê que pedras e que construções!” É neste momento que ele anuncia a destruição do templo ao afirmar que “não ficará pedra sobre pedra”. Mais adiante, os discípulos lhe perguntaram quando isso iria acontecer? Jesus não responde à pergunta, mas continua o seu discurso sobre o fim: cuidado, que ninguém vos engane, falando em meu nome, dizendo quem “sou eu”. Antes que isso aconteça, haverá guerras, terremotos, fome, nações contra nações, o irmão entregará o irmão, o pai entregará o filho, vocês serão odiados por causa do meu nome. E faz, ainda, outro alerta: quando estas coisas acontecerem, quem estiver na Judéia fuja para as montanhas e quem estiver no terraço não desça, no campo não volte e, ai das mulheres grávidas e das que amamentam, pois, vão encontrar muita dificuldade para se livrar dessa aflição. O Messias intervirá para abreviar estes dias. Depois desta grande tribulação, o sol e a lua escurecerão, as estrelas cairão e os poderes celestes serão abalados. Só depois de tudo isso, o Filho do Homem virá entre as nuvens com grande poder e glória. Ele enviará seus anjos e reunirá os eleitos. E para concluir conta a parábola da figueira e adverte a comunidade dos discípulos a vigiarem, para não serem pegos de surpresa. Cf. <https://www.paulinas.org.br/sab/pt-br/?system=pa ginas&action=read&id=2179>. capítulo 1 • 33 Somente em Mateus 6, 24-33 e em Lucas 12, 20-32 Jesus utiliza a natureza para indicar um comportamento divino: a Providência. A expressão ‘olhai os lírios do campo’ (Mt 6,28), neste ensinamento, indica que a natureza tem algo a ensinar a explicar acerca do Comportamento Divino. Os discí- pulos são chamados a aprender com a natureza. Trata-se, praticamente da única vez em que o modelo da Revelação funciona diretamente como se percebe no Sl. 19. Trata-se de uma afirmação importante. De um lado, este mundo tende a ce- der lugar a um novo contexto, que exprimirá o encontro entre Deus e o homem redimido, isto é, ‘novo céu e nova terra’ Do outro, a decomposição deste mundo assinala que não se deve apegar ao transitório. Por fim no cenário da sua Paixão, a Natureza se revela como termômetro da sua dor, ela é apresentada, como se envolvida pelo drama da luta do bem contra o mal travada no sacrifício de Cristo. Lê-se por isso, em Lc 23,44: ‘E já era cerca de meio-dia, quando as trevas co- briram toda a terra até as três horas da tarde; 45 o sol perdera seu brilho. E o véu do santuário rasgou-se ao meio’. Ou em Mt 27, 45: ‘Então, profundas trevas caíram por sobre toda a terra, do meio-dia às três horas da tarde daquele dia. 46E, por volta das três horas da tarde, Jesus clamou com voz forte: “Eloí, Eloí, lamá sabactâni?”, que significa “Meu Deus, Meu Deus! Por que me abandonaste?”’ © IU R II | S H U TT E R S TO C K .C O M capítulo 1 • 34 São Paulo e nova criação São Paulo, no início da magistral Carta aos Romanos, elabora à luz de Sb 14, entre outros textos proféticos do AT, uma sofisticada discussão sobre a Revelação natural e a idolatria. É o que se lê em Rm 1, 19-32. Porquanto, o que de Deus se pode conhecer, neles se manifesta, porque Deus lho ma- nifestou. 20 Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são clara- mente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas, de modo que eles são inescusáveis; 21 porquanto, tendo conhecido a Deus, contudo não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes nas suas especulações se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. 22 Dizendo-se sábios, tornaram-se estultos, 23 e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis. Fonte: <http://bibliaportugues.com/jfa/romans/8.htm>. Ferreira de Almeida atualizada. Neste texto paulino, temos a clareza bíblica sobre a Revelação Natural em sua relação com a Revelação Especial7. Primeiro Paulo expõe, com extrema clareza, o princípio da Revelação: ‘Porquanto, o que de Deus se pode conhecer, neles se manifesta, porque Deus lho mani- festou’. Ao homem criado Deus se deu a conhecer a Si mesmo. Fundados no princípio da manifestação divina, ele então expõe a condição inequívoca da natureza neste processo revelatório: ‘Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas, de modo que eles são inescusáveis’. São Paulo ainda faz referência à ‘nova Criação’. Na mesma monumentalCarta aos Romanos 8, 18-22 7 A leitura de Karl Barth, teólogo protestante do século XX constitui uma referência nos estudos de São Paulo na carta aos Romanos: FERREIRA, F. Karl Barth: Uma Introdução à sua Carreira e aos Principais Temas de sua Teologia. FIDES REFORMATA. V. VIII. n. 1. Rio de Janeiro, 2003, p. 29-62. Disponível em: <http://www.mackenzie. br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_VIII__2003__1/v8_n1_flanklin_ferreira.pdf>. Acesso 30 de Novembro de 2017. capítulo 1 • 35 Pois tenho para mim que as aflições destes tempos presentes não se podem comparar com a glória que em nós há de ser revelada. Porque a criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus. Porquanto a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que tam- bém a própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, conjuntamente, geme e está com dores de parto até agora. Fonte: <http://bibliaportugues.com/jfa/romans/8.htm>. Ferreira de Almeida atualizada. São Paulo se refere ao fato que a nossa redenção plena terá efeitos solidários so- bre a nova Criação, assim, como o nosso pecado também teve, aliás, nosso pecado se traduz, em parte, na desordem ambiental que se percebe neste século. Veremos através dos ‘Atributos Divinos’ como a Revelação Sobrenatural apre- senta aos homens os diversos ‘dotes’ Divinos, em vista de uma justa relação com Deus, permitindo que nos comportemos adequadamente à sua Vontade! RESUMO Cada capítulo deve ser finalizado com uma breve reflexão sobre o assunto abordado. Um resumo contextualizado também pode ser oferecido, sempre buscando a integração com o aluno. Atividades implícitas em forma de reflexão são interessantes para garantir um exer- cício mental constante do aluno. Optando por embutir atividades em forma de perguntas, é importante oferecer respostas, para que constem ao final como gabarito. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Tradução de FERREIRA, João de Almeida. Disponível em: <http://biblia.com.br/joao-ferreira-almeida- atualizada/salmos/sl-capitulo-19/>. Acesso em: 30 de Outubro de 2017. PETERLEVITZ, L. A Revelação Natural e a Revelação especial no Salmo 19. In: Revista Batista Pioneira. V. 3, n. 2, Dezembro/2014. Disponível em: <http://revista.batistapioneira.edu.br/index.php/ rbp/article/view/67/83>. Acesso em: 30 de Outubro de 2017 Tradução de FERREIRA, João de Almeida. Disponível em: <http://biblia.com.br/joao-ferreira- almeidaatualizada/salmos/sl-capitulo-19/>. Acesso 30 de Outubro de 2017. < https://www.significados.com.br/tradicao/>. NEGRO, M. A teologia da Revelação a partir da Escritura na Igreja: Anotações de Alguns Pontos relativos à Teologia da Revelação. Revista de Cultura teológica - v. 17 - n. 68 - Jul/dez – 2009,. capítulo 1 • 36 <http://biblia.com.br/joao-ferreira-almeida-atualizada/genesis/gn-capitulo-2/>. Acesso em: 31 de Outubro de 2017. <http://bibliaecatequese.com/genesis-3/>. <http://bibliaportugues.com/jfa/romans/8.htm>. Ferreira de Almeida atualizada. Revelação especial 2 capítulo 2 • 38 Revelação especial © W IK IM E D IA .O R G Revelação é o termo técnico pelo qual se expressa o fenômeno mais arreba- tador da História Humana, que Deus seja Sujeito do Conhecimento que temos d’Ele. Ele se auto-manifestou. Sobre o Deus verdadeiro não há conceituação humana, racional ou místi- ca que dê conta da grandeza deste objeto. Só Deus pode falar claramente de si Mesmo, como Mistério último. A Revelação exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relação aos homens. Designa uma realidade expressa pela Escritura, sem ser, contudo, a própria Escritura. A Revelação, por conseguinte, ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a rea- lidade ultrapassa a sua expressão escrita. Poder-se-ia também dizer que a Escritura é o princípio material da Revelação. RATZINGER, J. Teses sobre a relação entre a Revelação e a Tradição. 1. A Revelação e a Escritura. Disponível em: <https://firmatfides.files.wordpress. com/2011/12/revelac3a7c3a3o-e-tradic3a7c3a3o_joseph-ratzinger.pdf.> Acesso em: 30 out. 2017. Mas por que falar de Revelação ‘especial’ ou sobrenatural? No Capítulo anterior pudemos ver a relevância da Revelação Natural. De que maneira a Criação em torno da nossa vida nos fala de Deus, ao mesmo tempo que, capítulo 2 • 39 permanecendo natureza é cenário da Comunicação de Deus conosco, como vimos no estudo do Salmo 19. Mas, Deus se apresenta somente pela Natureza? Ele nos tem falado exclusi- vamente através das coisas que Ele criou? O Judaísmo não seria o evento de uma Palavra Pessoal, que culmina no Cristianismo? Deus se mostrou como uma Presença na vida daquele Povo, pela sua Palavra, dirigida pessoalmente a Abraão (Gn12) a Moises (Ex 4) e particularmente aos Profetas (Is 5, Jer 2 e etc...): “Ora, o Senhor disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela, e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei” (Gn 12,1). Aprenderemos neste Capítulo que Deus aproximou-se de nós, e, livre e so- beranamente, apresentou-Se a Si Mesmo. Revelou-se. Assim, ele tornou-se aos nossos olhos, distinto de sua Criação. A natureza permanece uma fonte de conhecimento de Deus. Mas, como vi- mos no Capítulo anterior, a natureza não é divina, não pode ser idolatrada, como se ela fosse um Deus escondido. A Revelação especial envolve assim uma pergunta fundamental: Como co- nhecemos a Deus? Por Ele mesmo! Conhecemos a Deus e à sua Vontade Salvífica, porque Deus mesmo quis auto-revelar-Se aos homens, a começar por Israel. O conhecimento de Deus realiza-se assim, como um encontro da razão hu- mana com a revelação de Deus, assim, nasce a teologia, seus fundamentos, sua razão de ser. O conhecimento racional e integral da Verdade Divina apresentada aos homens e mulheres. Outro aspecto importante é a historicidade. A Revelação como processo comunicativo ocorreu de modo exemplar no de- correr do desenvolvimento do Povo de Israel. E teve seu auge, na Revelação do Cristo, plenitude do Conhecimento de Deus, por Ele mesmo: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai” (Jo 1,14). Vamos então mergulhar neste tema fascinante. Da Revelação especial deriva toda a riqueza da teologia. Além disso, conhecer corretamente a Deus, isto é, como Ele quer ser conhecido muda a vida, entra no mundo a Fé, resposta adequa- da à Revelação. Pois Deus não se revela a nós, pelo simples conhecimento. Deus é verdade que salva e modifica o presente e futuro da vida humana. E por fim, vamos entender as relações que se estabelecem entre o conceito de Revelação especial ou sobrenatural e os conceitos de Religião, em geral. capítulo 2 • 40 OBJETIVOS • Conhecer o conceito de Revelação Especial. Deus falou-nos de si Mesmo? • Perceber a relevância das Escrituras, da Bíblia, no conhecimento de Deus; • Estudar as relações entre a Revelação e as religiões; • Analisar o desenvolvimento histórico do processo da revelação ao longo da História. Do Judaísmo ao Cristianismo? A Revelação: conceito fundamental para a teologia e a religião O que é Revelação e por que é ela, apesar de sua origem imediatamente divina, o que há de mais íntimo na história humana? Como pode ela identificar-se com a história da humanidade, sem deixar de ser uma singular graça de Deus? Como pode a Revelação estar sempre e por toda parte, a fim de operar sempre e por toda parte a salvação, sem, com isto, deixar de estar aqui e agora, na carne de Cristo, na Palavra dos Profetas que falam precisamente dela na letra da Escritura? Poderá ela ser por toda parte o “motivo” íntimo, a força motora da história, sendo, ao mesmo tempo, uma ação libérrima de Deus, impossível de ser medida em sentido ascendente, a partir da História? Não é, por outro lado, o milagre uma graça divina ocorrida hicet nunc e realizada “uma vez para sempre”? RAHNER, K. Observações sobre o Conceito de Revelação. Disponível em: <https://firmatfides. files.wordpress.com/2011/12/revelac3a7c3a3o-e-tradic3a7c3a3o_joseph-ratzinger.pdf>. Acesso 30 de Outubro de 2017. Fonte: <http://www.istitutoeuroarabo.it/DM/che-significa-rivelazione/>. capítulo 2 • 41 A experiência da Revelação como a conhecemos ou entendemos a partir das Sagradas Escrituras e na compreensão das Igrejas, em suas ‘tradições’ hermenêuti- cas ao longo da história das interpretações suscita pela sua grandeza, muitas inter- rogações à inteligência e às consciências religiosas8. Quando nos referimos ao fenômeno da Revelação devemos considerar ao me- nos que a compreensão correta deste âmbito implique no estabelecimento de dois polos, necessariamente implicados: “O que é Revelação e por que é ela, apesar de sua origem imediatamente divina, o que há de mais íntimo na história humana?”, perguntava-se o teólogo Karl Rahner. De um lado, trata-se de um fenômeno complexo, pois envolve diretamente a Pessoa de Deus, em sua Verdade e Ação. A Revelação aponta um processo no qual, o conteúdo desvelado é o próprio Deus. Não se trata de uma ‘notícia’ sobre Deus (Theologia= esforço para entender a Deus), mas de uma ‘auto-Comunicação Divina’: “Como pode ela identificar-se com a história da humanidade, sem deixar de ser uma singular graça de Deus?” Do outro lado, é necessário considerar dentro da esfera da comunicação que a Revelação é uma ação Divina na esfera humana, que se volta para a recepção e compreensão humana, em vista da sua Salvação. O homem para quem se dirige a Revelação Divina a recebe como Mensagem ‘conditio sine qua non’ (condição sem a qual, portanto, indispensável) para a supe- ração de seu estado de alienação e pecado. A Revelação, deste modo, é uma Ação Divina que resgata a consciência huma- na, na medida em que é recebida como Verdade e Luz: Poderá ela ser por toda parte o “motivo” íntimo, a força motora da história, sendo, ao mesmo tempo, uma ação libérrima de Deus, impossível de ser medida em sentido ascendente, a partir da História? No momento em que é traduzida mística (culto/religião) e moralmente (man- damentos/Ética) no contexto da História que se desenrola como campo de deci- sões vitais da liberdade humana. Os conceitos válidos de Deus que conhecemos e que constituem o conteúdo da teologia (teo=grego, significa Deus – logia- grego, significa conhecimento) têm sua fonte e origem nesta esplêndida experiência: Deus falou-nos de Si mesmo. 8 Um artigo interessante sobre este argumento: WIEDENHOFER, Siegried. Revelação. In: EICHER, Peter. Dicionário de Conceitos Fundamentais da Teologia. São Paulo: Paulus, 1993, p. 792-800. capítulo 2 • 42 Fonte: <http://www.istitutoeuroarabo.it/DM/wp-content/uploads/2016/10/3.-Vultus- trifons-Scuola-di-P.-Lorenzetti-Gualdo-Tadino-PG-sec.-IX.jpg>. Em torno do conceito de Revelação na teologia O conceito de Revelação é de certa forma o conceito-chave da teologia atual. Para fora (o grifo é nosso) ele funciona como categoria básica de teoria do conhecimento, ou seja, como critério último de legitimação e delimitação com respeito a outras reli- giões e cosmovisões, à razão, à filosofia e à ciência (revelação como origem, funda- mento e limite da fé e da teologia) (WIEDENHOFER, 1993, p. 792). Ser ‘conceito-chave’ já é uma defi nição deste conceito no universo dos estudos teológicos. Acrescente-se a isso, ser uma referência obrigatória na compreensão atual da teologia, isto é, a revelação especial não é um conceito secundário ou ultrapassado na discussão da teologia, joga ainda um papel decisivo na lógica da teologia, como conhecimento acerca de Deus, da sua Ação e dos efeitos sobre a vida humana, a sociedade e as culturas. A revelação é um critério externo à epistemologia (discurso do conhecimento racional implicado no esforço da teologia) teológica: ‘como critério último de legitima- ção e delimitação’. A revelação é entendida como a ‘identidade’ do discurso teológico. capítulo 2 • 43 Como compreender a teologia, isto é, o discurso racional sobre Deus? Através da experiência de Auto-Comunicação divina. O que Ele afirmou sobre Si mesmo é o que nos permite afirmar sobre o que cremos? Portanto, para o discurso e ação da teologia ‘ad extra’ (para fora) a revelação funciona como uma carteira de identidade para que diversos discursos teológicos se encontrem e se possam estabelecer formas de diálogo. O tema da identidade teológica trazida à tona pelo conceito de revelação es- pecial nutre, ao mesmo tempo, para dentro do mundo das religiões e das justifica- ções religiosas, certa fronteira. Identidades marcam e delimitam os discursos e as práxis numa ação que con- fronta fisionomias entre aqueles fenômenos que designamos religiosos, isto é, que dependem de uma fenomenologia da religião. Para dentro, (o grifo é nosso!) ela (a revelação) a serve de categoria hermenêutica básica, ou seja, como critério último de interpretação com respeito à tradição da fé, ao seu caráter salvífico, à sua normatividade e unidade (revelação como origem, objeto centro e norma da tradição eclesial). Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 792. Outra função de ordem interna especifica a relevância do conceito de revelação. Para os teólogos contemporâneos o conceito de revelação continua a situar-se nas origens do discurso teológico, serve de conceito fundador para a experiência e a racionalização da teologia. Por que falar de Deus, se não há ‘evidências’ de sua existência ou interesse por nós? Mais ainda, a revelação é um conceito que explicita o desenvolvimento da tradição eclesial, como um mecanismo de auto-reconhecimento. Isto é, a comuni- dade pode avaliar os processos históricos, as decisões culturais, as teologias que se desenvolveram ou que foram refutadas no interior das Comunidades, pela análise deste conceito-eixo. As ‘reformas’ seriam possíveis na medida em que se reconhecem as interpreta- ções como legitimamente inspiradas nesta visão trazida pela Revelação. As crises entre as tradições cristãs e ao interno delas se colocam dentro deste âmbito de compreensão trazido pela revelação, e seu papel central na lógica do desenvolvimento de comportamentos e interpretações sobre o núcleo da Fé. capítulo 2 • 44 Por isso, para diversos autores, como Wiedenhofer (1993), a revelação é ‘con- dição de possibilidade’ do discurso teológico, mas também, ‘condictio sine qua non’, isto é, condição indispensável para a formulação de Fé: Enquanto revelação significa a condição de possibilidade da fé como seu lado avesso, o conceito de revelação pode, por fim, designar também a totalidade da fé cristã e ser entendida com razão como “conceito transcendental-teológico”. Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 792. É bem verdade que no contexto atual deveremos falar cada vez mais no plural, pois não há em voga uma exclusiva teologia da revelação, dado que seu conteúdo encontra-se espalhado e fragmentado em diversas visões, seja pelo Catolicismo romano ao longo dos últimos séculos, seja pelas diversas tradições da reforma protestante do século XVI, e ainda pela diversidade de experiências religiosas que postulam na existência de Deus, que se revela no âmbito de visões e audições extraordinárias. A emersão da pluralidade religiosa como eixo de certa modernidade, isto é, uma cultura que se afasta das grandes tradições religiosas e se interessa pela lingua- gem existencial da religião, uma experiência típica de indivíduos, superiores às co- letividades, traz consigo o problema da unidade de Deus, que parece tão afirmada nas religiões do Livro, isto as religiões das revelações especiais, como religiões da universalidade da identidade divina: O contexto filosófico e social das hodiernas teologias da revelação acha-se ainda marcado estruturalmente em larga escala pelas questões e respostas da Ilustração europeia dos séculos XVII e XVIII (...). Pois a pretensãoabsoluta de verdade por parte de uma revelação histórica de Deus continua a aparecer com frequência como con- tradição direta à liberdade e à razão, assim como também à finitude e a falibilidade do homem, e, sendo assim, como expressão imediata de irracionalismo e dogmatismo. Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 792. Vamos entender melhor o que é a Modernidade, na qual estão inseridas algu- mas questões e discussões importantes sobre a Revelação, inserida no contexto do cristianismo e da religião em geral? capítulo 2 • 45 Modernidade e religião: contexto das discussões atuais da Revelação Desde a Revolução Francesa são promovidos debates em diversas áreas sobre o que é o tempo em que se vive, denominado de moderno, e como é o sujeito fruto de seu período. Acreditou-se que esse homem, fruto de lutas históricas e sociais, seria um novo ser, livre, emancipado das amarras religiosas, econômicas, ideológicas, sociais, familiares, capaz de se autogerir, tornando-se o condutor de sua história. Em outros termos, um dos universais da modernidade ocidental é a suposição dominante de que o homem, em sua subjetividade, na sua constituição mais ínti- ma, é o centro e o fundamento do mundo. Mas este processo tão complexo nunca foi linear, houve em seu percurso, diversas ‘nuances’, que às vezes significaram discordâncias, outras vezes, diversidades (ZEPEDA, 2010). Em texto antológico, Rouanet (2001) propôs uma intensa reflexão sobre a modernidade do ponto de vista de sua ‘crise’ ou mal-estar. Este ‘projeto civilizatório’ da modernidade que está em plena crise, na opinião de diversos autores, tem como ingredientes principais os conceitos de universali- dade, individualidade e autonomia. A universalidade significa ‘que ele visa todos os seres humanos, independente- mente de barreiras nacionais, étnicas ou culturais’ (ROAUNET, 2009, p. 9). A individualidade significa ‘que esses seres são considerados como pessoas concretas e não como integrantes de uma coletividade e que se atribui valor ético à sua crescente individualização’ (ROAUNET, 2009, p. 9). A autonomia significa ‘que esses seres humanos individualizados são aptos a pensarem por si mesmos, sem a tutela da religião, ou da ideologia, a agirem no espaço público e a adquirirem pelo seu trabalho os bens e serviços necessários à sobrevivência material’ (ROAUNET, 2009, p. 9). Mas, segundo a maioria da percepção dos autores, a partir do século XX o pro- jeto civilizatório organizado em torno desta tríade conceptual, está em plena derro- cada para alguns, ou em transformação, para outros. Com a gênese deste projeto ci- vilizatório, dito moderno, surgem, na mesma Europa, em particular do século XVIII em diante diversas frentes reativas, nas artes, na literatura, na Filosofia (ZEPEDA, 2010) que buscaram desarticular a hegemonia das premissas do ‘espírito moderno’. Quais são as maneiras pelas quais a pós-modernidade forja conceitos substitutos e repudia conceitos da modernidade ou, de modo alternativo, até que grau procu- ra-se construí-los em vista das recentes mudanças cognitivas, tecnológicas e sociais, mesmo se situando, todavia, no interior do quadro referencial da modernidade? capítulo 2 • 46 Finalmente, propor-se-á aqui uma alternativa à análise pós-moderna, uma al- ternativa que depende de características básicas do pensamento moderno e que, entretanto, incorpora eventos que transformaram inegavelmente o homem, a máquina, o material e a epistemologia nas últimas décadas e que, desse modo, redesenha o mapa da modernidade especificando os componentes e os modos de interação e extensão alternativos. Essa hipótese pode ser vista como uma ponte entre a modernidade clássica e a pós-modernidade e, também como um desvio em relação a estas. Como a Civilização que tínhamos perdeu sua vigência e como nenhum ou- tro projeto de civilização aponta no horizonte, estamos vivendo, literalmente um ‘vácuo civilizatório’ (postura de Rouanet em contraste com a perspectiva de Huntington (1996), que propõe um modelo plural (muçulmano, asiático e africa- no) como agenda alternativa, num intenso ‘choque de Civilizações’). Um período, segundo, Rouanet (2001), denominado como da ‘Barbárie’, que segundo ele, estaria produzindo diversas alternativas em relação ao ‘estado da questão’. Ele identificaria ao menos três tipologias de reação diante da ‘barbárie’ contemporânea. A primeira consistiria em ‘deixarmos em paz os bárbaros, sem lhes infernizar a existência com valores civilizados’ (ROUANET, 2001, p. 12). Neste universo os ‘bárbaros’ têm uma boa imagem, não incomodam, eles repre- sentariam, inclusive, aos olhos eirênicos atuais, uma expressão saudável de atitudes da ‘contracultura’, bem vistos, em muitos ambientes. O segundo caminho ou reação diante da ‘barbárie’, segundo Rouanet (2001), seria um projeto antimoderno. O terceiro e último elemento de reação à modernidade indicado por Rouanet (2001), aí, ele o identifica com o projeto do “Iluminismo”, que propõe uma socie- dade de natureza ‘neomoderna’: ‘Consiste na capacidade de manter o que existe de positivo na modernidade, corrigindo suas patologias’. Na verdade, no epicentro da Modernidade, ocorreu a sua forma mais integral, aquela do Iluminismo, do qual a “Ilustração”, foi sua concreta expressão histórica. Na Ilustração, pressupunha-se a validade universal desses princípios, a uni- versalidade, o individualismo, e a autonomia (civitas máxima) por se basearem numa natureza humana igualmente universal, no sentido que todos os homens têm uma estrutura passional idêntica. Outra originalidade da Ilustração foi seu foco individualizante. Nas sociedades tradicionais, o homem só existia como parte do coletivo - do clã, da gens, da polis, do feudo, da nação. Além disso, libertando o homem da inserção comunitária, a Ilustração os co- loca em posição de exterioridade com relação ao mundo social, o que permite capítulo 2 • 47 transformá-los em observadores e juízes de sua própria sociedade. Mas, segun- do, Rouanet (2001, p. 16) nem tudo foi rosa. A radicalização da individualidade numa sobreposição brutal, em alguns momentos levaria a perdas sociais, em ter- mos de consciência coletiva e de ação social. No entanto, o conceito central da Ilustração é aquele da autonomia. Este es- tava no cerne do processo civilizatório da modernidade, pois se tratava de libertar a razão do preconceito, isto é, da opinião sem julgamento. Até este momento a inteligência humana era tutelada pela autoridade, religiosa ou secular. O gênero humano para os iluministas ilustrados subjazia em estado infantil de minoridade. Este processo de ilustração deveria liberar o homem de todo o jugo e promovê-lo à vida adulta. Neste contexto era evidente a importância da crítica à Religião, por parte das forças da Ilustração: Donde a importância da educação, na perspectiva do Iluminismo, que se ex- pressa concretamente na Ilustração. Eles a percebiam como única forma de imu- nizar o espírito humano contra as investidas dos obscurantismos. Deste modo, a Religião no contexto da Modernidade encontrará embates e empatias com os projetos elaborados pelo Iluminismo, a autonomia talvez seja o elemento mais contundente nesta tórrida relação. Em suma, para entender melhor contexto o qual se encontra e com o qual interage a religião na modernidade iluminista, e suas consequências para os ce- nários da crise ‘pós-moderna’, não se pode subestimar a tensão da religião com as decisões civilizatórias na modernidade, em particular no que se referia à ‘autono- mia intelectual’. Passaremos assim, à análise do fenômeno “Religião” em si para então entender melhor as suas relações com conceitos, atitudes e convicções da Modernidade em relação à Revelação e suas relações com a história das Religiões. A Revelação e a história das religiões Segundo Garcia-Alandete (2009), o fenômeno religioso, por suas caracterís- ticas intrínsecas, reconhecidas por todos analistas e epistemologias empregadas, torna-se