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249 BIOÉTICA CLÍNICA – REFLEXÕES E DISCUSSÕES SOBRE CASOS SELECIONADOS Resumo Ao participar de congresso internacional, urologista fica con- vencido da eficácia de um novo medicamento contra disfunção erétil, tornando-se o primeiro (e até então, o único) médico brasileiro a receitá-lo. Animados com o resultado, seus pacientes in- centivam-no a participar de programa de televisão, com o objetivo de “ajudar outros homens”. Exposição dos detalhes Até comparecer a um congresso internacional, urologista adota como conduta receitar os medicamentos mais conhecidos à gran- de parte de seus pacientes com disfunção erétil – com exceção daqueles que apresentam condições que desaconselham o uso desses remédios. Por isso, entusiasma-se ao tomar conhecimento de nova droga já aprovada e licenciada no exterior, capaz de atender a uma gama maior de doentes, por apresentar poucos efeitos adversos. Convicto dos benefí- cios, passa a recomendá-la em consultório particular – leia-se, entre os clientes com poder aquisitivo elevado e que podem importar o produto. Animados pelo resultado, os pacientes apregoam entre seus conhe- cidos os resultados “milagrosos” obtidos pela prescrição do “seu” médi- co – até então, pioneiro do uso da droga no país. Rapidamente as informações chegam aos meios de comunicação e o profissional é convidado a conceder entrevista em programa vespertino de CASO 24 Publicidade 250 televisão que, entre um participante e outro, apresenta merchandising vari- ado, inclusive de remédios e produtos da chamada medicina “alternativa”. Preocupado com a associação de sua imagem a tal tipo de propagan- da, o médico fica em dúvida entre aceitar ou não. Teme, ainda, eventual acusação de “concorrência desleal” por parte de colegas – já que ele é o único a empregar o novo medicamento e que, portanto, indiretamente estaria fazendo propaganda de si e de seu consultório. Depois de refletir, cede aos argumentos de seus pacientes de que tal aparição, na verdade, serviria para “ajudar muitos homens, sem opção de tratamento”. Eixo Central Limites entre divulgação e autopromoção Pergunta-base: Quando acaba a divulgação científica e começa a autopromoção? Argumentos ■ Nenhum médico está proibido de expressar pontos de vista a jornalistas de veículos destinados à população em geral. Entre- tanto, todo o cuidado é necessário: a publicidade deve obedecer exclusi- vamente a princípios éticos de orientação educativa, não sendo compa- rável àquela correspondente a produtos e práticas meramente comerci- ais. E, em hipótese alguma, pode ferir as regras éticas de concorrência com seus pares. ■ O Art. 131 do Código de Ética Médica veda ao profissional “permi- tir que sua participação na divulgação de assuntos médicos, em qualquer veículo de comunicação de massa, deixe de ter caráter exclusivamente de esclarecimento e educação da coletividade.” ■ Porém, analisando sob um ponto de vista mais abrangente, pode-se argumentar que o próprio Código recomenda ao médico que divulgue, ao máximo, informações que poderiam ser úteis aos pacientes. O Art. 5º, por exemplo, determina que “aprimore continuamente seus conhecimentos e use o melhor do progresso científico em benefício do paciente.” CASO 24 – PUBLICIDADE 251 BIOÉTICA CLÍNICA – REFLEXÕES E DISCUSSÕES SOBRE CASOS SELECIONADOS ■ A Resolução CFM 1.701/03 (critérios norteadores da propaganda em Medicina), em seu Art. 3º, item “c”, veda ao médico “participar de anúncios de empresas ou produtos ligados à Medicina”; item “h”, anun- ciar a utilização de técnicas exclusivas e item “j”, garantir, prometer ou insinuar bons resultados de tratamento”. ■ A mesma Resolução, Art. 9º, estabelece que “por ocasião das en- trevistas, comunicações, publicações de artigos e informações ao públi- co, o médico deve evitar sua autopromoção e sensacionalismo, preser- vando, sempre, o decoro da profissão”. ■ É entendida como “autopromoção” a utilização de entrevistas, in- formações ao público e publicações de artigos com forma e intenção de: angariar clientela; fazer concorrência desleal e pleitear exclusividade de métodos diagnósticos e terapêuticos, entre outros pontos. Como “sensa- cionalismo”, comportamentos como utilizar a mídia para divulgar méto- do e apresentar, em público, técnicas e métodos científicos que devem limitar-se ao ambiente médico. ■ A Lei Federal 9.294/96, que dispõe sobre restrições ao uso e pro- paganda de medicamentos, diz que “a propaganda de medicamentos e terapias de qualquer tipo ou espécie poderá ser feita em publicações especializadas dirigidas direta e especificamente a profissionais e insti- tuições de saúde”. Eixos Secundários ● Concorrência desleal ● Uso indevido da própria imagem ● Uso indevido da imagem da profissão médica ● Discriminação entre pacientes ricos e pacientes pobres ● Facilitação e/ou viabilização de importação de remédios ● Restrição à beneficência dos pacientes Situação que poderá ser levantada ◆ Se optasse por não divulgar o remédio, o médico não estaria tirando de seus pacientes a possibilidade de um tratamento efetivo? 252 Discussão Por Carlos Alberto Pessoa Rosa O médico tem uma participação específica no pacto social, e os compromissos correspondentes, sejam afetivos, morais ou legais, fazem parte do exercício de cidadania. Portanto, o médico não deve, sob qual- quer pretexto, colocar-se acima das regras que norteiam o exercício da profissão, como as emanadas pelos órgãos de classe, agências regulado- ras de saúde, através de normas e leis, federais ou estaduais. Devemos assinalar, entretanto, que a sociedade moderna, através dos meios de comunicação, vive um momento muito particular de egolatria, sendo prática comum, e cada vez mais freqüente, o culto ao corpo e à imagem. Liberar-se na direção do prazer é a máxima da relação social presente. Dentro dessa expectativa, a mídia passa, através de téc- nicas de propaganda, a ser um instrumento de divulgação que, se bem direcionado, terá um caráter educativo, mas também poderá criar expec- tativas desnecessárias nas pessoas. Diante da pluralidade da vida social e fragmentação cultural, quando um segundo de divulgação da imagem transforma a vida de alguém, pode parecer sedutora ao profissional a idéia de abrir uma janela na mídia para se promover, rompendo com os limites éticos de atuação, correndo o risco de desrespeitar a discrição, a verdade e a privacidade de seus pacientes. Devemos compreender que a sociedade não é estática, ao contrário, e que seu dinamismo exige atenção quanto às normas que devem, sob pena de ocorrerem defasagens entre norma e prática, ser atendidas e respeitadas – é o caso, por exemplo, do que ocorre com a internet, uma fonte global de informação, mas de regulação complexa. Cabe ao médico ser cauteloso quanto aos limites, entender que co- municação é relação, desenvolvimento de interatividade entre seres hu- manos, e que somente devemos utilizá-la com intenção formativa, nunca mercadológica ou comercial, o que é tentador quando a relação emissor- receptor é de consumo. A questão apresentada aponta, dentro de uma sociedade cada vez mais longeva, para os problemas relacionados com expectativas de uma CASO 24 – PUBLICIDADE 253 BIOÉTICA CLÍNICA – REFLEXÕES E DISCUSSÕES SOBRE CASOS SELECIONADOS parcela da sociedade, fato discutido diariamente em todos os meios de comunicação, sendo a descoberta de um medicamento contra disfunção erétil uma forma de tratamento que vai ao encontro desse culto ao corpo e ao prazer. Com certeza, ao indicar um medicamento cujo resultado atende a necessidades sexuais, a informação cairá na boca do mundo. Na relação ocorrida no consultório, no caso apresentado, médico e paciente compartilham de um novo medicamento, aprovado em outros países, mas ainda não pelas agências reguladoras e responsáveis pela comercialização no Brasil. Entretanto, a informação sai do privado e che- ga aos meios de comunicação. A ansiedade por melhores índices de au- diência em programas dirigidos aos idosos e pela venda de revistase jornais transforma o privado em público, o útil, em consumo. O profissional, assediado pelos comunicadores, olha para o horizon- te, vislumbra a possibilidade de sair de seu modesto consultório para uma clínica de tratamento de disfunção erétil em região mais nobre. Não só pagará com mais facilidade a escola dos filhos, como poderá dedicar mais tempo à família. A ninguém será proibido sonhar por uma vida de melhor qualidade, mas seria esse o caminho? E, ao pensar nisso, o sujeito passa a experimentar um inferno. Diz a norma que ele deve levar a novidade aos pares por meio de artigos e participação em congressos, trabalhar junto aos órgãos compe- tentes, no caso, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para que o medicamento seja aprovado e comercializado no país, que qual- quer aparição pública deverá ser carregada de caráter educativo, deven- do evitar expectativas desnecessárias na população. Sabe ser tênue essa fronteira. Mas como? – se pergunta. O profissional recorre à Comissão de Divulgação de Assuntos Médi- cos (Codame), mas a resposta não é direta e imediata, é aconselhado a ler resoluções e manifestações dos conselheiros em pedidos de consulta; no entanto, velocidade da vida é outra, diz a um colega, reclamando. En- quanto isso, continua o assédio, atende um apresentador famoso de tele- visão que tenta convencê-lo de que o Conselho caminha contra a histó- ria, que todo homem tem direito à liberdade de opinião e de expressão, 254 que ele estaria fazendo um bem à sociedade com a divulgação, acentu- ando que os dividendos seriam conseqüência de seu esforço em se man- ter atualizado, que o lucro fazia parte do jogo. E o que fazer com o medo de responder a alguma sindicância em seu conselho de classe? Pensa no princípio da beneficência, seria cauteloso na divulgação, não criaria expectativas, evitaria a promoção pessoal, daria um caráter educativo à apresentação, não banalizaria, deixaria claro que o medicamento, apesar de comprovado seu efeito, ainda não havia sido aprovado para uso no Brasil. Assim, criaria condições para que a aprova- ção ocorresse mais rapidamente, ajudando muitos idosos impotentes. Independentemente da decisão, a pergunta que sempre ficará é se realmente o profissional precisaria envolver-se fora de seu ambiente para divulgar um tratamento. Não seriam as possíveis justificativas apenas ra- cionalizações para usufruir, através da exposição na mídia, dos dividen- dos comerciais? CASO 24 – PUBLICIDADE 255 BIOÉTICA CLÍNICA – REFLEXÕES E DISCUSSÕES SOBRE CASOS SELECIONADOS Anexo ao Caso 24 Normas do Conselho Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária (CONAR) sobre a participação de médicos em propaganda e publicidade: 1. A publicidade submetida a este texto não poderá anunciar: a) a cura de doenças para as quais ainda não exista tratamento apro- priado, de acordo com os conhecimentos científicos comprovados; b) métodos de tratamentos e diagnósticos ainda não consagrados ci- entificamente; c) especialidade ainda não admitida para o respectivo ensino profis- sional; d) a oferta de diagnóstico e/ou tratamento à distância; e) produtos protéticos que requeiram exames e diagnósticos de mé- dicos especialistas. 2. A propaganda dos profissionais a que se refere este Anexo não pode anunciar: a) o exercício de mais de duas especialidades; b) atividades proibidas nos respectivos códigos de ética profissional. 3. A propaganda de serviços hospitalares e assemelhados deve, obri- gatoriamente, mencionar a direção responsável. 4. A propaganda de tratamentos clínicos e cirúrgicos (p. ex. emagre- cimento, plástica) será regida pelos seguintes princípios: a) deve, antes de mais nada, estar de acordo com a disciplina dos órgãos de fiscalização profissional e governamentais competentes; b) precisa mencionar a direção médica responsável; c) deve dar uma descrição clara e adequada do caráter do tratamento; d) não pode conter testemunhos prestados por leigos; e) não pode conter promessa de cura ou de recompensa para aqueles que não obtiverem êxito com a utilização do tratamento. 256 Bibliografia Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.246, de 8 de janeiro de 1988. Dispõe sobre o Código de Ética Médica. [on-line]. [Acessado em: 15 abril 2008]. Disponível em: http://www.cremesp.org.br/library/modulos/ legislacao/versao_impressao.php?id=2940 Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.701, de 25 de setembro de 2003. Estabelece os critérios norteadores da propaganda em Medicina, conceituando os anúncios, a divulgação de assuntos médicos, o sensaciona- lismo, a autopromoção e as proibições referentes à matéria. [on-line]. [Acessado em: 15 abril 2008]. Disponível em: http://www.cremesp.org.br/ library/modulos/legislacao/versao_impressao.php?id=3136 Brasil. Lei nº 9.294/96, de 15 de julho de 1996. Dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamen- tos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4° do art. 220 da Cons- tituição Federal. [on-line]. [Acessado em: 19 abril 2008]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L9294.htm Camarim LN. Ética em publicidade médica. 2. ed. São Paulo, SP: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; 2006. [on-line]. [Acessado em: http://www.cremesp.org.br/library/modulos/publicacoes/pdf/ manual_do_Codame_2_Ed_Site.pdf Engelhardt Jr HT. Fundamentos da bioética. São Paulo, SP: Loyola; 1998. Cap. 3: Os princípios da bioética, p. 131-168 Televisão. Revista USP/Coordenadoria de Comunicação Social – Universidade São Paulo 2004 mar./abr./maio CASO 24 – PUBLICIDADE
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