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Melissa Barbosa P. Alves TRANSGÊNEROS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO Resumo O presente trabalho objetiva analisar como funciona o Sistema Penitenciário Brasileiro no que tange ao cumprimento de pena de pessoas transgêneros, enfatizando a necessidade de um tratamento especial e apontando princípios constitucionais que resguardam sua integridade moral e física. À luz da evolução da sociedade, há uma crítica acerca do preconceito, ainda enraizado na mesma, e a luta diária da classe LGBTQIA+ em busca de respeito. Além, buscou-se amparo na decisão proferida acerca do assunto pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso. Palavras-chave Transgêneros; Transexuais; Sistema Prisional Brasileiro; Cárcere; Violência. É consabido que há determinada desigualdade entre grupos sociais no que tange a garantia de direitos fundamentais e sua posição como cidadão, com ênfase na ausência de políticas públicas para pessoas transexuais, as quais vêm sofrendo, diariamente, violências em diversas frentes, quando na verdade são sujeitos de direito como toda a população. Em primazia, cumpre demonstrar que cisgênero refere-se ao indivíduo que se identifica com seu sexo biológico e sua anatomia. O transgênero, por sua vez, é a pessoa que se identifica com o gênero oposto ao seu sexo biológico. Explica o psiquiatra Daniel Mori que “a identidade de gênero é como o indivíduo se identifica. Quando ele nasce, é designado como menino ou menina. Aos 4 anos, aproximadamente, é que a pessoa descobre o seu Melissa Barbosa P. Alves gênero.” 1 Dentro desta definição, encontram-se outras derivadas, como o indivíduo transexual. Quando a pessoa não se reconhece no gênero compatível com seu sexo biológico e realiza o processo de transição com mudança de nome, utilização de hormônios e até cirurgia para adequação do gênero, pode-se dizer que é transexual. Ademais, segundo Mesquita “a noção de gênero está para a cultura assim como o sexo está para a natureza” 2 , o transgênero, portanto, pode ter qualquer orientação sexual, haja vista o gênero ter natureza subjetiva e não ter relação com sua sexualidade. Apesar de haverem pessoas transgêneros há décadas, o preconceito sofrido por elas ainda perdura em uma sociedade historicamente desnivelada socialmente, que carrega desigualdades estruturais as quais parecem não ter fim, mesmo ante tantas evoluções e conquistas. O acadêmico Iago Ferreira afirma: “O distanciamento dos transexuais das políticas públicas brasileiras assim como seu reconhecimento como pessoa humana tão humana como qualquer outro cidadão “normal” segundo a ótica heteronormativa é tão evidente que os coloca numa genuína posição de invisibilidade no estrato do corpo social brasileiro. Esta realidade se reproduz no sistema penitenciário nacional em que os transexuais não têm seu gênero respeitado, seu corpo protegido e sua existência em ser quem queira ser enquanto pessoa humana.” 3 O sistema carcerário brasileiro apresenta diversos problemas em sua estrutura. Não obstante a dificuldade em mantê-lo organizado e com sua função de punir para depois reintegrar, o dia a dia numa penitenciária é repleto de violências que, na maioria das vezes, não são passíveis de controle do Estado. Neste encalço, surge outro conflito: pessoas transgêneros em prisões desestruturadas. Como se não bastasse à violação de direitos humanos sofridos por essas pessoas ao longo de suas vidas, ao integrarem o sistema carcerário, a quantidade de violências e abusos que sofrem torna-se imensurável. Os trans que, com tamanha coragem, libertam-se para ser quem realmente se identificam, ainda precisam preocupar-se com sua integridade física e moral, razão pela qual houve recente posicionamento do Supremo Tribunal de Justiça acerca do assunto, o qual o 1 https://www.bol.uol.com.br/noticias/2018/01/03/transgeneros.htm?cmpid=copiaecola 2 MESQUITA, Jacqueline Lobo de. (2005) Notas sobre transexuais e travestis no sistema. Cárcere brasileiro: uma questão de gênero e direitos 3 FERREIRA, Iago Marques.A invisibilidade dos transexuais no sistema penitenciário brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1523 Melissa Barbosa P. Alves relator Luís Roberto Barroso firmou entendimento sobre o poder de escolha que presas transexuais e travestis têm em relação ao presídio que cumprirão pena, a qual será explorada posteriormente. Hodiernamente, a população transgênero encarcerada tem sido um problema para os juristas, em vista das dúvidas acerca do legislador em como oferecer um sistema prisional que atenda as necessidades de tais pessoas, garantindo seus direitos fundamentais e sua dignidade. Nesse sentido, a Lei 7210/84 assegura, em seu Art. 3º que: “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política.” 4 Destarte, a Constituição Federal expõe acerca da dignidade da pessoa humana, em seu art. 1º, conforme exposto: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; (grifo nosso) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. 5 Corroborando com a valoração a dignidade da pessoa humana, os Princípios de Yogyakarta, da Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos Humanos também dispõem acerca da dignidade da pessoa humana. De acordo com o princípio 9: “Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com humanidade e com respeito pela dignidade inerente à pessoa humana. A orientação sexual e identidade de gênero são partes essenciais da dignidade de cada pessoa.” 6 O sistema penitenciário há muito é utilizado como instrumento de controle social do Estado, que objetiva a diminuição da criminalidade e reinserção de ex-detentos na sociedade. No entanto, sabe-se o quão falho é o sistema, com suas políticas criminais 4 BRASIL, Lei Nº 7.210, Institui a Lei de Execução Penal, 11 de Julho De 1984. 5 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. 6 PRINCÍPIOS de Yogyakarta: princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Tradução Jones de Freitas. jul. 2007. Disponível em: . Acesso em: 26 out. 2017. https://www.jusbrasil.com.br/legislacao/109222/lei-de-execu%C3%A7%C3%A3o-penal-lei-7210-84 https://www.jusbrasil.com.br/legislacao/109222/lei-de-execu%C3%A7%C3%A3o-penal-lei-7210-84 https://www.jusbrasil.com.br/legislacao/109222/lei-de-execu%C3%A7%C3%A3o-penal-lei-7210-84 Melissa Barbosa P. Alves expansionistas, ao contrário do que prevê a Constituição. Apesar de todas as tentativas de controle e melhoria, é precário e violento. Não obstante os problemas que apresenta, a situação tem piorado ante a discriminação e violência sofrida por pessoas trans encarceradas. O legislador parece não encontrar uma saída que proteja a dignidade da pessoa humana dos indivíduos trans, mas que, ao mesmo tempo, mantenha o objetivo da sanção penal imposta. Nesse diapasão, Dias assevera: “O repúdio social a segmentos marginalizados acaba intimidando o legislador, que tem enorme resistência em chancelar lei que vise a proteger quem a sociedade rejeita. Omitem-se na vã tentativa de excluir da tutela jurídica as minorias alvo da discriminação. Nada mais do que uma perversa condenação à invisibilidade.” 7 No que tange a divisão dentro do sistema carcerário brasileiro, o Diagnóstico dos procedimentosinstitucionais e experiência de encarceramento do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – MDH expõe que o principal critério de divisão do espaço interno tem sido quanto às facções criminosas. No entanto, percebe-se que algumas unidades prisionais dispõem espaços para “realizar a custódia de homens cisgênero homossexuais, bissexuais, travestis, mulheres trans e, em muitos casos, homens cisgênero heterossexuais que mantém relações afetivo-sexuais com essa população.” 8 Contudo, não há políticas para a população LGBTQIA+ encarcerada, de modo que os incidentes, violências e discriminações ocorram diariamente. O Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, ajustou alguns termos de medida cautelar anterior da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 527 (ADPF 527) deferida em junho de 2019, a qual determinou a transferência de mulheres transexuais presas para presídios femininos. No ajuste de sua decisão, em 2021, o Ministro salientou que presas transexuais e travestis com identidade de gênero feminino poderão escolher se preferem cumprir penas em presídios masculinos ou femininos, o que considerou ser uma notável evolução. Há de ser, indubitavelmente, uma evolução frente às decisões do Poder Judiciário, influenciando positivamente no sistema 7 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. 8 Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiência de encarceramento do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos - MDH. Brasília. 2020. P. 17. http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5496473 Melissa Barbosa P. Alves penitenciário. No entanto, ainda que apresente evolução perante o judiciário e a todo âmbito social, não é suficiente para sanar os diversos problemas enfrentados por transgêneros no cárcere. Nesse sentido, foi realizada pesquisa via enquete pela rede social Instagram, a qual 446 pessoas participaram. Abaixo, as perguntas realizadas bem como as respostas e seus percentuais. 30% 70% Caso uma pessoa trans seja presa, você acha que ela deve ficar na ala do sexo biológico ou do gênero pelo qual ela se identifica? Ala do sexo biológico Ala do gênero que se identifica 62% 38% Se colocarmos na ala pelo sexo biológico, você acha que seria discriminação? Sim Não, pois a pessoa nasceu assim Melissa Barbosa P. Alves Por conseguinte, em análise dos gráficos acima, percebe-se o quão difícil é para a população apresentar alternativas que melhorem o sistema carcerário garantindo a comunidade LGBTQIA+ direitos e políticas que as favoreçam. Nesse esteio, as mesmas perguntas foram realizadas a um homem trans e a uma mulher trans, os quais, para fins de identificação no presente artigo, serão chamados de “João” e “Maria”. Ao responder os questionamentos acima, João afirmou que: “Como ainda não passei por nenhum procedimento de transição, ao olharem para mim fica nítido que sou um homem trans, e se eu estivesse em uma penitenciária masculina, seriam enormes as chances de acontecerem atrocidades comigo. Se eu fosse preso hoje, optaria por ficar em uma penitenciária feminina, porque sei 60% 40% Se colocarmos na ala do gênero que se identifica, seria correto ter alguém do sexo biológico oposto na mesma ala? Sim, pois a pessoa de identifica Não seria correto 56% 44% Para resolver, você acha que deve ser criada uma ala penitenciária específica para trans? (Uma para homens trans outra para mulheres trans) Sim Não adiantaria Melissa Barbosa P. Alves o que poderia acontecer comigo caso fosse para uma masculina, o meu corpo, o meu psicológico, a minha integridade, a minha vida, estariam em risco. Se nós formos vistos como pessoas cisgêneros a probabilidade de violências acontecerem é menor, não só dentro de prisões, mas como em todos os outros ambientes. Quando nos olham e nem imaginam que é uma pessoa trans, os ataques são menores. A criação de uma ala para pessoas trans parece ser, até então, uma boa ideia para evitar violências, até porque o sistema carcerário do nosso país não possui uma boa fiscalização, não há como ter agentes que cuidem a todo o momento. Uma ala específica certamente iria prevenir, mas não acabaria com todos os abusos que poderiam ocorrer. Há quem acredite que tal separação seja transfobia, pela ideia de separar pessoas trans das pessoas cis, mas também não levam em consideração o que poderia acontecer se trans ficassem junto de pessoas cis numa penitenciária, seria sim uma boa ideia separar. Independentemente se a pessoa passou ou não pela transição, deveriam ficar todos juntos, pois são pessoas parecidas, compartilham de uma mesma história e dores em comum e conseguiriam se entender dentro daquele lugar. Obviamente, isso não impede que violências aconteçam, pois existem pessoas de todos os jeitos, mas a probabilidade diminui, sem dúvidas.” Maria, por sua vez, respondeu que: “A pessoa trans que for presa deve ficar na ala do gênero pelo qual se identifica, pois seu sexo biológico não afeta em nada na sua identidade de gênero, sendo discriminação colocá-la, contra sua vontade, na ala correspondente ao seu sexo biológico. Não há nenhum problema em uma pessoa trans ficar na ala do gênero que se identifica, pois ele não condiz com o seu sexo biológico. Certamente, a criação de alas para pessoas trans evitaria muitos conflitos entre os presidiários e traria mais segurança à pessoas trans. O problema é que a falta de respeito é nítida, independentemente de onde seja o lugar. Nós existimos e só almejamos o respeito.” Ademais, infere-se que, até para as próprias pessoas trans, é complicado chegar a uma conclusão. A realidade que transgêneros sofrem dentro de penitenciárias brasileiras é repleta de violências e abusos. Sabe-se de diversos casos de estupro, tortura e abusos de todos os tipos. Além, tais abusos vão longe do que se pode imaginar, a exemplo de casos onde mulheres trans, cumprindo pena em penitenciárias femininas, são pagas e/ou ameaçadas pelas próprias presas para engravidá-las com a finalidade de benefícios perante o judiciário e dentro do próprio sistema prisional. Melissa Barbosa P. Alves O exercício do controle social pretendido pelo Estado através do sistema penitenciário não alcança objetivos de diminuir ou abolir a criminalidade, ante tantas falhas que possui. O descaso com as prisões só aumenta e a ausência de políticas para garantir direitos à comunidade LGBTQIA+ violam cada vez mais os direitos fundamentais. Nesse esteio, Iago Ferreira reforça que: “O Estado deve reconhecer e proteger a identidade de gênero, pois a vida envolve a liberdade de ser quem se queira ser, desde que não ofenda a coletividade e sua integridade em si mesma, fato que se coaduna com a vida de acordo com o gênero que se pretender viver. Além disso, a Constituição Federal adota como princípio da República Federativa em sua relações internacionais a autodeterminação dos povos e a prevalência dos direitos humanos, que também amparam o direito a identidade de gênero.” 9 Sob essa perspectiva, é papel do Estado, em todas as esferas, garantir a todos os seus direitos, o que no âmbito do sistema carcerário, tem-se o exemplo de garantia advinda da decisão supracitada do Ministro do STF. O que se espera dos governantes é que sejam garantidos os direitos humanos básicos, principalmente dentro do sistema carcerário, o qual na maioria das vezes atua como uma escola do crime, não auxiliando em nada na reinserção. Ainda, que a presença de pessoas trans no cárcere não seja um problema, pois as mesmas possuem os mesmos direitos. Não há previsão na Lei de Execução Penal a criação de penitenciárias ou alas destinadas a pessoas trans, o que seria uma das alternativaspara amenizar os problemas hodiernos que tanto abalam os presidiários. No entanto, tal omissão normativa não impede que sejam aplicados dispositivos constitucionais para que prevaleçam seus direitos humanos. Insta trazer à baila o pensamento de Aristóteles, corroborado por Nery Júnior ao afirmar que “dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades” 10 . Destarte, a criação de alas específicas para transexuais e travestis são prestações que visam equilibrar as diferenças de forma que promova a dignidade humana das minorias encarceradas na medida de suas desigualdades. 9 FERREIRA, Iago Marques. A invisibilidade dos transexuais no sistema penitenciário brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1523. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito- penal/4010/a-invisibilidade-transexuais-sistema-penitenciario-brasileiro. Acesso em 25 jun. 2021. 10 NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 7ª ed., São Paulo: RT, 2014. Melissa Barbosa P. Alves A igualdade de todos perante a lei trata-se justamente de terem seus direitos garantidos e tutelados. Portanto, se há violações graves aos transgêneros no âmbito carcerário, faz-se necessário a tomada de medidas para protegê-los. Se existe uma penitenciária masculina e outra feminina, para fins de proteção e organização, por que não criar uma penitenciária para pessoas trans que, por medo, talvez não se sintam seguras em outras alas? É imprescindível ressaltar que as mesmas devem ter garantido o seu direito de escolha para onde se sentem mais seguros em cumprir pena, mas deixando como opção uma ala com pessoas transexuais e travestis. Por conseguinte, não há um padrão de como as pessoas trans devem ser alocadas dentro do sistema prisional, apesar da decisão do Ministro Barroso declarando a possibilidade de escolha de presas com identidade de gênero feminina. Noutro giro, haja vista a violação de direitos fundamentais, mostra-se a necessidade da criação de alas específicas para pessoas trans, respeitando suas circunstâncias e garantias constitucionais.