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POR QUE IDENTIFICAR ALTAS HABILIDADES/SUPERDOTAÇÃO NA VIDA ADULTA? Patricia, NEUMANN1 Resumo: O objetivo deste artigo é defender o porquê é relevante identificar as altas habilidades/superdotação (AH/SD) na vida adulta, uma vez que é uma faixa etária que tem sido deixada de lado nas investigações científicas. O estudo foi exploratório de abordagem qualitativa. Os participantes foram quatro pessoas adultas com AH/SD e o instrumento foi uma entrevista estruturada. Os dados foram descritos e interpretados com base no método fenomenológico- hermenêutico. Os resultados apontam para que o reconhecimento social é um dos fatores que incide na construção da autoimagem, que a descoberta das AH/SD favorece maior compreensão sobre si e sobre os outros, que favorece a ressignificação do passado e a construção de outros sentidos para a vida. Considera-se que as percepções sobre ser uma pessoa superdotada e a forma de lidar com esta informação variam de pessoa para pessoa, que há ampla lacuna de pesquisas sobre a vida adulta de pessoas superdotadas e que a identificação é importante para elucidar questões da própria vida e desenvolver melhor os potenciais em todas as áreas. Palavras-chave: Altas habilidades/superdotação. Vida adulta. Educação. Introdução Este texto está intitulado com uma pergunta: por que identificar altas habilidades/superdotação na vida adulta? Uma questão provocativa que não pretendo responder por completo, mas lançar algum vislumbre sobre ela. Tal questão me foi colocada em um congresso de altas habilidades/superdotação (AH/SD) por uma professora, a quem sou muito grata por ter desafiado minha capacidade de justificar o fato de pesquisar as AH/SD em adultas e adultos. Ela partilhou comigo que lhe fazia sentido identificar crianças e adolescentes, mas adultos lhe era estranho e, por isso, a pergunta. Em outro momento, em um curso que dei sobre AH/SD, outra profissional me perguntou o que dizer a adultas e adultos com suspeita de AH/SD para que se motivem a buscar por uma avaliação. Estes questionamentos vêm ao encontro da tese que defendo de que é importante identificar as AH/SD em adultas e adultos. Busco, portanto, responder o problema: por que é importante a identificação das AH/SD em pessoas adultas? Para isso, o texto está organizado em três momentos: no primeiro, apresento a avaliação 1 Psicóloga. Mestra em Educação. Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO. E-mail: souhumanista@gmail.com psicoeducacional para elucidar o processo; no segundo, apresento o método e os resultados da pesquisa para, por fim, discutir o porquê é relevante identificar adultas e adultos. A Avaliação Psicoeducacional: quem realiza e como? Têm sido ainda muitas as dúvidas e mal-entendidos em torno do processo de avaliação das AH/SD em qualquer idade. Dúvidas quanto a quem realiza a avaliação, como ela é feita e, no caso de adultos, o por quê. Estas dúvidas são esperadas no contexto de um país que têm enfatizado, historicamente, mais as deficiências que as potencialidades. A própria compreensão do que sejam as AH/SD é controversa devido a sua complexidade de elementos envolvidos. A definição de que a pessoa superdotada é aquela que apresenta alto desempenho em uma ou mais das áreas intelectual, acadêmica, de liderança, de pensamento criativo, nas artes e/ou na motricidade (BRASIL, 2008) é apenas geral e várias tentativas de definir as AH/SD vem em auxílio de maior compreensão deste fenômeno (NAKANO e SIQUEIRA, 2012). Isto é de suma relevância, pois é a partir de determinada concepção de AH/SD que se constrói uma avaliação psicoeducacional. O fato é que existem diferenças consideráveis no processo de avaliação de crianças e adolescentes (KELEMEN, 2012) e de adultas e adultos. Vamos à elucidação desta avaliação na vida adulta. Primeiramente, adultas e adultos que desejam saber se têm AH/SD devem passar por um processo titulado avaliação psicoeducacional. Esta é uma avaliação que está no rol de avaliações psicológicas de competência exclusiva de profissionais da Psicologia (CFP, 2018), isto é, não pode ser realizada por outrem. Não deve ser confundida com a avaliação psicopedagógica (MORAES, 2010), pois são processos distintos com objetivos distintos, embora, quando se trata de contexto escolar/educacional, ambas as avaliações se complementam. O trabalho psicoeducacional realizado por psicóloga(o), quando com crianças e adolescentes, se inicia com uma avaliação psicoeducacional. Da avaliação surgem as estratégias de intervenção relacionadas à prevenção, solução de algumas dificuldades e promoção de melhores condições de desenvolvimento pessoal (COLL et al, 2004). A avaliação psicoeducacional de AH/SD pode ser realizada em crianças, adolescentes e adultos sempre por uma psicóloga ou psicólogo que tenha alguma formação na área de AH/SD. Esta formação pode ser curso de especialização latu sensu, cursos de curta duração ou pesquisa na área. A Psicologia tem muitas áreas específicas de formação e uma delas é a área de Avaliação Psicológica na qual se encontra a avaliação psicoeducacional. É importante que o profissional tenha formação nesta área ou minimamente experiência no tipo de avaliação que oferece, como a de AH/SD. É comum, também, que se pense que é necessário buscar por um profissional formado em neuropsicologia para realizar a avaliação, por ser uma área bastante voltada a testes psicológicos. Mas isto não procede, ou seja, não é necessário realizar a avaliação apenas com neuropsicóloga(o). Psicólogas(os) que têm formação em neuropsicologia podem entender de AH/SD como podem também não entender nada do assunto. Quem não tem formação específica em AH/SD é leiga ou leigo, independente da sua área dentro da Psicologia. Então, quem realiza a avaliação psicoeducacional é um profissional da Psicologia devidamente capacitado para isso, isto é, conhece profundamente de AH/SD e de avaliação psicoeducacional de AH/SD. Se não for capacitado, está a ferir o Código de Ética Profissional (2005) em oferecer serviços para os quais não está preparado e pode, inclusive, sofrer punição se for levado ao Conselho de Psicologia com as devidas provas de sua falta de capacitação (BRASIL, 1971). A avaliação psicoeducacional, logo, é um processo estruturado que tem por objetivo investigar um fenômeno psicológico relacionado a um fenômeno de ordem educacional, ou seja, que envolve ensino e aprendizagem. A avaliação se inicia pela coleta de informações em que podem ser utilizados diferentes instrumentos de caráter psicológico como entrevistas de anamnese, testes psicológicos, tarefas investigativas, técnicas, observações e a própria relação psicoterapêutica que se estabelece entre profissional e cliente. Essa coleta de informações tem a função de elencar as variáveis que podem ter influenciado e/ou ainda influenciam no processo de ensino e aprendizagem e nas possíveis dificuldades apresentadas, as quais podem ser de cunho educacional, pessoal e/ou social (COLL et al, 2004). Ela está, portanto, intrinsecamente ligada à Educação Especial, pois busca auxiliar na compreensão de cada sujeito em suas necessidades educacionais especiais para vir ao encontro da inclusão. Uma avaliação psicoeducacional é sempre um procedimento científico. Existem diferentes motivos pelos quais ela é realizada sendo um deles a identificação das AH/SD. Neste caso, especificamente em adultas e adultos, a avaliação é composta pelo Questionário para Identificação de Indicadores de AH/SD em Adultos (PÉREZ e FREITAS, 2012), uma entrevista baseada nas respostas deste questionário, uma entrevista com base no Questionário de Sobre- excitabilidade (NEUMANN, 2018)2 e a aplicação do WAIS-III (WESCHLER, 2014). Mais especificamente, o questionário de indicadores tem por objetivo levantar as primeiras característicasque indicam AH/SD. Ele está fortemente pautado na Teoria dos Três Anéis, a qual postula que as AH/SD é uma expressão de três fatores: inteligência acima da média, elevada motivação e criatividade (RENZULLI, 2011). A porcentagem de indicadores que cada pessoa pontua, no questionário, varia. Há quem pontue, e.g., mais de 90% de indicadores e há quem pontue 60%. Contudo, por pontuar menos não significa que a pessoa não tenha AH/SD. A investigação está somente no início e é preciso, então, a entrevista. No questionário de indicadores há respostas esperadas para AH/SD e a entrevista é feita com base nas respostas inesperadas. Elas precisam ser investigadas porque várias situações podem ter ocorrido para a pessoa ter marcado uma resposta inesperada: não compreendeu bem a questão, ficou com dúvida sobre a questão, interpretou a questão de outro forma, etc. Quando se pede para a pessoa explicar sua resposta, na maioria das vezes, são revelados aspectos de AH/SD que, inicialmente, não se mostraram no questionário. Esta entrevista requer conhecimento aprofundado de AH/SD do profissional, pois, caso contrário, este não perceberá as nuances que são reveladas nos detalhes do discurso. É fundamental na avaliação, e.g., saber distinguir os grupos de pessoas superdotadas, conforme Ourofino e Fleith (2011), os bem-sucedidos, os autodidatas, os divergentes, os de potencial oculto, os desistentes e os de dupla-excepcionalidade, sendo este último também salientado por Alves e Nakano (2015). Por sua vez, enfatizo que identificar e avaliar dupla-excepcionalidade, e.g., requer conhecimentos sobre as mais diferentes desordens psiquiátricas como transtornos de personalidade e de humor, bem como os transtornos de neurodesenvolvimento – os quais englobam Transtornos de Comunicação, Transtornos do Espectro Autista, Transtornos de Déficit de Atenção e Hiperatividade, Transtornos de Aprendizagem e Transtornos Motores. Tais possibilidades tornam a avaliação psicoeducacional de AH/SD mais complexa do que pode parecer num primeiro momento. 2 Original em: LYSY, K.Z.; PIECHOWSKI, M.M. Personal Growth: an empirical study using Junguian and Dabrowskian measures. Genetic Psychology Monographs, n.108, 1983, p.267-320. Traduzido por NEUMANN (2018). Vide referência. A entrevista com base no Questionário de Sobre-excitabilidade é um complemento fundamental e está pautada na Teoria da Desintegração Positiva (DABROWSKI, 2018). Ela investiga a presença das sobre-excitabilidades, um fenômeno que ocorre com todas as pessoas superdotadas. Trata-se de uma super sensibilidade que pode se mostrar nas áreas intelectual, emocional, sensorial, imaginativa e/ou motora. A sobre-excitabilidade leva a comportamentos específicos que podem soar estranhos para as pessoas que não a têm. O uso desta entrevista requer também amplo domínio da teoria de Kazimierz Dabrowski. Por fim, o processo se finda com a aplicação do WAIS-III3, que é, no Brasil, o teste que avalia o quociente intelectual (QI) de forma ampla. O uso de um teste de QI é controverso, se ele é necessário ou não, está em discussão. Avaliar o QI tem por base o fato de que todas as pessoas superdotadas apresentam inteligência intelectual acima da média. Isto não quer dizer que o teste determine se há ou não AH/SD. Ele é um complemento que se soma a todos os demais instrumentos do processo e só pode ser aplicado por um profissional da Psicologia, visto que nenhum outro tipo de profissional tem formação para aplicar e avaliar as respostas que o instrumento proporciona. Além disso, também não é toda psicóloga ou psicólogo que aplica testes ou mesmo o WAIS-III. Há profissionais que não trabalham com testagem e dentre os que trabalham, ainda podem não trabalhar, especificamente, com o WAIS-III. O manejo de testes de inteligência é um conhecimento bastante específico. Este é um dos fatores que dá exclusividade da avaliação psicoeducacional de AH/SD para a Psicologia, pois toda avaliação deste tipo utiliza algum tipo de teste psicológico conforme forem os objetivos. Mas o que é o WAIS-III e o que, exatamente, ele avalia? O WAIS-III avalia e mede a inteligência intelectual, aquela que se mostra do conjunto dos processos psicológicos (memória, atenção, concentração, cognição, etc). Ele é o que se chama, na Psicologia, de teste psicométrico. Isto nada mais é que um tipo de teste que visa medir quantitativamente alguma coisa, seja ela qual for. É atribuir um valor numérico para um fenômeno psicológico a partir de normas de medida de diferentes tarefas. Embora seu objetivo inicial seja medir a inteligência de diferentes sujeitos em diferentes idades, aspectos qualitativos também são levados em conta na avaliação das respostas, o que exige do profissional conhecimento abrangente do teste para poder 3 Bastante popular dentre profissionais da Educação é o WISC-IV. Trata-se da versão deste mesmo teste para crianças e adolescentes com idade entre 6 e 16 anos e 11 meses. interpretá-lo adequadamente sem perder informações importantes ocorridas antes, durante e depois da aplicação (ANASTASI e URBINA, 2000). O WAIS-III tem por base o conceito de que inteligência é a capacidade de agir deliberadamente, pensar racionalmente e lidar efetivamente com o ambiente. Ela é uma entidade global e também um conjunto de capacidades específicas. Global porque caracteriza o comportamento como um todo e específica porque é composta por elementos qualitativamente distintos. A inteligência é medida por tarefas verbais e de execução. Cada tarefa mede de modo diferente as capacidades específicas e o QI é a medida de uma variância global da inteligência, no qual influencias outros elementos que fogem à capacidade do teste como o desempenho do sujeito, o grau de eficiência na vida diária e a interação com o mundo (motivações, atitudes e traços de personalidade). Assim, o WAIS-III mede o rendimento intelectual (pontos fortes e fracos do funcionamento intelectual) por um curto período de tempo (WESCHLER, 2014). Dentre as capacidades específicas, o WAIS-III mede o raciocínio verbal e lógico, a formação de conceitos e ideias, a compreensão oral, a habilidade para aprender, avaliar e utilizar experiências anteriores, o nível de conhecimento, a memória de curto e longo prazo, a habilidade de análise e síntese, a criação de conceitos não verbais, a percepção visual e organização, o processamento simultâneo de informações, a coordenação visual e motora, a atenção e concentração, a noção e coordenação espacial, o planejamento mental, a velocidade de processamento de informações, dentre outras (Ibid, 2014). Podem passar pelo WAIS-III pessoas entre 17 e 89 anos e o teste é composto por 14 subtestes dentre os quais são realizados 11 para avaliar o quociente intelectual. Quanto à medida do QI, no Brasil, entre 90 e 109, estão as pessoas na média; entre 110 e 119, média superior; entre 120 e 129, superior e, por fim, entre 130 e 155, muito superior. A avaliação de QI de adultas e adultos com AH/SD revela pessoas com QI na média superior, QI superior ou QI muito superior (Ibid, 2014). Em minha experiencia clínica, 40% das avaliações de AH/SD mostram QI médio superior, 54% QI superior e 6% QI muito superior.4 4 Observação: este texto foi escrito quando este instrumento ainda estava dentro de sua validade. Atualmente, o prazo de validade do WAIS-III expirou. Então, um outro teste que está em uso e mede o quociente intelectual é o WASI (Escala de Inteligência Wechsler Abreviada). No decorrer da entrevista e aplicação do teste é também realizada a observação psicológica, a qual visa avaliar a expressão do funcionamento dos processos psicológicos através de comportamentos emitidos na relação com o profissional. Ao final do processo, o profissional deve escrever um relatório da avaliação no qual deve conter todos os resultados e a conclusão combase neles. Este documento é mais popularmente conhecido como laudo. Ele é entregue junto a uma devolutiva que é uma conversa para explicar os resultados e elucidar possíveis dúvidas. Eis, portanto, quem faz e como é feita a avaliação psicoeducacional de AH/SD em adultas e adultos. O processo aqui apresentado pode ter variações nos instrumentos, pois é dada liberdade ao profissional da Psicologia de escolher como organizar seu trabalho. Contudo, espera- se que cada profissional opte pelos melhores instrumentos disponíveis e os quais tenha amplo domínio. Feita esta explanação, adentremos na pesquisa que foi realizada para chegarmos ao porquê é importante identificar as AH/SD na vida adulta. Método Participaram deste estudo 2 adultos e 2 adultas com AH/SD: Pólux (25 anos), Urânia (28 anos), Polímnia (37 anos) e Perseu (38 anos). Os nomes – de figuras mitológicas gregas – são fictícios. Todos participam de um estudo longitudinal, coordenado e realizado pela autora deste texto, que avalia anualmente a sua inteligência emocional e assinaram termo que autoriza a publicação de estudos correlatos, como este. Para este estudo, o critério foi ter as AH/SD confirmada por avaliação psicoeducacional há pelo menos um ano a contar de 2019. O caráter deste estudo é exploratório e o instrumento foi uma entrevista estruturada com três questões: 1) Como foi quando você soube que era uma pessoa superdotada? 2) Mudou algo na sua vida? Se sim, o que mudou? 3) Como é, para você, ser uma pessoa superdotada, hoje? O convite para participar deste estudo e as questões foram feitas pelo aplicativo WhatsApp e as respostas foram enviadas por escrito ou por áudio. As respostas por áudio foram transcritas na íntegra. As respostas foram descritas e interpretadas qualitativamente através do método fenomenológico- hermenêutico (MELO, 2016) e foram organizadas por ordem crescente de idade cronológica dos participantes. Resultados Questão 1: Como foi quando você soube que era uma pessoa superdotada? Pólux: De modo bem particular, já na infância, sentia-me um tanto diferente. Uma sensação de não ser tão semelhante aos demais, um pouco fora do normal; nem melhor e nem pior, sem nenhum tipo de vaidade ou modéstia, apenas diferente. Talvez com uma leve e latente vontade de ser mais “normal” [grifo de Pólux], o que gerava uma certa angústia. Com o passar dos anos fui apresentando alguns traços de bom desempenho durante minha jornada pelo ensino básico. Ouvia constantes elogios em relação à inteligência e até mesmo ao modo de comportar-se nos ambientes em que frequentava. Mas nunca me percebi enquanto alguém com altas habilidades. Isso ocorreu durante a graduação, quando tive a oportunidade de participar de uma pesquisa sobre AH/SD. Confesso que já tinha ouvido falar sobre o tema, porém jamais imaginei-me realizando um teste de QI. Há muitos anos que ouço comentários frequentes em relação ao meu potencial intelectual – mesmo não realizando muito esforço – no entanto, nunca pensei que pudesse ser superdotado. Urânia: A minha primeira reação foi negar isso. Então eu neguei. Eu achei que eu poderia ter dado sorte nos testes. Sei lá, o resultado talvez não fosse fidedigno, sabe? Eu devo ter levado sorte, respondi algumas coisas. Mesmo tendo acesso a artigos científicos, lendo características de pessoas superdotadas e me identificando com elas. Polímnia: Então, quando eu descobri que tinha AH na verdade foi na faculdade com a professora C. que me falou que tinha identificado essa característica. Pra mim foi um choque. Eu demorei bastante, demorei mais de um ano pra aceitar isso porque eu achava que eu só pensava diferente das outras pessoas e que talvez as outras pessoas não viam as coisas que eu conseguia ver, que eu tinha facilidade em algumas coisas que os outros talvez não tivessem, mas eu achava que era mais porque as pessoas não prestavam atenção, sabe? Perseu: A verdade é que desde que tenho consciência há um sentimento de estranheza com o mundo, com as pessoas, nunca me encaixava em nenhum grupo, isolado. Fui apelidado por um tio materno de “menino do quarto”, pois quando não estava na escola, era no meu quarto que eu estava “feliz”, com meus livros (lendo muitos deles ou escrevendo tantos outros), desenhando, ouvindo músicas em português, inglês, espanhol, italiano; inventando e fazendo artes com sucatas, colagens, criando agendas, diários... sempre tido como excelente aluno pelos professores, pelos colegas, obediente, educado, nada mais além disso. Questão 2: Mudou algo na sua vida? Se sim, o que mudou? Pólux: Após saber sobre a AH, creio que comecei a me compreender melhor, passei a ter um pouco mais de autoconfiança. Antes, sempre havia uma certa confusão, agora há mais compreensão. Penso que a consciência de ser AH, gera uma mudança na forma de ver o mundo e direcionar a si mesmo nos percursos da vida, mas essa situação é sentida ao longo dos anos. Assim, tornar-se ciente de que possui altas habilidades acarreta algumas mudanças, mas algo que vai se desenvolvendo com o tempo. Urânia: E o que que mudou. Mesmo eu negando num primeiro momento, eu tive que me deparar com algumas situações que, muitas vezes, me fizeram sentir inadequada ou me fizeram sentir como se eu não fosse boa o suficiente, que eu não fosse inteligente por simplesmente pensar de modo diferente ou usar outros tipos de associação ou pensar por vias diferentes, principalmente a vivência acadêmica, na escola, enfim. Então, eu tive que olhar pra essas vivências e ressignificar elas. Então o tempo pra aceitar isso foi também o tempo que eu precisei pra ressignificar todas essas coisas. E pra mim ainda é um pouco nebuloso falar disso. Até pelas poucas pesquisas que tem com adultos superdotados. Então acredito que seja comum de muitos se sentirem inadequados ou sentirem que não são bons o suficiente porque dentro desse modelo educacional, eu, pelo menos, passei por várias situações que fui colocada dentro de alguns estereótipos ou alguns preconceitos mesmo que pra eu desconstruir isso é um trabalho diário. Ainda mais porque superdotado tem uma questão afetiva muito forte, principalmente com o aprendizado e a vida é um aprendizado. Então é uma relação muito intensa com tudo que acontece a sua volta. Mas enfim, passado essa primeira fase de negação total, eu comecei a ressignificar aquelas memórias e trabalhar algumas questões que haviam deixado marcas. O que mudou foi que eu pude ressignificar muitas coisas da minha vida e da forma de estar no mundo. Polímnia: Se mudou alguma coisa? Eu acho que mudou. Na verdade, eu passei a me entender melhor e a entender melhor os outros. Porque eu penso diferente, porque eu não consigo me enquadrar nos grupos sociais. Eu me sinto, geralmente, de fora dos grupos porque os interesses não são os mesmos, as conversas não são as mesmas. Então, é difícil encontrar um grupo que eu me enquadre, que eu consiga interagir, mas hoje eu entendo porquê. Perseu: O que mudou na minha vida? A certeza de que a minha estranheza com o mundo e com as pessoas tinha um nome, que o menino estranho que fui em casa, na escola e em tantos outros ambientes fazia sentido (e ninguém olhou para ele); muitos apelidos, traumas, enfrentamentos, essencialmente no mundo dos pensamentos, que se materializavam em escritas, desenhos ou outras formas de expressão, mas para poucos terem acesso. Tudo fez sentido! Um passado agora visto com outras lentes. Fiz as pazes com muitos fantasmas, outros fantasmas foram embora. Olhar a vida pela perspectiva e certeza de ser um indivíduo diferente da média da população. Não é pela perspectiva da altivez, muito pelo contrário, não há nenhum glamour na superdotação. Porém, é preciso saber, compreender, para poder ser e desenvolver todo potencial que pode ser desenvolvido. Questão 3. Como é,para você, ser uma pessoa superdotada, hoje? Pólux: Ser uma pessoa com AH, muitas vezes pode ser um tanto delicado, devido a percepção de si em contraste aos demais, o que pode fazer com que você mantenha uma boa relação com todos, mas tenha dificuldade em achar relações em que possa expor e compartilhar suas ideias e sua forma de ver o mundo. Por essa razão acho que uma pessoa com AH pode ser uma pessoa mais solitária. Mas claro, apresentar uma inteligência ligeiramente acima da média é bom, você pode evitar expor isso, mas as pessoas perceberão, o que também desperta possiblidade de conhecer pessoas e assim dialogar mais sobre temas diversos. Ser uma pessoa com AH, na minha opinião – baseada no meu comportamento –, é ser movido por ideais, por princípios ou até mesmo por concepções filosóficas. Mais uma vez, isso gera uma certa angústia, pois o mundo tende mais à hipocrisia que à verdade. Isso, para alguém movido por ideias, é sempre um choque. Saber que possui altas habilidades te faz compreender-se melhor e desenvolver a si mesmo de acordo com suas próprias peculiaridades. Nos últimos tempos, a contradições observadas entre os diferentes discursos no meio social em contrariedade com a prática, podem perturbar uma pessoa com AH, pois tendo um senso de justiça mais apurado, acabam não tolerando estas situações com muita facilidade. Portanto, ter AH pode exigir uma boa capacidade de controlar as emoções, principalmente para os indivíduos em que as suas ideais influenciam fortemente as suas emoções. Urânia: Eu não sei se tenho uma resposta pronta pra isso. Ah, ser uma pessoa superdotada é assim. Não sei se eu tenho essa resposta, mas eu sei que abriu um campo de entendimento pra que eu olhe de forma mais amorosa pras minhas características de uma pessoa superdotada e pra eu consiga criar estratégias pra estar em determinados lugares, com determinados grupos. Sabendo, agora, de alguma forma, como é estar eu nessas novas redes de associação que é ser uma pessoa superdotada. Poder ter mais estrutura pra me colocar na vida. Mas é um exercício diário. Às vezes é um pouco louco pensar que passei uma vida não tendo nem noção de que eu era uma pessoa com altas habilidades. E quando a gente passa uma vida toda, a gente tem a tendência de ter reações emocionais, principalmente, que já foram modeladas. E saber que sou uma pessoa com superdotação me faz criar um exercício mesmo de avaliar sempre essas reações emocionais diante das coisas. Me faz ser mais compreensiva comigo, com as outras pessoas, que eu venha a me inserir. Como se isso facilitasse pra eu encontrar o meu lugar ou até onde eu posso ir seja numa conversa seja no estabelecer uma relação afetiva. Até onde eu posso ir. Não sei dizer como é ser uma pessoa com altas habilidades porque eu estou aprendendo e acho que vou aprender pela vida toda, sabe? Acredito que as pesquisas com pessoas superdotadas que receberam a avaliação já adultas ajudam muito a entender esses processos. Dá pra perceber que em muitos pontos é bem diferente da maioria das pessoas. Polímnia: Em relação a como ser superdotada, hoje, eu diria que é bem difícil, sabia? Porque, na verdade, não tem espaço pra gente nem nos grupos sociais porque ou você é tida como aquela pessoa chata que pensa demais e que quer saber mais que todo mundo ou você tem que se anular, tem que esconder quem realmente você é. E é isso que eu fiz por muitos anos. Então, muitas vezes eu acabo não interagindo com os outros, sabe? Em relação ao mercado de trabalho também não há muitas oportunidades. Eu vejo que é muito mais fácil a gente trabalhar sozinha, criar o nosso próprio meio de sustento do que se enquadrar numa empresa privada, por exemplo. Até mesmo fazendo um concurso público, trabalhando numa empresa pública, porque a maioria das pessoas e das coisas são tudo organizadas padronizado em caixinhas, tudo tem que ser daquele jeito, não pode sair fora daquele padrão. Então é bem difícil ser superdotada porque a gente quer romper as barreiras, quer fazer diferente, quer fazer a mais, coisas que a maioria não faz. Por isso eu acho bem difícil. Perseu: É mais fácil você administrar uma diferença que tem um nome, ainda que cada indivíduo com AH/SD seja único, pois há muitas variáveis envolvidas: personalidade, família, influências de amigos e contextos variados. Sou diferente, sei qual é minha diferença, a ciência dessa diferença já ameniza muitas perturbações da alma. As perturbações agora são mais saudáveis. Discussão A primeira questão como foi quando você soube que era uma pessoa superdotada traz diferentes situações e vivências. Pólux e Perseu afirmam ter a percepção, desde a infância, de que eram diferentes das outras pessoas, embora sem menção de que tivessem compreensão mais profunda sobre isso, na época. Neste sentido, apesar de eles não pensarem que pudessem ter AH/SD, esta informação não parece ter sido chocante, uma vez que ambos afirmam ter tido uma trajetória de sucesso escolar com o reconhecimento de outrem da inteligência e de habilidades sociais que possuíam. A descoberta das AH/SD veio a elucidar algo que eles já sabiam sobre si: o elevado potencial. Vivência bem diferente relataram Urânia e Polímnia. Para elas, a descoberta das AH/SD foi uma surpresa impactante que gerou uma perturbação interior ao ponto de Urânia reagir com negação e Polímnia se sentir chocada e levar um tempo para se adaptar a esta informação sobre si mesma. Neste ponto, emerge a relevante questão do reconhecimento social. Primeiramente, aponta para que a construção da nossa autoimagem e autoconceito passa, inicialmente, pela forma como o outro nos vê. Nestes relatos, temos duas autoimagens diferentes. Frente à informação de ser uma pessoa superdotada, as reações foram distintas devido a uma construção pessoal em que um elemento central é o reconhecimento dos potenciais. As AH/SD foi novidade para Pólux e Perseu, mas eles já tinham, em sua história, o reconhecimento de suas habilidades – o que não significa que não houve sofrimentos em suas histórias escolares por outros fatores. Mas tanto Urânia quanto Polímnia mostram sinais de que seus potenciais não foram reconhecidos. Urânia menciona que achava ter sido por “sorte” que foi bem no processo de avaliação das AH/SD e Polímnia acreditava que seu potencial era mera questão de “prestar mais atenção” nas coisas que os outros. Nisto, Polímnia revela também, implicitamente, um desejo de ser igual aos outros, afinal, a diferença não parecia ser tanta assim, o que suponho estar relacionado ao sofrimento do não reconhecimento. Para Urânia, que atribuiu suas habilidades a um fator externo e incontrolável – a sorte – saber que tais habilidades eram, em verdade, suas, causou-lhe um conflito tal que lhe levou à negação. Polímnia menciona o “choque” que sentiu quando uma professora no ensino superior – e isto aponta a importância da educação especial em qualquer nível – enxergar suas habilidades. Ou seja, antes disso, para elas, a história escolar foi de invisibilidade e consequente negação e mesmo repressão de seus potenciais. O reconhecimento social positivo está diretamente relacionado ao sucesso escolar e social. Quem apresenta maior coerência entre habilidades (potencial) e realização (performance) nas diferentes demandas educacionais e sociais, tende a ser melhor visto pelos outros, ou seja, quem mostra facilidade para utilizar suas habilidades de forma eficaz em favor de sua produtividade, autorrealização e sucesso acadêmico (OUROFINO e FLEITH, 2011). Exemplo disso é o relato de Pólux acerca dos “constantes elogios” a sua inteligência e ao modo de se relacionar no meio social. Ou mesmo Perseu, um “excelente aluno” visto por todos, mas, ao mesmo tempo, segundo ele, “nada além disso”, o que sugere que Perseu desejava ser visto para além do padrão social esperado.Isto levanta a questão do que pode estar oculto nos considerados melhores alunos. Pólux menciona a “angústia” gerada pela “latente vontade de ser mais ‘normal’” e Perseu teve atitude de isolamento, a busca de criar um espaço onde pudesse ser ele mesmo, no caso, o “quarto”. Embora bons alunos dentro do esperado, havia algo mais e que também não foi reconhecido nem aceito socialmente, pois, explícita ou implicitamente, havia o sentimento de inadequação, de anormalidade. Isto problematiza o que a sociedade espera quanto ao sucesso. O sucesso é padronizado e o que está fora do padrão é ignorado. Espera-se, comumente, que o sucesso escolar esteja sempre presente nas pessoas com AH/SD, mas o que se ignora é que sucesso escolar e social em qualquer idade depende de muitos fatores. As pessoas com AH/SD não são iguais, logo, seu desenvolvimento e desempenho educacional e social são diferentes (RECH e FREITAS, 2005). Há, e.g., adultas e adultos superdotados que, na infância, tenderam a reagir do modo submisso em relação aos pais, professoras(es) e pares e mostraram passividade, perfeccionismo e dificuldades de atenção. Existem os que apresentaram perfil retraído, tímido e triste, tiveram aparência física frágil e apresentaram quadro sugestivo à depressão. Há aqueles que tenderam a reagir do modo impositivo, foram hostis nas relações sociais e tiveram a necessidade de mostrar uma falsa aparência de boa aluna/bom aluno. E há, também, os que apresentaram perfil manipulador de pares, possuíam grande excitabilidade motora e mostraram-se rebeldes, tirânicos e ameaçadores (OUROFINO e FLEITH, 2011). Enquanto crianças, estas adultas e adultos com AH/SD podem ter se mostrado como uma criança com atitudes agressivas, isto é, aquela criança que mexe em tudo, olha para tudo no ambiente, dá respostas em tom provocativo e desafiador e apresenta bom desempenho. Podem ter sido uma criança comportada e quieta, aquela que dá apenas respostas certas, busca pela perfeição em tudo e apresenta bom desempenho, mas nunca está satisfeita. Podem ter se mostrado uma criança indiferente, a qual não mostra interesse pela escola ou por qualquer atividade, mostra-se insegura e a presenta baixo rendimento escolar. Ou, ainda, podem ter sido uma criança que não cooperava, a qual negava realizar atividades, brigava com os pares, com os pais e professores, perturbavam as aulas, não se davam bem com colegas e quase não tinham amigos (LANDAU, 2002). Saliento que estes perfis são alguns dos possíveis de serem encontrados e que podem se modificar até a chegada na vida adulta ou, ainda, permanecerem total ou parcialmente ao decorrer do tempo. A vida adulta é tão complexa quanto as outras fases que a antecedem e muitos fatores incidem sobre ela como idade, estilo de vida, sexualidade, reprodução, inteligências, moralidade, espiritualidade, educação, trabalho, saúde física e mental, etnicidade, gênero, etc. A idade, tanto a cronológica quanto a mental, é um fator de enorme relevância na vida adulta, pois os elementos que participam da vida de jovens adultos de vinte anos são diferentes de adultos de cinquenta ou oitenta anos. Tudo isso incide na autoimagem, e.g., e precisa ser levado em conta ao discutir as AH/SD em adultas e adultos. No meio social, determinados perfis são vistos mais positivamente que outros e isto afeta diretamente a construção da autoimagem e como cada adulta e adulto com AH/SD maneja, depois, suas habilidades em relação a si mesma(o) e com os outros, o que desemboca em diferentes atitudes pontuadas por Laudau (2002), a atitude criativa (pessoas agitadas, inovadoras e ativas na vida), a atitude conformista (pessoas prudentes e perfeccionistas), a atitude indiferente (pessoas passivas) ou a atitude violenta (pessoas hostis, resistentes ao afeto, explosivas e com ampla dificuldade em lidar com a frustração e o estresse). Todas estas atitudes são manifestações do manejo da agressividade, a qual é fundamental para direcionar o desempenho educacional e social. Neste sentido, Neumann (2018) avaliou o autocontrole da agressividade em adultas e adultos na faixa aproximada de 20 a 40 anos com AH/SD e seu estudo revelou que 60% da amostra apresentou baixo desempenho em manejar a agressividade. A segunda questão deste estudo foi se saber das AH/SD mudou algo na sua vida e se sim, o que mudou? Pólux e Polímnia salientaram que passaram a se compreender melhor. Pólux mencionou o ganho de mais autoconfiança, de melhor organização de si mesmo, de uma mudança na forma de ver o mundo que o auxilia na tomada de decisões. Polímnia também disse da melhor compreensão dos outros. Urânia e Perseu falaram da ressignificação de vivências do passado, de sua história. Urânia salientou as vivências negativas que deixaram marcas, principalmente as escolares. O sentimento de inadequação social e de incapacidade gerados pelo olhar dos outros, pelos preconceitos e estereótipos por ela pensar de modo diferente. Ela falou que saber das AH/SD gerou uma mudança na forma de estar no mundo, o que implica a tomada de decisões a partir de um novo modo de ver a realidade, tal como também foi dito por Pólux. Polímnia também mencionou o aumento da compreensão do sentimento de inadequação. Para Perseu, houve igualmente a ressignificação quando afirmou que sua história de vida fez sentido. O sentimento de estranheza, o sofrimento, as ações de outras pessoas – apelidos, traumas. Ele, ao sentir o sentido de sua existência, pode fazer “as pazes com os fantasmas”, metáfora para a resolução de sofrimentos vividos, bem como permitir que alguns deixem de existir para poder focar, no presente, em suas potencialidades. O que se mostra relevante ao conversar com adultas e adultos com AH/SD é o quanto eles se referem ao passado, à infância e/ou adolescência, ou seja, as primeiras décadas da vida. Estas informações são de fundamental importância, pois nos revela o que tem acontecido no meio escolar, por exemplo. Permite-nos (re)avaliar a educação e a sociedade. O que se mostra comum nos discursos é o sofrimento, seja ele dito de modo direto ou indireto. No amplo sentido de sofrimento, o sentimento de inadequação é o mais citado. Vale uma reflexão sobre isso. Primeiramente, saliento que o sentimento de inadequação é construído nas relações sociais. Ele indica que há uma expectativa – geralmente, um rol delas – que organiza a vida social de determinado grupo e tal expectativa é frustrada. Em outros termos, o grupo espera que a pessoa pense, sinta e aja em acordo com os modelos já constituídos e isto não ocorre. Esta pessoa é diferente do comum, ela é uma estranha, pois não se comporta como supostamente deveria. A questão que precisamos pensar é como se lida com o diferente manifesto na pessoa do outro. Há muitas maneiras, mas as mais comuns são a negação e o ataque, ambas atitudes violentas e com vistas à exclusão. Tanto quando se nega as particularidades do outro quanto quando elas são alvo de preconceitos e estereótipos, a mensagem é a de não reconhecimento e isto pode levar a diversas dificuldades de ordem socioemocional como, por exemplo, o autoconceito negativo, certa incompreensão sobre si mesma(o) e problemas de autoestima que podem se ligar a dificuldades para confiar nas próprias decisões e ter assertividade consigo e com os outros. Em geral, pessoas superdotadas atribuem grande valor às relações socioemocionais desde crianças e as dificuldades estão em compreender e lidar com suas próprias emoções, bem como com as dos outros. As relações são sempre intensas e tal intensidade nem sempre é retribuída e/ou compreendida. Muitas vezes, o que é um profundo senso de autoconsciência, que é a capacidade de pensar sobre si e sobre o mundo; de autonomia, que é ter um pensamento próprio e independente e de autorrealização, que é a busca constante pelo pleno desenvolvimento dospotenciais pessoais (PIECHOWSKI, 2014), é, saliento, facilmente confundido com egoísmo, indisciplina, esquisitice, exagero e/ou hiperatividade. Nas relações, é comum o desejo de encontrar pessoas mais desenvolvidas intelectual e/ou emocionalmente (KANE e SILVERMAN, 2014) e tal busca, quando seguidamente frustrada pela rejeição dos pares e pela incompatibilidade de interesses, pode contribuir para diversas consequências, sendo uma delas o isolamento social, caracterizada por sofrimento e recusa em tentar estabelecer novas amizades. Até porque pessoas superdotadas possuem uma capacidade de serem extremamente perceptivas às amizades e possuem profunda necessidade de relações próximas e confiáveis. Para superdotadas(os), as relações emocionalmente profundas e significativas são mais importantes que a popularidade, ao contrário da nossa cultura que exige popularidade como sinônimo de ajustamento e sucesso social. Comumente, a concepção, as expectativas e as crenças em torno da amizade se tornam mais sofisticadas ao passar dos anos e é comum encontrar já nas crianças um senso complexo de amizade no qual se considera a troca mútua de ajuda, apoio e afeto, a presença da intimidade e de uma relação profunda e duradoura baseada em confiança, segurança, fidelidade e aceitação incondicional (GROSS, 2014). Características estas que muitas pessoas não têm recursos psicológicos de oferecer por diversos motivos. A isto, soma-se, conforme Alencar (2014), uma sociedade que não valoriza o talento intelectual tanto quando poderia e oferece um meio social hostil aos que se sobressaem (nas mais variadas inteligências) através do que, hoje, denomina-se bulliyng. Um estudo feito com 118 adolescentes superdotados, por exemplo, mostrou que 45% afirmaram receber apelidos pejorativos associados a sua elevada inteligência. Além disso, segundo Roedell (1986), são muitos os desafios de pessoas superdotadas, dentre eles as próprias expectativas irreais em relação a si e aos outros, a pressão por apresentar bom desempenho nas diferentes áreas da vida, a pressão social ao conformismo, a dificuldade em encontrar pessoas com habilidades e interesses compatíveis e uma ampla série de crenças equivocadas em torno da superdotação. Tudo isso vem ao encontro das respostas à última questão: como é, para você, ser uma pessoa superdotada, hoje? Para Pólux, é preciso lidar com os contrastes entre as próprias percepções e as dos outros, com a dificuldade em poder se mostrar tal como é devido a possíveis incompreensões dos outros e que pode levar a certo isolamento social. Para ele, é positivo ser mais inteligente que a média, pois permite ampliar a rede de partilhas de ideias e, mesmo que se tente esconder a condição cognitiva, os outros percebem, o que coloca a pessoa superdotada inevitavelmente frente a ter que lidar consigo mesma e com os outros. Ser superdotado é ser movido por ideias e ideais e, novamente, manejar isto na relação com os outros onde se manifestam contradições entre o discurso e a ação e consequente injustiças. Isto requer o desenvolvimento de habilidades de ordem afetiva que Pólux chamou de controle das emoções e de manejo de condutas como a intolerância. Urânia afirmou não ter uma resposta findada para a questão e salientou que ser superdotada envolve compreender melhor a si mesma e os outros, a ter uma maior noção de seu lugar no mundo em relação ao meio social e também que é o contínuo aprendizado, diário. Polímnia também trouxe a relação com os outros e enfatizou a dificuldade em encontrar um meio termo entre mostrar e ocultar seu potencial. Nisto, optou por esconder dos outros quem ela era mediante atitudes de evitação de interagir, o isolamento também mencionado por Pólux. Outro aspecto social que ela levantou foi a dificuldade nas relações de trabalho, as quais já estão estabelecidas sistematicamente, seja em âmbito privado seja público. O desejo de ir além dos padrões aos quais os outros já estão conformados, a busca pelo diferente e a destruição das coisas já prontas para dar lugar à construção de novas, características estas que, segundo ela, são mais fáceis de administrar trabalhando de forma autônoma. Quanto a Perseu, ele afirmou que ser superdotado tem a ver com administrar a si mesmo enquanto diferente da maioria e, para isso, o nome AH/SD, o qual implica um significado, é fundamental. A diferença existe e ela precisa ser nomeada, significada, para que se possa melhor lidar com as inquietações próprias de quem pensa e sente intensamente a vida. Saber das AH/SD não quer dizer deixar de ter perturbações – no sentido de conflitos, mas perturbações que sejam aproveitadas para o desenvolvimento pessoal e, consequentemente, social, ou seja, mais saudáveis. Considerações Finais É possível notar que cada adulta e adulto superdotado tem percepções diferentes acerca de suas altas habilidades. Tanto aspectos positivos quanto negativos são mencionados. Tais perspectivas dependem de inúmeros fatores, mas o ponto central disto é como cada pessoa lida consigo mesma e, consequentemente, com o mundo ao seu redor. Mesmo que haja características cognitivas e afetivas que se mostrem em todas as pessoas com AH/SD, a maneira de lidar com elas varia, o que chama para o desenvolvimento de estudos de personalidade e sua relação com outros elementos como a educação. Há uma imensa lacuna de pesquisas sobre adultas e adultos superdotados não apenas no Brasil, mas também em outros países, pois o foco continua na infância e adolescência. Talvez, e esta é uma hipótese, este amplo desinteresse pela vida adulta tenha relação com crenças de que, supõe-se, pessoas adultas já estejam plenamente capazes de cuidar de si e de assumir todas as responsabilidades que lhes são exigidas e, por isso, não precisam de atendimento educacional especializado, para citar o meio educacional. Por que pensamos em atendimento especializado para crianças e adolescentes, mas não para adultas e adultos? Por que as crianças precisam, mas adultas e adultos não? Afinal, esta é a lógica que temos, no momento. Assim, dentro deste contexto de descaso para com as pessoas que passaram por anos de escolarização e chegaram até a vida adulta sem saber de suas AH/SD é que se insere este texto e, com base no que foi revelado por esta investigação inicial, respondo ao que propus no início: por que é importante identificar as AH/SD em pessoas adultas? A identificação é importante para: - Explicar modos de pensar, sentir e agir que ocorrem desde a infância, bem como esclarecer a origem do elevado potencial em qualquer área que tenha já se mostrado. - Elucidar maus entendidos e equívocos nos julgamentos feitos por outras pessoas durante a infância e a adolescência e mesmo na vida adulta acerca de condutas que soam estranhas e erradas aos demais. Também para que as pessoas superdotadas se tornem mais capazes de: - Corrigir enganos sobre o autoconceito (sentimentos de inadequação, anormalidade e incapacidade) que foram construídos através da forma equivocada pela qual foram repetidamente julgadas. - Compreender melhor a si mesma(o) e, com isso, empoderar-se. Empoderamento, aqui, é ter consciência de quem está a ser e assumir este ser no mundo, ou seja, tomar decisões que tenham por base o desenvolvimento pessoal para uma vida mais satisfatória dentro das condições possíveis. - Mudar a forma de ver o mundo e agir nele, com vistas a transformar a própria realidade. - Ressignificar a própria história mediante o olhar para o que gerou sofrimento e, a partir disso, decidir cuidar de si, acolher a si mesma(o) em um processo de transformação interior. - Aprender a amar genuinamente a si mesma(o) a partir do desenvolvimento de um senso mais real de quem é de quem deseja se tornar. - Identificar suas limitações e transformá-las, dentro do possível. - Aceitar as potencialidadesjá conhecidas e identificar e reconhecer as que ainda estejam ocultas. - Aprender a lidar melhor com as diferenças dos outros e, principalmente, as limitações que outras pessoas apresentam. - Desenvolver melhor todas as inteligências, sobretudo a emocional para, com isso, melhorar o repertório de habilidades sociais – quando há prejuízo - Atribuir um sentido novo à vida e melhor aprender, sempre, qualquer coisa que deseje. 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