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A_questao_criminal_Editora_Revan - Zaffaroni

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Direito Diurno B
O livro deve ser Fichado (a preferência da Katie é pela divisão em capítulos)
Eugenio	Raúl	Zaffaroni
A	questão
criminal
Tradução
Sérgio	Lamarão
Revisão	da	tradução
Antonio	Almeida
Editora	Revan
Copyright	©	2013	by	Editora	Revan
Todos	os	direitos	reservados	no	Brasil	pela	Editora	Revan	Ltda.	Nenhuma	parte	desta	publicação	poderá	ser
reproduzida,	seja	por	meios	mecânicos,	eletrônicos	ou	via	cópia	xerográfica,	sem	a	autorização	prévia	da
Editora.
Revisão
Roberto	Teixeira
Antonio	Almeida
Capa
Sense	Design	&	Comunicação
(Com	ilustrações	de	Rep)
Impressão	e	acabamento
(Em	papel	off-set	75	g.	após	paginação	eletrônica,
em	tipos	Garamond	11/13)
Divisão	Gráfica	da	Editora	Revan
Produção	de	ebook
S2	Books
CIP-BRASIL.	Catalogação-na-fonte
Sindicato	Nacional	dos	Editores	de	Livros,	RJ
Z22q
Zaffaroni,	Eugenio	Raúl,	1940-
A	questão	criminal	/	Eugenio	Raúl	Zaffaroni;	 tradução	Sérgio	Lamarão.	–	1.	ed.	–	Rio	de	Janeiro	:
Revan,	2013.
il.;	320p.;	23	cm
Tradução	de:	La	cuestión	criminal
ISBN	978-85-7106-504-8
1.	Criminologia.	2.	Direito	penal	-	Brasil.	3.	Crimes	e	criminosos.	I.	Título.
13-04452																																																	CDU:	343.2
22/08/2013							26/08/2013
Ilustração	1
A	tradução	dos	textos	inseridos	nas	ilustrações	está	na	página	"Tradução	de	textos	das	ilustrações".
1.	A	academia,	os	meios	de	comunicação	e	os
mortos[1]
Em	 qualquer	 lugar	 da	 superfície	 deste	 planeta	 fala-se	 da	 questão
criminal.	É	quase	a	única	coisa	de	que	se	 fala	–	em	concorrência	com	o
futebol,	que	é	arte	complexa	–,	embora	poucos	pareçam	se	dar	conta	de
que	machucamos	muito	o	planeta	e	podemos	lhe	provocar	um	espirro	que
nos	 projete	 violentamente	 a	 quem	 sabe	 onde	 (para	 não	 usar	 alguma
expressão	pouco	acadêmica).	Fala-se,	diz-se,	com	esse	“se”	 impessoal	do
palavrório.	E	o	mais	curioso	é	que	quase	todos	acreditam	ter	a	solução	ou,
pelo	menos,	emitem	opiniões.
Claro	 que	 se	 fala	 ao	 compasso	 de	 julgamentos	 assertivos	 em	 tom
sentenciador,	 emitidos	 pelos	 meios	 de	 comunicação	 de	 massa,	 estes	 às
vezes	 nas	 mãos	 de	 grandes	 corporações	 transnacionais,	 enredadas	 com
outras	que	disputam	o	poder	aos	Estados,	bastante	impotentes,	do	mundo
globalizado.
É	 indispensável	 escutar	 o	 que	 se	 fala	 para	 não	 se	 ficar	 falando
sozinho,	como	costuma	acontecer	no	mundo	acadêmico.	E	em	nosso	país,
e	nos	outros	por	onde	às	 vezes	me	desloco,	 fala-se	da	questão	 criminal
como	 de	 um	 problema	 local.	 As	 soluções	 passam	 por	 condenar	 um	 ou
outro	 personagem	 ou	 instituição,	 mas	 sempre	 falando	 de	 um	 problema
local,	nacional,	estadual,	às	vezes	quase	municipal.
Poucos	se	dão	conta	de	que	se	trata	de	uma	questão	mundial,	na	qual
se	está	jogando	o	âmago	mais	profundo	da	forma	futura	de	convivência	e
talvez,	 inclusive,	do	próprio	destino	da	humanidade	nos	próximos	 anos,
que	pode	não	estar	isento	de	erros	fatais	e	irreversíveis.
Se	 ficamos	no	plano	da	análise	 local,	perdemos	o	mais	profundo	da
questão,	 porque	 olhamos	 as	 peças	 sem	 compreender	 as	 jogadas	 do
tabuleiro	de	um	xadrez	macabro,	no	qual	se	joga,	em	definitivo,	o	destino
de	todos.
Quando	 nos	 limitamos	 a	 esses	 julgamentos,	 ficamos	 presos	 à	 Doña
Rosa	http://es.wikipedia.org/wiki/Bernardo_Neustadt.	É	claro	que	se	deve
resolver	 o	 problema	 da	 Doña	 Rosa,	 mas	 a	 armadilha	 do	 velho
comunicador	 dos	 festivos	 anos	 1990	 consistia	 em	 nos	 encerrar	 no
problema	 de	 Doña	 Rosa.	 Devo	 esclarecer	 que	 sempre	 me	 ofendi	 com
aquela	menção	a	Doña	Rosa,	por	me	lembrar	de	minha	avó	materna,	que
se	chamava	Rosa	e	vivia	em	um	bairro	–	como	eu	sempre	fiz	–	e	pensava
muito	mais	e	melhor	do	que	o	personagem	de	ficção	com	o	qual	o	artífice
da	 comunicação	 dos	 anos	 irresponsáveis	 sintetizava	 sua	 argumentação
enganosa.
Quando	 se	 abriu	 a	 possibilidade	 de	 escrever	 esses	 suplementos,
confesso	 que	 me	 senti	 seriamente	 desafiado.	 Em	 todo	 o	 mundo
acadêmico,	 os	 dedicados	 ao	 tema	 observam	 e	 criticam	 o	 fenômeno	 da
centralização	da	questão	criminal,	e	o	 fazem,	 inclusive,	com	diagnósticos
muito	 bons.	 Nenhum	 dos	 conceitos	 expostos	 nesses	 suplementos	 foi
concebido	 no	 plano	 científico	 por	 minha	 exclusiva	 criatividade,	 longe
disso.
Porém,	 se	 tudo	 fica	 no	 mundo	 acadêmico,	 parece	 que	 não	 temos
capacidade	 de	 comunicá-lo	 ou,	 melhor	 dizendo,	 parece	 que	 a
comunicação	é	contaminante,	que	a	pureza	científica	deve	ser	mantida	à
margem	 da	 comunicação,	 que	 perdemos	 nível	 acadêmico	 quando
pretendemos	 explicar	 algo	 a	 isso	 que	hoje	 chamam	o	público,	 sem	que
nos	apercebamos	de	que	o	público	somos	nós	quando	nos	dói	o	fígado,
ou	quando	saímos	para	comprar	pães.
É	claro	que	o	pensamento	acadêmico,	universitário,	é	importante,	mas
creio	que	chegou	a	hora	de	comunicá-lo.	As	borlas	doutorais,	as	 togas	e
os	punhos	(esclareço	que	se	assim	se	denomina	as	extremidades	ornadas
das	mangas	das	 togas	dos	catedráticos)	de	pouco	servem	quando	se	fala
do	que	 todos	sabem,	segundo	o	que	 lhes	dizem	as	grandes	corporações
midiáticas	 do	 mundo,	 incluindo	 muitos	 políticos	 –	 oportunistas	 alguns,
propulsores	conscientes	de	um	novo	totalitarismo	outros,	amedrontados	e
tremendo	diante	das	corporações	midiáticas	os	demais.
Não	estamos	diante	de	fenômenos	apenas	locais,	nacionais,	estaduais
nem	 municipais,	 mas	 sim	 diante	 de	 problemas	 que	 podemos	 resolver
apenas	em	parte	nesses	níveis,	e	que	integram	uma	trama	mundial.	Insisto.
Se	 não	 compreendemos	 essa	 trama,	 moveremos	 sempre	 mal	 as	 peças,
perderemos	 partida	 após	 partida.	 Devemos	 fazer	 o	 maior	 esforço	 para
impedir	 que	 isso	 aconteça,	 porque,	 no	 fundo,	 estamos	 diante	 de	 uma
encruzilhada	 civilizatória,	 uma	opção	de	 sobrevivência,	 de	 tolerância,	 de
coexistência	humana.
Vivemos	um	momento	de	poder	planetário	que	é	a	globalização,	que
sucede	 ao	 colonialismo	 e	 ao	 neocolonialismo.	 Cada	 momento,	 nesse
contínuo	do	curso	do	poder	planetário,	foi	marcado	por	uma	revolução:	a
mercantil	 do	 século	 XIV,	 a	 industrial	 do	 século	 XVIII	 e,	 agora,	 a
tecnológica	do	século	XX,	que	se	projeta	para	o	século	atual.	Esta	última
revolução,	 a	 tecnológica,	 é	 fundamentalmente	 comunicacional.	 Se	 não
compreendermos	 isso	 e	 nos	 deixarmos	 ficar	 em	 nossos	 guetos
acadêmicos,	o	serviço	que	prestarmos	será	muito	pobre.
Há	 um	 mundo	 que	 as	 pessoas	 comuns	 não	 conhecem,	 que	 se
desenvolve	nas	universidades,	nos	institutos	de	pesquisa,	nas	associações
internacionais	regionais	e	mundiais,	nos	foros	e	nas	pós-graduações,	com
uma	 literatura	 imensa,	 que	 alcança	 proporções	 siderais,	 de	 dimensão
tamanha	 que	 ninguém	 pode	 dominar	 individualmente.	 É	 o	 mundo	 dos
criminólogos	e	dos	penalistas.	As	corporações	os	 ignoram	e	quando	lhes
cedem	 algum	 espaço,	 os	 técnicos	 se	 expressam	 em	 seu	 próprio	 dialeto,
incompreensível	para	o	resto	dos	humanos.
O	 desafío	 consiste	 em	 abrir	 esses	 conhecimentos,	 não	 para
pontificarmos	 a	 partir	 da	 ciência	 com	 a	 solução,	 nem	 para	 sermos	 os
iluminados	que,	corrigindo	o	velho	Platão,	pretendemos	nos	colocar	como
um	criminólogo-rei,	mas	sim	para	mostrarmos	o	que	se	pensa	e	o	que	se
sabe	até	agora.	E	também	para	fazer	a	autocrítica	do	que	dizemos,	porque,
certamente,	 tampouco	 temos	 uma	 história	 e	 uma	 genealogia	 feitas
somente	de	prestígio,	dado	que,	muitas	vezes,	nossos	colegas	legitimaram
o	ilegitimável	até	limites	inacreditáveis.
Imaginemos	 o	 que	 aconteceria	 caso	 se	 procedesse	 com	 o	 mesmo
critério	em	outros	âmbitos,	como	por	exemplo,	no	da	medicina.	Se,	numa
mesa	de	bar,	alguém	defendesse	a	teoria	dos	humores,	é	provável	que	os
demais	o	olhassem	com	 ironia.	Porém,	como	a	 liberdade	é	 livre,	é	claro
que	 qualquer	 um	 pode	 continuar	 defendendo	 a	 teoria	 dos	 humores	 na
mesa	de	bar;	ninguém	discute	esse	direito	à	expressão.
No	entanto,	seria	grave	se	a	teoria	dos	humores	fosse	divulgada	como
discurso	 único	 pelos	 meios	 de	 comunicação,	 sese	 desprestigiasse	 ou
menosprezasse	 a	 quem	 dissesse	 algo	 diferente,	 se	 os	 pesquisadores
médicos	 e	 biólogos	 ficassem	 isolados	 com	 seus	 discursos	 em	 seus
institutos,	 se	 a	 autoridade	 sanitária	 e	 os	 políticos	 que	 fazem	 as	 leis
acreditassem	na	opinião	do	bar	e	não	na	que	os	médicos	poderiam	dizer,
ou,	pior	ainda,	 se	os	próprios	médicos	 fizessem	calar	a	quem	negasse	a
teoria	dos	humores	porque	isso	lhes	gera	um	perigo	político.	É	óbvio	que
o	índice	de	mortalidade	subiria	de	forma	alarmante.
Pois	bem,	o	mesmo	acontece	 com	a	questão	 criminal:	 aumentam	os
mortos	 no	 mundo.	 Afirmam-se	 opiniões	 mais	 ou	 menos	 estranhas,
equivalentes	à	teoria	dos	humores	na	medicina;	os	políticos	e	as	próprias
autoridades	difundem	ou	aceitam	essas	 incoerências	 e,	 lamentavelmente,
também	aumentam	os	índices	de	mortalidade.
Eu	não	estava	em	1811	quando	se	suprimiram	as	togas	no	judiciário	–
nem	 sequer	 na	 reforma	 universitária	 de	 1918,	 pois	 não	 sou	 nenhum
fenômeno	da	biologia	–,	mas	sei	que	não	usamos	togas	nos	tribunais	nem
nos	recintos	universitários	nacionais	desde	muito	antes	que	me	pusessem
a	primeira	fralda.	Contudo,	as	togas	continuam	nos	pesando	e	isso	não	é
admissível	 na	 hora	 da	 comunicação.	 Se	 o	 campo	 de	 batalha	 é
comunicacional,	 devemos	 travar	 a	 luta	 também	 nesse	 terreno.	 Este	 é	 o
grande	desafio.	 Por	 isso,	 devemos	 arregaçar	 as	mangas	 e	 sair	 ao	 campo
em	que	nos	desafiam.
O	cidadão	comum	deve	saber	que	há	um	mundo	acadêmico	que	fala
disso,	da	questão	criminal,	que,	embora	não	tenha	nenhum	monopólio	da
verdade,	 pensou	 e	 discutiu	 umas	 tantas	 coisas,	 que	 se	 equivocou
muitíssimas	vezes	e	muito	feio,	mas	também	aprendeu	com	esses	erros.
Os	 médicos	 também	 se	 equivocaram	 muitíssimas	 vezes,	 desde	 os
tempos	em	que,	para	curar	as	feridas,	passavam	unguentos	sobre	a	arma
que	havia	 causado	o	dano,	 até	os	 tempos	mais	próximos,	 em	que,	para
curar	os	doentes	mentais,	lhes	enfiavam	agulhas	na	cabeça,	mas	nem	por
isso	nos	colocamos	nas	mãos	dos	curandeiros	quando	nosso	apêndice	fica
inflamado.
	
Ilustração	2
	
É	bem	verdade	que	há	diferenças	entre	a	medicina	e	a	ciência	penal	e
criminológica,	que	consistem	em	que	esta	última	trata	sempre	do	poder,	o
que	não	é	alheio	à	medicina,	mas	pelo	menos	nesta	a	relação	não	é	tão
linear.	Também	é	 certo	que	 inclusive	o	 conceito	de	 ciência	depende	do
poder	 que	 decide	 quem	 tem	 esse	 status.	 Por	 isso,	 quando	 se	 fala	 de
ciência	penal	 ou	de	 ciência	 criminológica,	 pode-se	 colocar	 em	dúvida	o
status	de	ciência,	mas	também	se	diz	que	a	medicina	não	é	uma	ciência,	e
sim	uma	arte.
Como	o	mundo	acadêmico	 também	se	equivoca,	 tampouco	é	seguro
que	 o	 que	 nele	 se	 fala	 seja	 a	 realidade.	 A	 questão	 da	 realidade,	 neste
como	em	tantos	outros	âmbitos,	é	algo	muito	problemático,	em	particular
quando	vivemos	numa	era	midiática,	em	que	tudo	se	constrói.
Não	vou	me	meter	numa	questão	que	se	discute	desde	os	albores	da
filosofia,	porém	o	certo	é	que,	na	nossa	época,	o	problema	da	realidade
chegou	 a	 um	 ponto	 tal	 que	 não	 faltou	 quem	 afirmasse	 que	 tudo	 é
construído,	que	não	há	onde	se	agarrar.
Mas	Baudrillard	escrevia	na	França,	não	sei	se	tomava	algum	aperitivo
adocicado	 em	 uma	 calçada	 de	 Paris,	 e	 fazia	 isso	 antes	 de	 Sarkozy	 e
quando	ninguém	pensava	na	filha	de	Le	Pen	à	frente	das	pesquisas.	Nós
estamos	aqui,	no	fundo	do	mapa	ou	na	parte	de	cima,	depende	de	onde
se	 olhe	 (o	 norte	 acima	 é	 uma	mera	 convenção;	 os	 neozelandeses,	 certa
feita,	 fizeram	 um	 mapa	 com	 o	 sul	 acima),	 porém,	 por	 sorte,	 longe	 de
latitudes	hoje	mais	perigosas,	ainda	que	com	todos	os	inconvenientes	do
subdesenvolvimento.
Nós	 nos	 achamos,	 por	 um	 lado,	 com	 a	 publicidade	 midiática	 das
corporações	 mundiais	 e	 seu	 discurso	 único	 de	 repressão	 indiscriminada
para	com	os	setores	mais	pobres	ou	excluídos;	por	outro,	com	o	discurso
dos	acadêmicos,	isolados	em	seus	guetos	e	falando	em	dialeto.
Se,	 junto	 com	 o	 aperitivo,	 engolimos	 as	 batatinhas	 fritas	 e	 os
amendoins	e	pensamos	que	não	há	nada	que	possa	nos	dar	um	gostinho
de	 realidade,	 estamos	 perdidos.	 Eu	 não	 pretendo	 ser	 localista	 e	 afirmar
que,	 quando	 digo	 nós,	me	 refiro,	 agora,	 somente	 aos	 latino-americanos,
mas	sim	que	em	poucos	anos	se	fez	mais	que	evidente	que	se	não	há	um
mínimo	 gostinho	 de	 realidade	 nessas	 questões,	 também	 os	 franceses
estariam	 perdidos	 com	 Sarkozy	 e	 a	 jovem	 Le	 Pen,	 para	 não	 falar	 dos
estadunidenses	 e	 seu	 Tea	 Party	 (quando	 era	 pequeno,	 me	 lembro	 que
“party”	era	algo	muito	mais	divertido).
Perón	 dizia	 que	 a	 única	 verdade	 era	 a	 realidade,	 mas	 as	 batatinhas
fritas	 e	 os	 amendoins	 de	 Baudrillard	 nos	 dizem	 pouco	 menos	 que	 a
realidade	não	existe.	Será	que	isso	se	aplica	à	questão	criminal?	Não,	pelo
menos	 aqui	 –	 e	 não	me	meto	nas	 outras	 coisas	 que	dizem	 respeito	 aos
filósofos	–	isso	não	se	aplica.	Se	eu	tivesse	perguntado	qual	é	a	realidade
da	 questão	 criminal	 à	 minha	 avó	 Rosa	 –	 que,	 insisto,	 raciocinava	 muito
melhor	do	que	o	comunicador	que	inventou	o	personagem	–,	ela	me	teria
respondido,	com	toda	sabedoria,	que	a	única	realidade	nisso	tudo	são	os
mortos.
E	é	isso	mesmo,	sem	dúvida:	a	única	verdade	é	a	realidade,	e	a	única
realidade	na	questão	criminal	são	os	mortos.	Não	qualquer	morto,	é	claro,
porque,	de	acordo	com	o	que	a	estatística	demonstra,	há	quase	um	morto
por	 pessoa.	 Como,	 todavia,	 alguns	 ainda	 não	 estão	 mortos,	 há	 uma
pequena	 diferença,	 o	 que	 levou	 o	 imortal	 poeta	 português	 Fernando
Pessoa	a	afirmar	que	o	homem	é	um	cadáver	adiado.	Evidentemente	que
não	 recomendo	 sua	 leitura	 em	 casos	 de	 bipolaridade	 (me	 parece	 que
antes	 se	 chamava	 de	 alterações	 ciclotímicas,	 maníaco-depressivos
melancólicos,	 agora	 é	 mais	 complicado,	 mas	 tampouco	 me	 meto	 em
questões	diagnósticas).
Concretamente,	o	certo	é	que	todos	os	vivos	–	isto	é,	os	que	vivem	–
somos	adiados,	mas	há	alguns	aos	quais	não	se	adia	o	suficiente,	porque
são	 mortos.	 Estes	 ficam	 mudos,	 porque	 costuma	 se	 afirmar,
peremptoriamente,	que	os	mortos	não	falam,	o	que	é	verdade	em	sentido
físico,	mas,	sem	dúvida,	os	cadáveres	dizem	muitas	coisas	que	esta	sonora
afirmação	oculta.	Vejamos:	às	vezes	chegam	a	nos	dizer	até	quem	matou
(pelas	pistas	que	o	autor	deixa	no	cadáver),	mas	o	cadáver	nos	diz	sempre
que	 está	 morto.	 Esta	 é	 a	 mais	 óbvia	 palavra	 dos	 mortos:	 dizer-nos	 que
estão	mortos.	Por	isso,	quando	se	afirma	que	não	há	pretexto	algum	para
a	realidade	na	questão	criminal,	o	que	na	verdade	fazemos	é	emudecer	os
mortos,	ignorar	que	nos	dizem	que	estão	mortos.
Na	 minha	 complicada	 vida,	 quando	 muito	 jovem,	 inspecionava
hospitais	 municipais	 e	 conheci	 algumas	 pessoas	 que	 falavam	 com	 os
mortos	nos	necrotérios	(com	certeza	elas	tinham	alguns	neurônios	fora	de
lugar).	Embora	não	duvide	de	minha	saúde	mental,	não	me	dedico	a	isso
agora,	 mas	 a	 algo	 bem	 diferente:	 trata-se	 de	 perguntar	 que	 cadáveres
antecipados	há	nos	necrotérios,	nas	fossas	comuns,	no	mar	ou	quem	sabe
onde.
Por	isso,	o	que	vou	explicar	a	vocês	tem	três	etapas	fundamentais:	o
que	nos	foi	sendo	dito	ao	longo	da	história	e	o	que	nos	diz	hoje	em	dia	a
academia	 (as	 palavras	 dos	 acadêmicos),	 o	 que	 nos	 dizem	 os	 meios	 de
comunicação	(as	palavras	dos	meios	de	comunicação)	e	o	que	nos	dizem
os	mortos	(a	palavra	dos	mortos).	Depois	veremos	se	podemos	chegar	a
alguma	 conclusão	 que,	 da	 minha	 parte,	 adianto:	 o	 conjunto	 nos
recomenda	antes	de	tudo	prudência,	cautela	no	uso	do	poder	repressivo,
muita	cautela.
Este	é	o	programa	dessa	exposição	em	sua	síntese	mais	acabada:	saber
o	que	nos	dizem	os	acadêmicos,	os	meios	de	comunicação	e	os	mortos.
Como	posso	arregaçar	as	mangas	da	toga,	mas	não	ficar	sem	ela	–	porque
cada	um	tem	sua	deformação	profissional	dificilmente	controlável,	e	nunca
totalmente	anulável	–,	começarei	pelas	palavras	da	academia.
Para	entrar	no	 tema,	porém,devo	explicar	 algumas	questões	prévias
sem	 as	 quais	 não	 se	 comprende	 quase	 nada	 dos	 dialetos	 acadêmicos,
porque	 tampouco	 há	 um	 único	 dialeto	 na	 questão	 criminal.	 Não	 só	 há
vários	 dialetos	 acadêmicos,	 como	 também	 não	 costumam	 entender-se
entre	si	e,	mais	do	que	isso,	não	é	raro	que	se	detestem	reciprocamente,
embora	às	vezes	não	o	façam	em	voz	alta.	De	toda	forma,	as	imputações
recíprocas	 são	 os	 temas	 preferidos	 dos	 congressos	 e	 seminários,	 os
matizam	e	lhes	dão	sabor.
Mais	ainda:	quando	alguém	passa	de	um	para	outro	grupo	e	consegue
dominar	 o	 outro	 dialeto,	 é	 considerado	 um	 traidor	 ou	 um	 perdido,	 que
deixou	de	ser	cientista.
Às	vezes	a	agressividade	alcança	níveis	 cômicos,	mas	que	podem	se
tornar	dramáticos,	como	quando	nos	anos	setenta	do	–	por	sorte	–	século
passado,	 segundo	 a	 posição	 do	 dolo	 na	 teoria	 do	 delito,	 que	 então
pretendia	descobrir	subversivos.	Vocês	sabem	qual	é	a	posição	do	dolo	no
delito?	Podem	ficar	tranquilos,	viver	os	anos	de	Matusalém	sem	sabê-lo	e
sem	 que	 sua	 existência	 se	 altere	 minimamente,	 mas	 o	 certo	 é	 que	 há
quatro	décadas	a	coisa	podia	terminar	muito	mal.
Longe	 de	 constituir	 uma	 crítica	 negativa,	 esta	 é	 a	 pura	 descrição	 da
realidade	do	mundo	acadêmico	por	dentro	e,	da	minha	parte,	creio	que	é
um	 dado	 positivo,	 apesar	 de	 seus	 inconvenientes,	 porque	 demonstra	 o
quanto	 o	 debate	 é	 vivo,	 a	 paixão	 que	 se	 coloca,	 a	 intensidade	 das
discussões.
Tampouco	 se	 trata	de	uma	característica	contemporânea,	nada	disso:
foi	sempre	assim.	A	história,	a	tradição	oral,	os	relatos	divertidos	dos	mais
velhos	e	o	que	vivemos	diretamente	nos	confirmam.	Quem	participa	desse
mundo	 não	 se	 aborrece,	 posso	 lhes	 assegurar	 que	 permite	 conhecer
personalidades	 notáveis,	 gente	 com	 uma	 capacidade	 de	 trabalho	 e	 uma
sensibilidade	e	 inteligência	 tais	que,	 se	 se	dedicassem	a	algo	com	maior
rating,	teriam	se	sobressaído	em	qualquer	âmbito.
Mas	não	 se	 alarmem.	Meu	propósito	 é	 traduzir	 esses	dialetos	 a	uma
linguagem	compreensível	para	os	mortais.	Espero	ter	êxito	e	que	não	me
aconteça	 o	 que	 acontece	 a	 alguns	 tradutores,	 que	 terminam	 escrevendo
espanhol	com	a	estrutura	da	língua	original.
Devo	confessar	que	me	sinto	muito	mais	 seguro	por	 ter	o	cartunista
Rep	 a	 meu	 lado.	 Dentro	 de	 pouco	 lhes	 explicarei	 a	 função	 da	 arte	 na
criação	 de	 estereótipos,	 e	 creio	 que	 é	 necessário	 combater	 no	 mesmo
campo	para	desfazer	essa	construção.	Por	outra	parte,	estou	seguro	de	que
os	desenhos	de	Rep	perdurarão	muito	mais	do	que	aquilo	que	eu	digo.
Quando	 há	 pouco	 li	 que	 Ferro	 havia	 falecido,[2]	 voltaram	 à	 minha
memória	Langostino,	Bólido,	o	 fantasma	Benito,	Tara	Service,	o	Livro	de
Ouro	 de	 Patoruzú.	 Eles	 estão	 vivos	 em	 mim	 desde	 a	 infância,	 mas	 faz
tempo	que	os	que	escreviam	sobre	a	questão	criminal	naqueles	anos	são
só	história.
2.	Quem	sabe	disso?
Voltando,	 porém,	 ao	 programa	 das	 três	 palavras	 (da	 academia,	 dos
meios	 de	 comunicação	 e	 dos	 mortos),	 se	 queremos	 começar	 pelas	 da
academia,	a	primeira	coisa	que	devemos	saber	é	a	quem	perguntar.	Quem
se	 ocupa	 academicamente	 da	 questão	 criminal?	 O	 primeiro	 movimento
será	olhar	para	a	Faculdade	de	Direito.	Ali	estão	e	dali	são	os	penalistas.
Sabem	direito	penal.	Sem	dúvida	que	é	algo	que	tem	a	ver	com	a	questão
criminal.	Mas	até	que	ponto?
A	ideia	de	que	o	penalista	é	o	mais	autorizado	para	proporcionar	os
conhecimentos	 científicos	 acerca	 da	 questão	 criminal	 é	 uma	 opinião
popular,	mas	não	científica.	Nem	de	longe	basta	saber	direito	penal	para
poder	opinar	com	fundamento	científico	acerca	da	questão	criminal,	ainda
que,	 se	 o	 conhece	 bem,	 pode	 fazer	 muito	 para	 resolver	 numerosos
aspectos	fundamentais	na	prática,	mas	isso	é	outra	coisa.
É	necessário	distinguir	dois	âmbitos	do	conhecimento	que	são	muito
diferentes,	 embora	 costumem	 ser	 confundidos:	 o	 do	 penalista	 e	 o	 do
criminólogo,	ou	seja,	o	direito	penal,	por	um	lado,	e	a	criminologia,	por
outro.
Esclareço	 desde	 já	 que	 não	 se	 dão	 nada	 bem,	 mas	 não	 se	 podem
separar,	 e	 ainda	 que	 declarem	 estar	 divorciados,	 são	 como	 esses	 casais
que	 se	 excitam	 discutindo	 e	 terminam	 como	 todos	 nós	 sabemos.	 Nos
casais	 é	 patológico,	 claro,	 mas	 no	 que	 concerne	 ao	 direito	 penal	 e	 à
criminologia	talvez	seja	um	pouco	menos.
O	que	fazem	os	penalistas?	Antes	de	tudo	são	 juristas,	advogados.	O
direito	 se	 divide	 em	 ramos:	 civil,	 comercial,	 trabalhista,	 administrativo,
constitucional	 etc.,	 e	 cada	 dia	 se	 especializa	 mais	 e	 mais.	 Hoje	 não	 há
quem	 lide	 com	 todo	 o	 direito	 em	 profundidade,	 como	 não	 há	 médico
algum	que	domine	 todas	as	especialidades.	O	direito	penal	é	um	desses
ramos,	que	se	ocupa	de	trabalhar	a	 legislação	penal,	para	projetar	o	que
chamamos	de	doutrina	jurídico-penal,	isto	é,	para	projetar	a	forma	em	que
os	 tribunais	 devem	 resolver	 os	 casos	 de	 maneira	 ordenada,	 não
contraditória.
De	maneira	mais	sintética,	eu	diria	que	a	ciência	do	direito	penal	que
se	 ensina	 nas	 cátedras	 universitárias	 de	 todo	 o	 mundo	 se	 ocupa	 de
interpretar	 as	 leis	 penais	 de	 modo	 harmônico	 para	 facilitar	 a	 tarefa	 dos
juízes,	 promotores	 e	 defensores.	 Seu	 trabalho	 consiste	 basicamente	 na
interpretação	de	textos	com	um	método	bastante	complexo,	que	se	chama
dogmática	 jurídica,	 porque	 cada	 elemento	 em	 que	 a	 lei	 é	 decomposta
deve	 ser	 respeitado	 como	 um	 dogma,	 visto	 que,	 do	 contrário,	 não
interpretariam	a	lei,	mas	sim	a	criariam	ou	a	modificariam.
A	 tarefa	 do	 penalista	 é	 fundamental	 para	 que	 os	 tribunais	 não
resolvam	arbitrariamente	o	que	lhes	for	conveniente,	e	sim	conforme	uma
ordem	mais	ou	menos	racional,	ou	seja,	republicana	e	algo	previsível.	Não
vou	discutir	agora	se	a	dogmática	 jurídica	do	penalista	consegue	ou	não
esses	objetivos.	Tampouco	vem	ao	caso	nem	interessam	muito	a	vocês	os
detalhes	dessas	construções.
A	 fonte	 principal	 da	 ciência	 jurídico-penal	 de	 hoje,	 isto	 é,	 da
dogmática	 jurídica	 aplicada	 à	 lei	 penal,	 é	 a	 doutrina	 dos	 penalistas
alemães.	 Os	 ingleses	 têm	 sua	 própria	 construção,	 que	 pouco	 influi	 na
nossa.	Os	 franceses	 fizeram	muito	pouca	dogmática	 jurídica,	estão	muito
próximos	da	velha	interpretação	literal	da	lei	(o	que	se	chamava	exegese).
Os	 italianos	 estão	 bastante	 próximos	 aos	 alemães,	 ainda	 que	 com	 uma
tradição	 penal	 muito	 sólida	 e	 antiga.	 Os	 suíços	 e	 austríacos	 seguem
diretamente	 as	 escolas	 alemãs.	 Os	 espanhóis	 também	 o	 seguem,	 sem
dúvida	 alguma,	 quase	mais	 do	que	nós.	Há	muitos	 anos	 que	 as	 escolas
alemãs	 são	 acompanhadas	 de	 perto	 em	 toda	 a	 América	 Latina.	 O
penalismo	estadunidense	é	mais	ou	menos	compreensível,	na	medida	em
que	 segue	 o	 modelo	 inglês,	 mas	 quando	 se	 afasta	 deste	 é	 bastante
limitado.
Conforme	 os	 princípios	 da	 ciência	 jurídica	 alemã,	 os	 penalistas
constroem	 um	 conceito	 jurídico	 do	 delito	 que	 se	 chama	 teoria	 geral	 do
delito.	As	discussões	sobre	essa	teoria	são	praticamente	intermináveis,	mas
se	 trata,	 em	 geral,	 de	 uma	 ordem	 prioritária	 conceitual	 para	 estabelecer
frente	a	uma	conduta	se	ela	é	ou	não	delitiva	com	vistas	a	uma	sentença.
Para	 isso,	 diz-se	 que	 o	 delito	 é	 uma	 conduta	 típica,	 antijurídica	 e
culpável.	Ou	seja,	antes	de	tudo	deve	ser	uma	ação	humana,	isto	é,	dotada
de	vontade.	Em	segundo	lugar,	deve	estar	proibida	pela	lei,	ou	seja,	cada
tipo	é	a	descrição	que	a	lei	faz	de	um	delito:	matar,	apoderar-se	de	uma
coisa	móvel	 alheia	 etc.	Em	 terceiro	 lugar,	não	deve	 ser	permitida,	 como
acontece	 no	 caso	 de	 legítima	 defesa	 ou	 de	 estado	 de	 necessidade.	 Por
último,	deve	 ser	 culpável,	ou	 seja,	 reprovável	 ao	autor:	não	o	é	quando
este	não	sabia	o	que	fazia,	estava	louco	(inimputável)	etc.
Essa	 é	 a	 estrutura	 básica	 sobre	 a	 qual	 se	 discute,	 respeitando	 certos
princípios	 constitucionais	 como,por	 exemplo,	 a	 legalidade,	 que	 impede
que	a	pena	seja	 imposta	por	algo	que	não	está	estritamente	descrito	em
uma	lei	anterior	ao	fato,	ou	a	 lesividade,	que	requer	que	em	todo	delito
haja	um	bem	jurídico	lesionado	ou	colocado	em	perigo.
Como	 se	 pode	 ver,	 o	 delito	 dos	 penalistas	 é	 uma	 abstração	 que	 se
constrói	com	um	objetivo	bem	determinado,	que	é	chegar	a	uma	sentença
racional	ou	pelo	menos	 razoável.	Na	 realidade	social,	porém,	esse	delito
não	 existe,	 porque	 no	 plano	 do	 real	 existem	 violações,	 homicídios,
fraudes,	roubos	etc.,	mas	nunca	o	delito.	Em	outros	tempos,	os	penalistas
também	 projetavam	 os	 códigos	 e	 as	 leis	 penais,	 porque	 lhes	 era	 dada
muitíssima	 importância	 e	 se	 considerava,	 com	 razão,	 que	 eram	 um
apêndice	da	Constituição,	porque	impunham	limites	à	liberdade.
Em	nosso	país,	para	não	 irmos	mais	 longe,	os	códigos	penais	 foram
projetados	em	1866,	por	Carlos	Tejedor,	que	foi	governador	da	província
de	Buenos	Aires	e	não	chegou	a	ser	presidente	da	República	em	lugar	de
Roca	porque	protagonizou	 a	última	guerra	 civil	 em	1880,	 e	por	Rodolfo
Moreno	(filho)	em	1917,	que	também	foi	governador	da	província	e	pré-
candidato	 a	 presidente	 nas	 eleições	 de	 1944,	 tendo	 sido	 derrotado	 no
interior	 do	 Partido	 Conservador	 por	 Patrón	 Costas,	 o	 que	 precipitou	 o
golpe	de	1943.
Nesse	meio	tempo	houve	vários	projetos,	e	o	mais	importante	foi	o	de
1891,	obra	dos	fundadores	de	nossa	Faculdade	de	Filosofia	e	Letras,	que
eram	os	 jovens	brilhantes	da	época:	Rivarola,	Piñero	e	Matienzo.	Os	 três
foram	 importantes	 personalidades	 públicas	 e	 um	 deles,	 Matienzo,	 foi
candidato	à	vice-presidência	da	República.
A	trajetória	 jurídica,	 intelectual	e	política	desses	projetistas	prova	que
levavam	muito	a	sério	as	 leis	penais,	o	que	hoje	mudou	completamente,
pois	 agora	quem	as	 elabora	 são	os	 assessores	 dos	políticos,	 conforme	 a
agenda	que	lhes	marcam	os	meios	de	comunicação	de	massa.
Por	isso,	hoje,	tampouco	os	penalistas	fazem	as	leis	penais,	ocupando-
se	 quase	 exclusivamente	 do	 que	 lhes	 conto,	 quer	 dizer,	 da	 sua
interpretação,	na	forma	em	que	assinalei.
Logicamente,	vocês	se	perguntarão	o	que	é	que	esses	senhores	sabem
acerca	da	realidade	do	delito,	do	que	se	passa	no	mundo	em	que	 todos
nós	 vivemos,	 do	 que	 fazem	 os	 delinquentes,	 os	 policiais,	 os	 juízes,	 as
vítimas,	 os	 empresários	 midiáticos,	 os	 jornalistas	 etc.	 Simplesmente,	 o
mesmo	que	qualquer	vizinho	que	lê	os	jornais	e	assiste	televisão,	porque
o	penalista	se	ocupa	da	lei,	não	da	realidade.
Isso,	 que	 pode	 chamar	 a	 atenção	 de	 quem	 não	 se	 tenha	 inteirado
antes	deste	mundo,	é	sabido	e	inclusive	teorizado.	Desde	jovem,	quando
se	entra	na	Faculdade	de	Direito,	explicam	que	ali	se	estudam	relações	de
normas,	de	dever	ser	e	não	de	ser.
Há	mesmo	toda	uma	corrente	que	pretende	um	corte	radical	entre	os
estudos	 do	 dever	 ser	 e	 do	 ser.	 São	 os	 neokantianos,	 que	 dividem	 os
conhecimentos	entre	ciências	da	natureza	e	da	cultura.	O	direito	seria	uma
ciência	da	cultura	e	o	que	acontece	no	mundo	em	que	vivemos	todos	os
dias	 seria	 matéria	 das	 ciências	 da	 natureza.	 Isso	 lhes	 parece	 um	 pouco
esquizofrênico?	É	um	pouco,	com	certeza.
A	 divisão	 foi	 tão	 taxativa	 que	 permitiu	 que	 a	 grande	 maioria	 dos
penalistas	dos	tempos	do	nazismo	viesse	tranquilamente	desde	o	Império
Alemão	até	o	pós-guerra,	passando	por	cima	da	República	de	Weimar,	dos
crimes	da	ascensão	do	nazismo,	dos	massacres,	do	genocídio,	da	guerra,
sem	inteirar-se	dos	milhões	de	cadáveres.	Tudo	isso	pertencia	às	ciências
da	natureza,	que	não	lhes	dizia	respeito.
Para	 que	 vocês	 se	 tranquilizem,	 direi	 que	 hoje	 nem	 todo	 o	 direito
penal	 segue	este	caminho,	embora	não	 faltem	nostálgicos	que	 tentam	se
entrincheirar	nas	normas.	De	qualquer	maneira,	 isso	é	questão	do	direito
penal,	ou	 seja,	do	que	não	nos	ocuparemos	aqui	 enquanto	 tal,	mas	 sim
precisamente	do	que	pertence	ao	mundo	do	ser,	no	qual	vivemos	 todos
os	dias.
Disso	 se	 ocupa	 precisamente	 a	 criminologia,	 para	 onde	 convergem
muitos	 dados	 que	 provêm	 de	 diferentes	 fontes	 –	 da	 sociologia,	 da
economia,	 da	 antropologia,	 das	 disciplinas	 psi,	 da	 história	 etc.	 –,	 que
tentam	nos	 responder	o	que	é	e	o	que	acontece	com	o	poder	punitivo,
com	a	violência	produtora	de	cadáveres	etc.
É	 bem	 verdade	 que	 esta	 palavra	 da	 academia	 também	 esteve
carregada	 de	 palavras	 obscenas	 (ou	 pelo	 menos	 são	 elas	 que	 temos
vontade	 de	 dizer	 às	 vezes),	 e	 aconteceu	 em	 diferentes	 etapas.	 Primeiro
perguntou-se	 pelas	 causas	 do	 delito,	 o	 que	 se	 chamou	 de	 criminologia
etiológica,	 e	 os	 demonólogos,	 os	 juristas	 e	 filósofos,	 os	 médicos,	 os
psicólogos	 e	 os	 sociólogos	 trataram	 de	 responder.	 Muito	 mais
recentemente	deu-se	conta	de	que	o	poder	punitivo	também	era	causa	do
delito,	e	passou	a	ser	analisado	e	questionado	com	diferente	 intensidade
crítica.	São	estas	etapas	que	passaremos	a	percorrer	depois	de	uma	visão
geral	 sobre	 o	 poder	 punitivo	 e	 sua	 função	 real	 no	 marco	 do	 poder
planetário.
	
Ilustração	3
	
3.	O	poder	punitivo	e	a	verticalização	social
O	poder	punitivo	é	como	o	bife	à	milanesa	com	batatas	fritas,	isto	é,
ninguém	se	pergunta	por	que	existe.	Parece	que	 sempre	esteve	ali.	Mas
não	é	assim.
Alguém	 comparou	 o	 tempo	 de	 nosso	 pequeno	 planeta	 com	 uma
semana	e	advertiu	que	aparecemos	no	último	minuto	antes	da	meia-noite
do	 domingo.	 Não	 sei	 quando	 apareceu	 o	 bife	 à	 milanesa,	 mas	 nesses
segundos	 geológicos	 que	 levamos	 arranhando	 a	 superfície	 da	 Terra,	 só
carregamos	com	o	poder	punitivo	por	alguns	décimos	de	segundo.
O	humano	 é	 social,	 não	 sobrevive	 isolado,	 e	 em	 toda	 sociedade	 há
poder	e	coerção.	Todo	grupo	humano	conheceu	sempre	duas	 formas	de
coerção,	cuja	legitimidade	quase	não	se	discute,	embora	se	possa	discutir
como	se	exerce.
Uma	 é	 a	 coerção	 que	 detém	 um	 processo	 lesivo	 em	 curso	 ou
iminente:	quando	uma	parede	está	prestes	a	cair	ou	quando	alguém	corre
atrás	 de	 mim	 pela	 rua	 com	 uma	 faca	 na	 mão,	 há	 um	 poder	 social	 que
demole	a	parede	embora	o	dono	se	oponha,	ou	que	desarme	aquele	que
quer	me	enfiar	a	faca.	Isso	se	chama	hoje	coerção	direta,	em	outra	época
poder	de	polícia,	e	no	Estado	está	regulada	pelo	direito	administrativo.
Outra	 é	 a	 coerção	 que	 se	 pratica	 para	 reparar	 ou	 restituir	 quando
alguém	causou	um	dano.	Esta	é	hoje	própria	do	direito	civil	e	de	outros
ramos	do	direito.
Mas	 o	 poder	 punitivo	 é	 diferente,	 não	 existiu	 em	 todos	 os	 grupos
humanos,	e	surgiu	muito	mais	tarde.	Por	que?	O	que	o	diferencia	dessas
outras	coerções?
As	duas	formas	de	coerção	antes	referidas	resolvem	os	conflitos:	uma,
porque	evita	o	dano,	outra,	porque	o	repara.	Porém,	quando	na	coerção
reparadora	 alguém	 que	 manda	 diz	 que	 o	 lesado	 sou	 eu	 e	 afasta	 quem
realmente	 sofreu	 a	 lesão,	 é	 ali	 que	 surge	 o	 poder	 punitivo,	 ou	 seja,
quando	o	cacique,	rei,	senhor,	autoridade	ou	quem	quer	que	seja	substitui
a	vítima,	a	confisca.
Comprovamos	isso	em	qualquer	caso:	se	uma	pessoa	agride	a	outra	e
quebra-lhe	um	osso,	o	Estado	leva	o	agressor,	o	penaliza,	alegando	que	o
faz	 para	 dissuadir	 terceiros	 de	 romper	 ossos	 ou	 para	 ensinar-lhe	 a	 não
fazê-lo	de	novo	ou	para	o	que	quer	que	seja,	e	o	que	sofre	com	o	osso
quebrado	deve	recorrer	à	Justiça	civil,	na	qual	pode	não	obter	nada,	caso
o	agressor	não	possuir	bens.
O	 poder	 punitivo	 reduziu	 a	 pessoa	 com	 o	 osso	 partido	 a	 um	 mero
dado,	porque	não	toma	parte	na	decisão	punitiva	do	conflito.	Mais	ainda:
deve	mostrar	seu	osso	partido	e	se	não	o	fizer	o	poder	punitivo	a	ameaça
como	 testemunha	 remisso	 e	 pode	 levá-la	 pela	 força	 a	 mostrar	 o	 que	 o
agressor	lhe	fez.	A	característica	do	poder	punitivo	é,	pois,	o	confisco	da
vítima,	ou	seja,	é	um	modelo	que	não	resolve	o	conflito,	porque	uma	das
partes	(o	lesado)	está,	por	definição,	excluído	da	decisão.	O	punitivo	não
resolveo	conflito,	mas	sim	o	suspende,	como	uma	peça	de	roupa	que	se
retira	da	máquina	de	lavar	e	se	estende	no	varal	até	secar.
Detemos	 o	 agressor	 por	 um	 tempo	 e	 o	 soltamos	 quando	 o	 conflito
acaba.	É	certo	que	podemos	matá-lo,	mas	nesse	caso	não	faríamos	outra
coisa	senão	deixar	o	conflito	suspenso	para	sempre.	Não	repomos	nada	à
vítima,	não	lhe	pagamos	o	tratamento,	o	tempo	de	trabalho	perdido,	nada.
Nem	sequer	lhe	damos	um	diploma	de	vítima	para	que	o	pendure	em	um
canto	da	casa.	Não	ocorreria	a	ninguém	obrigar	o	agressor	a	trabalhar	para
reparar	o	lesado,	ameaçando-o	com	uns	açoites	em	público,	como	fazem
nossos	 povos	 nativos,	 porque	 isso	 seria	 prático,	 mas	 consideramos
incivilizado.
Ademais,	 frente	 a	 outros	 modelos	 de	 efetiva	 solução	 do	 conflito,	 o
modelo	 punitivo	 se	 comporta	 de	 modo	 excludente,	 porque	 não	 só	 não
resolve	o	conflito	como	também	impede	ou	dificulta	sua	combinação	com
outros	 modelos	 que	 o	 resolvem.	 É	 óbvio	 que,	 quando	 prendemos	 o
marido	agressor,	a	mulher	e	os	 filhos	devem	se	virar	como	possam	para
viver,	 porque	 a	 besta	 fera	 não	 pode	 trabalhar	 e,	 por	 conseguinte,	 não
cobra.
Imaginemos	 que	 um	 menino	 quebre	 uma	 vidraça	 na	 escola	 com	 os
pés.	 A	 direção	 pode	 chamar	 o	 pai	 do	 pequeno	 energúmeno	 para	 que
pague	 a	 vidraça,	 pode	mandá-lo	 ao	 psicopedagogo	para	 ver	 o	 que	 está
acontecendo	 com	 a	 criança,	 também	 pode	 sentar-se	 e	 conversar	 com	 o
pequeno	 para	 averiguar	 se	 alguma	 coisa	 lhe	 faz	 mal	 e	 o	 irrita.	 São	 três
formas	 de	modelos	 não	punitivos:	 reparador,	 terapêutico	 e	 conciliatório.
Os	 três	 modelos	 podem	 ser	 aplicados	 porque	 não	 se	 excluem.	 Em
compensação,	 se	 o	 diretor	 decide	 que	 a	 quebra	 da	 vidraça	 afeta	 sua
autoridade	e	aplica	o	modelo	punitivo	expulsando	o	menino,	nenhum	dos
outros	pode	ser	aplicado.
É	 claro	que	o	diretor,	 ao	 expulsar	 o	menino,	 reforça	 sua	 autoridade
vertical	 sobre	 a	 comunidade	 escolar.	 Isso	 quer	 dizer	 que	 o	 modelo
punitivo	não	é	um	modelo	de	 solução	de	 conflitos,	mas	 sim	de	decisão
vertical	de	poder.	É	por	isso,	 justamente,	que	ele	aparece	nas	sociedades
quando	estas	se	verticalizam	hierarquicamente.
O	modelo	reparador	é	de	solução	horizontal	e	o	punitivo	de	decisão
vertical.	 Este	 aparece	 quando	 as	 sociedades	 vão	 ganhando	 a	 forma	 de
exércitos	 com	 classes,	 castas,	 hierarquias	 etc.	 Por	 isso	 surgiu	 em	 muitos
lugares	do	planeta,	sempre	que	uma	sociedade	começou	a	verticalizar-se
hierarquicamente.	 A	 arqueologia	 penal	 estuda	 isso	 em	 sociedades
distantes.
Houve	uma	sociedade	que	se	verticalizou	com	muita	força	na	Europa:
a	 romana.	 Quando	 Roma	 passou	 da	 república	 ao	 império	 seu	 poder
punitivo	 se	 fez	 muito	 mais	 forte	 e	 cruel.	 E	 o	 que	 pode	 fazer	 uma
sociedade	 quando	 se	 verticaliza	 até	 assumir	 a	 forma	 de	 exército?	 A
resposta	é	óbvia:	conquistar	outras.	Roma	conquistou	quase	toda	Europa.
Como	 conseguiu	 fazer	 isso?	 Porque	 tinha	 uma	 estrutura	 colonizante,	 ou
seja,	 hierarquizada,	 em	 forma	 de	 exército.	 Essa	 estrutura,	 montada
mediante	o	poder	punitivo,	é	a	necessária	para	a	empresa	de	conquista	e
colonização.
No	entanto,	Roma	caiu	praticamente	sem	que	ninguém	a	empurrasse;
seus	 imperadores	 eram	 generais	 que	 brincavam	 de	 golpe	 de	 Estado,
passavam	 o	 tempo	 intrigando	 ou	 neutralizando	 intrigas,	 e	 em	 seus
momentos	 de	 ócio	 se	 divertiam	 com	 amantes	 e	 escravos	 núbios.	 Os
costumes	se	relaxaram,	dizem	os	moralistas.
Porém,	Roma	não	caiu	por	causa	das	amantes	ou	dos	escravos,	mas
sim	 porque	 a	 estrutura	 vertical	 que	 proporciona	 o	 poder	 colonizador,
imperial,	logo	se	solidificou	até	imobilizar	a	sociedade,	as	classes	tornam-
se	 castas,	 o	 sistema	 perde	 flexibilidade	 para	 adaptar-se	 às	 novas
circunstâncias,	 torna-se	 vulnerável	 aos	 novos	 inimigos.	 Nesse	 momento,
decai	 e	 perde	 o	 poder.	 Chegaram	 os	 bárbaros	 com	 suas	 sociedades
horizontais,	 que	 ocuparam	 os	 territórios	 quase	 caminhando,	 e	 o	 poder
punitivo	desapareceu	quase	por	completo.
Os	germânicos	resolviam	seus	conflitos	de	outra	maneira:	quando	um
alemão	 dava	 um	 golpe	 de	 garrote	 na	 cabeça	 do	 outro,	 corria	 para	 se
refugiar	na	igreja,	onde	não	podia	ser	tocado	(asilo	eclesiástico).	Com	isso,
evitava	 o	 primeiro	 impulso	 vingativo,	 mas,	 imediatamente,	 os	 dois
germânicos	velhos,	chefes	de	clãs,	 reuniam-se	e	um	fazia	notar	ao	outro
que	 tinha	 um	 germânico	 avariado	 e	 que	 isso	 tinha	 de	 ser	 resolvido	 de
algum	 modo.	 Do	 contrário,	 o	 choque	 ia	 se	 dar	 entre	 os	 clãs,	 como	 na
guerra,	 porque	 assim	 o	 determinava	 a	 vingança	 de	 sangue	 (Blutrache,
diziam),	 o	 que	 não	 convinha	 a	 nenhum	 dos	 dois.	 E	 a	 coisa	 se	 ajustava
com	uma	reparação,	entregavam-se	animais,	metais,	coisas	etc.	(o	que	se
chamava	Wertgeld).
Havia	 um	 único	 crime	 ao	 qual	 era	 aplicado	 o	 modelo	 punitivo:	 a
traição.	O	traidor	era	pendurado	em	uma	árvore:	proditores	et	 transfugas
arboribus	suspendunt,	recorda	o	velho	Tácito,	ao	relatar	os	costumes	dos
germânicos.	As	outras	ofensas	eram	acertadas	entre	as	partes.	No	bairro,
acontece	a	mesma	coisa	com	o	alcaguete,	embora	com	menos	violência.
	
Ilustração	4
	
Mas	por	que	há	que	se	dar	tanta	importância	a	Roma,	se	estamos	tão
longe,	aqui	estavam	nossos	nativos	e	nunca	um	romano	colocou	um	pé	na
América?	 Precisamente	 porque	 a	 história	 segue,	 o	 poder	 punitivo
desapareceu	quase	por	 completo	 (salvo	uns	 tantos	 traidores	 pendurados
nas	 árvores),	 até	 que	 um	 dia	 ocorreu	 aos	 senhores	 que	 era	 um	 bom
negócio	 confiscar	 a	 vítima	 e	 que	 isso	 também	 servia	 para	 reforçar	 seu
poder,	e	voltaram	ao	mau	costume,	fazendo	renascer	o	poder	punitivo	nos
séculos	XII	e	XIII	europeus.	E	aqui	 isso	começa	a	nos	interessar,	porque
não	desaparece	já	há	quase	mil	anos,	verticalizou	as	sociedades	europeias,
deu-lhes	estrutura	corporativa,	sob	a	forma	de	exército,	e	elas	se	lançaram
à	colonização	de	todo	o	planeta.
O	 poder	 punitivo	 foi	 o	 instrumento	 de	 verticalização	 social	 que
permitiu	à	Europa	nos	colonizar.	A	Península	Ibérica	assumiu	a	liderança
porque	 adquiriu	 caráter	 vertical	 para	 conquistar	 os	 muçulmanos	 do	 sul,
ainda	que	até	hoje	digam	que	os	reconquistaram,	o	que	é	duvidoso	depois
de	 700	 anos	 de	 permanência	 deles	 ali	 e	 de	 uma	 civilização	 que	 era
brilhante.	Quando	terminaram	de	convertê-los	ao	cristianismo	aos	golpes,
os	 Reis	 (muito)	 Católicos	 fizeram	 o	 que	 faz	 todo	 exército:
homogeneizaram	 o	 discurso	 religioso	 e	 para	 isso	 obrigaram	 os	 judeus	 a
converterem-se	 como	 marranos	 ou	 a	 irem	 embora,	 e	 assim	 a	 frente
interna	passou	a	rezar	ao	mesmo	Deus,	na	versão	dos	reis.
Para	 dizer	 a	 verdade,	 a	 verticalização	 europeia	 havia	 começado	 um
pouco	antes	dos	séculos	XII	e	XIII,	ou	seja,	por	volta	do	ano	1000,	quando
todas	 as	 leis	 locais	que	 iam	 surgindo	 timidamente	 regularam	as	 relações
familiares	 e	 sexuais	 de	 maneira	 detalhadíssima,	 mais	 do	 que	 a
propriedade.	 Isso	 se	 explica	 porque	 todo	 exército	 necessita	 de	 cabos	 e
sargentos,	 sob	 cujo	 comando	 caem	 as	 pequenas	 unidades	 de	 tropa.	 A
verticalização	começou	por	baixo,	 como	devia	 ser,	porque	é	 sabido	que
uma	revolução	triunfa	quando	as	 tropas	se	sublevam;	por	conseguinte,	a
primeira	 coisa	 que	 quem	 quer	 reforçar	 o	 poder	 vertical	 deve	 fazer	 é	 se
assegurar	de	que	tem	os	comandos	inferiores	sob	controle.
O	 cabo	 deste	 exército	 social	 foi	 o	 pater,	 sob	 cujo	 comando	 ficaram
todos	 os	 seres	 inferiores:	 mulheres,	 crianças,	 servos,	 escravos,	 animais
domésticos	etc.	 (havia	poucos	velhos,	porque	as	pessoas	morriam	muito
jovens).	O	patriarcado	não	é	mais	do	que	o	poder	dos	cabos	e	sargentos
da	sociedade	corporativa,	fruto	do	primeiro	passo	da	disciplina	vertical.
O	próprio	pater	 impunha	os	castigos	aos	seres	inferiores,	salvo	casos
de	 insubordinação,	 como	 as	 mulheres	 desobedientes	 e	 osgays	 ou
traidores,	 que	 não	 assumiam	 devidamente	 seu	 papel	 de	 pater.	 Como
ninguém	podia	permitir	a	insubordinação	da	tropa	porque	senão	o	barco
afundava,	 as	 lutas	 que	 se	 seguiram	 foram	 entre	 senhores,	 mas	 todos
reafirmaram	a	ordem	sobre	os	inferiores.
O	poder	punitivo	foi	se	estendendo,	mas	não	havia	 leis	suficientes	e
as	 que	 havia	 eram	 caóticas.	 Dispunha-se	 menos	 ainda	 de	 um	 discurso
legitimador	 desse	 poder	 renascente.	 Nesse	 momento	 apareceram	 as
universidades	no	norte	da	Itália	e	com	elas	os	juristas,	que,	como	deviam
fazer	o	discurso	mas	não	tinham	leis	razoáveis,	não	tiveram	ideia	melhor
do	que	trazer	o	Digesto	de	Justiniano	e	começar	a	comentá-lo.
Assim	 nasceu	 a	 ciência	 jurídico-penal,	 com	 supostos	 comentários	 ao
Digesto.	E	o	que	era	o	famoso	Digesto?	Nada	menos	que	uma	coleção	de
antigas	 leis	 romanas,	 recolhidas	 por	 determinação	 do	 imperador
Justiniano,	que	nunca	 foi	 imperador	em	Roma	e	 sim	em	Constantinopla,
quando	o	império	do	Ocidente	–	ou	seja,	Roma	–	já	havia	caído	em	poder
dos	 germânicos.	 As	 leis	 penais	 recolhidas	 no	 Digesto	 eram	 as	 piores	 e,
além	disso,	com	alguns	 retoques	deformantes	do	próprio	 Justiniano,	que
desde	 a	 romanização	 do	 cristianismo	 (que	 costuma	 se	 chamar	 de
cristianização	 de	 Roma)	 se	 considerava	 chefe	 religioso	 e	 perseguia	 com
singular	 furor	 e	 alegria	 os	 não	 cristãos,	 entre	 eles	 os	 que	 continuavam
adorando	os	deuses	romanos.	Essa	injeção	legal	dos	primeiros	juristas	foi
denominada	recepção	do	direito	romano.
A	 ciência	 jurídico-penal	 nasceu,	 portanto,	 com	 a	 importação	 de
Constantinopla	 dos	 chamados	 libris	 terribilis	 do	 Digesto.	 Os	 primeiros
penalistas	se	chamaram	glosadores	porque	fingiam	que	comentavam	essas
leis;	 na	 verdade,	 sob	 o	 pretexto	 de	 comentá-las,	 diziam	 o	 que	 bem
entendiam,	 mas	 começaram	 a	 ensaiar	 alguma	 lógica	 interna	 em	 seu
discurso.
É	 bem	 verdade	 que	 aqueles	 que	 deviam	 legitimar	 essas	 leis	 atrozes
não	 podiam	 confessar	 que	 o	 poder	 punitivo	 serve	 para	 verticalizar	 e
colonizar,	razão	pela	qual	sempre	se	buscou	encontrar	alguma	justificativa
para	 cada	 lei	 penal,	 baseada	 em	 uma	 necessidade	 fundada	 em	 fatos	 do
mundo	real.	Como	se	tratava	de	legitimações	sobre	argumentos	fáticos,	os
supostos	 comentários	 dos	 glosadores	 e	 pós-glosadores	 misturavam	 o
direito	penal	com	a	criminologia.
Assim	começaram	as	palavras	da	academia	nas	universidades	do	norte
italiano	 mil	 anos	 atrás,	 mas	 o	 poder	 que	 em	 todos	 os	 tempos	 estas
legitimaram	não	foi	outro	senão	o	instrumento	de	verticalização	social	que
possibilitou	a	colonização.	Esse	poder	não	se	estendeu	porque	Henrique,
o	Navegador	se	lançou	para	a	África	ou	porque	Cristóvão	Colombo,	com	a
história	das	jóias	da	rainha,	tenha	armado	as	caravelas,	mas	sim	porque	o
poder	punitivo	havia	dado	forma	de	exército	a	essas	sociedades.	Sem	cair
em	 fantasias	 não	 verificáveis,	 o	 certo	 é	 que	 os	 nórdicos	 chegaram	 à
América	antes	de	Colombo,	mas	como	não	dispunham	de	uma	estrutura
colonizadora	morreram	de	frio	no	norte,	não	se	animando	a	seguir	para	o
sul.
E	 a	 história	 reiterou	 o	 processo	 romano:	 a	 Espanha	 não	 conseguiu
modificar	 sua	 estrutura	 vertical	 quando	 o	 industrialismo	 amanheceu	 no
século	 XVIII	 e	 terminou	 perdendo	 seu	 império	 e	 sua	 hegemonia,	 que
passou	 para	 as	 potências	 do	 centro	 e	 do	 norte	 da	 Europa.	 O	 poder
punitivo,	 contudo,	 não	 desapareceu,	 mas	 ficou	 limitado	 à	 sua	 função
interior,	apontando	para	uma	sociedade	imóvel.
Como	o	punitivo	é	a	chave	do	poder	planetário,	o	que	se	diz	a	seu
respeito	 não	 é	 resultado	 de	 uma	 busca	 ingênua	 de	 conhecimentos,	 de
curiosidade	científica	desinteressada	em	âmbitos	acadêmicos,	mas	sim	que
se	defronta	com	o	cerne	da	expansão	colonial.	Por	isso,	tudo	o	que	se	diz
em	criminologia	é	político,	porque	sempre	será	funcional	ou	disfuncional
ao	 poder,	 o	 que	 não	 muda,	 ainda	 que	 quem	 o	 afirma	 o	 ignore	 ou	 o
negue.
Por	isso,	não	podemos	evitar	o	passado,	porque	se	o	ignoramos	não
saberemos	onde	fomos	parar.	O	que	interessa	do	passado	não	é	se	María
Antonieta	se	deixou	seduzir	pelo	colar,	se	Catarina	levou	Miranda	para	a
cama,	se	a	rainha	Isabel	 tomava	banho	ou	se	Ludwig	II	 fazia	orgias	com
seus	guardas	enquanto	sonhava	com	palácios	de	Disneilândia,	e	sim	saber
onde	estamos	parados	em	uma	continuidade	de	poder,	que	em	seu	fluxo
nos	trouxe	a	este	lugar.	E	a	questão	criminal	é	central	nessa	corrente	que
não	para,	como	algo	do	presente,	que	é	pura	projeção	do	passado.	Se	não
comprendemos	que	a	 Idade	Média	não	 terminou,	não	podemos	entrever
para	 onde	 vamos,	 ou	 pior,	 para	 onde	podemos	 ir	 (o	 que	me	 eximo	de
dizer,	até	mesmo	por	motivos	de	boa	educação).
Como	a	Idade	Média	não	terminou,	nada	do	passado	está	morto	nem
enterrado,	mas	 apenas	 oculto,	 e	 não	por	 acaso.	Não	 é	 um	passado	que
volta,	 mas	 sim	 que	 nunca	 se	 foi,	 porque	 ali	 está	 o	 poder	 punitivo,	 sua
função	verticalizante,	suas	tendências	expansivas,	seus	resultados	letais.
Dessa	perspectiva,	o	passado	não	evoca	aborrecidas	lições	com	datas
e	próceres	movidos	pelo	acaso	ou	pela	genialidade,	mas	sim	nos	mostra
um	zoológico	de	 fósseis	 vivos	 e	não	 em	um	museu	paleontológico.	 Por
isso,	 se	 quiserem	 me	 seguir,	 devo	 começar	 pelo	 passado,	 para	 que	 um
tiranossauro	não	nos	coma.
Estamos	 habituados	 a	 que	 o	 locutor	 elegante	 comunique	 a	 notícia
sangrenta	 com	 voz	 cavernosa,	 preludiando	 a	 exortação	 à	 reforma	 do
Código	 Penal	 e	 de	 imediato	 vai	 ao	 tribunal	 para	 anunciar	 produtos
íntimos.	 Mas	 também	 estamos	 acostumados	 a	 que	 isso	 gere	 um	 mar	 de
opiniões	 díspares	 e	 em	 todos	 os	 tons:	 há	 que	 matar	 a	 todos;	 deixar	 a
polícia	 atuar	 e	 baixar	 o	 sarrafo;	 aplicar	 o	 talião;	 ter	 boas	 prisões	 para
ressocializar;	atender	aos	fatores	sociais;	não	atendê-los	porque	nem	todos
os	 pobres	 delinquem;	 nem	 só	 os	 pobres	 delinquem,	 um	 longuíssimo
etcétera.
Creio	que	muitas	pessoas	 ficariam	surpresas	se	 lhes	disséssemos	que
os	 Estados	 absolutos	 matavam	 há	 centenas	 de	 anos,	 que	 desde	 a
Inquisição	 recorrem	 à	 violência,	 que	 o	 talião	 foi	 apoiado	 por	 Kant	 no
século	XVIII,	 que	 a	 ressocialização	–	que	vem	do	positivismo	do	 século
XIX,	dos	fatores	sociais	–	é	coisa	de	muitos	e	em	especial	de	Bonger	há
um	século,	que	a	negação	dos	fatores	sociais	era	de	Garofalo	no	final	dos
Oitocentos,	 que	 os	 delitos	 de	 colarinho	 branco	 foram	 teorizados	 por
Sutherland	há	sessenta	anos	etc.	Nada	disso	morreu	e	se	na	criminologia
acadêmica	 não	 se	 sustentam	 determinadas	 teses	 é	 porque	 já	 não	 são
politicamente	 corretas,	 continuam	 sendo	 afirmadas	 com	 escassa
dissimulação	na	criminologia	midiática.
Porém,	o	que	quero	dizer	com	que	a	Idade	Média	não	terminou?	Por
um	 lado,	 que	 somos	 hoje	 um	 produto	 daquele	 poder	 punitivo	 que
renasceu	na	Idade	Média	e	permitiu	aos	colonizadores	europeus	ocupar	a
América,	a	África	e	a	Oceania,	escravizar,	dizimar	e	até	extinguir	os	povos
nativos,	 transportar	 milhões	 de	 africanos,	 avançar	 sobre	 o	 mundo	 com
massacres	e	depredação	colonialista	e	neocolonialista.
No	entanto,	por	outro	lado,	quero	dizer	que	os	discursos	legitimadores
do	poder	punitivo	da	Idade	Média	estão	plenamente	vigentes,	até	o	ponto
de	que	a	criminologia	nasceu	como	saber	autônomo	no	final	do	período
medieval	 e	 fixou	 uma	 estrutura	 que	 permanece	 quase	 inalterada	 e
reaparece	 cada	 vez	 que	 o	 poder	 punitivo	 quer	 se	 libertar	 de	 todo	 e
qualquer	limite	e	desembocar	em	um	massacre.
Quando	 o	 poder	 punitivo	 renasceu,	 o	 bispo	 de	 Roma	 –	 o	 Papa	 –
estava	 desejoso	 de	 conter	 a	 todos	 os	 que	 pretendiam	 se	 comunicar
diretamente	 com	 Deus,	 à	 margem	 de	 sua	 mediação	 ou	 da	 de	 seus
dependentes.	 Para	 reforçar	 esse	 monopólio	 telefônico,	 e	 também	 para
concentrar	poder	econômico,	 estabeleceu-se	uma	 jurisdição,	ou	 seja,	um
corpo	 de	 juízespróprios	 encarregados	 de	 perseguir	 os	 revoltosos,
chamados	 hereges.	 Esse	 foi	 o	 tribunal	 do	 Santo	 Ofício	 ou	 Inquisição
romana.
O	 reaparecimento	 do	 poder	 punitivo	 e	 o	 surgimento	 da	 Inquisição
mudaram	 tudo.	 Até	 esse	 momento,	 nos	 processos	 entre	 as	 partes,	 a
verdade	se	estabelecia	pelos	ordálios	ou	pelas	provas	de	Deus.	Os	juízes
anteriores	à	volta	do	Digesto	e	aos	inquisidores	eram,	na	realidade,	árbitros
desportivos,	pois	o	ordálio	mais	frequente	era	o	duelo.	O	que	vencia	era
quem	tinha	razão,	porque	se	invocava	a	Deus	e	este	baixava	magicamente
convocado	 e	 se	 expressava	 no	 duelo,	 permitindo	 ganhar	 só	 àquele	 que
tinha	 razão.	 Os	 juízes	 não	 julgavam	 e	 sim	 cuidavam	 que	 não	 houvesse
fraude.	Quem	decidia	era	Deus.	Pode-se	imaginar	que	esses	juízes	tinham
uma	absoluta	tranquilidade	de	consciência.
Com	 as	 leis	 romanas	 imperiais	 injetadas	 pelos	 juristas,	 a	 verdade
passou	 a	 ser	 estabelecida	 por	 interrogação,	 por	 inquisitio.	 O	 imputado
devia	 ser	 interrogado,	 e	 se	 não	 queria	 responder	 a	 verdade	 lhe	 era
extraída	pela	violência,	pela	tortura.	Para	isso	haviam	sequestrado	Deus	e
o	ordálio	se	havia	 tornado	desnecessário,	pois	Deus	 já	estava	sempre	do
lado	 de	 quem	 exercia	 a	 violência.	 O	 poder	 tinha	 atado	 Deus,	 porque
sempre	fazia	o	bem.
Segundo	 Foucault,	 todo	 saber	 adotou	 o	 método	 do	 interrogatório
violento.	 Parece	 haver	 algo	 disso	 se	 comparamos	 a	 inquisição	 com	 a
vivissecção,	mas	voltemos	ao	nosso.	A	Inquisição	romana	exercia	o	poder
de	 julgar	 em	 toda	 Europa	 porque	 não	 havia	 Estados	 nacionais	 e	 os
senhores	 feudais	 não	 podiam	 impedi-lo,	 embora	 isso	 lhes	 incomodasse.
Na	Espanha,	onde	a	 sociedade	 já	 tinha	a	 forma	de	exército,	o	poder	da
Inquisição	 não	 foi	 papal,	 e,	 diferentemente	 do	 resto	 de	 Europa,
encontrava-se	a	serviço	do	rei.	Por	isso,	a	Inquisição	espanhola	tem	uma
história	separada	da	romana.
Com	 esse	 instrumento,	 o	 Papa	 massacrou	 rapidamente	 uns	 tantos
hereges	(os	albigenses,	os	cátaros	etc.).	Também	se	 juntou	aos	 franceses
para	fritar	os	templários	e	repartir	suas	riquezas,	imputando-lhes	que	eram
gays	 e	 que	 tinham	 um	 ritual	 de	 iniciação	 de	 submissão	 sexual,	 meio
leather	style.	Logo,	porém,	a	Inquisição	ficou	sem	trabalho	e	sem	inimigo,
porque	havia	matado	todos	eles.	Para	 justificar	seu	brutal	poder	punitivo
necessitava	 de	 um	 inimigo	 que	 tivesse	 mais	 vigor,	 que	 fosse	 de	 melhor
qualidade.	Assim,	acabou	apelando	para	um	inimigo	de	muito	bom	estofo,
que	 durou	 vários	 séculos:	 Satã,	 que	 em	 hebraico	 significa	 justamente
inimigo.
Como	era	difícil	explicar	semelhante	poder	sanguinário	no	marco	de
uma	religião	cujo	Deus	não	era	guerreiro,	e	sim	uma	vítima	executada	em
um	instrumento	de	tortura	próprio	do	poder	punitivo	do	Império	Romano
(equivalente	à	cadeira	elétrica	do	século	XX),	era	necessário	 inventar-lhe
um	 inimigo	 guerreiro,	 e	 assim	 Satã	 terminou	 sendo	 o	 comandante	 em
chefe	de	um	exército	composto	por	legiões	de	diabos.
Para	isso	lhe	caiu	muito	bem	a	cosmovisão	que	Santo	Agostinho	havia
imaginado	quase	 dez	 séculos	 antes.	 Ele	 –	 que	havia	 vivido	no	norte	 de
África	no	século	IV	e	depois	de	participar	de	quantas	festas	pôde,	quando
lhe	baixaram	os	hormônios,	e	como	antes	havia	combinado	suas	andanças
com	o	maniqueísmo	–	 imaginou	que	havia	dois	mundos	 enfrentados	na
forma	de	espelho:	um	de	Deus	e	outro	de	Satã,	a	cidade	de	Deus	e	a	do
diabo.
As	 duas	 cidades	 tinham	 equipes	 rivais:	 a	 do	 diabo	 dedicava-se	 ao
esporte	de	tentar	a	de	Deus,	porque	os	partidários	deste	podiam	salvar-se,
ao	 passo	 que	 eles,	 como	 anjos	 caídos,	 estavam	 irremediavelmente
condenados	a	ser	destruídos	no	juízo	final	e,	portanto,	tentavam	adiá-lo	e
baixar	o	número	de	salváveis.	Não	ficava	claro	por	que	não	os	destruíram
antes	e	era	necessário	esperar	o	julgamento,	mas	isso	não	importa.
O	certo	é	que	nesse	mundo	maciço,	mas	perfeitamente	dividido,	não
havia	possibilidade	de	neutralidade:	ou	se	estava	com	Deus	ou	com	Satã.
Tudo	o	que	estava	fora	da	cidade	de	Deus	era	domínio	satânico,	incluindo
os	deuses	pagãos	(e	depois	seriam	as	religiões	dos	nossos	povos	nativos).
Cabe	esclarecer	que	o	pobre	Santo	Agostinho	não	matou	ninguém.	Ele
apenas	 armou	 esse	 discurso	 e,	 como	 havia	 morrido	 há	 quase	 mil	 anos
antes	da	 Inquisição,	 se	 livrou	da	pena	de	ver	o	que	 se	 fazia	 com	apoio
nele.	Houve	outros	ideólogos	que	tiveram	menos	sorte	e	a	vida	lhes	deu	a
oportunidade	 de	 queixar-se	 e	 arrepender-se,	 vendo	 como	 usavam	 suas
ideias.	Agostinho	teve	inclusive	vislumbres	muito	inteligentes,	como	o	de
enunciar	a	primeira	política	de	redução	de	danos	em	matéria	de	aborto.
Todavia,	 quando	 o	 Papa	 se	 valeu	 do	 invento	 agostiniano	 para
perseguir	 tudo	 o	 que	 não	 se	 submetia	 a	 seu	 poder	 e	 consagrou	 a
Inquisição	à	 luta	contra	Satã,	como	este	não	aparecia	em	 lugar	nenhum,
teve	 de	 se	 agarrar	 a	 ela	 com	 alguns	 humanos,	 e	 já	 não	 lhe	 restavam
hereges.	 Por	 conseguinte,	 empreendeu-a	 contra	 a	 metade	 da	 espécie
humana,	 contra	 as	 mulheres.	 Para	 isso	 foi	 inventada	 a	 teoria	 do	 pacto
satânico.	 Satã	 não	 podia	 atuar	 sozinho,	 necessitava	 da	 cumplicidade	 de
humanos	(não	me	perguntem	o	porquê,	porque	não	sei).	Para	isso	havia
humanos	 que	 celebravam	 um	 pacto	 com	 o	 inimigo,	 com	 Satã.	 Era	 um
contrato	de	compra	e	venda	proibido,	mas	que	por	sua	natureza	só	podia
ser	celebrado	por	humanos	inferiores,	que	eram	as	mulheres.	Por	que?	Por
razões	 genéticas,	 biológicas:	 tinham	um	defeito	de	 fábrica	por	provir	 de
uma	costela	curva	do	peito	do	homem,	o	que	contrastava	com	a	retidão
deste	 (não	 sei	 tampouco	 onde	 o	 homem	 é	 reto,	 mas	 prossigamos).	 Por
isso,	 elas	 têm	 menos	 inteligência	 e,	 por	 conseguinte,	 menos	 fé.	 E
ratificavam	essa	afirmação,	inventando	que	femina	provém	de	fé	e	minus,
ou	seja,	menos	fé	(é	mentira,	pois	femina	vem	do	sânscrito,	do	verbo	que
significa	amamentar).
Foi	 assim	 que	 a	 Inquisição	 se	 dedicou	 a	 controlar	 as	 mulheres
desobedientes	 e	 levou	 à	 combustão	 milhares	 delas,	 como	 bruxas,	 em
quase	toda	Europa.
Na	 verdade,	 o	 poder	 de	 Satã	 e	 seus	 rapazes	 foi	 muito	 estudado	 e
teorizado	 pelos	 encarregados	 da	 Inquisição,	 que	 foram	 os	 dominicanos,
ordem	fundada	por	São	Domingos	de	Gusmão,	mas	 também	conhecidos
como	cães	do	Senhor	(canes	do	Dominus).	Na	condição	de	estudiosos	da
etiologia,	ou	da	origem	do	mal,	 eles	 foram	os	primeiros	 criminólogos.	É
claro	que	não	 foram	chamados	de	 criminólogos	 e	 sim	de	demonólogos.
Quase	 nenhum	 criminólogo	 aceita	 essa	 origem,	 porque	 não	 é	 uma	 boa
certidão	 de	 nascimento;	 preferem	 considerar-se	 herdeiros	 do	 Iluminismo
ou	mesmo	do	 século	XIX	 e	 esquecer	 o	nome	dos	 velhos	demonólogos,
aos	quais	ninguém	menciona.	Mas	o	certo	é	que	ninguém	tem	a	culpa	de
seus	antepassados.
A	demonologia,	 porém,	 não	deixou	de	 criar	 contradições	porque	os
juristas	 –	 glosadores	 e	 pós-glosadores	 –	 haviam	 tratado	 de	 sistematizar
suas	 especulações	 conforme	 uma	 certa	 lógica,	 que	 tomavam	 da	 ética
tradicional.	 Isso	 se	 deve	 a	 que,	 na	 medida	 em	 que	 se	 queira	 dotar	 de
alguma	lógica	interna	o	discurso	legitimador	do	poder	punitivo,	surge	um
mínimo	de	 limites,	porque	a	necessidade	não	é	 infinita.	 Justamente	para
eliminar	esses	 limites	criando	uma	necessidade	quase	 infinita	e	absoluta,
foi	que	se	autonomizou	a	criminologia	com	o	nome	de	demonologia.
Os	juristas	pretendiam	que	a	pena	fazia	pagar	a	dívida	do	delito.	Se	o
crime	resultava	de	uma	escolha	livre,	havia	que	retribuir	o	mal	com	o	mal.
A	ideia	de	culpa	dominava	suas	elucubrações.	Lembro	a	vocês	que	culpa	e
dívida	são	sinônimos.	O	velho	Padre	Nosso	dizia	perdoai	as	nossas	dívidas
e	não	eram	os	“pagareis”	que	firmávamos,	e	sim	nossas	culpas.	Em	alemão
Schuld	 tem	 também	 esse	 duplo	 significado.	 Isso	 impunha	 um	 pequeno
limite	à	pena,	exigia	certa	proporção	com	a	censura	daculpa.
E	 como	 a	 mulher	 era	 inferior,	 era	 menos	 inteligente	 que	 o	 homem,
devia	 ser	 menos	 culpável	 e,	 por	 conseguinte,	 merecer	 pena	 menor.	 Os
juristas	 as	 consideravam	 como	 meninas,	 em	 permanente	 estado	 de
imaturidade.	No	entanto,	os	inquisidores	não	se	atinham	à	culpa,	e	sim	ao
grau	de	perigo	que	as	bruxas	e	Satã	representavam,	que	colocava	em	risco
a	humanidade.	Para	os	demonólogos	havia	uma	emergência	gravíssima	e
nada	devia	obstaculizar	a	repressão	preventiva.	Aqui	surgiu	uma	questão
que	 até	 hoje	 não	 foi	 solucionada:	 a	 pena	 se	 fixa	 pela	 culpa	 ou	 pela
periculosidade?	 Os	 penalistas	 continuam	 discutindo	 a	 incoerência	 com
paliativos,	enquanto	os	juízes	decidem	o	que	lhes	parece.
Como	 vemos,	 a	 Idade	 Média	 está	 presente.	 Em	 seu	 tempo,	 isso	 se
resolveu	argumentando	que	o	pacto	satânico	era	um	crime	mais	grave	que
o	pecado	original,	porque	neste	Adão	e	Eva	haviam	sido	enganados,	mas
o	 pacto	 com	 Satã	 se	 celebrava	 com	 vontade	 plena,	 com	 consciência	 do
mal	e,	ademais,	era	uma	traição,	para	com,	nada	menos,	a	cidade	de	Deus,
com	o	qual	havia	que	seguir	a	tradição	germânica.	Cabe	fazer	notar	que	os
germânicos	 eram	 mais	 ecológicos,	 porque	 não	 danificavam	 as	 árvores,
enquanto	os	inquisidores	queimavam	sua	madeira.	O	certo,	porém,	é	que
este	 modelo	 marcou	 a	 estrutura	 de	 todos	 os	 discursos	 posteriores
legitimadores	 de	 massacres.	 Por	 isso,	 será	 necessário	 deter-se	 na	 análise
dessa	estrutura.
	
Ilustração	5
	
4.	A	estrutura	inquisitorial
Os	 demonólogos	 elaboraram	 um	 discurso	 muito	 bem	 armado	 para
liberar	seu	poder	punitivo	de	 todo	e	qualquer	 limite,	em	função	de	uma
emergência	 desencadeada	 por	 Satã	 e	 seus	 seguidores,	 em	 combinação
com	as	moças	terrenas.	Por	certo	que	se	alguém	sustentasse,	hoje	em	dia,
esta	tese	seria	inevitavelmente	psiquiatrizado.	Não	podemos,	porém,	ficar
na	 anedota,	 porque,	 embora	 pareça	 mentira,	 a	 estrutura	 demonológica
mantém-se	até	o	presente.	Os	discursos	têm	uma	estrutura	e	um	conteúdo.
Trata-se,	 digamos,	 de	 algo	 parecido	 a	 um	 programa	 de	 computação
alimentado	 com	 os	 livros	 de	 uma	 biblioteca.	 Podemos	 carregar	 o
programa	com	livros	esotéricos	e	 teremos	uma	biblioteca	dessa	natureza,
mas	 também	 podemos	 esvaziar	 seu	 conteúdo	 e	 recarregá-lo	 com	 outros
livros	e	teremos	bibliotecas	de	medicina,	física,	química,	história,	ou	o	que
quer	 que	 seja.	 Pois	 bem:	 o	 que	 permanece	 do	 discurso	 inquisitorial	 ou
demonológico	 não	 é	 o	 conteúdo,	 e	 sim	 justamente	 o	 programa,	 a
estrutura.
Ao	longo	dos	séculos	o	mesmo	programa	foi	esvaziado	e	voltou	a	ser
alimentado	 com	 outras	 informações,	 com	 dados	 de	 novas	 emergências,
críveis	 segundo	 as	 pautas	 culturais	 de	 cada	 momento:	 deixou-se	 de	 se
acreditar	 em	Satã	 e	 suas	meninas,	mas	passou-	 se	 a	 acreditar	 em	outras
coisas,	 que,	 hoje,	 tampouco	 são	 críveis,	 ainda	 que	 se	 continue
alimentando	o	programa	com	dados	que	hoje	são	críveis	e	amanhã	serão
não	tão	críveis	quanto	Satã,	suas	legiões	de	diabos	e	suas	mulheres.
Desde	 a	 Inquisição	 até	 hoje	 os	 discursos	 foram	 se	 sucedendo	 com
idêntica	 estrutura:	 alega-se	 uma	 emergência,	 como	 uma	 ameaça
extraordinária	 que	 coloca	 em	 risco	 a	 humanidade,	 quase	 toda	 a
humanidade,	a	nação,	o	mundo	ocidental	etc.,	e	o	medo	da	emergência	é
usado	 para	 eliminar	 qualquer	 obstáculo	 ao	 poder	 punitivo	 que	 se
apresenta	 como	 a	 única	 solução	para	 neutralizá-lo.	 Tudo	 o	 que	 se	 quer
opor	ou	objetar	a	esse	poder	é	também	um	inimigo,	um	cúmplice	ou	um
idiota	 útil.	 Por	 conseguinte,	 vende-se	 como	 necessária	 não	 somente	 a
eliminação	 da	 ameaça,	 mas	 também	 a	 de	 todos	 os	 que	 objetam	 ou
obstaculizam	o	poder	punitivo,	em	sua	pretensa	tarefa	salvadora.
É	evidente	que	o	poder	punitivo	não	se	dedica	a	eliminar	o	perigo	da
emergência,	e	sim	a	verticalizar	mais	ainda	o	poder	social;	a	emergência	é
apenas	o	elemento	discursivo	legitimador	de	sua	falta	de	contenção.
Isso	 se	 verifica	 ao	 longo	 de	 cerca	 de	 800	 anos	 de	 sucessivas
emergências,	algumas	das	quais	implicavam	certo	perigo	real,	mas	o	poder
punitivo	 nunca	 eliminou	 nenhum	 desses	 perigos.	 Satã	 está	 um	 pouco
cabisbaixo,	 com	 seu	 tridente	 sem	 ponta	 e	 sua	 cauda	 quebrada;	 o
alcoolismo	 continua	 fazendo	 estragos;	 as	 drogas	 se	 expandem	 cada	 dia
mais;	 a	 sífilis	 foi	 resolvida	 com	 a	 penicilina;	 a	 tuberculose	 com	 a
estreptomicina;	 os	 hereges	 fizeram	 suas	 igrejas	 nacionais;	 a	 degeneração
da	 espécie	 e	 o	 perigo	 das	 raças	 inferiores	 passaram	 a	 ser	 uma	 grande
mentira;	 as	 bruxas	 continuam	 cozinhando	 seus	 cozidos	 esquisitos	 e	 no
máximo	 criam	 algum	 problema	 bromatológico.	 Os	 perigos	 foram
inventados	ou	mesmo	quando	eram	reais	desapareceram	por	outros	meios
ou	permanecem,	e	até	se	ampliam,	mas,	ao	 longo	de	800	anos,	o	poder
punitivo	jamais	eliminou	um	risco	real.
Diriam	 no	 meu	 bairro	 que	 o	 discurso	 inquisitorial	 sempre	 foi,	 e
continua	 sendo,	 um	 modo	 de	 colocar	 a	 corda	 no	 pescoço.	 Mais
academicamente,	 diríamos	 que	 é	 um	 imenso	 engano,	 uma	 tremenda
fraude	 e	 que	 o	 poder	 punitivo,	 ao	 projetar-se	 na	 opinião	 das	 pessoas
como	 o	 remédio	 para	 tudo,	 não	 é	 mais	 do	 que	 o	 delito	 máximo	 da
propaganda	desleal	da	nossa	civilização.
Trata-se	do	instrumento	discursivo	que	proporciona	a	base	para	criar
um	estado	de	paranoia	coletiva	que	serve	para	aquele	que	opera	o	poder
punitivo	o	exerça	sem	nenhum	limite	e	contra	quem	lhe	incomoda.
Por	 desgraça,	 porém,	 quando	 aparece	 um	 discurso	 com	 estrutura
inquisitorial	e	ninguém	detém	sua	instalação,	a	consequência	última	é	um
massacre.	 Assim	 aconteceu	 com	 as	mulheres	 queimadas,	 com	 as	 vítimas
das	 máfias	 e	 da	 corrupção	 produzidas	 pela	 proibição	 do	 álcool	 e	 das
drogas;	com	os	inimigos	do	Ocidente	cristão	massacrados	pela	segurança
nacional	ou	pelo	franquismo;	com	os	doentes	e	incapacitados	esterilizados
ou	 assassinados	 pela	 eugenia;	 com	 a	 eliminação	 nos	 campos	 de
concentração	nazistas,	e	com	muitos	milhões	de	pessoas,	mas	já	estou	me
metendo	com	a	palavra	dos	mortos,	que	é	questão	que	deixo	para	mais
adiante.
Vejamos	 agora	 como	 os	 demonólogos	 instalaram	 essa	 estrutura
discursiva	 originária	 que	 permanece	 intocável	 até	 o	 presente.	 O	 certo	 é
que	esses	pioneiros	foram	muitos	e	escreveram	uma	quantidade	de	livros
muito	 sofisticados.	 A	 criminologia	 não	 registra	 os	 nomes	 de	 seus
fundadores,	 porque	 os	 nega,	 como	 esses	 antepassados	 piratas,
contrabandistas	 ou	 escravistas	 a	 quem	 todos	 ocultam	 e	 ninguém
reconhece.
Não	vale	 a	pena	 resgatar	 todos	eles,	porque	de	qualquer	modo	não
creio	que	nenhum	instituto	de	criminologia	de	nossos	dias	queira	ostentar
algum	desses	nomes.	Para	quem	se	interessa	pelo	tema,	vale	a	pena	dizer
que	há	uma	antologia	bem	feita.	Para	nossos	efeitos,	é	melhor	centrarmos
na	obra	tardia,	porém	sintética,	que	consagra	a	autonomia	da	criminologia
em	 relação	 ao	 direito	 penal,	 expondo	 pela	 primeira	 vez,	 de	 forma
orgânica,	 uma	 completa	 teoria	 sobre	 a	 origem	 do	 crime,	 ou	 seja,	 uma
exposição	 da	 chamada	 etiologia	 criminal.	 Trata-se	 do	 Malleus
maleficarum	ou	Martelo	das	bruxas,	de	1484.
	
Ilustração	6
	
A	esse	respeito	–	e	entre	parênteses	–	é	bom	recordar	que	a	inquisição
romana	 teve	seu	esplendor	nos	 tempos	 feudais,	mas,	quando	os	Estados
nacionais	se	organizaram	como	monarquias	fortes,	estas	reclamaram	para
si	 seus	poderes	punitivos	e	os	 foram	retirando	do	Papa,	de	modo	que	a
tarefa	de	queimar	mulheres	passou	a	ser	desempenhada	por	juízes	estatais,
dependentes	 dos	monarcas	 e	 príncipes,	 alguns	 dos	 quais	 não	 reduziram
seu	entusiasmo	pela	combustão.	Continuaram	queimando	mulheres	até	o
século	XVIII,	porém	pelos	Estados,	em	um	momento	em	que	o	Papa	não
se	ocupava	mais	das	mulheres	mas	sim	dos	luteranos	e	reformados.	Desde
o	 século	 XV,	 ou	 seja,	 com	 a	 chamada	 Contra-Reforma,a	 inquisição
romana	 se	 dedicava	 a	 estes	 últimos	 e	 não	 conferia	 nenhuma	 ênfase	 às
mulheres.
De	qualquer	maneira,	os	juízes	estatais	da	Europa	central	continuaram
usando	 como	manual	 o	Martelo	das	 bruxas,	 que	 se	 encontrava	 no	 guia
oficial	 dos	 queimadores	 de	 mulheres	 desde	 5	 de	 setembro	 de	 1494,
quando	o	tenebroso	Papa	Inocêncio	VIII	o	consagrou	como	tal,	mediante
a	bula	Summis	desiderantes	affectibus.
O	 Martelo	 foi	 escrito	 por	 dois	 inquisidores	 muito	 particulares:	 o
alsaciano	Heinrich	Krämer	e	o	 suíço-alemão	 Jakob	Sprenger.	Este	último
era	um	sujeito	de	vida	monacal,	que	fazia	aparições	e	tinha	fama	de	beato.
1.
Já	Krämer	 –	 também	conhecido	 como	 Institoris	 (que,	 em	 latim,	 significa
quitandeiro,	o	mesmo	que	Krämer	em	alemão)	–	era	mais	problemático,
pois	o	bispo	o	suspendeu	de	suas	funções	porque,	em	seu	afã	incendiário,
estava	deixando	a	diocese	 sem	mulheres	 e,	 além	disso,	 segundo	as	más
línguas,	 se	 havia	 envolvido	 com	 dinheiro	 de	 indulgências.	 Embora	 seja
discutível,	 também	 parece	 que	 falsificou	 a	 recomendação	 do	 pequeno
manual	por	parte	da	Universidade	de	Colônia,	para	atribuir-lhe	maior	base
acadêmica.
O	certo	é	que	esses	dois	personagens	produziram	essa	obra	singular,
que	 foi	um	best-seller	 durante	 duzentos	 anos,	 tempo	no	 qual	 foi	 o	 livro
mais	publicado	depois	da	Bíblia.	Como	dado	curioso,	devo	advertir	que,
se	alguém	hoje	quiser	lê-lo	em	espanhol	ou	português,	deve	buscá-lo	nas
seções	de	livros	esotéricos	das	livrarias.
Sua	leitura	é,	às	vezes,	entediante,	mas	não	podemos	deixar	de	pensar
que	se	trata	de	dois	delirantes	com	fixações	sexuais	insólitas.	A	verdade	é
que	para	ter	uma	ideia	completa	do	universo	cultural	da	Idade	Média	não
se	pode	prescindir,	 evidentemente,	de	Dante,	mas	 tampouco	do	Malleus
maleficarum.	 Uma	 mesma	 época	 produziu	 um	 poeta	 sublime	 como
Alighieri	 e	 dois	 delirantes	 alucinados,	 como	 Sprenger	 e	 Krämer.	 Talvez
hoje	aconteça	a	mesma	coisa.
O	delírio	está	muito	bem	sistematizado	e	é	a	primeira	vez	na	história
que	se	construiu	uma	obra	que	integrou,	em	um	único	sistema	harmônico,
a	 criminologia	 (origem	 do	 mal)	 com	 o	 direito	 penal	 (manifestações	 do
mal),	 com	 o	 processo	 penal	 (como	 se	 investiga	 o	 mal)	 e	 com	 a
criminalística	(dados	para	descobrir	na	prática	o	mal).	A	elaboração	é,	por
conseguinte,	 bastante	 sofisticada.	 Como	 o	 conteúdo	 com	 o	 qual
preencheram	 a	 estrutura	 que	 lhes	 dava	 fundamento	 é	 para	 nós	 tão
disparatado,	 tem	 a	 vantagem	 de,	 em	 razão	 dessa	 tremenda	 distância
temporal	 e	 cultural,	 nos	 permitir	 ver	 com	 maior	 clareza	 os	 principais
núcleos	 estruturais	 que	 permanecem	 até	 a	 atualidade	 desde	 a	 própria
origem	da	criminologia.	Por	isso,	repassá-los	não	é	um	mero	divertimento,
mas	sim	uma	constatação	de	sua	permanência	através	dos	séculos.	Passo	a
assinalar	vinte	destes	núcleos,	embora	advirta	que	há	mais,	mas	não	quero
aborrecer	vocês.
	
O	 crime	 que	provoca	 a	 emergência	 é	 o	mais	 grave	 de	 todos.	 Como
vimos,	 os	 inquisidores	 afirmavam	 que	 era	 mais	 grave	 que	 o	 pecado
2.
3.
4.
5.
original.	Outros	se	sucederam	no	tempo:	subversão,	terrorismo,	uso	de
tóxicos	etc.	A	gravidade	do	crime	é	exaltada	ao	máximo	porque	dela
depende	o	grau	de	perigo	da	emergência	e	do	poder	correspondente
do	repressor.
A	emergência	só	pode	ser	combatida	mediante	uma	guerra,	ou	seja,	a
linguagem	 não	 pode	 ser	 senão	 bélica.	 Os	 autores	 pretendem	 saber
como	 estavam	 organizadas	 as	 hostes	 de	 Satã	 –	 porque,	 supomos,
haviam	conseguido	infiltrar	algum	agente	disfarçado	no	inferno.	Bush
e	Obama	sempre	disseram	o	mesmo,	e	sem	dar	margem	a	dúvidas	o
primeiro	 usou	 o	 mesmo	 procedimento	 para	 descobrir	 as	 armas
químicas	no	Iraque,	que	Satã	logo	fez	desaparecer.
Sua	 frequência	 é	 alarmante.	Diziam	que	a	Alemanha	estava	 cheia	de
bruxas,	mais	do	que	qualquer	outro	país.	É	o	mesmo	que	nos	dizem
pela	televisão,	todos	os	dias	e	todas	as	horas:	em	nosso	país	há	mais
crimes	que	em	qualquer	outro	(nosso	país	pode	ser	qualquer	um	em
que	houver	uma	televisão).
O	pior	criminoso	é	quem	duvida	da	emergência.	Quando	alguém	pede
números	 e	 duvida	 da	 gravidade	 e	 da	 frequência	 corre	 sérios	 riscos,
porque	 se	erige	em	 inimigo,	não	da	 sociedade	nem	da	humanidade,
mas	sim	daquele	que	exerce	o	poder	punitivo.	Embora	hoje	 “pegue”
mal	que	ele	seja	queimado,	como	Sprenger	e	Krämer	postulavam,	não
duvido	que	muitos	lamentem	que	os	tempos	tenham	mudado.
Qualquer	 fonte	 de	 autoridade	 que	 diga	 o	 contrário	 deve	 ser
neutralizada.	Nos	 tempos	dos	 inquisidores	havia	um	cânone	–	 isto	é,
uma	lei	muito	antiga	–,	o	Canon	episcopi,	que	se	referia	a	uma	seita	de
mulheres	(as	filhas	de	Diana)	que	existira	muitos	anos	antes	e	que	não
lhes	atribuía	nenhum	poder	maléfico	e	negava	que	pudessem	voar.	É
claro	que	um	 texto	 venerável	 dessa	natureza	 é	um	obstáculo	para	o
discurso,	 como	 também	 o	 pode	 ser	 uma	 verificação	 científica	 ou
fundada	com	seriedade.
Quando	se	produz	esse	fenômeno	há	três	soluções	discursivas:	a	fonte
é	falsa	(por	exemplo:	o	planeta	não	está	aquecendo,	os	cientistas	que
afirmam	o	contrário	não	sabem	nada	ou	 falseiam	a	realidade),	mas	é
verdadeira	 se	 se	 refere	 a	 outra	 coisa	 (as	 filhas	 de	 Diana	 não	 eram
como	 as	 bruxas	 alemãs;	 os	 ladrões	 de	 antes	 eram	 bons	 e
cavalheirescos,	não	como	os	de	agora;	os	anarquistas	não	eram	como
os	subversivos	etc.)	ou	a	interpreta	mal	(o	Canon	não	diz	exatamente
6.
7.
8.
9.
isso,	 o	 que	 os	 técnicos	 dizem	 é	 outra	 coisa,	 há	 que	 fazer	 distinções
etc.).
Para	Sprenger	e	Krämer,	as	bruxas	voavam	mesmo,	e	se	não	tivessem
voado	e	só	provocavam	uma	 ilusão,	elas	deveriam	ser	queimadas	da
mesma	maneira	porque	compactuavam	com	Satã	e	pronto.
A	valoração	dos	 fatos	 se	 inverte	por	 completo.	É	o	que	muitos	 anos
depois	Merton	chamará	de	alquimia	moral.	Se	a	bruxa	não	confessava,
a	 despeito	 de	 ser	 brutalmente	 torturada,	 era	 porque	 Satã	 lhe	 dava
forças;	 se,	desesperada,	enforcava-se,	era	porque	Satã	a	havia	 levado
para	 que	 não	 confesasse	 e	 se	 salvasse	 no	 mais	 além	 (porque,	 ainda
que	 confessasse,	 seria	morta	de	qualquer	 forma).	 Se	 ela	 enlouquecia
com	a	tortura	e	ria,	era	porque	Satã	fazia	pouco	dos	inquisidores.	Nada
muda:	 se	 os	 presos	 estudam	 é	 para	 delinquir	 melhor,	 se	 se
arrependem	são	dissimulados,	se	matam	uns	aos	outros	é	porque	são
criminosos,	 se	 alguém	 pede	 uma	 trégua	 está	 simulando	 para	 contra-
atacar.
O	delírio	serve	de	pretexto	para	encobrir	muitos	delitos.	Se	um	padre
estava	 observando	 o	 pênis	 de	 um	 penitente,	 era	 porque	 tentava
convencê-lo	 de	 que	 não	 o	 havia	 perdido	 por	 obra	 de	 um
encantamento;	se	outro	aparece	nu	dentro	de	um	celeiro,	contará	que
Satã	o	 levou	a	um	banquete	e,	como	não	quis	 jurar-lhe	 fidelidade,	o
lançou	ali;	se	um	homem	santo	é	encontrado	debaixo	da	cama	de	uma
mulher,	será	porque	Satã	se	apoderou	de	seu	corpo	para	se	esconder.
Quando	um	investigador	é	surpreendido	num	lugar	suspeito,	até	hoje
costuma	se	dizer	que	ele	estava	se	infiltrando;	o	terrorismo	também	é
útil	para	eliminar	aos	maridos	incômodos	das	amantes	etc.
As	 imagens	 dirigentes	 são	 imaculadas:	 isso	 os	 levava	 ao	 extremo	 de
sustentar	 que	 os	 anjos	 e	 Jesus	 não	 completavam	 o	 processo
alimentício,	 isto	 é,	 não	 defecavam,	 e	 sim	 dissolviam	 o	 alimento	 no
estômago.	 A	 pureza	 dos	 líderes	 em	 toda	 emergência	 é	 algo	 que	 se
cuida	com	singular	esmero,	em	especial	sua	correção	sexual.	Para	os
inquisidores,	os	diabos	nem	sequer	tinham	orgasmos	(porque,	no	final,
também	eram	anjos),	ou	seja,	eles	copulavam	com	as	bruxas	só	para
fazer	o	mal;	eram	uma	espécie	de	sadomasoquistas	inorgásmicos.
Os	 inimigos	 são	 inferiores.	 A	 misoginia	 do	 Malleus	 é	 extrema:	 a
mulher	 é	 biológica	 e	 geneticamente	 inferior,	 o	 que	 era	 comprovado
com	alentadas	 citações	 em	que	misturavam	 indistintamente	pagãos	 e
10.
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12.
13.
padres	 da	 Igreja.	 Quasetodas	 as	 emergências	 são	 promovidas	 por
inferiores	na	história	posterior:	mestiços,	mulatos,	raças	colonizadas	ou
degeneradas,	defeituosos,	 incapazes,	doentes,	degenerados	etc.	Como
não	 podiam	 eliminar	 todas	 as	 mulheres,	 contentam-se	 em	 queimar
somente	as	desobedientes.
A	 inferioridade	 pode	 estender-se:	 as	 filhas	 das	 bruxas	 tinham
predisposição	 à	 bruxaria.	 E	 isso	 pode	 acontecer	 por	 causações
genéticas,	 pois	 os	 diabos	 sabiam	 de	 quem	 retirar	 o	 sêmen	 e	 onde
colocá-lo	para	produzir	esse	efeito;	 seria	o	contrário	da	eugenia	e	se
chamaria	disgenesia,	 ainda	que,	como	para	os	diabos	era	bom,	 trata-
ser-ia	 de	 uma	 eugenia	 diabólica.	 Mas	 não	 nos	 atrapalhemos	 mais.
Também	podia	haver	transmissão	por	caracteres	adquiridos	a	partir	da
bruxaria	da	mãe.
Os	filhos	do	bruxo-chefe	não	eram	filhos	de	diabos,	porque	estes	são
anjos	e	não	têm	sêmen,	só	adotam	a	forma	humana,	mas	na	realidade
são	de	ar	concentrado,	como	uma	espécie	de	bonecos	infláveis	de	sex-
shop,	 se	 bem	 que	 conhecem	 a	 engenharia	 genética.	 Aqui	 os
inquisidores,	 com	 séculos	 de	 antecipação,	 combinam	 Darwin	 com
Lamarck,	 a	 exemplo	 de	 emergências	 posteriores:	 há	 que	 matá-los	 se
são	geneticamente	inferiores,	como	faziam	os	nazistas;	há	que	criá-los
com	uma	família	sadia	se	a	 inferioridade	provém	da	educação,	como
Franco	ou	os	ditadores	na	Argentina	fizeram.
As	 vítimas	 não	devem	 ser	 colocadas	 em	 situação	de	 vulnerabilidade,
porque	os	vícios	favorecem	a	ação	de	Satã.	Aqueles	que	têm	amantes
antes	de	se	casar	provocam-nas	a	que,	sentindo-se	despeitadas,	façam
sortilégios	para	matar	suas	esposas.	É	necessário	viver	na	ordem	para
cuidar	 do	 inimigo;	 toda	 desordem	 pode	 ser	 aproveitada	 por	 ele.
Aquele	que	exerce	o	poder	punitivo	quer	moralizar,	na	verdade	para
facilitar-lhe	a	tarefa.
É	uma	regra	inveterada	que	o	poder	punitivo	descontrolado	quer	um
mundo	 regular	 e	 cinza,	 monótono,	 que	 possa	 controlar	 sem
problemas:	 tudo	 aquilo	 que	 sai	 do	 costumeiro	 é	 suspeito.	 A	 alegria
conspira	contra	o	controle	e	baixa	o	nível	de	paranoia,	porque	a	festa
faz	 pensar	 em	 outra	 coisa,	 as	 pessoas	 se	 distraem.	 Os	 inquisidores
advertem	contra	o	perigo	das	festas	populares:	são	sempre	os	dark	da
época.
Os	 inquisidores	 negam	 os	 danos	 colaterais,	 afirmando	 que	 não	 há
14.
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terceiros	inocentes,	e	sim	que	o	castigo	é	sempre	merecido,	ainda	que
se	baseiem	num	dogma:	por	alguma	coisa	será.	Em	muitos	massacres
se	afirma	que	não	há	inocentes,	que	todos	são	culpados,	embora	não
tenham	feito	nada.
Os	 inquisidores	 são	 infalíveis	 e,	 mais	 do	 que	 isso,	 são	 puros:	 São
Macário,	porque	era	puro,	era	o	único	que	via	uma	mulher	quando	os
demais,	 por	 efeito	 de	 bruxaria,	 viam	 uma	 égua,	 até	 que	 Macário	 a
desencantou	e	os	demais	puderam	ver	a	mulher.	A	pureza	garante	a
perfeita	 percepção	 dos	 fatos.	 É	 o	 que	 passa	 com	 os	 grandes
empresários	 dos	 massacres:	 são	 os	 únicos	 puros	 que	 veem	 com
clareza;	por	isso	devem	ser	seguidos	sem	discussão.
Os	inquisidores	não	admitem	erros,	quem	é	condenado	é	culpado	e	a
condenação	 é	 prova	 suficiente;	 nunca	 houve	 um	 erro	 e	 todas	 as
mulheres	queimadas	eram	bruxas.	É	óbvio	que	as	cinzas	não	apelam.
A	 única	 razão	 que	 davam	 para	 negar	 algum	 erro	 era	 que	 Deus	 não
podia	 permitir	 isso,	 porque,	 como	 sabemos,	 estava	 sequestrado	 por
eles.	 Os	 sucessivos	 empresários	 de	 emergências	 massacradoras	 não
puderam	 dizer	 o	 mesmo,	 porque	 Deus	 já	 havia	 escapado	 deles.	 Por
isso,	apelaram	à	tese	de	que	é	inevitável,	em	toda	guerra,	que	alguns
inocentes	sejam	sacrificados.
Os	 inquisidores	 se	 eximem	 de	 toda	 ética	 frente	 ao	 infrator:	 podem
prometer	 de	 tudo	 e	 depois	 não	 cumpri-lo.	 A	 inferioridade	 da	 bruxa
lhes	autoriza	a	fazer	isso.	O	mesmo	acontece	em	qualquer	emergência,
os	 empresários	 massacradores	 não	 têm	 códigos,	 porque	 não	 vale	 a
pena	 frente	 aos	 terroristas,	 subversivos,	 criminosos,	 degenerados,
estrangeiros	inimigos,	doentes	etc.
Os	 inquisidores	 são	 imunes	 ao	 mal	 que	 combatem:	 Satã	 não	 pode
enganá-los,	 porque	 Deus	 não	 o	 permitiria.	 Posteriormente,	 será	 sua
ciência	ou	conhecimento	especial	que	os	tornará	imunes.	O	cobrador
de	 impostos	 não	 colaborará	 com	 a	 evasão	 fiscal,	 o	 funcionário	 que
combate	 o	 tráfico	 não	 ajudará	 a	 traficar	 etc.	 Todo	 poder	 punitivo
garante	que	 seus	agentes	 são	 imunes	ao	mal	e,	quanto	mais	 fora	do
controle,	maior	é	a	garantia	de	imunidade	e	menor	a	possibilidade	de
eles	serem	desmascarados.
O	mal	 tende	a	prolongar-se.	As	parteiras	eliminavam	as	crianças	não
batizadas	para	que	não	se	completasse	o	número	de	eleitos	e	o	juízo
final	 fosse	 adiado.	 Assim,	 elas	 sobreviveriam	 mais	 tempo.	 O	 mal
19.
20.
sempre	se	prolonga	e	o	raciocínio,	por	isso,	faz	com	que	seja	exigida
sua	 erradicação	 total	 e	 absoluta:	 o	 massacre	 deve	 ser	 radical	 e
definitivo.
A	 crença	 no	 poder	 das	 bruxas	 era	 um	 preconceito	 da	 época.	 O
Malleus	o	reforça	ao	extremo,	com	a	garantia	do	saber	acadêmico	de
seu	 tempo.	 Não	 foi	 à	 toa	 que	 Krämer	 fez	 algo	 não	 totalmente	 claro
para	obter	o	apoio	da	Universidade	de	Colônia.	Todas	as	emergências
posteriores	 exploraram	 e	 aprofundaram	 os	 preconceitos;	 é	 o	 que	 se
chama	de	uma	política	völkisch	ou	popularista	 (não	populista,	que	é
outra	coisa	muito	diferente).
O	 Malleus	 garante	 a	 reprodução	 da	 clientela:	 a	 mulher	 não	 era
torturada	para	que	confessasse,	mas	para	que	 revelasse	os	nomes	de
seus	cúmplices	e	a	mera	menção	de	um	nome	sob	tortura	autorizava
que	 a	 pessoa	 nomeada	 também	 fosse	 torturada.	 Toda	 emergência
cuida	para	que	a	clientela	não	termine,	porque	se	se	esgota	seu	poder
punitivo	 perde	 sentido,	 como	 havia	 acontecido	 ao	 Papa	 depois	 dos
massacres	dos	cátaros	e	outros	hereges.
	
Esta	 é,	 em	 sua	 maior	 síntese,	 a	 estrutura	 fundacional	 do	 poder
punitivo	 ilimitado,	 trabalhada	 durante	 duzentos	 anos	 e	 sintetizada
tardiamente	pelo	Malleus	em	1494,	mas	que	até	hoje	se	manteve	em	todas
as	 fabricações	 de	 emergências	 que	 foram	 feitas	 nos	 seis	 séculos
posteriores.	O	Malleus	 é	uma	obra	 tardia,	porque	no	 século	 seguinte	ao
seu	aparecimento	consolidaram-se	as	monarquias	e,	com	algumas	delas,	as
igrejas	nacionais.	A	inquisição	papal	teve	de	fazer	de	tudo	para	evitar	que
os	adeptos	dessas	igrejas	nacionais	não	se	sublevassem	na	parte	que	ficava
sob	seu	controle,	razão	pela	qual	deixou	as	mulheres	um	pouco	de	lado	e
se	ocupou	de	queimar	reformados.	Os	reformados,	por	sua	vez,	 também
praticavam	 a	 combustão	 com	 grande	 entusiasmo,	 como	 Calvino,	 que
encarregou	Servet	da	 tarefa,	porque	parece	que	não	 lhe	agradava	que	o
sangue	circulasse.	É	óbvio	que	o	sangue	continuou	circulando,	mas	não	o
de	Servet.
O	poder	dos	inquisidores	e	de	seus	rapazes	era	cobiçado	por	outros	e,
entre	 estes,	 pelos	 médicos,	 que	 aspiravam	 ficar	 com	 pelo	 menos	 parte
deste	 poder.	 Teremos,	 mais	 adiante,	 oportunidade	 de	 verificar	 que	 os
médicos	sempre	tiveram	vontade	de	deter	o	poder	punitivo	e	chegaram	a
dominar	 seu	 discurso	 legitimador	 com	 horríveis	 consequências
massacradoras.	 Porém,	 o	 primeiro	 avanço	 do	 poder	 médico	 sobre	 o
campo	 punitivo	 foi	 tentado	 em	 1563	 por	 um	 médico	 protestante	 dos
Países	 Baixos,	 Johann	 Weyer	 (ou	 Weier	 ou	 Wier),	 que	 publicou,	 em
Basileia,	 um	 livro	 denominado	 As	 artimanhas	 do	 demônio,	 que
rapidamente	correu	toda	s	Europa,	armando	considerável	reboliço.
Wier	 não	 negava	 a	 inferioridade	 da	 mulher	 nem	 a	 existência	 das
bruxas	e	muito	menos	sua	periculosidade,	pois	continuava	atuando	dentro
da	 mesma	 visão	 agostiniana	 do	 mundo,	 configurada	 pelas	 cidades
espelhadas	de	Deus	e	Satã.	O	que	ele	introduziu	foi	a	novidade	de	que	as
bruxas	 eram	 melancólicas	 e	 que,	 por	 isso,	 Satã	 se	 aproveitava	 delas,
explorando	sua	doença.	Não	é	demais	recordar	desde	já	que	a	melancolia
era	o	que,	com	Charcot,

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