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História da Palestina: Século I Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Edgar Silva Gomes Prof. Ms. André Valva Revisão Textual: Prof. Ms. Luciano Vieira Francisco Messias ou bandidos! • Contextualização • Introdução • A Política Opressora e as Revoltas Sociais na Palestina • O “Banditismo” Social • A Tradição Messiânica e a Esperança de Salvação para o Povo Oprimido · Aprender sobre um importante tema: messias ou bandidos. OBJETIVO DE APRENDIZADO Messias ou bandidos! Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como o seu “momento do estudo”. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo. No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados. Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Não se esqueça de se alimentar e se manter hidratado. Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Messias ou bandidos! Contextualização Seja bem-vindo(a) às nossas discussões sobre a história da Palestina: século I – messias ou bandidos! Saiba que esta Disciplina tem como propósito apresentar um panorama histórico do contexto da atuação de Jesus com as discussões mais recentes dessa área; além de lhe proporcionar momentos de leitura – textual e audiovisual – e reflexão sobre os temas que serão aqui discutidos, contribuindo com a sua formação continuada e trajetória profissional. Esta Disciplina está organizada em seis unidades, cujo eixo principal será a história da Palestina no século I, quanto à ideia de messias ou bandidos, ou seja, que dê conta de conhecer, definir, classificar e conceituar Jesus e seu tempo como campo de pesquisas, estudos, formação acadêmica e profissional, é o que você encontrará nas próximas unidades. Ademais, perceba que a Disciplina em Educação a Distância pode ser realizada em qualquer lugar que você tenha acesso à internet e em qualquer horário. Dessa forma, normalmente com a correria do dia a dia não nos organizamos e deixamos para o último momento o acesso ao estudo, o que implicará no não aprofundamento do material trabalhado, ou ainda na perda dos prazos para o lançamento das atividades solicitadas. Assim, organize seus estudos de maneira que entrem na sua rotina. Por exemplo, você poderá escolher um dia ao longo da semana ou um determinado horário todos ou alguns dias e determinar como o “momento do estudo”. No material de cada Unidade há videoaulas e leituras indicadas, assim como sugestões de materiais complementares, elementos didáticos que ampliarão a sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados. Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão, assim como realize as atividades de sistematização, estas que lhe ajudarão a verificar o quanto absorveu do conteúdo: são questões objetivas que lhe pedirão resoluções coerentes ao apresentado no material da respectiva Unidade para, então, prepará-lo(a) à realização das respectivas avaliações. Tratando-se de atividades avaliativas, se houver dúvidas sobre a correta resposta, volte a consultar as videoaulas e leituras indicadas para sanar tais incertezas. Importante! Lembre-se, você é responsável pelo seu processo de estudo. Por isso, aproveite ao máximo esta vivência digital! Importante! 8 9 Introdução A partir deste momento contextualizaremos a Palestina no tempo de Jesus em seus aspectos político, econômico, religioso e social, em suas disputas e conflitos, em uma sociedade onde Jesus de Nazaré se fez homem, viveu e conviveu, sujeito às leis e à cultura de seu tempo, ou seja, entenderemos a prática de Jesus e de seus contemporâneos que pregavam a justiça social e que eram constantemente taxados de bandidos pela elite de seu tempo, ou de messias por aqueles que os seguiam e criam em sua pregação. Assim, nesta Unidade trataremos dos seguintes temas: a política opressora e as revoltas sociais na Palestina; o “banditismo” social; a tradição messiânica e a esperança de salvação para o povo oprimido. A Política Opressora e as Revoltas Sociais na Palestina A Palestina dos séculos I a.C. e I d.C. era uma pequena região espremida entre a África e a Ásia, com aproximadamente 34.000 km², situada em um corredor que gerou inúmeras disputas políticas e econômicas desde o século VIII a.C., onde foi sendo invadida e espoliada por alguns reinos poderosos ao longo de sua história, até que no “tempo de Jesus” ocorreram as resistências mais sistemáticas aos abusos políticos, econômicos e religiosos por parte dos dominadores. Porém, entre a elite judaica, desde o início da dominação, muitos foram os que ficaram ao lado dos dominadores, criminalizando qualquer forma de resistência por parte do povo oprimido. Acerca dos problemas mais graves entre o povo pobre e oprimido e os dominadores estava a questão cultural-religiosa e esta situação era a “pedra de toque” que norteou as resistências ora pacíficas, ora mais violentas dos grupos que viviam e conviviam no contexto da pregação de Jesus para o povo de Israel e que esteve sob o governo da dinastia herodiana. A questão política é complexa, difícil mesmo de ser entendida, pois essa região que chamamos de “Palestina no tempo de Jesus” estava subdividida em várias partes, com muitos avanços e recuos nas alianças dessas regiões – entre as elites dominadas e os dominadores. Segundo Rocha (2004, p. 239), “[...] mais que uma guerra contra os romanos, o que se vislumbra é uma crise interna profunda envolvendo diferentes interesses de grupos judaicos alinhados ou distantes do poder do ‘inimigo’”. Um quadro político geral sobre esse contexto é mais ou menos o seguinte: nesse período as formas de governo e administração eram distintas. Os romanos dominaram a região em aproximadamente 63 a.C., favorecidos pelas crises internas que minavam a administração da dinastia asmoneia. Os romanos estavam sob o governo de Júlio Cesar que, ao dominar a Palestina em 63 a.C., foi eleito pontifex maximus e pretor urbano; o avanço em direção à Palestina se deu sob 9 UNIDADE Messias ou bandidos! o comando do general Pompeu, quem conseguiu tomar Jerusalém e colocar Hircano, descendente de Simão Macabeu, no cargo de sumo sacerdote, “[...] desse momento em diante devendo se reportar aos romanos para prestar contas de suas funções administrativas [...]” (ROSSI, 2015, p. 3); no cargo de procurador foi escolhido Antípater, um idumeu que deu origem a uma nova dinastia de governantes judeus, principalmente na pessoa de seu filho, Herodes, este que conseguiu certa independência para a região durante algum tempo. Importante! Que o Oriente Médio – particularmente a Palestina – exerceu permanente atração de diferentes dominadores ao longo da história? Ora pormotivos econômicos, ora políticos ou apenas estratégicos, assírios (733 a.C.), babilônios (588 a.C.), persas (539 a.C.), ptolomeus (323 a.C.) e selêucidas (198 a.C.) se assenhoraram, depredaram e deixaram suas marcas na Palestina. Mas nada se igualou às consequências da dominação romana e às dimensões de resistência desencadeadas contra esse império, documentadas por Flávio Josefo (37-100 d.C.), em sua obra A guerra judaica (ROCHA, 2004, p. 239). Você Sabia? Em seu governo, que durou de 37 a 4 a.C., esteve sob sua jurisdição os territórios da Galileia, Judeia, Samaria, Indumeia e Pereia. Após a sua morte, essa região foi dividida entre seus herdeiros que se mantiveram fiéis ao dominador. Herodes Arquelau herdou a Judeia, Samaria e Indumeia – governou de 4 a.C. a 4 d.C. –; Herodes Antipas herdou as regiões da Galileia e Pereia – governou de 4 a.C. a 39 d.C. As regiões da Judeia, Samaria e Indumeia foram governadas por procuradores romanos, do ano de 6 d.C. a 41 d.C.; após, um neto de Herodes, Agripa I, governou essa região entre os anos de 41 a 44 d.C., e após esse curto espaço de tempo as regiões voltaram às mãos dos procuradores romanos. Tal conquista/dominação durou alguns séculos e o controle romano causou inúmeros atritos, “[...] uma conquista que fará com que a Palestina permaneça subjugada à águia romana e cujo domínio alimentaria o ódio do povo por muitos séculos. A Palestina era, portanto, um conjunto de cidades dominadas e submetidas ao poder romano” (ROSSI, 2015, p. 4). Segundo Horsley (1987 apud ROSSI, 2015), “[...] é possível afirmar que a maior parte da história judaica na Palestina (e as províncias da Galiléia, Samaria e Judéia) do primeiro século envolveu protesto e resistência contra as provocações e opressão romana”. A grande opressão foi, sem sombra de dúvida, sobre a população pobre e camponesa. 10 11 As principais vítimas da política expansionista romana eram justamente os camponeses. Para eles, a dominação romana significava fundamentalmente uma pesada tributação e, mais do que isso, uma séria ameaça a sua existência, haja vista que muitos deles foram expulsos de suas terras (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 43). Não é possível minimizar o período da dominação romana. Nela encontramos o cenário apropriado para a emergência de lutas, guerrilhas e sublevações populares contínuas. A Palestina poderia ser descrita como um dos maiores focos de rebeldia contra a expansão imperial romana. Poderíamos ainda acrescentar que na Palestina do primeiro século a situação econômica da população encontrava-se em queda vertiginosa, refletindo na deterioração da qualidade de vida. As pessoas mais vulneráveis viviam cercadas pela instabilidade e pela penúria (ROSSI, 2015, p. 3-4). Muitos membros da elite judaica se postaram ao lado dos dominadores por causa da política imperial de Roma que, ideologicamente, defendia seus amigos e aliados e penalizava os rebeldes e traidores. Portanto, para seus inimigos, a violência do império romano era institucionalizada e a base de suas conquistas, impondo respeito e lealdade por meio do terror. Segundo seus preceitos, os romanos pretendiam levar a “civilização e a paz” para o resto do mundo, para todos – fosse de forma pacífica para os aliados, ou imposta pela violência para os resistentes. Através destas políticas, a Galileia viu crescer o número de enfermos, de desempregados e de agricultores sem-terra. Jesus fala e age, portanto, numa situação de injustiça sistêmica e de maldade estrutural em que uma grande porcentagem de pessoas sacrificadas era a responsável em tornar o processo de construção do império possível. Jesus nasceu e viveu no contexto social do século I d.C., um período em que a importância do império romano é incontestável e determinante. Na Cidade de Nazaré, por exemplo, a presença exploradora do império romano se manifestava duplamente, seja pela cobrança de impostos, seja pela presença do exército (ROSSI, 2015, p. 4). Os procuradores romanos alocados na Palestina eram provenientes da ordem dos cavaleiros, bem remunerados, estavam subordinados diretamente ao governo romano da Síria. As funções dos procuradores eram múltiplas e detinham poderes civis, militares e jurídicos; residiam na Cesareia, mas possuíam residências, em geral luxuosas, em Jerusalém para os momentos de festas, épocas em que a Cidade ficava fervilhando de fiéis. A conquista romana se deu, inicialmente, sob a forma de aliança com as elites judaicas, implica dizer que as estruturas de poder dessa elite, por certo período de tempo, permaneceram intactas e eram exercidas por meio do sinédrio, um tribunal político-religioso presidido por um sumo sacerdote e formado por mais 71 mem- bros judeus, entre os quais, anciões, sacerdotes dos partidos saduceus e fariseus; sua sede era em Jerusalém, porém, nas pequenas aldeias judaicas existiam siné- drios menores e locais, portanto, no tempo de Jesus e de dominação do império romano, a elite judaica se fazia presente com seu poder e opressão em todo o terri- 11 UNIDADE Messias ou bandidos! tório dominado. Todavia, ao longo do tempo o império romano, apesar de manter as estruturas locais funcionando, foi, aos poucos, “romanizando” as estruturas e aumentando a carga tributária na Palestina, com impostos diretos e indiretos. A população de pobres e camponeses era taxada nas estradas e até mesmo no caso de transporte de mercadorias de uma região para outra, de modo que a situação ficava cada dia mais insuportável, pois não se tratava apenas de uma questão cultural ou política, mas interferia na própria sobrevivência dessa camada da sociedade – já bastante espoliada por todos os poderosos de seu tempo. A ocupação romana era, do ponto de vista do camponês, quase impossível de ser revertida de forma organizada por toda a sociedade judaica, haja vista que grande parte da elite local vivia muito bem e sob a benção do império de Roma. A resistência dessa época deveria, então, reviver a formula de “Davi e Golias”, ou seja, com pequenos movi- mentos de resistência armada como, por exemplo, os zelotas; mas a situação não se resolveu, porém, houve muitas resistências de “davis” contra os roma- nos, quem invariavelmente os reprimiu violentamente. No Novo Testamento temos testemunhos dessas resistências e da repressão violenta, ocorridas nos “tempos de Jesus” e que apesar de se- rem pontuais, não passaram desperce- bidas pela história. Segundo Scardelai (1998): “Teúdas foi figura exótica no contexto dos acontecimentos que antecederam a Grande Guerra judaica. Ele foi preso e executado por Fado, entre os anos 44 e 46 d.C.” O motivo, porém, não foi exótico, haja vista que Teúdas estava entre os que ficaram revoltados com a opressão do dominador estrangeiro e do silêncio da elite judaica, “[...] alega-se que entre as causas de sua morte esteja o seu envolvimento em tumultos sociais causados no meio popular, além da colaboração para a propaganda de expectativas redentoras” (SCARDELAI, 1998, p. 191). Esses personagens, tratados como falsos profetas samaritanos, ou mesmo dos chamados nacionalistas, que pregavam um conteúdo para além da libertação profética de Israel da dominação romana, eram perseguidos pelo império e esmagados junto a seus seguidores. Contudo, para quem esses personagens eram “falsos”? Para o povo oprimido, ou para o império, este que precisava se livrar dos discursos de libertação que saiam das bocas desses personagens históricos e que incomodavam também a elite de seu povo? Pilatos, figura central que ligava o império romano à fé cristã, agia sempre com violência contra esses discursos de libertação, seja por um enunciado político engajado, seja pela pregação de homens de fé. Na Samaria, a esperada restauração profética era uma realidade. O povo judeu, de todas as regiões, estava Lc. 13:1 – Nesse momento, vieram algu- mas pessoas que lhe contaram o que acontecera com os galileus, cujo sangue Pilatos havia misturado com o dassuas vítimas. At. 5:36-37 – Antes destes nossos dias surgiu Teúdas, que pretendia ser alguém, e ao qual aderiram cerca de quatrocentos homens. Mas foi morto, e todos os que lhe deram crédito se dissolveram e foram reduzidos a nada. Depois dele veio Judas, o Galileu, na época do recenseamento, atraindo o povo atrás de si. Pereceu ele também, e todos os que lhe obedeciam foram dispersos. 12 13 farto das opressões política e econômica impostas por Roma, e pior, o império não compreendia a dimensão da religião sobre a cultura do povo judaico, quem encontrava razão em sua fé para combater o opressor. Para entender a plataforma ideológica da ideia de redenção no final do período do Segundo Templo, de modo especial em relação aos samaritanos: primeiro, as motivações religiosas, nascidas da inclinação natural do povo e da cultura judaica à valorização de forte elo entre transcendência divina e as demandas da vida humana cotidiana. A aguçada sensibilidade religiosa, presente até em camponeses galileus semianalfabetos e pouco familiarizados com formulações doutrinárias e teológicas, não esconde a alta estima que tinham pelas antigas tradições bíblicas. Ademais, os preceitos e costumes religiosos exerciam impacto efetivo nas demandas sociais, na vida ordinária e demais diretrizes da vida nacional judaica (SCARDELAI, 1998, p. 189-190). Ex pl or Os romanos muitas vezes faziam chacota do sentimento religioso e da cultura judaica, aspectos que são imbricados na vida dos judeus como um todo e, por isso, não compreendiam a resistência da população dominada em relação a alguns detalhes político-administrativos sobre o “humor” dos judeus, de modo que certas interferências administrativas eram recebidas como forte provocação à cultura do oprimido; “[...] as interferências políticas e administrativas de governantes romanos na província da Judéia significavam, automaticamente, uma interferência de alcance religioso” (SCARDELAI, 1998, p. 189). Figura 1 fonte: Wikimedia Commons 13 UNIDADE Messias ou bandidos! Com isso, “[...] os governantes provocavam constantes protestos e comoções sociais [...]”, de modo que o Pilatos sensato dos evangelhos não condiz com a figu- ra fria e calculista dos acontecimentos históricos de seu governo: era um homem autoritário e enérgico em suas decisões político-administrativas, alienado que era da realidade da Judeia, “[...] demonstrou toda impiedade e ódio aos judeus, tor- nando-o distante daquele personagem narrado em Mateus (27: 17-19). Longe de querer ‘salvar’ qualquer suspeito de rebeldia [...]”; em sua realidade cotidiana como governante, Pilatos “[...] estava mesmo ansioso por se livrar o mais rápido possível de um líder político e potencialmente problemático. Ele reprime violentamente o movimento samaritano no monte Garizim, cf. Ant. XVIII, 85-7” (SCARDELAI, 1998, p. 190). Entre os judeus crentes, existiam os denominados “falsos profetas”, mas o que devemos levar em consideração é a tentativa de o povo judeu ligar a sua vida on- tológica à promessa divina de salvação e entender que essa salvação se daria tam- bém na concretude da vida – e vida em abundância –, vendo que fora prometida por Deus em Sua aliança com seu povo eleito. Com isso, nos tempos de Jesus os judeus se apegavam, em segundo lugar, à promessa mosaica. Dito de outra forma, naqueles tempos o povo se agarrava às promessas de líderes que diziam estar pres- tes a se “[...] efetivar uma grande promessa do passado. Portanto, a tendência do movimento era profética em sua natureza, enquanto derivada da tradição mosaica, e também messiânica pelo seu caráter de expectativa na redenção” (SCARDELAI, 1998, 190). Contudo, como saber quem era o profeta que haveria de trazer a redenção para o povo oprimido? Em meio a tanta opressão, o povo simples não sabia distinguir o que era verdadeiro ou falso profeta, afinal, o que desejavam era se livrar do fardo imposto pelo império romano; queriam combatê-lo para ter uma vida melhor em sua terra. Assim, Teúdas era tido por alguns de seus contemporâneos como falso profeta – mas como saber? Lucas, em seus escritos, tenta demonstrar como identificá-los: O modo como Lucas escreve esse relato deixa transparecer que o autor pretende algo mais do que o simples desejo de reprovação de líderes como Teúdas. Suspeita-se de que o dócil e pouco comprometedor parecer de Gamaliel tivesse o objetivo não transparente através do texto. Ele traz em seu bojo o toque sutil do estilo lucano que pretende nos dizer que, ao contrário de falsos profetas, como Teúdas, o novo movimento de Jesus e seus seguidores “vem de Deus” e, por isso, nenhuma força poderá destruí- lo (SCARDELAI, 1998, p. 192). O importante é que, corroborando com os relatos históricos existentes, nos tempos de Jesus a opressão do império romano e da elite judaica fez com que aflorassem diversos movimentos populares de repulsa à opressão sofrida pelo povo pobre e pelos camponeses daqueles momentos difíceis em que Jesus fez parte: antes, durante e depois de sua morte – nos séculos I a.C. e I d.C. Em contrapartida, outro líder da Palestina no século I d.C. foi Judas, uma figura nacionalista e que lutou contra o império romano. Ademais, as perspectivas de discurso e cronologia 14 15 de suas vidas chama a atenção para o fato de que seus enunciados eram diferentes, de modo que “[...] seria improvável que um protótipo de liderança nacionalista, da qualidade de Judas, pudesse compartilhar de ideias carismáticas exacerbadas que fossem compatíveis com Teúdas” (SCARDELAI, 1998, p. 194). Há relatos afirmando que os revolucionários não teriam sido dispersos apesar de terem seu líder fundador, Judas Galileu, sido executado pelos romanos. Em relação a Teúdas, não existe nenhuma evidência que mostre com clareza que o movimento por ele iniciado tivesse prosseguido após a sua morte. Ao contrário, seus seguidores, amedrontados, foram dispersos e o líder caiu no esquecimento tão logo ficou patente a malsucedida proposta libertadora. Não é possível conciliar Judas e Teúdas como dois aspirantes imbuídos dos mesmos critérios messiânicos, como Atos parece sugerir (RHOADS apud SCARDELAI, 1998, p. 194). A Palestina dos tempos de Jesus viveu sob o pesado jugo de um grande império que dominava a região, aliava-se às elites locais e oprimia a população pobre – a parte mais espoliada nesse jogo de interesses político-econômicos –, onde a questão social não fazia parte das prioridades das elites no difícil cotidiano do pobre. Segundo Scardelai (1998, p. 111), “[...] o presente cenário composto de incertezas e de insta- bilidade político-social em Israel, que transcorre de Judas Galileu até Bar Kokeba (6- 135 d.C.), fez emergir uma longa sequência de movimentos populares revolucioná- rios [...]”, acrescentando importante comentário sobre o contexto da vinda do Messias: “[...] os dados históricos paralelos presentes na narrativa do nascimento de Jesus de Nazaré [...] dão mostras de que uma pesada atmosfera de instabilidade social pairava sobre a nação judaica [...]” (SCARDELAI, 1998, p. 110). Assim, Jesus, o Messias da nova, definitiva e eter- na aliança entre Deus e os homens, conheceu em seu contexto histórico alguns movimentos de repúdio à opressão do império romano a seu povo, e como veio para salvar todos os oprimidos, Jesus não ficou indiferente às questões políticas e sociais que os oprimiam. Naqueles dias apareceu um edito de Cesar Augusto, ordenando o recenseamento de todo o mundo ha- bitado. Esse recenseamento foi o primeiro enquanto Quirino era governador da Síria. E todos iam se alistar, cada um na sua própria cidade. José também subiu da Cidade de Nazar, na Galileia, para a Judeia, na Ci- dade de Davi, chamada de Belém, por ser da casa e da família de Davi, para se inscrever com Maria, sua mulher, que estava grávida. Enquanto lá estavam, completaram-se os dias para o parto, e ela deu à luz o seu filho primogênito, envolvendo-o com faixas ereclinou-o em uma manjedoura, porque não havia um lugar para eles na sala (Lc. 2, 1-7). 15 UNIDADE Messias ou bandidos! O “Banditismo” Social Segundo Horsley e Hanson (1995), nos tempos de Jesus ocorreram dois fatos muito importantes na Palestina, a saber: vida e morte do próprio Jesus e a Revolta Judaica dos anos 60 do século I. No caso de Jesus, em meio a dominação do impé- rio romano, surgia “[...] um profeta judeu da longínqua região da Galiléia, tornou- -se a figura central do que veio a ser o cristianismo e se tornou a fé e a instituição religiosa estabelecida predominante do Ocidente [...]”; e não muito tempo depois da morte desse Personagem, que se tornaria parte importantíssima da história humana, “[...] o povo judeu irrompeu numa revolta maciça contra a dominação romana, que levou mais de quatro anos para ser debelada [...]” (HORSLEY; HAN- SON, 1995, p. 7). A Rebelião dos Judeus durante a dominação romana na Palestina, levou o im- pério a praticamente devastar o território, e muito pior, para um povo apegado à tradição religiosa, “pedra de toque” de sua cultura, onde o Templo de Jerusalém é até à contemporaneidade um monumento de forte apelo sentimental para esse povo, foi totalmente destruído. Tal fato, porém: Resultou num grande ponto de virada tanto para a tradição religiosa judaica como para a cristã. Em reação contra o espírito apocalíptico e o ímpeto revolucionário, sábios fariseus moderados lançaram os fundamentos não só da sociedade judaica reconstruída, mas também daquilo que veio a ser o judaísmo rabínico. Além disso, em consequência da supressão romana da revolta judaica, o movimento cristão nascente afastou-se de Jerusalém e do templo como centro geográfico e simbólico (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 7). A atuação de Jesus, em sua maior parte, deu-se fora de Jerusalém, o Salvador percorreu toda a região, perambulando de uma aldeia a outra durante toda a Sua vida, “[...] na forma mais característica do seu ensino, as parábolas, tira analogias das experiências da vida camponesa na Galiléia”. Os camponeses que Jesus citava insistentemente como exemplos em seus ensinamentos, corresponderam ao material humano preponderante nas revoltas contra os dominadores romanos dos séculos I a.C. e I d.C., “[...] em ambos os eventos os camponeses judeus foram a força dinâmica, a fonte original da mudança histórica e das suas ramificações [...] foram os camponeses que forneceram a imensa maioria daqueles que originalmente expulsaram os romanos”, e foi essa camada social que resistiu à reconquista da Palestina pelos romanos durante muito tempo, foram esses os protagonistas de sua história, e como em qualquer história, os movimentos sociais que resistem à dominação das elites que controlam os modos de produção, são criminalizados e taxados de bandidos, assim como nos dias atuais e em toda parte. 16 17 Os movimentos messiânicos na região da Palestina antecederam, sobreviveram e sucederam a Jesus; o camponês oprimido foi lutar pela sua sobrevivência, mesmo colocando em risco a própria vida para dar uma existência digna ao seu povo. Esses pobres judeus “[...] uniam-se em certos tipos de grupos e movimentos, conforme sabemos pelo historiador judeu Josefo, pela tradição cristã dos evangelhos e outros relatos fragmentários [...]” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 8). Os movimentos na Palestina eram, em suas bases, contrários à dominação romana e à elite judaica aliada aos opressores estrangeiros. Para Horsley e Hanson (1995) existem semelhanças e diferenças significativas entre os vários grupos que lutavam pela libertação do povo judeu em relação ao movimento liderado por Jesus, “[...] a oposição ao domínio romano na Palestina judaica pode ter sido bem mais difundida e espontânea, embora talvez politicamente menos consciente do que se imaginava [...]”, isso porque, anteriormente, os estudos acadêmicos sobre os movimentos sociais na Palestina levavam muito em consideração as ações de zelotas, sobrevalorizando tal movimento, “[...] que supostamente queria provocar a revolução sessenta anos antes do seu acontecimento efetivo [...]” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 8). O certo mesmo é afirmar que quase todos os movimentos/eventos populares da Palestina nos tempos de Jesus “[...] tinham orientação anti-romana. Especialmente os movimentos mais organizados, liderados por profetas ou messias populares, que buscavam conscientemente um tipo particular de libertação [...]”, afinal, eram também movimentos que combatiam a elite judaica que se deixava dominar pelas vantagens político-econômicas oferecidas pelos romanos. Ou seja, atrelados aos dominadores pelos benefícios particulares oferecidos, a elite local deixava de cum- prir sua função social em relação ao camponês e ao pobre de Israel. Por fim, para a nossa análise do banditismo social na Palestina, “[...] a situação da sociedade ju- daica era claramente mais complexa do que se imaginava com a idéia de um único movimento organizado de resistência [...]” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 8). Na Palestina judaica, para além da dominação romana, o povo que formou a nação israelita foi se constituindo historicamente em duas classes sociais e tais grupos viveram em tensão, “[...] pois tal estrutura, quando mais de 90 por cento são camponeses dominados por uma pequena minoria, está sujeita a tensões quase inevitáveis que são um fator maior no seu desenvolvimento histórico [...]” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 23). O povo que esteve sob a liderança de Javé, Moisés e outros líderes anteriores à institucionalização da religião judaica no Templo, formavam uma nação independente e livre da dominação de classes hierarquicamente constituídas, “[...] mas também formaram uma aliança com Javé e entre si para manter esta liberdade [...]” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 24). 17 UNIDADE Messias ou bandidos! Observe que para o judeu, a sua aliança com Deus era mais importante que qualquer institucionalização religiosa: Através da memória coletiva do povo, finalmente fixada na forma dos relatos bíblicos, essas circunstâncias dos camponeses, livres de senhores e reis, independentes de dominação estrangeira, vivendo sob o governo de Deus numa sociedade justa e igualitária, tornaram-se um ponto de referência para as gerações subsequentes um ideal utópico com que comparavam a sujeição posterior a reis e impérios estrangeiros e julgavam contrárias à vontade de Deus (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 24-25). Essa liberdade, fator importantíssimo para a sociedade judaica, considerava que a aliança realizada com Deus, por meio de Moisés e depois renovada sob a liderança de Josué, em Siquém, funcionava para essa sociedade como uma constituição não escrita no Israel Antigo – quem garantia essa lealdade era o próprio Deus, sem culto estabelecido em um Templo. Sob a dominação estrangeira, contudo, o povo de Israel já estava calejado de viver, mas nunca se conformou com tal situação, haja vista o que acabamos de verificar sobre a constituição desse povo sob o ideal de liberdade e igualdade social. Para as elites, fossem nacionais ou estrangeiras, a reação do pobre oprimido sempre era taxada como algo anômalo, vingativo, de um povo que não reconhecia as “bondades” que lhe eram oferecidas como de pai para filho – as elites, em geral, eram paternalistas. Contudo, o povo explorado, inconformado com a própria condição, em certas ocasiões da história humana, reagiu – e muitas vezes com violência – contra as truculências que lhes eram aplicadas, de modo que o banditismo social, segundo relatam Horsley e Hanson (1995, p. 57), “surge em sociedades agrárias tradicionais, em que camponeses são explorados por governos e proprietários de terras, particularmente em situações nas quais os camponeses são economicamente vulneráveis [...] e os governos ineficientes”. O banditismo social não é um fenômeno premeditado contra as elites; surge em contextos de exploração e “[...] pode aumentar em épocas de crise econômica, incitado pela fomeou elevada tributação, por exemplo, bem como em períodos de desintegração social, talvez resultante da imposição de um novo sistema político ou econômico-social”. Em seus estudos, Eric Hobsbawm (apud HORSLEY; HANSON, 1995, p. 57-58) acreditava que os bandidos que se tornaram lendas populares, foram-no por fazerem justiça para o povo simples, “[...] muitas vezes funcionam como campeões da justiça para o povo simples e geralmente gozam de apoio dos camponeses locais [...] em vez de ajudar as autoridades a capturar bandidos, o povo poderá protegê-los”. Esses “bandidos” são, às vezes, a única forma de justiça que prevalece entre o camponês e o pobre de Israel, “[...] emergem de incidentes e circunstâncias em que aquilo que é imposto pelo Estado ou pelos governantes locais é percebido como injusto e intolerável [...]” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 58). O que é interessante observar aqui é o fenômeno rural da situação, ou seja, é justamente 18 19 esse o contexto histórico de Jesus, onde o “banditismo social” é observado, ou seja, “[...] é encontrado universalmente em sociedades baseadas na agricultura, e compõe-se predominantemente de camponeses e trabalhadores rurais sem-terra, dominados, oprimidos e explorados por outros, proprietários, cidades, governos” (HOBSBAWM apud HORSLEY; HANSON, 1995, p. 58). Na Palestina, a condição socioeconômica dos judeus nos tempos de Jesus era calamitosa, de modo que não foi surpresa o ressurgimento do que chamamos aqui de “banditismo social”, afinal, nessa situação “[...] os camponeses que não conseguem acompanhar os crescentes impostos ou arrendamentos são excluídos da terra e se tornam sujeitos às exações dos proprietários e governantes [...], forçando-os a procurar outro meio de vida [...]” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 58). Tal situação de miséria dos camponeses, em muitos casos por não disporem de outra opção, acabava por levá-los a seguir algum tipo de profeta ou messias que clamasse pela libertação de seu povo do pesado jugo enfrentado pela dominação estrangeira e pela exploração das elites, de modo que esses camponeses, às vezes, rebelavam-se contra o sistema de opressão, atacando-o não apenas com palavras, mas com ações concretas. Em comum às revoltas capitaneadas pelo “banditismo social”, há semelhança às condições socioeconômicas do camponês empobrecido, que segue seu profeta no deserto, ou é levado a “[...] levantar-se em rebeliões contra seus senhores judeus e romanos, quando era dado o sinal por algum ‘rei’ carismático, ou fugir para as montanhas, juntando-se a algum bando de salteadores” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 59). Assim, nos tempos de Jesus, o camponês se inquietava com a falta do que comer e vestir, ou seja, estava insatisfeito com a própria situação de vida e incomodava- se com os excessos dos governantes, com a falta de caráter, a ilegitimidade e o comportamento das elites dominantes, porque era do suor do camponês que saia o sustento dos excessos desses governantes; “[...] naturalmente, a maneira como os camponeses judeus reagiam tinha muito que ver com o modo como eles pensavam que tais relações deviam ser [...]”, como se desenvolviam na realidade, “[...] e os camponeses não eram ingênuos e enxergavam os abusos cometidos contra eles” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 61). Era praticado todo tipo de abuso contra os pobres, havia a dupla taxação e outros tipos de exploração, “[...] muitas vezes os exércitos romanos devastavam as aldeias e suas populações [...]”; em certa ocasião, Gofna, Emaús, Lida e Tamna estavam com os “impostos especiais”, pedidos por Cássio, atrasados e, por esta razão, foram escravizados pelo governador dessas regiões. Ademais, para não nos restringirmos aos abusos do império romano ao fator político-econômico, em outra ocasião, especificamente na região de Emaús, “[...] um general romano, Maqueras, irritado com líderes judeus rivais, matou todos os judeus que encontrou na sua retirada de Jerusalém a Emaús” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 64). 19 UNIDADE Messias ou bandidos! Ainda segundo esses autores, “[...] em condições tão difíceis para os camponeses judeus, não surpreendem os surtos de banditismo [...]”, e também “[...] não causa nenhuma surpresa o crescimento do banditismo no rastro desse período de guerra civil e lutas político-econômicas”. Muitos líderes surgiram para se revoltarem contra essa situação de extrema opressão, entre os quais, Ezequias, “[...] um líder salteador com um bando muito grande, estava assolando a região da fronteira síria [...] os galileus que aderiram ao bando de salteadores liderados por Ezequias provavelmente eram vítimas e fugitivos da situação social e política [...]”, e dessa feita não foi da opressão estrangeira, mas “[...] do poder, recentemente adquirido, da nobreza local que Herodes, delegado pelo seu pai, Antípatro, para governar a Galiléia, quem logo capturou e matou Ezequias e numerosos dos seus salteadores, para a grande satisfação dos sírios” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 69-70). Os “bandidos” eram para os camponeses uma forma de justiça divina que jamais encontrariam naquela sociedade hierarquizada, já bastante distante e deformada da antiga aliança com Javé e Sua Lei. Aliança realizada com Javé, sob a liderança de Moisés e que depois foi renovada por meio de Josué, em Siquém. Esse povo oprimido precisava de algum tipo de justiça e consolo, e naqueles dias não tinham outra alternativa senão a de depositar sua confiança nesses “bandidos” que viveram nos tempos de Jesus, do século I a.C. até quase o final do século I d.C. Em resumo, contra o regime injusto e opressor da elite local ou de um governo distante, o povo simples protege seus parentes e amigos que se meteram em dificuldades com a lei e a ordem oficial, por intransigência ou má sorte. O salteador social é considerado um herói da justiça e um sím- bolo da esperança do povo pela restauração de uma ordem mais justa [...]. Ezequias e seus seguidores, quase um século antes, ofereceram o exemplo mais claro de salteadores como heróis inocentes, vítimas da Lei e da or- dem imposta pelo jovem Herodes (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 75). A revolta camponesa não é consequência do banditismo social, mas pode ser insuflada por este. Segundo Horsley e Hanson (1995, p. 80), “[...] a maioria dos bandidos atua apenas alguns anos até ser presa ou morta [...] há casos [...] em que a difusão do banditismo levou a amplas revoltas populares ou foi acompanhado por elas”, uma ocorrência desse imbricamento pode ser encontrada onde “[...] as forças dos salteadores das cavernas de 38 a.C. estavam ligadas com outras formas de contínua resistência popular à conquista da Galiléia por Herodes [...], o banditismo judaico periodicamente ameaçava desencadear grandes perturbações”. Pensando na opressão exercida pelo império romano, não deixe de refletir sobre as palavras de Jesus e relacioná-las ao Evangelho de João de forma concreta naquela história que, para além dos falsos profetas, havia também as opressões política e econômica de um dominador cruel, que roubava a liberdade e a vida dos camponeses e pobres nos tempos de Jesus, este que se preocupava com a concretude da vida. “O ladrão vem só para roubar, matar e destruir. Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo, 10:10). 20 21 Nos tempos de Jesus, as insurreições camponesas foram combustível para uma oposição ativa contra a ordem estabelecida, ou seja, formavam as condições neces- sárias para o povo oprimido se fazer notar pela elite dominante, pois era uma for- ma de demonstração de que as coisas estavam muito erradas na sociedade judaica. Os salteadores, durante a Revolta Judaica de 66 d.C., formaram importante contingente de resistência aos abusos dos dominadores estrangeiros, “[...] a cavalaria romana devastou a região, matando grande número de pessoas, saqueando suas propriedades e incendiando suas aldeias”; porém, a resistência ao império romano já estava articulada e“[...] já havia diversos grandes grupos de salteadores ativos na Galiléia [...], estas ações típicas para esmagar a rebelião só serviram para multiplicar o número de salteadores” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 81). Os salteadores multiplicavam as suas atividades contra o dominador estrangei- ro durante a Revolta Judaica, causando temporariamente a dispersão do exército romano. Apesar da posterior derrota, os camponeses foram se juntando aos salte- adores, pois por onde o exército romano passava ficava um grande deserto; “[...] a julgar pela narrativa geral de Josefo, parece que esses camponeses transformados em bandidos constituíam as forças principais da rebelião na zona rural da Judéia” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 84). Enquanto as autoridades tinham o forte propósito de exterminar o “banditismo social”, os camponeses, na contramão da ordem estabelecida, em muitas ocasiões arriscavam suas vidas para os proteger. Quando o seu senso de justiça era ofendido pelas ações ou falta de ações, das autoridades, os camponeses não hesitavam em apelar para os salteadores, que como na lenda de Robin Hood, podem bem ter sido heróis da justiça e também símbolos da injustiça, para ajudá-la a tomar vingança e assim fazer justiça (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 84). A Tradição Messiânica e a Esperança de Salvação para o Povo Oprimido Entre os judeus, havia a esperança de que pudesse vir um salvador/libertador e isto se deve à tradição bíblica. Essa “certeza” se tornou muito forte no primeiro século da Era Cristã e uma razão para isso está na opressão vivida pelo povo judeu, que estava a várias décadas sob o domínio estrangeiro. Como vimos, não se tratava de novidade para esse povo, o qual já havia passado por diversas provações ao longo de sua história, porém, estava cada vez mais difícil suportar a tirania dos romanos, fosse por meio das pesadas taxas pagas pelos pobres e camponeses, fosse pela forma como o exército estrangeiro reprimia com violência a resistência à dominação romana. 21 UNIDADE Messias ou bandidos! De acordo com Scardelai (1998, p. 5), “[...] existem provas significativas de que a crença de cunho libertador foi o que, na verdade, motivou o aparecimento de novas lideranças político-religiosas com o intuito de estabelecer a redenção de Israel nos moldes de conhecidas tradições bíblicas”. Nesse contexto histórico sugiram alguns líderes que representaram o ideal messiânico do povo de Israel – e a situação era desesperadora para os judeus que, muitas vezes levados pelo desejo de restauração de sua pátria, não hesitaram em acreditar em aventureiros; por isso alguns estudos apontam para certos “movimentos messiânicos” durante os dois primeiros séculos da Era Cristã. Dentro dessa tradição se situa a crença de que Jesus de Nazaré seja o messias que não foi reconhecido por todo o seu povo, dado que “[...] a tradição cristã declarou frequentemente que Jesus de Nazaré foi o messias enviado ao povo judeu, o mesmo povo que o rejeitou” (SCARDELAI, 1998, p. 5-6). Em um contexto conturbado, como o em que viveu Jesus de Nazaré, a ansiedade para se alcançar a libertação do povo judeu, que era oprimido, mais uma vez era muito grande; por isso devemos levar em consideração que muitos se deixaram levar por diversas propostas libertadoras, por inúmeros “messias” que surgiram e que tentaram levar o povo à liberdade; assim, “[...] não faltaram aqueles que, ávidos pela libertação político-religiosa de Israel, se entregaram de corpo e alma à luta por um ideal. Outros se consideravam, inclusive, legítimos defensores e supostos salvadores do povo de Israel” (SCARDELAI, 1998, p. 6). Importante! Não podemos confundir o “peso” que uma palavra, um conceito, tem em cada contexto histórico. Importante! A palavra messias durante os tempos antigos era indistintamente aplicada a qualquer pessoa que fosse “ungida com óleo”. Devido a esta consagração, o ato de ungir colocava tanto o “sacerdote”, como o “rei” e o “profeta” no mesmo nível de “ungido”. Noções desta tríplice função foram registradas por Flávio Josefo como sendo os “três maiores privilégios” com os quais um verdadeiro e honrado governador era investido de autoridade, a saber: “governo da nação, ofício de sumo sacerdote e o dom da profecia” [...]. Deve ter havido uma forte influência desse costume que levou a moldar a crença messiânica (SCARDELAI, 1998, p. 21-22). Três títulos-chave foram especialmente delineados como matrizes sobre as quais os critérios para a condição messiânica se deram na terra de Israel em luta por liberdade: um era a expectativa de um “rei Messias, filho de Davi”; outro a do “messias, filho de José”; o terceiro era a de um redentor “profeta”. 22 23 O povo de Israel esperava, dentro da tradição do que significou ser messias no judaísmo: um líder eloquente, homem de caráter ilibado, profeta e sacerdote para guiar seu povo rumo à libertação. E quem propunha um messias salvador era a tradição “farisaico-rabínico” do judaísmo dos tempos de Jesus, na terra de Israel, e Jesus foi um judeu praticante, de modo que o não reconhecimento de parte de seu povo não tira a força de sua palavra de libertação. Muitos creram em Jesus em meio a tantas propostas de libertação. Lucas 2,21 – “Oito dias mais tarde, quando chegou o momento da circuncisão do menino, chamaram-no com o nome de Jesus, como o anjo o chamara antes de ser concebido”. Para saber mais sobre o seguimento de Jesus nas tradições judaicas, ler Jesus Judeu Praticante, de Ephraïm, publicado pela Editora Paulinas, em 1998. Ex pl or No primeiro século da Era Cristã, a complexa doutrina da redenção estava ainda em formação e era muito fragmentada, segundo Scardelai (1998). Ou seja, o ambiente judaico era muito conturbado e a esperança de salvação poderia levar o povo a se apegar a diversas propostas desconexas, minimamente formuladas por grupos ávidos por se libertar da dominação romana. Pelas palavras de Flávio Josefo podemos perceber que “[...] a insistente reivindicação popular por reformas sociais alcançava seu ápice em explosões de conflitos periódicos entre as forças da classe dominante, composta por autoridades romanas com a colaboração de dirigentes judeus e grupos camponeses” (SCARDELAI, 1998, p. 214). Esse ambiente nos remete a pensar que o líder que libertaria o povo de Israel não estava entre os dirigentes judeus, isso porque a elite judaica estava em aliança espúria com os dominadores e o messias deveria ser um dirigente reto, temente à palavra de Deus – e não alguém que se aliava ao dominador, que não professava a mesma fé de seu povo. Entre os inúmeros pretendentes a messias, Jesus se encaixava no protótipo do líder esperado pelos judeus: era descendente da casa de Davi, não estava em aliança com os romanos e ainda exortava o povo à obediência a Deus, um Deus para todo o povo de Israel – e não um Deus prisioneiro do Templo e da Lei. Jesus se distinguia dos movimentos messiânicos de seu tempo, o seu grupo estava distante ideologicamente dos representados pelo “banditismo social”, dos “salteadores” e de grupos com pretensões militares; tampouco poderíamos dizer que as características dos cristãos se assemelhavam aos zelotas, “[...] nenhum dos aspectos comprometedores de um revolucionário parecem ser sugeridos pela narrativa de Josefo sobre Jesus”. Porém, assim como todos esses grupos que estavam descontentes com a opressão imposta aos judeus, Jesus queria a libertação de seu povo do jugo do dominador: “Jesus é um produto natural desse fértil solo galileu [...], pode muito bem ser enquadrado dentro do judaísmo carismático da Galiléia do primeiro século, tendo como referencial os paralelos com outras figuras carismáticas” (SCARDELAI, 1998, p. 214-45). 23 UNIDADE Messias ou bandidos! Os seguidores de Jesus criam que era o libertador de Israel, dado que tal crença não era à toa, pois em sua condenação à morte, uma das acusações foi a de que era o “Rei dos judeus” (Mt. 27, 37), epara pensarmos que esse homem judeu da Galileia era o messias esperado pelo povo judeu e que era a esperança para a libertação, podemos situá-lo dentro da perspectiva redentora, “[...] presente nas possíveis intenções de Jesus [...]”, para isso, torna-se necessário “situá-lo a partir da sua descida da Galiléia até Jerusalém, na Judéia, na fase final de seu ministério, num período-chave dos festejos religiosos judeus, a Páscoa” – trata-se de um acontecimento cultural com carga político-religiosa muito forte para os judeus. Dentro desse clima conturbado, Jesus se fez presente como portador da missão redentora de seu povo, segundo os profetas do Antigo Testamento: “A Páscoa, evidentemente, sempre foi o fio condutor do espírito salvífico judaico, presente nas tradições antigas. A futura redenção de Israel, aliás, era esperada realizar-se no tempo da Páscoa, tempo que Israel estaria se preparando para receber seu Rei” – e não era qualquer rei, pois deveria ser da descendência de Davi “[...] para reinar o destino da nação em que espelharia a Era Áurea da Monarquia” (SCARDELAI, 1998, p. 247). Vários acontecimentos nesse contexto nos levam a crer que grande parte do povo de Israel cria que Jesus era seu libertador e que estava envolvido na libertação de seu povo, este que esperava por tal dia e por seu messias, afinal, “[...] a calorosa recepção e a demonstração popular a Jesus quando adentrava a Cidade é particularmente impressionante. A atribuição de ‘rei’ acentuou o aspecto escatológico, herdada de antigo costume de saudar um soberano judeu”, saudação que vai ao encontro das expectativas que esse povo tinha em relação a Jesus, pois era “[...] aguardado para restaurar o reinado davídico em Judá, as marcas do messianismo são claramente expostas: Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor!” (SCARDELAI, 1998, p. 248). Em suma, Jesus foi um líder carismático, que carregou em seu contexto histórico a esperança de salvação para um povo oprimido, de modo que até hoje é tido pelos cristãos como o verdadeiro messias, aquele que deu sua vida para salvar a humanidade; em seu tempo, Jesus também foi reconhecido como o libertador por uma grande parcela de seu povo oprimido pelos poderosos de seu tempo. Ora, o ato de aclamar publicamente um rei detinha um significado simbólico através do qual a população manifestava seu apoio em reconhecimento ao legítimo rei de Israel. Ungir e eleger um rei, ainda que não oficializado por celebrações e cerimônias, significou um gesto peculiar revolucionário, incorporado posteriormente nas tradições messiânicas de Israel. Por isso, os movimentos messiânicos do tempo de Jesus aparecem tão permeados pelo espírito patriótico e político. Apesar de haver variações e acréscimos quanto aos pormenores, a narrativa relativa à entrada solene de Jesus em Jerusalém pode ser tomada como episódio parcialmente histórico que tem caráter de demonstração messiânica espontânea, ocorrido nas ruas da Cidade (SCARDELAI, 1998, p. 249). 24 25 Jesus não foi reconhecido oficialmente pela elite de Israel e por parte de seu povo, o judeu, que muitas vezes seguiu outros homens dentro da tradição messiânica de Israel e deu fé desse povo na libertação vinda de um messias-rei; mas foi através da tradição cristã que esse homem-deus se tornou o salvador da humanidade e permanece vivo o seu nome e a sua história por mais de dois mil anos. A vida de Jesus é contada e recontada através dos séculos por meio de uma história teologizada, mas que ganha força de verdade para os que Nele creem e o seguem até os tempos hodiernos. “Este é o discípulo que dá testemunho dessas coisas e foi quem as escreveu; e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro” (Jo, 21, 24). 25 UNIDADE Messias ou bandidos! Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros O essencial de Jesus CROSSAN, J. D. O essencial de Jesus: frases originais e primeiras imagens. Belo Horizonte, MG: Jardim dos Livros, 2008. O nascimento do cristianismo ______. O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004. Jesus ______. Jesus: uma biografia revolucionária. Rio de Janeiro: Imago, 1995. O Jesus histórico ______. O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1994. Paulo e o império ELLIOT, N. A mensagem anti-imperial da cruz. In: HORSLEY, R. A. (Org.). Paulo e o império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004. p. 169-184. 26 27 Referências BRITO, J. G. de. A figura de Jesus Cristo no livro Jesus de Nazaré, de Joseph Ratzinger. 2014. Dissertação (Mestrado em Teologia) - Universidade Católica Portuguesa, 2014. GOODMAN, M. A classe dirigente da Judéia: as origens da Revolta Judaica contra Roma, 66-70 d.C. Rio de Janeiro: Imago,1994. HORSLEY, R. A. Paulo e o império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004a. ______. Jesus e o império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2004b. ______. Arqueologia, história e sociedade na Galiléia: o contexto social de Jesus e dos rabis. São Paulo: Paulus, 2000. ______. Jesus and the spiral of violence. San Francisco: Harper & Row, 1987. ______.; HANSON, J. S. Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1995. HORSLEY, R. A.; SILBERMAN, N. A. A mensagem e o reino: como Jesus e Paulo deram início a uma revolução e transformaram o mundo antigo. v. 1. São Paulo: Loyola, 2000. LOHSE, E. O contexto e ambiente do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2000. MEIER, J. P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1992. NOLAN, A. Jesus antes do cristianismo. 4. ed. São Paulo: Paulus, 1987. OVERMAN, J. A. O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo. São Paulo: Loyola, 1997. ROCHA. I. E. Dominadores e dominados na Palestina do século I. História, São Paulo, v. 23, n. 1-2, p. 239-258, 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/ pdf/his/v23n1-2/a12v2312.pdf>. Acesso em: 30 maio 2017. ROSSI, L. A. S. Perspectivas imperiais no primeiro século. In: CONGRESSO ANPTECRE, 5., 2015. Anais... [S.l.: s.n.], 2015. SAULNIER, C.; ROLLAND, B. A Palestina nos tempos de Jesus. São Paulo: Paulus, 1983. SCARDELAI, D. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias. 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