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CAPA A Verdadeira História de Jesus E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus Noticias editorial PAGINAÇÃO: Rodapé e nº de páginas 366 Esta obra foi digitalizada e corrigida pelo Serviço de Leitura Especial da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo. Destina-se unicamente a pessoas com necessidades especiais e não tem fins comerciais. Contactos do Serviço de Leitura Especial: Tel.: 258 840 010 e-mail: leituraespecial@cm-viana-castelo.pt BADANA DA CAPA JESUS CRISTO. Está na base da maior religião mundial: dois mil milhões de seres humanos reclama-se hoje da fé nele e dizem-se cristãos. A sua figura foi de tal modo determinante que a Historia se divide em antes e depois de Cristo. Durante dois mil anos, em seu nome ergueu-se o que se chama a Igreja, construíram-se catedrais e hospícios, proclamou-se a dignidade infinita de ser Homem e também se instruiu a Inquisição, veio ao mundo amor e sofrimento. Ninguém tem dúvidas de que sem ele a Historia seria diferente. No entanto, viveu num canto remoto do Imperio Romano, a sua intervenção pública pode não ter chegado aos dois anos, foi condenado à cruz – a execução própria dos escravos -, como blasfemo religioso e subversivo social e politico. Aparentemente, deveria ter sido o fim. O que se passou para que, precisamente após a sua morte, tivesse começado um movimento que transformou o mundo? O seu enigma para nós é o da passagem do Jesus da história ao Cristo da fé, de tal modo que o seu nome agora é Jesus Cristo. Assim, a pergunta decisiva é esta: o que se pode saber hoje com rigor histórico sobre Jesus, o Cristo, independentemente da fé? Precisamente a esta pergunta responde esta obra modelar, saudada entusiasticamente pela crítica especializada, que sublinha dois aspetos essenciais: justamente o rigor e a acessibilidade. Anselmo Borges CONTRA CAPA Para crentes e não crentes (numa época que discute o “Código da Vinci”, o sentido da violência e da paz e a responsabilidade das confissões religiosas nestes domínios) é fundamental entender as convicções dos que “fizeram grupo” com jesus Cristo, o significado de milagres e exorcismos, o âmbito de projetos de mudança da história pessoal e coletiva e o alcance de um “Reino de Deus”. Que parentesco há entre o sentido e a salvação? A complacência, a tolerância, a predileção pelos marginais, os conflitos e os equívocos do tempo, a Paixão e a Ressureição são marcos de uma trajetória. O saber (prefigurado por abundantes hipóteses de leitura) convoca à sensibilidade e à alteração de critérios de viver. Com minucia de interprete e transparência de Mestre, o Prof. E. P. Saunders tenta reconstituir a fisionomia histórica de Jesus através da fidelidade às fontes, à releitura das comunidades nascentes e aos contextos de uma Pessoa. É uma delícia cultural a travessia de muitas das suas páginas! D. Januário Torgal Ferreira, Bispo das Forças Armadas e de Segurança «Um feito memorável.» mailto:leituraespecial@cm-viana-castelo.pt Professor Jaroslov Pelikan, Universidade de Yale « é, hoje, o maior especialista americano na investigação sobre a vida de Jesus… Espero que esta obra (…) constitua um antidoto saudável contra algumas teses extravagantes sobre o jesus histórico que tem aparecido recentemente.» Professor John B. Meier, Universidade Católica «Soberbo… A Verdadeira Historia de Jesus destaca-se pela sua clareza e equilíbrio, o seu senso comum e, acima de tudo, pela sua honestidade.» Professor Wayne A. Meeks, Universidade de Yale «Um estudo não dogmático e não religioso sobre a verdade acerca da vida e percurso de Jesus, desenvolvido por um dos maiores especialistas.» Professor Paul Johnson, “Sunday Times” BADANA DA CONTRA CAPA Depois de dois bacharelatos no Texas, o seu estado natal, E. P. Sanders prosseguiu os estudos universitários em Gottingen, Jerusalém, Oxford e Nova Iorque, que culminaram num doutoramento em Teologia pelo Union Theological Seminary. Em 1984, tornou-se professor de Exegese na Universidade de Oxford. Seis anos mais tarde mudou-se para a Universidade de Ciências da Religião. Foi professor no Trinity College, de Dublin, e na Universidade de Cambridge. O seu campo de estudo centra-se no judaísmo e cristianismo no mundo greco-romano. Paul and Palestinian Judaism (1977) ganhou vários prémios nacionais. Jesus and Judaism (1985) recebeu o Premio Grawemeeyer de Religião e foi escolhida pelo Dunday Correspondent como uma das obras de referência da historia religiosa publicada nos anos 80. Escreveu igualmente The Tendencies of the Synoptic (1969), Paul, the Law and the Jewish People (1983), Studyng the Synoptic Gospels, com Margarete Davies (1989), Jewish from Jesus to the Mishnah (1990), Paul: Past Master (1991) e Judaism: Pratice and Belief 63 BDE – 66 CE (1992). Recentemente, E. P. Sanders recebeu novos Títulos: coutor em Letras pela Universidade de Oxford e doutor honoris causa em Teologia pela Universidade de Helsínquia. É membro da Academia Britânica. A chave hermeutica de Jesus do Prof. E. P. Sanders reside no tema da «restauração escatológica». Como ninguém, Sanders conhece profundamente a cultura teológico-literária judaica da escatologia e conclui que o Deus da Aliança com o seu povo de Israel consuma em Jesus essa mesma aliança da restauração escatológica. Pe. Carreira das Neves Professor da Universidade Católica Portuguesa ISBN 972-46-1529-4 (Edição original: ISBN 0-14-014499-4) © E. P. Sanders, 1993 Direitos reservados EDITORIAL NOTICIAS Rua Bento de Jesus Caraça, 17 1495-686 Cruz Quebrada E-mail: geral@editorial.noticias.pt Internet:www.editorialnoticias.pt JRPENTRETENIMENTO Título original: The Historical Figure of Jesus Tradução: Teresa Martinho Toldy Marian Toldy Revisão: Domingas Cruz Capa: Maria Manuel Seixas Edição: OI 04 0057 I .ª edição: Setembro de 2004 Depósito legal n.º 216622/04 Pré-impressão, impressão e acabamento: Multitipo - Artes Gráficas, Lda. BIOGRAFIAS A VERDADEIRA HISTÓRIA DE JESUS Nesta coleção: JOÃO PAULO Il - A VIDA DE KAROL WOJTYLA Tad Szule YITZHAK RABIN - MISSÃO INACABADA The Jerusalém Report EMÍDIO GUERREIRO - UMA VIDA PELA LIBERDADE A. Encarnação Viegas ALINA - MEMÓRIAS DA FILHA DE FIDEL CASTRO Alina Fernández POR TIMOR - BIOGRAFIA DE D. XIMENES BELO Arnold S. Kohen LULA - DO AGRESTE AO PLANALTO João Nascimento A VERDADEIRA HISTÓRIA DE JESUS E. P. Sanders A VERDADEIRA HISTORIA DE JESUS Tradução Teresa Martinho Toldy Marian Toldy notícias editorial Abreviaturas Antig. Josefo, Antiguidades Judaicas, citado de acordo com a edição inglesa: Jewish Antiquities, in Work, ed. e trad. H. St. J. Thackeray, Ralph Marcus, Allen Wikgren e Louis Feldman, Loeb Classical Library, 10 vols., Londres e Cambridge MA 1926-1965 a.e.c. antes da época cristã (= a. C.) e.c. época cristã (= d. C.) HJP Emil Schürer, History of the Jewish People in the Age qf Jesus Christ, revisto e editado por Geza Vermes, Fergus Millar e Martin Goodman, oS vols. em 4 partes, Edimburgo, 1973--1987 J&J E. P. Sanders, Jesus and Judaism, Londres e Filadélfia, 1985 JLJM E. P. Sanders, Jewish Law from Jesus to the Mishnah: Five Studies, Londres e Filadélfia, 1990 7 NRSV New Revised Standard Version ofthe Bible P&B E. P. Sanders, Judaism: Practice and Belief 63 BCE - 66 CE, Londres e Filadélfia, 1992 RSV Revised Standard Version of the Bible SSG E. P. Sanders e Margaret Davies, Studying the Synoptic Gospels, Londres e Filadélfia, 1989 Guerra Josefo, A Guerra Judaica, citado de acordo com a edição inglesa: The Jewish War, in Works (edição já mencionada) / / paralelo a (Mt 9, 14-17 / / Mc 2, 18-22 significa que as passagens são paralelas uma à outra) Tabela cronológica 597 a.e.c. - Nabucodonosor da Babilónia conquista Jerusalém;os líderes judaicos são levados para o exílio na Babilónia 559-332 - Palestina sob o domínio persa 538 - início do regresso a Jerusalém 520-515 - reconstrução do Templo 333-332 - Alexandre Magno conquista a Palestina cerca de 300-198 - Palestina sob Ptolomeu do Egipto 198-142 - Palestina sob Selêucidas da Síria 175-164 - Antíoco IV (Epífanes), rei da Síria 167 - profanação do Templo; início da revolta dos Asmoneus (Macabeus) 166-142 - os Asmoneus lutam pela autonomia total 142-137 - período dos Asmoneus 63 - Pompeu conquista a Judeia 63-40 - Hircano II, sumo sacerdote e etnarca 40-37 - Antígono, sumo sacerdote e rei 37-4 - Herodes Magno, rei 9 31 - batalha de Actium: Octaviano (mais tarde, intitulado Augusto) torna-se imperador romano 4 a.e.c. - 6 e.c. - Arquelau etnarca, administrador da Judeia 4 a.e.c. - 39 e.c. - Antipas tetrarca, administrador da Galileia e da Pereia cerca de 4 a.e.c. - nascimento de Jesus de Nazaré 6-41 e.c. - Judeia governada por prefeitos romanos 14 - Tibério sucede a Augusto como imperador cerca de 18-36 - José Caifás, sumo sacerdote dos judeus 26-36 - Pôncio Pilatos, prefeito da Judeia cerca de 30 - morte de Jesus 37 - Gaio (Calígula) sucede a Tibério como imperador 41 - Cláudio sucede a Gaio 41-44 - Agripa I, rei, governa sobre o anterior reino de Herodes 44-66 - Judeia, Samaria e uma parte da Galileia governada por procuradores romanos 48-66 - Agripa II recebe uma parte do reino do seu pai revolta dos judeus contra Roma 66-74 – revolta doa judeus contra Roma 70 - queda de Jerusalém, destruição do Templo 10 Prefácio A maioria dos investigadores que escrevem sobre o mundo da Antiguidade sente-se obrigada a avisar os seus leitores de que o nosso conhecimento do objeto, na melhor das hipóteses, é incompleto e de que raramente se chega a uma certeza. Um livro sobre um judeu do século I, que viveu numa parte bastante insignificante do Império Romano, deve ser prefaciado por este aviso. O que sabemos acerca de Jesus provém de livros que foram escritos algumas décadas após a sua morte, provavelmente, por pessoas que não faziam parte do círculo daqueles que o seguiram em vida. Estes citam-no na língua grega, que não era a sua primeira língua, e, de qualquer modo, as disparidades existentes entre as nossas fontes demonstram que o estado de conservação das suas palavras e dos seus atos não é perfeito. Possuímos poucas informações sobre ele, para além das obras escritas com intenção laudatória. Atualmente, não estamos bem documentados sobre regiões tão longínquas como a Palestina e os autores das nossas fontes também não o estavam. Não possuíam arquivos ou registos oficiais de qualquer espécie. Nem sequer tinham acesso a mapas. Estas limitações, normais na Antiguidade, resultam num elevado nível de insegurança. 11 Reconhecendo estas e muitas outras dificuldades, os exegetas do Novo Testamento passaram várias décadas - entre 1910 e 1970 - a afirmar que não sabemos nada, ou praticamente nada, sobre o Jesus histórico. O exagero provoca reação e, nas últimas décadas, a nossa confiança em nós mesmos aumentou, aliás, a tal ponto que a literatura exegética recente inclui aquilo que eu considero serem afirmações precipitadas e infundadas sobre Jesus - hipóteses sem provas que as sustentem. Considero o estudo dos Evangelhos um trabalho extremamente difícil. Compreendo os exegetas que desistiram de recolher muitos dados empíricos úteis sobre Jesus. Penso, contudo, também que o trabalho compensa tanto quanto é de esperar quando se trata de investigação da história da Antiguidade. Este livro apresenta as dificuldades e os resultados bastante modestos, que considero simultaneamente fundamentais e relativamente seguros - bastante seguros, tendo em conta os nossos restantes conhecimentos da Palestina antiga, em geral, e das figuras religiosas do judaísmo, em particular. Sabemos muito sobre Jesus, muito mais do que sobre João Baptista, sobre Teudas, sobre Judas, o Galileu, ou sobre qualquer outra das figuras cujos nomes conhecemos e que são, mais ou menos, da mesma época e região. Enquanto escrevia, apercebi-me de que as páginas com o material de introdução se estavam a amontoar. Apesar da minha intenção de as reduzir, elas aumentavam continuamente de rascunho para rascunho. Continuo a pensar que seria desejável que o leitor pudesse chegar mais rapidamente ao cerne da questão, mas julgo que os capítulos introdutórios são necessários. Os conhecimentos dos Evangelhos continuam a estar muito difundidos, mesmo nos nossos tempos secularizados, mas a compreensão dos problemas críticos que estes colocam é mais rara. Detesto dizer que existe uma dificuldade sem explicar de que dificuldade se trata: é a isto que se deve uma grande parte do material. Também descrevi mais pormenorizadamente do que é habitual o cenário político e religioso no qual decorreu a vida de Jesus, porque é muito frequente estes aspetos serem mal apresentados nos livros sobre Jesus, quer sejam da autoria de amadores, quer sejam de profissionais. Fiz, no entanto, algumas economias, sobretudo nas indicações bibliográficas. Evito tanto debates com outros especialistas como notas bibliográficas, remetendo para as minhas obras anteriores, nas quais discuti mais pormenorizadamente tanto as fontes primárias como a 12 literatura secundária. Esforcei-me igualmente por limitar ao mínimo a discussão de termos e expressões estrangeiras. As citações bíblicas, regra geral, seguem a Revised Standard Version, que eu continuo a considerar a tradução inglesa mais satisfatória, embora tenha usado ocasionalmente a Neto Revised Standard Version. Por vezes, modifiquei a tradução, em ordem a ser mais fiel ao fraseado do texto grego. Rebecca Gray leu e comentou dois rascunhos do livro, pelo que lhe estou muito grato. Agradeço igualmente a Frank Crouch, que elaborou um índice das passagens bíblicas, e a Marlena Dare, que o datilografou. Gostaria de agradecer também a Peter Carson e Miranda McAllister, da Penguin Books, pelos conselhos muitíssimo úteis e pela grande paciência, assim como a Donna Poppy, pelo seu trabalho minucioso sobre o texto dactilografado. 13 1. Introdução Numa manhã primaveril, por volta do ano 30 da era cristã, as autoridades romanas executaram três homens na Judeia. Dois eram salteadores - homens que deviam ter sido ladrões ou bandidos, cujo único interesse era o seu próprio proveito, mas que também podiam ter sido insurretos cujo banditismo tinha um objetivo político. O terceiro foi executado como um outro tipo de criminoso político. Não tinha roubado, pilhado, assassinado, nem sequer acumulado armas. Foi condenado, no entanto, com base na acusação de ter afirmado que era «rei dos judeus» - um título político. Aqueles que assistiam - entre os quais se encontravam algumas das mulheres que tinham seguido o terceiro homem - pensavam, certamente, que as suas esperanças de uma «insurreição» bem sucedida tinham sido destruídas e que o mundo quase não daria pelo que tinha acontecido naquela manhã de Primavera. De facto, durante algum tempo - tal como demonstram os vestígios literários da elite do Império Romano -, o mundo quase não registou este acontecimento. É evidente que o terceiro homem, Jesus de Nazaré, acabou por se tornar uma das figuras mais importantes da história da Humanidade. A nossa tarefa consiste em compreender quem foi e o que fez este homem. 15 Não vou tentar explicar por que razão este homem tem sido tão importante ao longo dos séculos subsequentes à sua morte. Isto é uma outra questão que exige o estudo da evolução da teologia cristã nos séculos posteriores à execução de Jesus, sobretudo nos quatro séculos que se lhe seguiram. Jesus tornou-se o centro de uma nova religião e transformou-se numa figura teológica: não só o fundador histórico de ummovimento religioso, mas alguém cuja personalidade e obra constituíram tema do pensamento filosófico e teológico. Durante quase dois mil anos, a maioria dos cristãos considerou os ensinamentos de Jesus e as suas outras atividades na Palestina como algo menos importante do que a sua relação com Deus Pai e do que o significado que Deus atribuiu à sua vida e, sobretudo, à sua morte: a sua morte constituiu um sacrifício pelos pecados do mundo inteiro. Direi um pouco mais sobre o Cristo dos credos cristãos no capítulo x: aqui, gostaria apenas de explicar que este livro constitui uma teologia. Não discutirei aqui nem o que Deus realizou através da vida e morte de Jesus, nem a forma como Jesus participa ou não na Divindade. Abordarei Jesus como um ser humano, que viveu numa determinada época e num determinado local, e procurarei provas e apresentarei explicações - tal como qualquer historiador que escreve sobre uma figura histórica. É óbvio que a teologia desempenhará um papel importante nesta obra num outro sentido. Tanto Jesus como os seus seguidores tinham ideias teológicas. Aqueles que transmitiram e desenvolveram as tradições sobre Jesus, assim como os autores dos Evangelhos, atribuíram-lhe um papel importante na sua compreensão da ação divina no mundo. Mencionarei, por vezes, a teologia dos primeiros cristãos, porque é importante fazê-lo para analisar o que eles escreveram sobre Jesus, e abordarei mais pormenorizadamente a teologia do próprio Jesus, porque isto constitui uma parte essencial da pessoa que ele foi. No entanto, não tentarei harmonizar estas doutrinas teológicas com os dogmas cristãos posteriores. Creio que existe uma continuidade entre aquilo que o próprio Jesus pensava e aquilo que os seus discípulos pensaram depois da sua morte, assim como entre aquilo que estes pensavam e aquilo em que os cristãos dos séculos posteriores acreditavam. Mas também houve alterações e evoluções. Não seguiremos esta história interessante para além da data do último Evangelho, isto é, cerca do ano 80. A teologia do próprio Jesus e as teologias dos seus primeiros seguidores constituem questões históricas, que devem ser exploradas da 16 mesma maneira como se investiga o que Jefferson pensava sobre a liberdade, o que Churchill pensava sobre o movimento operário e sobre as greves de 1910 e de 1911 ou o que Alexandre Magno pensava sobre a reunião dos Gregos e dos Persas num só Império, bem como o que pensavam os seus contemporâneos sobre estes grandes homens. Visto que alguns leitores não estarão habituados a explorar historicamente a vida e o pensamento de Jesus, gostaria de perspetivar o presente trabalho dizendo algumas palavras sobre os outros temas históricos que acabei de mencionar. Eles envolvem graus de dificuldade distintos e requerem a utilização de vários tipos de material. O pensamento de Jefferson sobre a liberdade e o governo representa um tema vasto, que exige um estudo minucioso, mas cujas fontes são excelentes, devido, em parte, à vasta correspondência de Jefferson, a qual foi conservada cuidadosamente.' As medidas que Churchill tomou a respeito da greve dos mineiros, em 1910, e de uma greve dos caminhos de ferro, em 1911, e, sobretudo, as ordens que deu à polícia e ao exército quanto à utilização da força foram bastante discutidas na imprensa da época; além disso, desenvolveram-se opiniões populares que perduraram até aos dias de hoje, embora sejam, frequentemente, incorretas. O historiador tem de examinar cuidadosamente os vários relatos, incluindo os boatos e as bisbilhotices, para determinar com precisão aquilo que Churchill fez e pensou sobre questões que excitaram tão fortemente os ânimos. Segundo parece, uma investigação exaustiva de todos os documentos; tanto públicos quanto privados, ilibam-no, em grande parte, das acusações que lhe são feitas." A questão de saber o que Alexandre Magno pensava sobre as suas conquistas sem precedentes é uma questão por esclarecer, à qual não se pode responder inequivocamente com base nas provas existentes. Sabemos que conquistou o Império persa, que casou com uma princesa persa e que 17 ordenou a alguns dos seus oficiais que casassem com mulheres da nobreza persa. Mas não podemos saber o que ele pensava exatamente. Podemos concluir, genericamente, que o seu objetivo era estabelecer uma espécie de união ou harmonia entre os seus oficiais macedónios e a nobreza persa, mas não podemos dizer com precisão o que ele pretendia. Estas questões assemelham-se todas às questões sobre Jesus num aspeto fundamental: as personagens principais são figuras lendárias. As pessoas falavam sobre elas, transmitiam histórias sobre elas durante o tempo da sua própria vida e, com o passar dos anos, alguns aspec- tos da vida destas figuras foram salientados, enquanto outros foram esquecidos. Quem faz investigação sobre Jefferson ou Churchill dispõe de fontes excelentes que lhe permitem ir para além das lendas e dos boatos. O biógrafo de Jefferson pode apoiar-se numa quantidade imensa de fontes, enquanto o biógrafo de Churchill fica quase imerso em documentação. Descobrir aquilo que Jesus pensava assemelha-se muito mais à investigação sobre o Alexandre histórico. Não se conservou nada que tenha sido escrito pelo próprio Jesus. Os documentos mais ou menos contemporâneos a ele, abstraindo os do Novo Testamento, não esclarecem realmente nada sobre a vida e a morte de Jesus, apesar de revelarem muito sobre o ambiente social e político. As fontes principais do nosso conhecimento do homem Jesus, os Evangelhos no Novo Testamento, têm, para o historiador, o defeito de terem sido escritas por pessoas cujo objetivo era exaltar o seu herói. Contudo, as fontes para Jesus são melhores do que aquelas que se debruçam sobre Alexandre. As biografias de Alexandre originais perderam-se todas e só as conhecemos porque foram utilizadas por autores mais recentes - muito mais recentes." As fontes primárias sobre Jesus foram redigidas numa fase mais próxima da época em que ele viveu e as pessoas que o tinham conhecido ainda estavam vivas. Este é um dos motivos para se dizer que sabemos mais sobre Jesus do que sobre Alexandre. Por um lado, Alexandre alterou tanto a situação política numa grande parte do mundo que os traços fundamentais da sua vida pública são, de facto, bastante conhecidos. Jesus não alterou a situação social, política e 18 económica da Palestina. Mesmo assim - como veremos aprofundadamente mais adiante -, possuímos uma ideia bastante correta sobre o percurso da sua vida exterior e, sobretudo, sobre a sua vida pública. A superioridade das provas existentes sobre Jesus, em comparação com Alexandre, torna-se patente, quando perguntamos o que ele pensava. Os seus discípulos iniciaram um movimento que se baseava, em parte, naquilo que o próprio Jesus tinha pensado e feito. Se conseguirmos descobrir quais são as ideias que eles assumiram de Jesus, saberemos muito sobre o seu pensamento. O estudo minucioso dos Evangelhos permite distinguir frequentemente entre aquilo que se preservou das ideias do próprio Jesus e as opiniões dos seus discípulos, como veremos mais pormenorizadamente adiante. O facto de algumas das nossas fontes serem independentes entre si aumenta a nossa segurança. Em Paulo encontram-se indicações importantes sobre algumas das perspetivas e expectativas de Jesus e as cartas de Paulo foram escritas antes dos Evangelhos. Por outro lado, as suas cartas foram coligidas e publicadas depois de os Evangelhos terem sido redigidos; por conseguinte, Paulo não conhecia os Evangelhos e os autores dos Evangelhos não conheciam as epístolas de Paulo. Mesmo assim, as nossas fontes deixam muito a desejar. Os Evangelhos transmitem palavras e atos de Jesus numa língua que não era a sua (ele ensinou em aramaico e os Evangelhos estão escritos em grego) e colocam cada peça de informação num cenárioimaginado pelos seus discípulos, sendo que se trata habitualmente de discípulos que se encontravam a uma certa distância temporal em relação a ele. Mesmo que soubéssemos que estamos perante as suas próprias palavras, teríamos sempre de recear que ele tivesse sido citado fora de contexto. O historiador que investiga a vida de um grande homem e faz um relato completo das suas descobertas escreverá, quase com certeza, algumas coisas que os admiradores da pessoa em causa prefeririam não ler. As pessoas, cuja imagem de Jefferson foi criada imaginando o carácter do autor da Declaração da Independência, podem ficar chocadas com um estudo sobre a sua vida amorosa e o seu consumo de álcool. Quem pensa em Churchill como o homem que «mobilizou a língua inglesa e a mandou para a guerra» (como se lhe referiu John 19 F. Kennedy), achará menos interessante a descrição de Churchill como representante da política interna. Isto não constitui um aviso de que eu vá revelar algo verdadeiramente chocante sobre Jesus, como uma promiscuidade sexual, por exemplo. Limitar-me-ei ao material empírico que não diz absolutamente nada sobre temas deste género. Se Jesus teve alguma falta séria, não temos possibilidade de a conhecer. Mas também não me limitarei a escrever como ele era simpático, nem ignorarei os aspetos da sua vida e do seu pensamento que os seus admiradores mais fervorosos gostariam de ver desaparecer. Temos de compreender por que motivo provocou controvérsias e porque tinha inimigos. A visão cristã tradicional, segundo a qual os judeus o odiavam porque ele era um homem bom e porque defendia o amor, ao qual eles se opunham, não serve. Esforçar-me-ei por lidar com ele e com os seus contemporâneos de uma forma mais realista. A pesquisa sobre o Jesus da História já tem mais de 200 anos. Nos finais do século XVIII, alguns europeus corajosos começaram a aplicar os métodos da crítica literária e histórica aos livros do Novo Testamento que, até ali, tinham estado fora do seu alcance - eram demasiado sagrados para a investigação laica da Renascença e do Iluminismo. A leitura das descrições de Jesus, escritas neste período de dois séculos por investigadores sérios e empenhados, revela que as conclusões foram extraordinariamente díspares, o que levou muitos a pensar que não sabemos realmente nada. Esta reação é exagerada; sabemos bastante. O problema está em conciliar o nosso conhecimento com as nossas esperanças e aspirações. A importância que Jesus e o movimento que ele iniciou alcançaram posteriormente leva a que queiramos saber tudo sobre ele, especialmente, sobre os seus pensamentos mais íntimos, como, por exemplo, o que pensou de si mesmo. Como já disse, penso que temos bons indícios sobre algumas das ideias de Jesus. No entanto, é, normalmente, ilusório pensar que se tem acesso aos pensamentos íntimos, mesmo que seja de pessoas cuja vida pública está bem documentada. O que pensava Lincoln de facto, no fundo do seu coração, sobre a libertação dos escravos? É uma pergunta difícil, apesar de dispormos de muito material sobre Lincoln, e embora saibamos o que ele 20 fez e com que consequências. Com Jesus, a situação é semelhante, embora a nossa documentação não seja tão completa: conhecemos algumas das coisas que ele fez, uma quantidade razoável sobre o que ensinou e bastante sobre as suas consequências. A partir daí, temos de inferir quais eram os seus pensamentos mais profundos. Não deveríamos ter receio de fazer essas inferências, mas deveríamos reconhecer que elas são menos seguras do que as suas palavras e os seus atos - sobre os quais já é bastante difícil chegar a provas seguras. O objetivo do livro é apresentar, tão claramente quanto possível, aquilo que podemos descobrir recorrendo aos métodos de investigação histórica habituais, assim como fazer uma distinção entre isto e as inferências, classificando-as inequivocamente como tal. A discussão geral dos milagres e da doutrina de Jesus incluirá algumas passagens de cuja fiabilidade duvido (como esclarecerei no lugar devido), mas as provas que eu considero certas controlarão os temas, as categorias e as conclusões. Este objetivo é modesto, mas difícil de cumprir. É frequente os autores gostarem de descrever as dificuldades do seu objeto para despertarem a compaixão dos leitores. Claro que espero ter leitores benévolos, mas também penso que é, realmente, mais difícil escrever livros sobre Jesus do que sobre outras pessoas acerca das quais dispomos de documentação comparável. Já chamei a atenção para o facto de pessoas que se contentam com uma informação geral sobre outras figuras da Antiguidade quererem saber muito mais no caso de Jesus. Põem-se outros problemas específicos. Um deles consiste no facto de as fontes principais, os Evangelhos do Novo Testamento, constituírem uma leitura amplamente divulgada e serem de acesso direto para o público que lê. Isto exige que o autor esclareça com algum detalhe a forma como utiliza as fontes - tarefa que os biógrafos de outras figuras da Antiguidade podem realizar rapidamente ou mesmo omitir. Todos os historiadores têm opiniões sobre as suas fontes, mas, habitualmente, só têm de as explicar a outros investigadores. A discussão dos problemas postos pelas fontes da Antiguidade é quase necessariamente técnica, o que impõe um fardo suplementar aos leitores. Problema mais importante ainda é o de praticamente toda a gente ter a sua própria opinião sobre Jesus e, portanto, ter uma ideia preconcebida sobre aquilo que um livro sobre ele deveria dizer. Salvo raras exceções, estas opiniões são extremamente favoráveis. As pessoas querem estar de acordo com Jesus e isto significa, frequentemente, que o veem concordando com elas. 21 Os ensinamentos éticos de Jesus, em particular, são aplaudidos em quase todos os campos. Os ensinamentos recolhidos no sermão da montanha (Mt 5-7), sobretudo, o mandamento do amor aos seus inimigos e a oferta da outra face, a par das parábolas em Lucas, como, por exemplo, a história do bom samaritano, serviram, muitas vezes, como súmula da verdadeira religião no pensamento dos grandes e famosos, incluindo daqueles que não tinham simpatia por nenhuma ou quase nenhuma religião organizada. Thomas Jefferson rejeitava a ideia de uma igreja estabelecida (quer dizer, de uma religião oficial de Estado); e esta perspetiva foi incluída na Constituição dos Estados Unidos da América. Mas Jefferson foi ainda mais longe: escreveu que tinha «jurado sobre o altar de Deus uma inimizade eterna por qualquer forma de tirania sobre o espírito humano», incluindo, em particular, as doutrinas de muitas confissões cristãs. No entanto, considerava Jesus um «mestre obreiro», cujo «sistema moral foi, provavelmente, o mais benéfico e sublime alguma vez ensinado». Segundo Jefferson, Jesus era «sensível à incorreção das opiniões dos seus antecessores sobre a Divindade e a moral» e «fez tudo para os conduzir aos princípios de um deísmo puro e a noções mais corretas dos atributos de Deus, a fim de reformar as suas doutrinas morais de acordo com as normas da razão, da justiça e da filantropia e para inculcar a fé num estado futuro». Por outras palavras, Jesus era muito parecido com Jefferson. Charles Dickens era mordaz em relação à Igreja vitoriana. Assim, escreveu que, num dia de Outono em Coketown (a cidade fictícia de Disckens, na qual era suposto todos os desastres sociais e económicos da revolução industrial tornarem-se patentes), «as cotovias cantavam, apesar de ser um domingo».'? Dickens debruça-se pormenorizadamente sobre os horrores do domingo numa extensa passagem na sua obra intitulada Little Dorrit. Clennam, uma das personagens do romance, recorda uma legião de domingos passados, «todos eles dias de uma amargura e angústia absurdas». No entanto, o autor estabelece um contraste entre os desconsoladores dias de descanso vitorianos e a «históriabenévola do Novo Testamento», acerca da qual Clennam 22 nunca ouviu falar durante as muitas horas que tinha passado na igreja. u Perto do fim do livro, a heroína insta a dura senhora Clennam a não se agarrar à sua religião vingativa, mas sim a deixar-se apenas guiar por aquele «que curava os doentes, ressuscitava os mortos, o amigo de todos os que sofriam e estavam sobrecarregados, o bom Mestre que derramou lágrimas de compaixão pelas nossas fraquezas». O desagrado de Dickens em relação aos domingos não se estendia a Jesus. Os domingos em Coketown poderiam ser sombrios, mas o verdadeiro problema era que os homens que mandavam, como, por exemplo, o senhor Gradgrind, pensavam que o «bom samaritano» era um «mau economista.» Winston Churchill, embora não tivesse nada contra o cristianismo oficial, tinha a mesma opinião sobre Jesus. Segundo um cronista, numa longa conversa com Harry Hopkins e outros, em 1941, Churchil ventilou a questão da tarefa de reconstrução do mundo quando a Guerra acabasse, finalmente. «Não podíamos encontrar um fundamento melhor do que a ética cristã e quanto mais seguirmos o sermão da montanha, tanto mais probabilidade teremos de ser bem sucedidos nos nossos esforços.» Onze anos mais tarde, Churchill continuava a ver no sermão da montanha «a última palavra em matéria de ética.» O facto de Jesus gozar de uma aprovação tão generalizada prova que os autores dos Evangelhos cumpriram bem a sua tarefa. Eles pretendiam que as pessoas se convertessem a ele, que o admirassem e acreditassem que ele tinha sido enviado por Deus e que segui-lo levaria à vida eterna. Raramente as expectativas foram cumpridas de forma tão total. Na perspetiva dos autores, a admiração por Jesus e a fé nele iam a par. Mateus e Lucas (aos quais devemos o sermão da montanha e a parábola do bom samaritano) não teriam gostado que os ensinamentos de Jesus fossem separados da própria convicção teológica, que eles próprios possuíam de que Deus o tinha enviado para salvar o mundo. Apesar disso, a forma como construíram os seus livros permite ao leitor escolher aquilo que lhe agrada e foi isso que muitos leitores 23 fizeram, admirando Jesus, mas discordando da teologia cristã. Nestes casos, alguns dos objetivos dos evangelistas foram alcançados. É destino do historiador ser a pessoa que submete os Evangelhos a um tratamento severo. Ele pode aderir ou não à teologia dos Evangelhos, isto é, à ideia de que Deus atuou através de Jesus. Seja como for, tem de ter consciência de que os autores tinham convicções teológicas e de que é provável que tenham revisto os seus relatos para que estes apoiassem as suas convicções. O historiador também tem de suspeitar que a doutrina ética que impressionou tanto o mundo tenha sido acrescentada através da sua utilização homilética e dos aperfeiçoamentos redaccionais ocorridos entre o tempo de Jesus e o surgimento dos Evangelhos. Independentemente destas suspeitas, o historiador tem a obrigação profissional de submeter as fontes a um interrogatório cruzado rigoroso: «Tu afirmas que "todos os habitantes de Jerusalém" foram ouvir João Baptista (Mc 1,5) e que Jesus curou "todas as doenças e todos os males" (Mt 4,2.3). Eu digo-te que estás a exagerar muitíssimo.» É óbvio que, nestas duas passagens, o historiador não observa senão exageros de retórica. Mas é necessário colocar outras questões: «Tu afirmas que os seus inimigos eram astuciosos e cheios de maldade. Eu digo-te que alguns eram sinceros, honestos e piedosos e que, por isso, o conflito não se reduzia a um esquema a preto e branco, como se fosse um western:» E o exame continua ao longo de todo o relato. Portanto, ao contrário dos políticos, romancistas ou moralistas, o historiador não pode limitar-se a escolher aquelas partes do Evangelho que testemunham nobreza e que podem servir de inspiração a outros. O historiador escolhe, mas com base em critérios diferentes: o que pode ser provado, o que não pode, o que está entre uma coisa e outra? O livro tem a seguinte estrutura: nos próximos cinco capítulos apresento mais material introdutório. O capítulo 2 constitui um esboço preliminar da vida e da época de Jesus; o capítulo .3 consiste numa breve apresentação da situação política que se vivia na Palestina no século I; o capítulo 4 consta de algumas questões fundamentais sobre o Judaísmo como religião; nos capítulos 5 e 6 são debatidos alguns dos problemas inerentes às nossas fontes. O cerne do livro é constituído pelos capítulos nos quais se procura proceder a uma reconstrução histórica daquilo que Jesus fez e ensinou, dos seus conflitos com outros e da sua morte. No epílogo, faço uma reflexão sobre as narrativas da sua ressurreição. 24 2. Esboço da vida de Jesus Tal como acabei de mencionar, temos de estudar muito material introdutório, antes de podermos iniciar uma exploração pormenorizada da atividade e da mensagem de Jesus. Teremos de descrever o mundo político e religioso no qual Jesus nasceu, assim como a natureza dos problemas e das nossas fontes. No entanto, pode ser útil começar com um breve resumo da vida de Jesus, o qual pode servir, em parte, como um enquadramento, e por outra parte, como um ponto de partida para uma apresentação mais completa. Acrescentarei um parágrafo sobre a forma como os discípulos encararam retrospetivamente a vida de Jesus; apesar de tal não constituir o tema do livro, é necessário têrmo-lo em conta. Não existem dúvidas substanciais sobre o curso geral da vida de Jesus: quando e onde viveu, quando e onde morreu, aproximadamente, e o que fez durante a sua atividade pública. Quando começamos a investigar mais a fundo, surgem dificuldades e incertezas, mas, por agora, ficaremos à superfície. Começarei por apresentar uma lista de afirmações sobre Jesus que cumprem dois critérios: são praticamente indiscutíveis e dizem respeito ao enquadramento da sua vida, especialmente à sua vida pública. (Se fizéssemos uma lista de todas as informações sobre Jesus que possuímos, ela seria consideravelmente mais longa.) 25 Jesus nasceu aproximadamente no ano 4 a.e.c., por volta da data da morte de Herodes Magno; passou a sua infância e os seus primeiros anos de adulto em Nazaré, uma aldeia na Galileia; foi batizado por João Baptista; reuniu discípulos à sua volta; ensinou em pequenas cidades, aldeias e na região rural da Galileia (ao que parece, não nas grandes cidades); anunciou o «Reino de Deus»; por volta do ano 30, foi a Jerusalém, para a festa da Páscoa; causou distúrbios no recinto do Templo; tomou uma última refeição com os seus discípulos; foi preso e interrogado pelas autoridades judaicas, mais precisamente, pelo sumo sacerdote; foi executado por ordem do prefeito romano, Pôncio Pilatos. Podemos acrescentar aqui uma pequena lista de factos igualmente seguros sobre os acontecimentos que se seguiram à sua morte: Os seus discípulos começaram por fugir; viram-no (não se sabe, em que sentido, ao certo) após a sua morte; por consequência, acreditaram que ele voltaria para instaurar o Reino; criaram uma comunidade para aguardar o seu regresso e procuraram persuadir os outros a acreditar nele como Messias enviado por Deus. A maior parte dos pontos nesta lista será discutida ao pormenor mais adiante. Gostaria agora de completar o esboço com um breve resumo sob a forma de narrativa. Não se sabe exatamente qual o ano do nascimento de Jesus. Voltaremos mais tarde às narrativas do nascimento em Mateus e Lucas, no entanto, gostaria de fazer aqui algumas observações sobre a data. A maioria dos investigadores - entre os quais também eu me encontro - considera decisivo o facto de Mateus concatenar a data do nascimento de Jesus com a morte de Herodes Magno. Herodes morreu no ano 4 a.e.c.; portanto, Jesus nasceu nesse ano ou pouco tempo antes; alguns investigadores preferem o ano 5, 6 ou, até, 7 a.e.c.O facto de Jesus ter nascido alguns anos antes do início da era que começa com o seu nascimento constitui uma das pequenas curiosidades 26 da história. Nesta obra, utilizo as letras a.e.c. para significarem «antes da era comum» e e.c. para significar «era comum». («Comum» que dizer aceite por todos, incluindo os não-cristãos.) As abreviaturas tradicionais, contudo, são a. C. («antes de Cristo») e d. C. (depois de Cristo»). Estas letras dividem a história entre os anos antes e depois de Jesus ter nascido. Mas, então, como é que ele poderia ter nascido no ano 4 a. C. (ou a.e.c.)? No século VI, um monge cítico, que vivia em Roma, chamado Dionísio Exíguo, introduziu um calendário litúrgico que contava os anos «a partir da encarnação» (nascimento de Jesus) e não de acordo com o sistema estabelecido pelo imperador romano Diacleciano, um pagão. No entanto, os conhecimentos de que Dionísio dispunha eram limitados. Não conseguiu fixar com exatidão nem a data da morte de Herodes (Mt 2), nem a do censo de Quirino (Lc 2), parecendo ter feito um cálculo baseado numa outra informação dada por Lucas: João Baptista, o precursor de Jesus, começou a pregar no décimo quinto ano do império de Tibério (Lc 3,1); Jesus tinha cerca de trinta anos quando começou a ensinar (Lc 3,23). O décimo quinto ano do império de Tibério foi (segundo o calendário atual) o ano 29 e.c.; ao atribuir o espaço de um ano à missão de João Baptista, Dionísio Exíguo concluiu que Jesus tinha iniciado o seu ministério no ano 30 e.c. Se Jesus tinha precisamente trinta anos naquela altura, então é porque nasceu no ano 1. Este deve ter sido o raciocínio que levou ao nosso calendário atual. 1 Os investigadores da atualidade consideram que a idade de Jesus, indicada em Lucas 3,23, constitui um número redondo e que tanto Lucas como Mateus, colocam o início da história no «tempo do reinado de Herodes» (Lc 1,5). Tal como já referi, esta parece ser a prova mais segura no que diz respeito à data de nascimento de Jesus. No entanto, o calendário baseado nos cálculos de Dionísio, nos quais o ano de morte de Herodes não desempenha qualquer papel, ganhou o apoio geral no século VI e nos séculos seguintes, pelo que, atualmente, os investigadores colocam o nascimento de Jesus alguns anos «antes de Cristo». Jesus viveu com os seus pais, em Nazaré, uma aldeia da Galileia. O governador da Galileia durante praticamente todo o tempo da vida 27 de Jesus (exceto nos primeiros anos, quando Herodes Magno ainda era vivo) era um dos herdeiros de Herodes Magno, Antipas. É muitíssimo provável que a atividade de ensinamento de Jesus, à exceção das últimas duas ou três semanas, tenha decorrido praticamente toda na Galileia de Antipas." Jesus não era um citadino. As grandes cidades na Galileia - Séforis, Tiberíades e Citopólis (Beth-Shean, em hebraico) - não aparecem nos relatos sobre a sua vida pública:" Ele conhecia, seguramente, a cidade de Séforis, que ficava apenas a alguns quilómetros de Nazaré; apesar disso, parece ter considerado que a sua missão se adequava mais aos judeus nas aldeias e nas pequenas cidades da Galileia. A própria Nazaré era uma aldeia bastante pequena. Situava-se numa região montanhosa, longe do mar da Galileia, mas Jesus ensinava principalmente nas aldeias e nas pequenas cidades junto ao mar. Alguns dos seus seguidores eram pescadores. Nos ensinamentos que lhe são atribuídos encontram-se, com bastante frequência, imagens da vida rural. Jesus era ainda um jovem, provavelmente, perto dos trinta anos, quando João Baptista começou a pregar na Galileia ou nos arredores. Este anunciava a necessidade urgente de arrependimento face ao juízo que se aproximava. Jesus ouviu João e sentiu-se chamado a aceitar o seu batismo. Os quatros Evangelhos apontam todos estes acontecimentos como algo que mudou a vida de Jesus. Segundo a descrição de Marcos, Jesus «viu os céus abrirem-se e o Espírito descer sobre ele, como uma pomba; ele ouviu também uma voz que disse: «Tu és o meu Filho amado» (Mc 1,9-11). Antipas prendeu João porque este (segundo os Evangelhos) criticava o seu matrimónio com Herodíade ou porque (segundo Josefo) receava que a pregação do Baptista levasse à insurreição - ou por causa de ambas as coisas. Jesus começou a sua vida pública mais ou menos por essa altura. Enquanto João tinha pregado fora das povoações, Jesus andava de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, pregando, 28 na maior parte das vezes, nas sinagogas, ao sábado. Reuniu à sua volta um pequeno número de pessoas para serem seus discípulos e eles acompanhavam-no nas suas viagens. Ao contrário de João, Jesus não só pregava como também curava os doentes. Ganhou fama e as pessoas insistiam em vê-lo. Depressa teve, também ele, de pregar ao ar livre, por causa das multidões. Não sabemos quanto tempo durou este ministério itinerante, mas, ao que parece, deve ter sido apenas um ou talvez dois anos. Depois de pregar e curar na Galileia durante esse período de tempo, Jesus foi passar a Páscoa a Jerusalém com os seus discípulos e outros seguidores. Jerusalém era na Judeia, que, ao contrário da Galileia, era uma província romana. Jerusalém, em si, era governada pelo sumo sacerdote dos judeus, que estava subordinado a um prefeito romano. Jesus entrou de burro na cidade e algumas pessoas aclamaram-no como «filho de David»." Quando foi ao Templo, agrediu os cambistas e os vendedores de pombas. O sumo sacerdote e os seus conselheiros decidiram que Jesus era perigoso e que tinha de morrer. Depois da ceia pascal com os seus discípulos, Jesus afastou-se para rezar. Um dos seus discípulos traiu- o e os guardas do sumo sacerdote prenderam-no. Foi julgado num simulacro de processo e entregue ao prefeito romano com a recomendação de ser executado. Após um breve interrogatório, o prefeito ordenou a sua execução. Foi crucificado como agitador juntamente com outros dois. Jesus morreu depois de um período de sofrimento relativamente curto. Alguns dos seus seguidores colocaram-no num túmulo. Segundo alguns relatos, quando voltaram, dois dias depois, para ungir o seu corpo, encontraram o túmulo vazio. Depois, os seus seguidores viram- - no. Estas experiências da ressurreição convenceram-nos de que Jesus regressaria e que Deus tinha agido na vida e morte de Jesus para salvar a humanidade. Os discípulos começaram à. persuadir outras pessoas a acreditar em Jesus. Atribuíram-lhe vários títulos, incluindo «Ungido» («Messias, em hebraico, e «Cristo», em grego, «Senhor» e «Filho de Deus»). Estes títulos revelam que, à medida que o tempo foi passando, os discípulos de Jesus e os que estes converteram desenvolveram várias perspetivas acerca da relação de Jesus com Deus, bem 29 como do seu significado no plano de Deus para Israel e para o mundo. O movimento deles acabou por se separar do judaísmo e tornou-se a Igreja cristã. No entanto, quando os Evangelhos foram escritos, a cristologia (explicação teológica da pessoa e da obra de Jesus) ainda estava numa fase embrionária e a separação entre o cristianismo e o judaísmo ainda não era completa. Volto a dizer: cada frase deste esboço exige uma explicação e nós iremos investigar mais detalhadamente a maior parte destes pontos. Agora, temos de fazer um enquadramento, descrevendo a situação política e religiosa na Palestina daquela época e, depois, examinando as fontes das nossas informações sobre Jesus. 30 3. Situação política Quando Jesus nasceu, o Mediterrâneo oriental estava dominado por Roma. A sua execução foi ordenada por um administrador romano. No entanto, durante a maior parte da sua vida não esteve sujeito ao poder direto das autoridades romanas. Vamos examinar o ambiente político, no qual ele viveu e trabalhou, visto que temos de saber quem tinha poder sobre vários aspetos da vida nas diversas regiões da Palestina. No final dos anos vinte e no início dos anos trinta,havia uma tripartição do poder. Herodes Antipas era o tetrarca da Galileia e de Pereia, Pôncio Pilatos era o prefeito da Judeia e da Idumeia (que, naquela época, englobava três zonas geográficas (Samaria, Judeia e Idumeia) e José Caifás era o sumo sacerdote em Jerusalém. Esta divisão é mais fácil de compreender se começarmos com um breve resumo da história política que esteve na sua origem. Mas, primeiro, vou apresentar o homem a cujos escritos devemos a maior parte dos nossos conhecimentos sobre a Palestina na época de Jesus. Josefo, filho de Matatias, nasceu no ano 37 e.c., pouco tempo depois da execução de Jesus, numa família aristocrática de sacerdotes. Josefo era um grande conhecedor da lei e da história bíblicas, tendo estudado, também pormenorizadamente, os partidos religiosos mais importantes 31 da sua época (os essénios, os saduceus e os fariseus). Era promissor e ainda um jovem quando foi mandado a Roma para persuadir Nero a libertar alguns reféns judeus. Quando a revolta contra Roma eclodiu, em 66 e.c., foi-lhe entregue o comando da Galileia, apesar de ter apenas vinte e nove anos de idade. As suas tropas foram derrotadas, mas ele sobreviveu à derrota, graças à sorte e à habilidade. Teceu elogios ao general romano vitorioso, Vespasiano, vaticinando que ele haveria de se tornar imperador. Quando isso aconteceu, em 69, Josefo subiu na vida. O filho de Vespasiano, Tito, que ganhou a guerra contra os judeus, utilizou Josefo como intérprete e porta-voz para os judeus que defendiam Jerusalém. Depois da guerra, Tito levou Josefo consigo para Roma, onde lhe ofereceu casa e uma pensão. Josefo escreveu a história da guerra (Guerra judaica). Esta foi publicada nos anos setenta. Mais tarde, escreveu uma grande história dos judeus (Antiguidades Judaicas) que publicou nos anos noventa. Escreveu também uma defesa do Judaísmo contra os seus críticos (Contra Apion) e uma Vida apologética. Era um bom historiador, para os critérios da época, e dispunha de fontes exce- lentes para algumas partes das suas narrativas históricas. As exposições históricas que se seguem baseiam-se, em grande medida, em Josefo, visto que ele constitui a nossa única fonte para grande parte delas. Roma constituía o sucedâneo dos impérios anteriores: o persa, o de Alexandre Magno, e os vários impérios helenísticos que se seguiram a este." Apesar de os impérios terem surgido e desaparecido, os seus sistemas não se alteraram muito. Os povos subjugados pagavam tributo ao imperador; em contrapartida, eram protegidos das invasões e era-lhes permitido viver em paz - se estivessem dispostos a fazê-lo. Por vezes, os estados subjugados eram governados por autoridades locais «independentes», outras vezes, por um governador do império, que recorria às autoridades locais para a administração do dia-a-dia. Existem várias 32 situações análogas na história moderna. Nos impérios coloniais do século XVIII e XIX, as potências colonizadoras nomeavam um governador e estacionavam tropas no país, mas utilizavam, em certa medida, nativos na administração e na polícia; estes serviam, por vezes, como intermediários entre o governo e a população." A União Soviética recorreu a uma forma alternativa de governo imperial depois da Segunda Guerra Mundial. Estabelecia governos «independentes» nos países da Europa Oriental e só intervinha com as suas próprias tropas quando havia uma insurreição grave ou uma ameaça efetiva ao seu poder hegemónico. Entre o século VI e meados do século II a.e.c, os judeus da Palestina constituíam uma nação muito pequena no interior de um dos grandes impérios, um povo cujo território se limitava às montanhas da Judeia, sem qualquer acesso ao mar e fora das grandes rotas de comércio. Era governado pelo sumo sacerdote e o seu conselho, que deviam prestar contas ao governador do Império ou diretamente à capital do mesmo. Neste período de cerca de 400 anos, não existiram quaisquer conflitos substanciais entre a Judeia e o poder imperial. Os judeus viviam pacifi- camente sob o governo dos monarcas persas e helenistas. A partir do ano 175 a.e.c., com a subida de Antíoco IV Epifânio ao trono do império selêucida, a situação começou a alterar-se. Alguns dos sacerdotes aristocráticos em Jerusalém queriam adoptar um estilo de vida mais helenista, incluindo a introdução de um gymnasion, uma das principais instituições da civilização grega. O gymnasion educava rapazinhos e jovens e uma parte da educação consistia em exercícios físicos a nu. Isto tornou patente uma diferença fundamental entre a cultura helenista e a judaica: os judeus do sexo masculino eram circuncidados, em sinal da aliança feita entre Deus e Abraão (Gn 17), enquanto os 33 gregos, que acreditavam numa mente sã em corpo são, abominavam a circuncisão como mutilação. Alguns judeus submeteram-se a uma operação para disfarçar a sua circuncisão (1 Mac, 1, 14 e segs.). Estes passos extremos provocaram uma reação. Os judeus não se opunham a todas as formas de influência estrangeira. Assumiram numerosos aspetos da religião e da cultura persa durante o período deste império e, em 175, também já tinham aceite alguns aspetos do helenismo. Mas o gymnasion ia longe de mais, porque levava à remoção da circuncisão, o símbolo da aliança. Prescindimos de uma descrição pormenorizada dos acontecimentos que se seguiram. A resistência judaica levou à tomada de medidas coercivas por parte de Antíoco, para impor a helenização dos judeus. O Templo em Jerusalém foi profanado por sacrifícios pagãos, os judeus foram obrigados a fazer sacrifícios aos deuses pagãos e alguns judeus foram obrigados a comer carne de porco, assim como a transgredir a Lei de outras maneiras. Isto levou, por sua vez, a uma revolta liderada pelos Asmoneus, uma família de sacerdotes, também conhecidos pelo nome de «Macabeus», por causa de uma alcunha dada a um dos irmãos que liderou a insurreição. O movimento dos Asmoneus acabou por ser bem sucedido, tendo contado, para tanto, com a grande ajuda das guerras de sucessão no império selêucida, após a morte de Antíoco IV. Os Asmoneus fundaram uma nova dinastia. Governavam a Palestina judaica como sumos sacerdotes e acabaram por assumir o título real. O Estado judaico totalmente independente durou cerca de 100 anos, tempo durante o qual os reis sacerdotais Asmoneus aumentaram consideravelmente o seu território, até este acabar por ter aproximadamente a mesma dimensão do reino de David. Os conflitos internos entre dois irmãos da família dos Asmoneus, Hircano II e Aristóbulo II, puseram fim à independência judaica. Durante a sua luta pelo poder, ambos apelaram à ajuda do general romano Pompeu. Ele respondeu, conquistando Jerusalém e separando uma parte do território recém-conquistado (63 a.e.c.). Nomeou Hircano II sumo sacerdote e «etnarca» («regente da nação», um grau inferior ao de rei); além disso, empossou um idumeu, chamado Antipatro, como uma espécie de governador militar. Em seguida, Antipatro nomeou dois dos seus 34 filhos, Fasael e Herodes (que seria conhecido, mais tarde, por Herodes Magno) para governadores da Judeia e da Galileia, respetivamente. A invasão de Pompeu alterou a posição do governo judaico. Este deixou de ser completamente independente para passar a ser semi-independente. Hircano II tornou-se soberano vassalo. Pagava tributo a Roma e era obrigado a apoiar a política e as ações militares dos romanos no Mediterrâneo oriental. Em contrapartida, gozava de autonomia no seu território; Roma assumiu a obrigação tácita de o proteger e de o manter na sua posição. Aristóbulo II não estava satisfeito com este regime. Ele e o seu filho Antígono revoltaram-se. Aristóbulo foi assassinado por amigos de Pompeu, mas o seu filho prosseguiu a luta, aliando-se aos Partos, a principal ameaça militar contra Roma naquela época. No ano 40 a.e.c., os Partos esmagaram o Médio Oriente,prenderam Hircano II e Fasael e empossaram Antígono como rei e sumo sacerdote. Herodes fugiu e conseguiu chegar a Roma. Foi nomeado rei da Judeia pelo Senado romano, com o apoio de Marco António e de Octaviano (que viria a ser chamado Augusto); além disso, recebeu o apoio das tropas romanas para reclamar o seu direito ao trono. Herodes foi escolhido porque era forte, um soldado excelente e leal a Roma; no entanto, a sua nomeação também estava em consonância com a política do Império Romano. Herodes tinha sido um apoiante de Hircano lI, a primeira escolha de Roma. Ao nomearem Herodes e ao apoiarem-no militarmente, os romanos apoiavam o seu protegido, opondo-se ao partido de Aristóbulo II e Antígono, que se aliou, ele próprio, ao adversário de Roma. Herodes venceu a guerra civil com a ajuda das tropas romanas. O rei vitorioso mandou Antígono a Marco António, que o mandou executar. No ano 37, Herodes restabeleceu a Palestina judaica como «estado independente» - melhor, como um reino vassalo semi-independente. A ênfase que coloquei na relativa independência da Palestina judaica deve-se ao facto de os investigadores do Novo Testamento, em particular, pensarem que Roma «dominava» ou «ocupava» a Palestina no tempo de Jesus, com soldados romanos em cada esquina. A situação variou de época para época e de local para local (como veremos), mas, em geral, Roma governava à distância, contentando-se com a cobrança do tributo e com a preservação de fronteiras estáveis, 35 a maior parte das vezes, mesmo a execução destas tarefas era deixada aos governadores e líderes locais leais a Roma. Herodes e a sua família eram idumeus, originários de uma região no sul da Judeia, que tinha sido conquistada pelos judeus com a força das armas durante o tempo dos Asmoneus. Muitos judeus consideravam-no só meio-judeu e tinham uma atitude de ressentimento em relação ao seu governo. Além disso, ele tinha suplantado a família dos Asmoneus, que, embora estivesse parcialmente desacreditada devido a conflitos internos, continuava a contar com a fidelidade de uma grande parte da população. Herodes casou com Mariamne, uma princesa Asmoneia, mas sabia que isto não era suficiente para ser amado pelo povo. Receava uma revolta e, ao longo dos anos, foi eliminando os membros que restavam da família dos Asmoneus, incluindo Mariamne e os dois filhos que teve dela. Depois de ter conquistado a Palestina, dominou-a com mão forte, até à sua morte, 33 anos depois. As tropas romanas, que o tinham ajudado na conquista, retiraram-se para outras regiões e Herodes era senhor absoluto na sua própria casa. É claro que não podia agir contra os inte- resses romanos: Augusto tinha a última palavra nas questões decisivas; mas, nas restantes, Herodes governava o seu reino como lhe apetecia. Lançou-se em grandes projetos de construção que empregaram dezenas de milhares de trabalhadores, promoveu o negócio e aumentou a prosperidade das terras reais. Esmagou impiedosamente qualquer oposição, nem que fossem protestos mínimos. No fim da sua vida mandou executar três dos seus filhos por ter suspeitado que eles eram traidores. Augusto, que aprovou o julgamento dos primeiros dois filhos, comentou que preferia ser o porco de Herodes do que o seu filho", Herodes seguia a Lei judaica com bastante rigor e não comia carne de porco. Tudo somado, Herodes era um bom rei. Não quero com isto dizer que lhe devêssemos conceder a nossa aprovação moral, mas que as suas fraquezas, para os critérios daquele tempo, não eram demasiado graves, sendo, em parte, compensadas por qualidades mais positivas. 36 Os ideais que motivam as democracias modernas ainda não tinham surgido. Em comparação com Augusto, um dos seus patronos, Herodes era desnecessariamente cruel e de visões curtas. No entanto, se o compararmos com os quatro imperadores romanos que se seguiram a Augusto (Tibério, Calígula, Cláudio e Nero), ele parece quase benévolo e misericordioso e era mais eficaz como governador. O que o distingue como um bom rei é o facto de ter aumentado a importância da Palestina no mundo, de ter prosseguido a política do seu pai no sentido da obtenção de benefícios para os judeus fora da Palestina, de não ter permitido que estalasse a guerra civil, que tinha deteriorado a situação no tempo dos Asmoneus e que haveria de se reacender na insurreição contra Roma e de, mais importante ainda, ter mantido os cidadãos judeus à distância dos soldados romanos. Enquanto a Palestina judaica fosse estável e forte, Roma deixava-a em paz. Quando Herodes morreu, no ano 4 a.e.c., Augusto analisou os testamentos que ele tinha deixado (eram dois) e decidiu dividir o reino entre três filhos. Arquelau recebeu o título de «etnarca» e foi nomeado governador da Judeia, Samaria e Idumeia. Antipas e Filipe foram nomeados «tetrarcas», «governadores de um quarto»; Antipas herdou a Galileia e a Pereia, enquanto Filipe recebeu as regiões mais remotas do reino de Herodes. Antipas revelou-se um vassalo fiel e governou a Galileia durante quarenta e três anos, até 39 e.c. Arquelau teve menos sorte; os seus súbditos protestaram contra algumas das suas medidas e Roma deu-lhes razão, destituindo-o e exilando-o (6 e.c.). Augusto nomeou, então, um funcionário romano para governar a Judeia, a Samaria e a Idumeia. Herodes fundou uma pequena dinastia e, ao que parece, os seus sucessores assumiram - ou, melhor, foi-lhes atribuído - o seu próprio nome. Tal como os sucessores de Júlio César se chamaram «César», os sucessores de Herodes receberam o nome de «Herodes». Em consequência disto, no Novo Testamento, há várias pessoas chamadas Herodes. A nota identifica os vários «Herodes» do Novo Testamento. Designarei sempre os filhos e os netos de Herodes pelos seus nomes próprios. 37 O governo da Galileia no tempo de Jesus Na Galileia do tempo de Jesus (entre 4 a.e.c. e 30 e.c., aproximadamente), a situação política era a mesma que tinha existido antes da morte de Herodes. Antipas governava a Galileia como o seu pai tinha governado um estado muito maior e governava-a nos mesmos termos e condições: pagava tributo, colaborava com Roma e mantinha a ordem pública. Em contrapartida, Roma protegia-o de invasões, não através do estacionamento de tropas no país ou nas fronteiras, mas pela ameaça implícita de retaliação contra os invasores. Antipas podia fazer o que quisesse no seu território, desde que os requisitos básicos fossem cumpridos. Por exemplo, cunhava as suas próprias moedas - um dos principais sinais de «independência». Tal como o seu pai, também Antipas era bastante cumpridor da Lei judaica. Mandou decorar o seu palácio com figuras de animais, o que muitos judeus consideravam uma transgressão ao mandamento que proibia os ídolos. Provavelmente, ele era de opinião que o seu palácio era um assunto da sua conta. No entanto, as suas moedas só tinham símbolos agrícolas, o que os judeus consideravam aceitável. Não existem indicações em nenhuma fonte de que ele tivesse tentado impor à população judaica costumes e instituições greco-romanas. As instituições nas cidades rurais e nas aldeias da Galileia eram completamente judaicas. É possível concluir dos Evangelhos que existiam sinagogas em todas as pequenas cidades e aldeias. As escolas eram judaicas e eram juízes judeus que julgavam os casos segundo a Lei judaica. Se Herodes foi um bom rei, em geral, Antipas foi um bom tetrarca. Correspondeu às exigências mais importantes de uma governação bem sucedida. Da perspetiva romana, isto significava que pagava tributo, não permitia perturbações à ordem e defendia as 38 suas fronteiras (referir-nos-emos mais adiante a uma exceção a este último ponto). Assim, Roma não precisava de intervir na Galileia e Antipas impedia que os cidadãos judaicos e os soldados romanos entrassem em conflito. Josefo não regista nenhum caso no qual Antipas tivessesido obrigado a recorrer à força para reprimir um levantamento. O facto de a população judia tolerar bastante bem o seu governante revela, provavelmente, duas coisas. Por um lado, que Antipas desprezava publicamente a Lei judaica. No entanto, o único exemplo de uma infração semipública da Lei, a decoração do seu palácio, teve repercussões anos depois da destituição de Antipas. Durante a insurreição contra Roma, a turba judia destruiu o palácio por causa da sua decoração. Podemos concluir daqui que muitos dos súbditos de Antipas o desaprovavam enquanto estava no poder e pensavam que ele não era um judeu suficientemente devoto, mas não se insurgiram contra ele. O facto de não ter existido qualquer insurreição também revela que Antipas não era excessivamente repressivo e que não cobrava impostos excessivamente altos (isto é, que estes não eram exorbitantes para os critérios da época). Além disso, Antipas, tal como o seu pai, empreendeu grandes projetos de construção que contribuíram para reduzir o desemprego. Os galileus no tempo de Jesus não tinham a sensação de que as coisas que lhes eram queridas estivessem seriamente ameaçadas: a sua religião, as suas tradições populares e a sua subsistência. Governantes como os herodianos tinham de pensar sobre a melhor forma de manter a ordem pública. Não precisavam de procurar a popularidade, embora alguns o tenham feito. O que era necessário era que avaliassem com prudência o que a população suportaria. Por exemplo, queriam cobrar tantos impostos quanto possível, mas não queriam uma revolta por causa dos impostos. Todos os governantes da Antiguidade sabiam que, quando surgia um conflito público, umas vezes, deviam acalmar a população e, outras, discipliná-la. Arquelau não conseguiu encontrar o equilíbrio entre ambas as coisas na Judeia. O tetrarca da Galileia teve um reinado pacífico e longo, em parte, porque a Galileia era menos difícil de governar e, por outra parte, porque era mais prudente do que Arquelau. 39 Antipas cometeu, no entanto, um grande erro. Como a história envolve João Baptista, que batizou Jesus, e ilustra Antipas como um governante-vassalo «independente», vamos analisá-la. Antipas apaixonou-se por Herodíade, a sua meia-sobrinha que já era casada com um outro tio seu, um dos meios-irmãos de Antipas. (Os herodianos casavam frequentemente entre si. Herodes tinha dez mulheres, pelo que tinha muitos filhos, que tinham imensas possibilidades de estabelecer relações de meios-irmãos. O casamento entre tio e sobrinha é permitido na Bíblia hebraica.) Para poder fazer de Herodíade a sua nova esposa, Antipas planeava repudiar a sua esposa anterior. Ela fugiu para casa do seu pai, um rei árabe de nome Aretas. Este ficou furioso e invadiu o território de Antipas, causando-lhe uma pesada derrota, antes de se retirar novamente. Aretas não se confrontou com tropas romanas, mas sim com o exército pessoal de Antipas, Roma recorreu, mais tarde, às suas tropas estacionadas na Síria para retaliar o ataque contra o seu vassalo. Tanto o Novo Testamento como Josefo associam estes acontecimentos a João Baptista. De acordo com o Evangelho de Marcos 6, 17-'29, João tinha criticado Antipas publicamente por este ter casado com a mulher do seu irmão, o que levou à sua execução. Segundo Josefo, Antipas receava que João, que tinha muitos seguidores, incitasse uma revolta, pelo que mandou executá-lo. Eram muitos aqueles que consideravam que João era um profeta e a população viu na derrota que Antipas sofreu, na batalha contra Aretas, o castigo de Deus pelo facto de o tetrarca ter mandado executar João Baptista.! Por volta do ano 39 e.c., anos depois da morte de Jesus, a ambição de Herodíade provocou a queda de Antipas. Não estava satisfeita com a posição de tetrarca ocupada por Antipas e queria que ele obtivesse o título de rei. Antipas foi a Roma para exigir esta promoção. Mas havia acusações contra ele. Foi considerado culpado de armazenar armamento e foi deposto. Foi para o exílio, juntamente com Herodíade. 40 A Judeia no tempo de Jesus A Judeia - unidade política composta naquela época por três regiões geográficas, a Samaria, a Judeia (incluindo Jerusalém) e a Idumeia - passou por uma história completamente diferente no tempo de Jesus. Arquelau teve sérias dificuldades com o povo por causa de algumas atitudes que o seu pai, Herodes, tomou no fim da sua vida (este mandou executar dois mestres que eram muito estimados e nomeou um sumo sacerdote impopular). Arquelau não tratou do assunto de forma hábil. É possível que as suas tentativas de apaziguar a multidão tenham sido desadequadas e que os seus esforços para reprimir a insatisfação não tenham sido suficientemente severos. Seja como for, os protestos públicos acabaram por levar os romanos a demiti-lo. É necessário dizer, para lhe fazer justiça, que esta parte da Palestina era mais difícil de governar do que o território de Antipas, uma vez que incluía Jerusalém e Samaria. Os judeus reagiam com muita sensibilidade ao que acontecia em Jerusalém; além disso, as grandes concentrações que ali ocorriam por ocasião das festas religiosas criavam condições favoráveis à eclosão fácil de distúrbios. Havia uma grande hostilidade entre os judeus e os samaritanos, o que também provocava conflitos. Quando Augusto decidiu que Arquelau não era um vassalo satisfatório como governador da Judeia, em vez de entregar o país a outro membro da família de Herodes preferiu nomear um procurador (6 e.c.). A administração foi entregue a um funcionário romano da cavalaria, que correspondia a uma espécie de aristocracia inferior, abaixo das ordens dos cônsules e dos pretorianos.!" Uma epígrafe encontrada há pouco permite concluir que, no período entre 6 e 41 e.c., este oficial era um «prefeito», enquanto, de 44 a 66, tinha o título de «procuradora.» 41 o prefeito (existente no tempo de Jesus) vivia em Cesareia, na costa do Mediterrâneo, num dos luxuosos palácios que Herodes Magno tinha mandado construir. O prefeito dispunha de tropas com cerca de 3000 homens, o que não era suficiente para resolver problemas graves. Havia uma pequena guarnição romana na fortaleza Antónia, em Jerusalém, bem como em outros fortes da Judeia, mas Roma não governava a Judeia no dia-a-dia. As cidades e as aldeias eram governadas, como sempre o tinham sido, por um pequeno grupo de anciãos, entre os quais um ou vários serviam de magistrados. Quando havia dificuldades que poderiam levar ao derramamento de sangue, os cidadãos mais importantes mandavam uma mensagem ao prefeito. Os distúrbios mais significativos exigiam a intervenção do legado da Síria, que era superior ao prefeito da Judeia e dispunha de grandes contingentes militares (quatro legiões, num total de, aproximadamente, 20000 homens da infantaria e de uma cavalaria de 5000 homens). Durante as festas mais importantes, o prefeito romano vinha para Jerusalém e o contingente de tropas era reforçado para garantir que as multidões não se descontrolassem. As reuniões públicas, em geral, eram vigiadas cuidadosamente em todo o mundo antigo e as festas em Jerusalém eram conhecidas por serem perigosas: durante os 150 anos anteriores à morte de Jesus, temos conhecimento de, pelo menos, quatro grandes levantamentos iniciados durante uma festa - e isto apesar de os governadores judeus e romanos estarem preparados para enfrentar os problemas que surgissem e de terem concentrado forças nos arredores. Só o prefeito tinha o direito de condenar alguém à morte - com uma exceção: Roma permitia aos sacerdotes afixar avisos em grego e latim no Templo proibindo aos prosélitos a entrada num determinado sector do Templo. Quem infringisse essa proibição, mesmo que fosse um cidadão romano, era executado imediatamente, sem que o culpado fosse enviado ao prefeito. Excetuando este caso, o direito do prefeito 42 a condenar à morte não só eraexclusivo como também era absoluto; ele podia mandar executar até um cidadão romano, sem precisar de formular uma acusação que fosse apresentada perante um tribunal romano. Neste posto avançado do Império, um prefeito tinha de ser capaz de fazer tudo quanto considerasse necessário para defender os interesses de Roma e isto incluía o poder para disciplinar o exército. Se tinha o direito de executar um oficial romano sem um julgamento romano regular, então podia tratar os habitantes do país submetido mais ou menos como lhe apetecesse. A maioria dos prefeitos eram pessoas sensatas e não condenavam à morte de forma arbitrária. Mas, se um prefeito fosse extraordinariamente cruel, os súbditos não tinham grandes meios para se defenderem. Podiam reunir-se em massa e persuadir os seus líderes a tentar que o prefeito fosse mais benevolente. Se os seus líderes os apoiassem, podiam apresentar uma petição ao legado na Síria e este talvez interviesse. O legado da Síria podia, por exemplo, mandar o prefeito da Palestina a Roma para responder ali pelos seus atos. Por fim, a população do país submetido podia ser autorizada a mandar uma delegação diretamente a Roma. Para tal era provável que precisassem da autorização do legado e este podia proteger-se a si próprio fazendo reféns, para não se tornar o alvo da delegação.!? Nem Augusto nem o seu sucessor Tibério estavam interessados num levantamento ou numa insurreição. Por isso, Roma, às vezes, respondia positivamente a essas petições. No período sobre o qual nos debruçamos aqui, Roma destituiu dois governantes nativos (Arquelau e Antipas), bem como dois funcionários romanos, um dos quais era Pilatos. 43 Já foi observado que o governo local, sob os prefeitos, estava nas mãos de cidadãos notáveis: nas cidades e aldeias judaicas, os governantes efetivos eram sacerdotes e leigos judeus notáveis; nas cidades e nas aldeias samaritanas, esta tarefa era cumprida por sacerdotes e leigos samaritanos notáveis. Na Judeia, a situação era muito mais complicada do que na Galileia, dado que, em algumas cidades de maior dimensão, vivia um grande número de prosélitos e a população da Samaria, uma das regiões geográficas da Judeia, não era judaica. Mas basta que nos concentremos em Jerusalém, visto que era a única cidade da Judeia importante na vida de Jesus. Jerusalém era governada pelo sumo sacerdote judeu e pelo seu Conselho. Isto constituía, pura e simplesmente, um sistema praticado na época persa e helenística antes do levantamento dos Asmoneus. O sumo sacerdote - que atuava frequentemente em consonância com os «chefes dos sacerdotes» e, por vezes, também com «os poderosos» ou com «os anciãos» (leigos influentes) - controlava a polícia normal e o sistema judicial; o sumo sacerdote - sozinho ou nas combinações que acabamos de mencionar - ocupa um lugar de destaque nos Evangelhos, nos Atos dos Apóstolos e em Josefo. Houve sempre uma tendência para atribuir ao Conselho - que se chama Sinédrio, em hebraico - um papel governativo demasiado relevante. Não irei argumentar aqui contra a opinião tradicional sobre o Sinédrio e sobre a sua suposta autoridade legislativa e judi- cial, mas sim falar em termos gerais sobre o sumo sacerdote e o seu Conselho. É correto dizer que Jerusalém era governada, tanto formal como informalmente, pelo sumo sacerdote e pelos seus conselheiros. Darei aqui uma explicação sobre o processo de escolha do sumo sacerdote. O sacerdócio era hereditário; os sacerdotes judaicos faziam remontar a sua árvore genealógica a Aarão, irmão de Moisés, que foi considerado o primeiro sacerdote (cf Ex 28, 1). Durante a época persa e helenística, os sumos sacerdotes, os chefes da nação, eram (ou supunha-se que eram) da família de Sadoc, o sacerdote que ungiu Salomão como rei (1 Rs 1, 28-45). Os Asmoneus eram sacerdotes hereditários, mas não eram sadocitas. A consequência natural da sua ascensão ao poder, em resultado do levantamento bem sucedido contra os Selêucidas, foi a nomeação do chefe da família como sumo sacerdote. Com a investidura de Simão, o Asmoneu, no cargo de sumo sacerdote (1 Mac 44 14,41-49), a família dos Sadocitas, que governava anteriormente, foi deposta; no entanto, o sistema de governo pelo sumo sacerdote manteve-se. Porém, cerca de cem anos mais tarde, o levantamento de Aristóbulo II e do seu filho levou à entronização de Herodes como rei, o que alterou o sistema. Herodes não podia invocar uma origem sacerdotal. Durante o período da sua governação limitou-se a nomear os sumos sacerdotes. Quando Roma depôs Arquelau e entregou o governo da Judeia a um prefeito, começou também a nomear o sumo sacerdote. A partir daí, este direito foi concedido, por vezes, a um membro da família de Herodes, mas, outras vezes, ficava reservado ao prefeito, ao procurador da Judeia ou ao legado da Síria. No período entre 6 e 66 e.c., os sumos sacerdotes foram sempre escolhidos de uma das quatro famílias de sacerdotes nobres. Visto que chegavam ao seu cargo através de uma nomeação política, não gozavam do respeito e da autoridade dos sumos sacerdotes hereditários das épocas anteriores (dos Sadocitas e dos Asmoneus), mas tinham algum prestígio e muito poder. De uma forma geral, foram bem sucedidos na governação de Jerusalém durante sessenta anos (de 6 a 66 e.c.). Por conseguinte, mesmo quando a Judeia estava formalmente sob o domínio romano «direto», o controlo quotidiano era exercido pelos líderes judaicos. Os magistrados eram judeus e governavam segundo a Lei judaica, as escolas eram judaicas e a religião também. O sumo sacerdote e o seu Conselho assumiam um amplo leque de responsabilidades. Assim, tinham de organizar, por exemplo, o pagamento do tributo, bem como zelar para que o dinheiro e os bens chegassem às mãos certas. A ordem pública em Jerusalém era garantida pelas guardas do Templo, que estavam sob o comando do sumo sacerdote. Durante a guerra civil que acompanhou a revolta judaica (66-74 e.c.), morreram 8500 guardas do Templo na defesa de Ananus, um dos exsumos sacerdotes. Isto pode dar uma ideia da quantidade de forças policiais que estavam disponíveis em caso de emergência. Já mencionámos que o prefeito e tropas romanas adicionais vinham para Jerusalém durante as festas, para evitar problemas. 45 O sumo sacerdote era adequado como governante, por três razões: o governo dos sumos sacerdotes era da tradição; os judeus respeitavam muito o seu cargo e o prefeito romano considerava-o o porta-voz oficial da população de Jerusalém. Já foi suficientemente explicado o cariz tradicional do governo dos sacerdotes: eles governaram a Palestina judaica desde cerca de 445 até 37 a.e.c. Os restantes dois pontos necessitam de ser um pouco mais esclarecidos. A população odiava algumas das pessoas que ocupavam o cargo de sumo sacerdote durante a era romana; a turba perseguiu e matou um antigo sumo sacerdote, quando a revolta contra Roma eclodiu, em 66 e.c. Outros sumos sacerdotes, pelo contrário, eram respeitados. O primeiro governo revolucionário, que foi eleito por aclamação popular, foi liderado por dois antigos sumo sacerdotes: as massas eram capazes de distinguir os bons dos maus. Porém, independentemente de um sumo sacerdote concreto ser estimado ou não, o respeito pelo cargo era profundo e genuíno. Primeiro, Herodes e, mais tarde, Roma, assumiram o controlo das vestes do sumo sacerdote, entregando-as apenas em ocasiões especiais. O sumo sacerdote, na sua veste oficial, ficava investido de demasiado poder. Houve várias ocasiões em que litígios nos quais estavam em causa as vestes de sumo sacerdote, bem como a nomeação deste foram apresentados para decisão diretamente ao imperador. Era importante saber quem controlava as vestes e o cargo, porque o detentor do cargo não era intermediário apenas entre Roma e a população, mas também entre Deus e o seu povo. Era ele que entrava no Santo dos
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