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Roturas do Manguito Rotador Arnaldo Amado Ferreira Neto Eduardo Angeli Malavolta 109 Introdução Epidemiologia Aspectos anatômicos Etiopatogenia Fatores extrínsecos Fatores intrínsecos Avaliação clínica Avaliação por imagem Exame radiográfico Exame de ressonância magnética Exame de ultrassonografia Classificação Duração e etiologia Espessura Extensão Formato da lesão Tratamento Conservador Cirúrgico Reparação do MR associada ou não à descompressão subacromial Técnicas de reparação tendínea Roturas irreparáveis Técnica cirúrgica de reparo do manguito Reabilitação pós-operatória Conduta no DOT/FMUSP Referências bibliográficas SUMÁRIO Em razão da dor e da limitação funcional que causa nos pacientes (o ombro é peça fundamental no posicio- namento da mão no espaço), pode acarretar prejuízo nas atividades habituais, esportivas e profissionais. Dessa for- ma, é imprescindível que o ortopedista saiba diagnosticá- la e tratá-la de forma correta. Epidemiologia A rotura do MR tem incidência variável na população. Estudos anatômicos em cadáveres demonstram sua presença em 5 a 20% dos ombros dissecados. A idade também re- presenta fator importante: cadáveres com menos de 60 anos apresentam lesões em 6% dos ombros, enquanto aqueles com mais idade apresentam lesões em 30%. A rotura parcial é mais frequente em indivíduos jovens e a completa, em idosos, por causa do caráter degenerativo. A rotura parcial apresenta o dobro da incidência em relação à completa2. Aspectos anatômicos O MR é formado pela confluência dos tendões dos músculos supraespinal (SE), infraespinal (IE), redondo menor (RME) e subescapular (SUB). Estes atuam como uma unidade, apresentando interdigitações entre si e também com a cápsula e o ligamento coracoumeral. Ele abraça 2/3 da cabeça do úmero como se fosse uma coi- fa e, além de reforçar a cápsula articular a ele aderente, mantém, dinamicamente, a cabeça do úmero aposta à rasa cavidade glenoide2,3. Etiopatogenia De acordo com Neer 4, em seu estudo sobre a síndrome do impacto (SI), a lesão dos tendões que recobrem a cabeça umeral é de caráter evolutivo, passando por três estágios. No estágio I, que é mais comum em jovens, mas pode acometer pacientes de qualquer idade, há hemorragia na área do impacto seguida de processo inflamatório e edema local. Nessa fase, o processo pode ser reversível se interrom- Introdução A dor no ombro constitui a segunda maior queixa que leva os pacientes a procurar um consultório orto- pédico, perdendo apenas para a dor lombar1. Dentre as causas de dor no ombro, a maioria é referente às patolo- gias do manguito rotador (MR), destacando-se as roturas dessa estrutura musculotendínea1,2. 109 ROTURAS DO MANGUITO ROTADOR 729 pida a atividade que o desencadeia e instituído tratamento eficiente (medicamento anti-inflamatório e fisioterapia). No estágio II, mais frequente em pacientes entre 25 e 40 anos de idade, ocorre fibrose do tendão que se forma a partir do processo inflamatório e edematoso persis tente, como consequência da repetição, por maior tempo, dos microtraumatismos. O tendão do SE fica espessado, bem como as paredes da bolsa serosa subacromial e even- tualmente também o tendão da cabeça longa do bíceps (CLB). O estágio III começa a partir dos 45 a 50 anos de idade e é caracterizado pelas roturas tendíneas e suas con- sequências. A rotura se inicia, no tendão do SE, a partir da “área crítica”, podendo progredir para os demais ten- dões. Neer enfatiza a importância dos fatores extrínsecos como as principais causas das roturas do MR, sendo re- presentados pela morfologia do desfiladeiro do supraes- pinal e o excesso de uso do membro superior. Mais recen- temente, diversos autores sugerem maior importância dos fatores intrínsecos (referentes ao envelhecimento bioló- gico do tendão e a características vasculares locais) como causadores dessas lesões. Fatores extrínsecos Morfologia do desfiladeiro do supraespinal Para realizar o movimento de elevação do braço, im- portantíssimo na mecânica corpórea, a cabeça do úmero, juntamente dos tendões que nela se inserem e as bolsas serosas que a envolvem, deve deslizar harmonicamente sob o arco coracoacromial (acrômio e ligamento cora- coacromial) e sob a articulação acromioclavicular, que formam um verdadeiro teto para o úmero3. O contorno e o diâmetro vertical do desfiladeiro de- pendem do formato e da inclinação do acrômio e do for- mato da superfície inferior da articulação acromioclavi- cular. Estudos anatômicos demonstraram que o acrômio pode ser do tipo I ou plano (32%), do tipo II ou curvo (42%) e do tipo III ou ganchoso (26%), e o ângulo de inclinação do acrômio pode ser menor do que o habi- tual, de forma que ambos, isto é, acrômios tipos II e III e ângulos de inclinação mais agudos diminuem a luz do desfiladeiro5 (Figura 1). Por outro lado, osteófitos presentes nas bordas infe- riores da articulação acromioclavicular e na área de in- serção do ligamento coracoacromial no acrômio – ver- dadeiras entesopatias dessas estruturas – projetando-se em direção ao desfiladeiro também concorrem para o seu estreitamento. Nessas situações, criam-se outras condi- ções para que a área crítica do supraespinal e as estruturas subjacentes se choquem contra o teto rígido que as cobre em atividades que exijam a utilização da mão acima do plano horizontal do ombro3. O os acromiale, que é a ausência de fusão entre os nú- cleos de ossificação do acrômio, também pode ser causa do impacto subacromial. Está presente em cerca de 6% da população e é devidamente diagnosticado no exame radiográfico na incidência perfil axilar (Figura 2). O os acromiale que provoca essa condição é o metacrômio, que tem a linha de não fusão dos núcleos de crescimento junto à articulação acromioclavicular. Em razão dessa peculiari- dade anatômica, ele pode se tornar hipermóvel pela tração do músculo deltoide numa determinada fase da vida do paciente, levando ao impacto no tendão SE2. Excesso de uso do membro superior As doenças causadas pelo uso excessivo dos sistemas articular e muscular constituem, hoje, um importante capítulo das patologias do aparelho locomotor. O uso forçado das articulações e dos músculos costuma pro- vocar alterações fisiológicas e estruturais que o próprio organismo tem condições de corrigir, se houver tempo e repouso suficientes. Várias causas são invocadas para explicar os distúrbios musculares decorrentes da sobrecarga funcional. Sejam elas lesões inflamatórias por perturbação do metabolismo do cálcio muscular, alterações por hipóxia e acúmulo de Tipo I plano Tipo II curvo Tipo III ganchoso g Fi gu ra 1. Representação esquemática dos tipos de acrômio se- gundo Bigliani (I: plano; II: curvo; III: ganchoso). g Fi gu ra 2. Radiografia na incidência de perfil axilar evidenciando os acromiale (seta). CLÍNICA ORTOPÉDICA g ORTOPEDIA DO ADULTO730 ácido lático, sobrecarga das fibras musculares do tipo I ou alteração do padrão de estimulação gama do músculo, o resultado final será perturbação da força e do sincronismo musculares e, consequentemente, falência dos mecanismos motores e estabilizadores dinâmicos do ombro. Observa- se esse fenômeno na SI, principalmente em atletas, não só pela fadiga dos músculos do MR que movem e estabilizam dinamicamente o úmero, mas também dos músculos tora- coescapulares que devem mover e estabilizar firmemente a escápula junto ao tórax, posicionando-a adequadamente como verdadeira plataforma móvel que é. Outro fator importante é o estiramento excessivo do MR, dos ligamentos e da cápsula articular aos esfor- ços exagerados e prolongados, que provoca deformações plásticas irreversíveis e lesões estruturais microtraumáticas (microrroturas). É o que pode ocorrer nos ombros de es- portistas de alto nível (nadadores, ginastas, tenistas e atletas arremessadores em geral) e principalmente de esportistas amadores, quase sempre menos preparados fisicamente e que costumam não respeitarsuas limitações3,6,7. Fatores intrínsecos Envelhecimento biológico O envelhecimento dos tendões é outro aspecto impor- tante quando se estudam as roturas do MR. O envelheci- mento provoca alterações morfológicas e bioquímicas nos tendões caracterizadas pela diminuição dos tenoblastos, adelgaçamento dos tenócitos e diminuição das organelas citoplasmáticas, além de alteração da matriz colágena, di- minuição dos mucopolissacarídeos e do teor aquoso3. Vascularização do MR Rathbun e Macnab8 demonstraram que, quando o braço está em abdução, os vasos do tendão do SE, da parte superior do tendão do IE e da CLB estão livres e cheios de sangue, enquanto, com o braço ao lado do corpo, quando os referidos tendões, além de traciona- dos, ficam comprimidos contra a cabeça do úmero, há neles uma área de constante hipovascularidade. Essa área, centrada no SE e junto ao tubérculo maior – área crítica – mede cerca de 1 cm de largura e é justamente o local vulnerável onde acontece a degeneração tendínea, enquanto a área hipovascular do tendão da CLB abrange o seu segmento que cursa sobre a cabeça do úmero3. Ainda existe controvérsia sobre a patogênese da rotura do MR, e acredita-se que tanto fatores intrínsecos como extrínsecos são responsáveis para que ela ocorra. Wolff et al.9, em recente artigo de revisão sobre as roturas parciais do MR, relatam que a frequência de roturas na superfície articular é de 2 a 3 vezes superiores àquelas na face bur- sal. Tanto em idosos como em esportistas, a maioria delas se inicia pela superfície articular e parecem ser primaria- mente de origem degenerativa. Estudos como os de Lohr e Uhthoff10 demonstraram que a zona crítica de menor vascularização ocorre predominantemente na superfície articular, sendo a superfície bursal mais bem irrigada. Também em relação às características histológicas e me- cânicas, Nakajima et al.11 demonstraram existir diferenças entre as duas superfícies. A superfície bursal é composta principalmente de fibras tendíneas e a articular é formada por um complexo constituído de tendão, cápsula e liga- mentos, com menor resistência tênsil e menor capacidade de deformação. Esse conjunto de fatores pode explicar a maior incidência de roturas na face articular. Por outro lado, Ozaki et al.12 e Burkhead et al.13 demonstraram que o impacto subacromial existe e causa roturas exclusivamente no folheto superficial do MR, conforme a teoria defendida por Neer. Dessa maneira, o conceito atual é que, apesar da etiopatogenia ser multifatorial, o principal responsável pelas roturas do MR é a degeneração tendínea (por enve- lhecimento biológico ou microtraumas de repetição). A causa extrínseca defendida por Neer seria a responsável numa minoria dos casos. As faixas etárias típicas, expostas por Neer, também não se aplicam a todos os casos, especialmente em se tratando de atletas arremessadores profissionais ou se- miprofissionais. Nestes, por causa da alta carga de mi- crotraumatismos sofrida pelo ombro, as roturas podem se desenvolver em idade muito mais precoce7. Também vale salientar as roturas traumáticas puras que podem ocorrer sem patologia prévia do tendão. Nes- ses casos, é frequente a associação com a luxação traumá- tica, sendo o tendão subescapular o mais acometido14. Avaliação clínica Na anamnese, interroga-se sobre a atividade profis- sional, prática esportiva ou recreacional, tempo da sin- tomatologia, padrão da dor e limitação funcional. Epi- sódios prévios de luxação merecem atenção especial2,7. É frequente a queixa de dor com piora noturna e irradia- ção para a face lateral do braço. O exame físico se inicia com a inspeção estática, onde possíveis atrofias musculares podem ser detectadas, espe- cialmente do SE e do IE nas roturas crônicas. Na inspeção dinâmica, é importante observar tanto a amplitude de movimento como o movimento escapu- lotorácico. O arco de movimento pode estar diminuído globalmente, quando estiver presente o componente do- loroso (síndrome do impacto) ou existir capsulite adesiva secundária. Alterações geram desequilibrios biomecânicos no ombro, propiciando sobrecarga aos músculos do MR e eventualmente desencadeando roturas secundárias2,7. Nas lesões do MR, os testes de impacto de Neer (Figura 3), Hawkins-Kennedy e Yocum apresentam positividade va- riável, em decorrência da presença ou não do fator extrín- seco que pode estar presente na patogenia da doença. Os testes de função muscular são específicos e, em sua positi- vidade e intensidade, dependem do tendão lesado e da ex- tensão da rotura. Para avaliação do SE, utilizam-se o teste de Jobe (Figura 4) e o teste do supraespinal. Para o IE, os testes de Patte, do infraespinal (Figura 5) e o da cancela15. Aten- ção especial deve ser dada ao exame do SUB. Esse tendão pode estar roto isoladamente, e isto ocorre sobretudo após eventos traumáticos junto com luxação glenoumeral. Para 109 ROTURAS DO MANGUITO ROTADOR 731 avaliação desse tendão, são empregados o teste de Gerber (Figura 6), o teste do subescapular (abdominal press test)15 e o bear hug test16. Nessa etapa da avaliação, pode-se utilizar o bloqueio anestésico do espaço subacromial, que elimina a dor e é ferramenta importante no consultório para se diferenciar as patologias subacromiais de outras fontes de dor no ombro2. Avaliação por imagem Exame radiográfico Tem como objetivo avaliar sinais sugestivos de im- pacto e rotura do MR (esclerose, cistos e irregularida- des no tubérculo maior; esclerose e presença de osteófito no acrômio). O formato e a espessura do acrômio, a presença de os acromiale e de artrose acromioclavicular também podem ser avaliados. As incidências utilizadas são: anteroposterior verdadeira, em rotação medial e lateral, anteroposterior com 30° de inclinação caudal, túnel do su- praespinal (ou outlet view, um perfil escapular com 10° de inclinação caudal) e perfil axilar2,9 (Figuras 7 a 11). Exame de ressonância magnética Com altos índices de especificidade e sensibilidade, a ressonância magnética (RM) é o exame de escolha para avaliação de possível rotura do MR. Com sua análise, é possível mensurar a lesão (Figuras 12 a 15) (espessura, retração, número de tendões acometidos) e obter infor- mações sobre a qualidade dos ventres musculares do MR (presença de infiltração gordurosa). Tem como vantagem adicional avaliar possíveis lesões associadas intra-articu- lares (SLAP, lesões labiais)2. g Fi gu ra 3. Teste do impacto de Neer. Elevação passiva do membro superior, no plano da escápula e com o ombro em rota- ção neutra. g Fi gu ra 4. Teste de Jobe. Elevação ativa do ombro contra resistên- cia, com o membro superior no plano da escápula e em rotação medial. g Fi gu ra 5. Teste do infraespinal. Com o braço junto ao tórax e o co- tovelo em 90°, testa-se a força ativa de rotação lateral. g Fi gu ra 6. Teste de Gerber. Após o paciente colocar a mão no dorso no nível da coluna lombar baixa (A), solicita-se que a afaste das costas (B). A B CLÍNICA ORTOPÉDICA g ORTOPEDIA DO ADULTO732 g Fi gu ra 7. Radiografia na incidência anteroposterior em rotação neutra do ombro. g Fi gu ra 8. Radiografia na incidência anteroposterior em rotação medial do ombro. g Fi gu ra 9. Radiografia na incidência anteroposterior em rotação neutra do ombro com inclinação caudal de 30° da am- pola de raios X (observa-se com maior nitidez o osteófito subacromial – seta). g Fi gu ra 10. Radiografia na incidência para o desfiladeiro do su- praespinal (seta: acrômio ganchoso). g Fi gu ra 11. Radiografia na incidência de perfil axilar. g Fi gu ra 12. RM de uma rotura parcial do supraespinal (seta). 109 ROTURAS DO MANGUITO ROTADOR 733 Classificação As roturas do MR podem ser classificadas quanto a etiologia e duração dos sintomas; ao envolvimento da es- pessura do tendão; sua extensão; e formato da lesão1,17. Duração e etiologia g Roturas agudas ou traumáticas: decorrentes de um evento traumático bem estabelecido. gRoturas crônicas ou degenerativas: paciente com longo período de evolução dos sintomas. g Extensão aguda de uma rotura crônica: quando um trauma ocorre num ombro já previamente sintomático, com piora clínica. Espessura g Rotura parcial: ocorre a rotura sem o comprometi- mento de toda a espessura do tendão e sem comunicação do espaço articular com o subacromial. Pode ser subdivi- dida em articular (quando ocorre na superfície inferior do tendão – face articular), bursal (superfície superior – face bursal) (Figura 17) e intrassubstancial. A rotura articular é a mais comum, enquanto a intrassubstancial é a mais rara. Pode-se ainda especificar a porcentagem de acometimento do tendão em relação à espessura do tendão normal. g Rotura completa: ocorre a rotura de toda a espessura do tendão com a comunicação do espaço articular com o subacromial (Figura 18). Não é necessário acometer toda a extensão do tendão, podendo ser, dessa forma, uma rotura puntiforme (milímetros) ou de poucos centímetros. Extensão Classifica-se a rotura conforme o envolvimento da ex- tensão do tendão em: pequena (< 1 cm); média (< 3 cm); grande (< 5 cm) ou extensa (> 5 cm). Também pode-se classificá-la quanto ao número de tendões acometidos. A rotura pode estar limitada a um único tendão, a dois ou mais. Nas roturas extensas (> 5 cm), geralmente dois ou mais tendões estão rotos. g Fi gu ra 13. RM de uma rotura completa do supraespinal com coto retraído cerca de 2 cm (seta). g Fi gu ra 14. RM de uma rotura completa do supraespinal com grande retração – coto na altura da glenoide (seta). g Fi gu ra 16. US mostrando rotura parcial intrassubstancial do su- praespinal (seta). Exame de ultrassonografia Embora apresente especificidade e sensibilidade com- paráveis à RM, a ultrassonografia (US) tem como desvan- tagens ser operador-dependente e não poder avaliar as patologias intra-articulares concomitantes. Como vanta- gem, tem menor custo e melhor aceitação pelo paciente2 (Figura 16). g Fi gu ra 15. RM de uma rotura completa do subescapular (seta ama- rela) com luxação medial do bíceps (seta azul). CLÍNICA ORTOPÉDICA g ORTOPEDIA DO ADULTO734 Formato da lesão As roturas completas podem ser descritas de acordo com o seu formato, em especial durante a visualização intraoperatória. Os formatos são classificados em “V”, “U”, “C” ou “L” (Figura 19). Tratamento O tratamento das roturas do MR depende da sua espessura (parcial ou completa), do seu tamanho (ex- tensão), da idade e do tipo de atividade do paciente, não esquecendo que pendências trabalhistas podem interferir no resultado final. As possibilidades terapêuticas podem ser divididas da maneira descrita a seguir. Conservador O tratamento conservador é indicado nas roturas par- ciais e nas roturas completas em pacientes com baixa deman- da funcional ou sem condições clínicas para realização da cirurgia. Tem como objetivos combater a dor, restabelecer a amplitude de movimentos e fortalecer a musculatura estabi- lizadora e depressora da cabeça do úmero; consiste em: a) Retirada dos fatores de risco causadores da rotura. b) Analgesia e medidas anti-inflamatórias: uso de analgésicos simples ou opioides; utilização de anti-infla- matórios não hormonais orais e hormonais por via sistê- mica (intramuscular); infiltrações do espaço subacromial com corticosteroides – devem ser usadas com parcimônia e quando forem absolutamente necessárias, em razão da ação deletéria sobre a estrutura dos tendões; uso de meios fisioterápicos e acupuntura. c) Restabelecimento da amplitude de movimentos articulares (exercícios passivos e ativos)2. d) Fortalecimento do MR para restaurar o mecanis- mo depressor da cabeça do úmero (exercícios isométri- cos, isotônicos e de coordenação motora)2. O tratamento conservador deve ser mantido por, no mínimo, 3 meses, podendo se prolongar na dependência da melhora apresentada pelo paciente. Cirúrgico O tratamento cirúrgico é indicado para pacientes nos quais o tratamento conservador não foi efetivo, nas roturas completas do manguito em indivíduos com alta demanda funcional e naquelas de origem aguda/traumática. Pode ser realizado por via aberta ou artroscópica e consiste basicamente nos seguintes procedimentos: 1) Desbridamento intra-articular e subacromial. 2) Descompressão subacromial (DSA) – seção do li- gamento coracoacromial, acromioplastia anteroinferior, exérese de osteófitos acromioclaviculares. 3) Reparação dos tendões rotos. O resultado final, a longo prazo, obtido com os dois métodos (aberto e artroscópico) é semelhante18,19, entre- tanto, existe vantagem no método artroscópico pela menor agressão ao deltoide, pela menor morbidade e reabilitação pós-operatória mais rápida. Atualmente, a preferência é pela técnica artroscópica. Reparação do MR associada ou não à descompressão subacromial Indicada no reparo do MR, a descompressão suba- cromial (DSA) tem como objetivos aumentar o espaço subacromial, eliminando o fator extrínseco da rotura do MR, e consequentemente proteger a sutura. Usada inicial- g Fi gu ra 17. Visão artroscópica de uma rotura parcial bursal do su- praespinal. g Fi gu ra 18. Cirurgia aberta mostrando rotura completa do supraespinal (setas: coto do manguito; TM: tubérculo maior do úmero). g Fi gu ra 19. Visão artroscópica de uma rotura total do supraespinal com aspecto em “V”. 109 ROTURAS DO MANGUITO ROTADOR 735 mente na cirurgia aberta e posteriormente adaptada para utilização por via artroscópica, o seu emprego de rotina vem sendo questionado na literatura. Em recente estudo, Gartsman e O’Connor20 consta- taram, após avaliação prospectiva e randomizada de 93 pacientes, que não houve benefício na realização da DSA associada à reparação do MR. Realizamos de rotina a DSA nas reparações do MR. Acreditamos que o fator extrínseco também está presente como etiopatogenia dessas roturas12,13. Convém salientar que, embora os fatores intrínsecos (processos degene- rativos dos tendões) sejam a principal causa primária na etiopatogenia das roturas do MR, o impacto subacromial pode ocorrer nesses casos também de maneira secundá- ria, por causa do desequilíbrio biomecânico causado por essas alterações degenerativas7. Dessa forma, acreditamos também que a DSA deva ser feita com os mesmos objeti- vos já mencionados anteriormente. Técnicas de reparação tendínea As reparações dos tendões podem ser feitas com pontos tendão-tendão ou tendão-osso, desde que os tendões possam ser liberados, de forma a permitir a sua fixação, sem tensão, no local apropriado. A fixação no osso é feita em leito adequadamente preparado, por meio de sutura transóssea (via aberta tradicional ou mi- ni-incisão – Figura 20) ou por meio de âncoras (mini- incisão ou artroscopia). Tradicionalmente, as âncoras são posicionadas em fileira única (FU), inseridas com angulação correta para que resistam às trações a que se- rão submetidos. Com o avanço da cirurgia e de técnicas artroscópicas, e também com desenvolvimento de novas âncoras e fios de sutura de alta resistência, o tratamento artroscópico completo (DSA e reparo) passou a ser o método cirúrgico de escolha no tratamento das roturas do MR. Recentemente, desenvolveram-se novas técnicas de reparo do MR em fileira dupla (FD) de âncoras (uma medial e outra lateral). Embora trabalhos mostrem que a técnica de FD é mais resistente biomecanicamente e permite melhor área de contato21-23, não existe evidência até o momento de melhores resultados funcionais com esse método. Convém salientar que a técnica de FD au- menta o tempo cirúrgico por ser mais trabalhosa e ter custos mais altos. No nosso serviço, a preferência é pela reparação em FU. Roturas irreparáveis Algumas roturas não podem ser reparadas, em razão da retração acentuada dos tendões e/ou da degeneração gordurosa da musculatura. Essa constatação pode ser fei- ta na avaliação pré-operatória (exame físico e exames de imagem) ou mesmo no ato cirúrgico.Nesses casos, por causa da insuficiência do MR, a cabeça do úmero tende a migrar anterossuperiormente (subluxação anterossupe- rior) em direção ao arco coracoacromial. Nessa situação, evita-se a DSA (acromioplastia e exérese do LCA), pois o arco coracoacromial representa um importante estabiliza- dor, e sua alteração pode aumentar a disfunção mecânica do ombro. As opções cirúrgicas nesses casos são: g Reparo parcial: mesmo que não seja possível a re- construção anatômica completa do MR, realiza-se a repa- ração parcial, dando atenção especial aos tirantes anterior (subescapular) e posterior (infraespinal). Esse tipo de repa- ro visa a restabelecer o mecanismo depressor da cabeça do úmero proporcionado pela ação do subescapular e infraes- pinal (mecanismo de “ponte pênsil”)24. A ação desses dois tirantes, mesmo com a ausência do supraespinal, permite a estabilização da cabeça do úmero junto à glenoide, permi- tindo a elevação do ombro pela ação do deltoide. g Transferências musculares: as mais comuns são a transferência do grande dorsal para ganho de rotação late- ral (nas roturas do infraespinal) e a do peitoral maior para ganho de rotação medial (nas roturas do subescapular)25. São indicadas nos pacientes com deficiência funcional de- corrente da perda do mecanismo de “ponte pênsil”, onde o reparo parcial descrito acima não for possível. g Desbridamento artroscópico (intra-articular e su- bacromial): tem como objetivo principal o alívio da dor, removendo os tecidos inflamados, como membrana sino- vial, cotos de tendões e bursa subacromial. É indicado em pacientes que não apresentam disfunção biomecânica do ombro (conseguem elevar o braço acima da cabeça). Os resultados são temporários1. g Artroplastias: a prótese reversa foi desenvolvida para os pacientes com artropatia do manguito, nos quais, além da deficiência funcional, existem alterações degene- rativas da articulação (Figuras 21 e 22) (para maiores detalhes, ver capítulo sobre artrose glenoumeral). Técnica cirúrgica de reparo do manguito A cirurgia artroscópica é a escolha no nosso grupo. O paciente é posicionado em “cadeira de praia” (Figura 23) e submetido a anestesia geral associada a bloqueio interescalê- nico. Para diminuir o sangramento no espaço subacromial, utilizamos a bomba de infusão, podendo ser acrescentada g Fi gu ra 20. Cirurgia aberta. A: Rotura completa de supraespinal e infraespinal, com pontos de reparo. B: Sutura com pontos transósseos, com reparo total. A B CLÍNICA ORTOPÉDICA g ORTOPEDIA DO ADULTO736 adrenalina no soro fisiológico (na concentração de 0,5 mg/ mL para cada litro de soro). São realizados os portais pa- dronizados (posterior, lateral e anterior) (Figura 24) e outros quantos forem necessários para a realização do procedimento26. Inicia-se o procedimento com a inspeção articular. Lesões do tipo SLAP, alterações da cabeça longa do bíceps (roturas parciais ou subluxação), lesões labiais e da carti- lagem podem estar associadas à lesão do MR nos atletas, devendo ser tratadas nessa etapa. Após a conclusão do inventário articular, é abordado o espaço subacromial. Bursectomia, acromioplastia anteroinferior e liberação do ligamento coracoacromial são realizadas de rotina no nosso serviço, com a utilização de shavers de partes mo- les e ósseas e aparelho de radiofrequência. Faz-se, então, a liberação dos tendões (tanto pela face articular como pela bursal), até que eles possam ser mobilizados e levados sem tensão até os tubérculos maior e/ou menor da cabeça do úmero. A borda do tendão roto pode ser desbridada de maneira econômica, com a finalidade de melhorar as condições para a sua cicatrização. Os tubérculos também são desbridados até o aparecimento de leito sangrante. A fixação tendão-osso é feita com o uso de fios de sutura no 2 de alta resistência, acoplados a âncoras rosqueadas me- tálicas ou absorvíveis (de 5 mm de diâmetro), previamente inseridas na região dos tubérculos. É importante salientar que as âncoras devem ser inseridas com angulação de 45° graus em relação à superfície do tubérculo. Dependendo do tamanho e do formato da rotura, podemos realizar sutura adicional com pontos tendão-tendão previamente à sutura tendão-osso. O número de âncoras é decidido no decorrer do ato cirúrgico, sendo utilizadas tantas quanto forem necessárias até o fechamento total da rotura. Após o término do reparo, realiza-se apenas o fechamento da pele, com pontos simples26. Reabilitação pós-operatória O nosso protocolo de reabilitação é dividido em 5 fases: 1) Analgesia e relaxamento muscular (medicina físi- ca). Durante as 3 primeiras semanas, o paciente permane- g Fi gu ra 21. RM evidenciando artropatia do manguito. A: Cabeça umeral ascendida, manguito rotador com intensa retra- ção (seta) e artropatia degenerativa. B: Rotura completa do subescapular (seta azul) e tendinopatia associada a lesão parcial do infraespinal (seta amarela). g Fi gu ra 22. Radiografia com ombro submetido à prótese reversa por artropatia do manguito rotador. g Fi gu ra 23. Posicionamento do paciente em “cadeira de praia”. BA g Fi gu ra 24. Portais artroscópicos e reparos anatômicos. CO: pro- cesso coracoide; Cl: clavícula distal; A: acrômio; Ant: portal anterior; Lat: portal lateral; Post: portal posterior. 109 ROTURAS DO MANGUITO ROTADOR 737 Referências bibliográficas 1. Zoppi Filho A, Kakuda CMS, Vieira LAG. Síndrome do impacto/Lesão do manguito rotador. In: Franco JS, editor. Ombro e cotovelo. Rio de Janeiro: Revinter; 2005. p.197-205. ce com o ombro completamente imobilizado (tipoia tipo Velpeau), realizando apenas movimentos com o cotovelo, punho e dedos. 2) Exercícios passivos. Inicia-se após a 3a semana, com o objetivo de ganho de amplitude articular. O pa- ciente ainda mantém a tipoia nos períodos em que não está nas sessões de fisioterapia. 3) Exercícios ativos assistidos e ativos livres realizados após a 6a semana. Nessa fase, é retirada a imobilização. 4) Exercícios ativos resistidos. A ênfase é dada prin- cipalmente no músculo deltoide e nos rotadores mediais e laterais. É iniciada apenas após a 8a semana. 5) Exercícios isocinéticos e de coordenação motora a partir da 12a semana. O retorno do paciente às suas atividades habituais depende principalmente do tamanho da rotura e do tipo de reparação. Em média, isto ocorre entre 4 e 6 meses após a cirurgia. CONDUTA NO DOT/FMUSP Após avaliação clínica completa, os pacientes com suspeita de rotura do MR são submetidos aos exames de imagem de rotina: radiografias (AP verdadeiro em ro- tação lateral e medial, AP com 30° de inclinação caudal, túnel do supraespinal e perfil axilar), US ou RM. Após análise dos exames de imagem, os pacientes são encami- nhados para o tratamento, como segue: a) Roturas parciais: tratamento conservador. Na fa- lha, tratamento cirúrgico artroscópico. b) Roturas completas em pacientes idosos com bai- xa demanda do ombro: tratamento conservador. Na falha, tratamento cirúrgico artroscópico. c) Roturas completas em pacientes com alta de- manda do ombro, independentemente da idade: trata- mento cirúrgico artroscópico. d) Roturas completas traumáticas, independente- mente da idade: tratamento cirúrgico artroscópico. e) Roturas extensas irreparáveis em pacientes com dor e boa função do ombro: desbridamento artroscópico sem DSA. f) Roturas extensas irreparáveis em pacientes < 70 anos de idade, com disfunção motora do ombro: trata- mento cirúrgico aberto com transferências musculares. g) Roturas extensas irreparáveis em pacientes > 70 anos de idade, com disfunção motora do ombro: tratamen- to cirúrgico com artroplastia total reversa (Algoritmo 1). 2. Matsen III FA, Titelman RM, Lippitt SB, Wirth MA, Rockwood Jr. CA. Rotator cuff. In: Rockwood Jr. CA, Matsen III FA, Wirth MA, Lippitt SB, editores. The shoulder. Philadelphia: Saunders; 2004. p.795-878. 3. Ferreira Filho AA. Síndrome do impacto e lesão do manguito rotador. In: Pardini Jr.Souza JMG, editor. Clínica ortopédica: atualização em cirurgia do ombro. Rio de Janeiro: Medsi; 2000. p.117-27. 4. Neer CSII. Anterior acromioplasty for the chronic impingement syndrome in the shoulder: a preliminary report. J Bone Joint Surg Am. 1972;54:41-50. 5. Bigliani LU, Morrison DS, April EW. The morphology of the acromium and its relationship to rotator cuff tears. Orthop Trans. 1986;10:228. 6. Andrews JR, Sutherland TB. Arthroscopy for rotator cuff disorders In: Hawkins RJ, Misamore GW, eds. Shoulder injuries in the athlete. New York: Churchill Livingstone; 1996. p.123-8. 7. Miniaci A, Dowdy PA. Rotator cuff disorders In: Hawkins RJ, Misamore GW, eds. Shoulder injuries in the athlete. New York: Churchill Livings- tone; 1996. p.103-12. 8. Rathbun JB, Macnab I. 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