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1 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II Ç É DEFINIÇÃO A Dispepsia Funcional (DF) é definida pela presença de dor e/ou desconforto, persistente ou recorrente, localizada na região central e superior do abdome (epigástrio), na ausência de anormalidades estruturais ou irregularidades metabólicas e bioquímicas que justifiquem a sintomatologia. No entanto, algumas alterações estruturais têm sido associadas a esta síndrome (p. ex., gastrite como resultado de infecção por Helicobacter pylori, alterações erosivas pré- pilóricas, inflamação do duodeno e aumento da contagem de eosinófilos) e a definição de “funcional”, futuramente, poderá ser modificada. Essa síndrome se constitui em um problema sanitário e so- cioeconômico de grande relevância, não apenas por sua alta prevalência, como também por seu caráter crônico e ausência de tratamento satisfatório. Além disso, apesar de sua evolu- ção benigna, pode afetar de forma significativa a qualidade de vida dos pacientes, refletindo em suas relações pessoais, sociais e laborais, ocasionando alterações psicológicas, do sono e da atividade sexual. Um comitê internacional de especialistas estabeleceu, nos últimos anos, critérios específicos para o diagnóstico e classi- ficação da DF (Consenso Roma I, II e III), trazendo grandes avanços no entendimento da síndrome, porém alguns aspectos ainda não foram elucidados, especialmente no que se refere à etiopatogenia e terapêutica específica. EPIDEMIOLOGIA Tem sido relatado que cerca de 20 a 40% da população geral apresenta alguma queixa dispéptica (as cifras mais altas corres- pondem a estudos que incluíram também o sintoma de pirose). Entretanto, somente cerca de 30% desses indivíduos procuram assistência médica: a dispepsia constitui a causa de 3 a 5% das consultas ambulatoriais de clínica geral, em um centro de aten- ção primária, e de 20 a 40% das consultas em gastrenterologia. Os sintomas dispépticos podem surgir em qualquer idade e são mais prevalentes no sexo feminino. A intensidade da dor e/ou do desconforto e a ansiedade (incluindo o medo de doenças mais graves) se constituem nos principais motivos de procura ao clínico e gastrenterologista. Muito prevalente na população em geral, a dispepsia pode incidir em taxas de 20 a 40% das consultas realizadas por gastroenterologistas. Já nos serviços de atenção primária, 3 a 4% dos casos têm como queixa principal sintomas dispépticos. Em estudo norte-americano de 2009, mais de 30% das endoscopias digestivas altas tiveram, como indicação principal, os sintomas dispépticos. A dispepsia tem baixa morbidade, porém, pode proporcionar impacto na qualidade de vida6 e determinar restrições alimentares, além de perda da capacidade para o trabalho. QUADRO CLÍNICO O Consenso de Roma III apresenta quatro sintomas dispépticos cardinais: 1.Saciedade precoce, sensação de que o estômago está bem cheio, logo após começar a comer, de modo desproporcional, a quantidade de alimento ingerido, impedindo o término da refeição; 2.Plenitude pós-prandial, refere-se à sensação desagradável da persistência prolongada do alimento no estômago após uma refeição; 3.Dor epigástrica, sensação subjetiva e desagradável no epigástrio; 4.Queimação epigástrica, sensação de calor na região epigástrica. DIAGNÓSTICO Como os quadros dispépticos reúnem os principais sintomas relacionados às doenças do estômago, é relevante que sua abordagem inicial seja adequada na tentativa de elucidar o diagnóstico. Tais quadros não investigados podem abranger desde distúrbios orgânicos até funcionais, para os quais o Consenso de Roma III propõe critérios mais bem definidos. Para a dispepsia não investigada algumas regras são importantes: Certificar-se de que os sintomas são restritos ao trato digestivo alto. Identificar os sinais ou sintomas de alarme – perda de peso inexplicada, vômitos recorrentes, disfagia progressiva, sangramento gastrointestinal, anemia, visceromegalia etc. Certificar-se do possível uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs). Caracterizar como uma DRGE a presença de sintomas típicos de refluxo. 2 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II CRITÉRIO DIAGNÓSTICO- CONSENSO ROMA III 1- Queixas dispépticas durante os últimos 3 meses e que se iniciaram, no mínimo, 6 meses antes. 2- É fundamental a presença de um ou mais dos seguintes sintomas: a) empachamento pós-prandial; b) saciedade precoce; c) dor epigástrica; d) queimação epigástrica. 3- É fundamental a ausência de lesões estruturais (incluindo a realização de endoscopia digestiva alta) que possam justificar os sintomas. Para uma melhor orientação propedêutica e terapêutica, os pacientes portadores de DF devem ser classificados de acordo com o sintoma principal em duas síndromes: 1) Síndrome do Desconforto Pós-prandial (predomina sintoma de empacha- mento pós-prandial e/ou saciedade precoce, que ocorre várias vezes por semana, nos últimos 3 meses e/ou; 2) Síndrome da Dor Epigástrica (predomina dor ou queimação localizada no epigástrio, moderada a intensa, intermitente e que ocorre, no mínimo, 1 vez/semana, nos últimos 3 meses). Critérios específicos para a classificação desses pacientes também foram estabelecidos pelo Comitê Roma III CLASSIFICAÇÃO DA DISPEPSIA FUNCIONAL SÍNDROME DO DESCONFORTO PÓS -PRANDIAL (SINTOMAS DESENCADEADOS PELAS REFEIÇÕES) fundamental a presença de pelo menos um dos critérios seguintes: Empachamento pós-prandial, que acontece necessa- riamente após refeições habituais, ocorrendo várias vezes por semana, nos últimos 3 meses. Saciedade precoce, que impossibilita o término nor- mal das refeições, ocorrendo várias vezes por semana, nos últimos 3 meses. Outros sintomas que, se presentes, reforçam o diagnóstico: distensão do abdome superior, náuseas pós-prandiais ou eructação; a Síndrome da Dor Epigástrica pode coexistir. SÍNDROME DA DOR EPIGÁSTRICA (SINTOMAS DE DOR OU QUEIMAÇÃO EPIGÁSTRICA) Fundamental a presença de todos os critérios seguintes: Dor ou queimação localizada no epigástrio, pelo menos moderada, e que ocorre, no mínimo, 1 vez/semana, nos últimos 3 meses; dor intermitente; dor não generalizada ou localizada em outras regiões do abdome ou tórax; dor não aliviada pela defecação ou eliminação de flatos. As características da dor não preenchem critérios para o diagnóstico dos distúrbios funcionais da vesícula biliar ou esfíncter de Oddi. Outros sintomas que, se presentes, reforçam o diagnóstico: a dor pode ter características de queimação, mas sem irradiação retroesternal; a dor é comumente induzida ou aliviada pela ingestão de alimentos, podendo, porém, ocorrer em jejum; a síndrome do desconforto pós-prandial pode coexistir. Esses novos critérios objetivam padronizar a linguagem científica sobre a DF tanto no que se refere à aplicabilidade clínica, ao se basear em sintomas bem definidos, como em relação à pesquisa científica. AVALIAÇÃO CLÍNICA E PROPEDÊUTICA O diagnóstico é fundamentalmente clínico, baseando-se nos critérios de Roma III descritos anteriormente. Vários estudos recentes demonstram que não é necessário realizar uma extensa bateria de exames para o diagnóstico de DF, sobretudo em pacientes com sintomas típicos e que não apresentam sinais de alarme. É essencial realizar história clínica e exame físico minuciosos, pois a anamnese bem conduzida servirá como um guia ao clínico para inclusão ou exclusão do diagnóstico, seleção dos pacientes que deverão ser investigados e a escolha da terapêutica mais adequadaa ser prescrita. A propedêutica complementar deve ser realizada, portanto, de maneira individualizada e, em alguns casos, está indicado um teste terapêutico antes de se iniciar a investigação diagnóstica. O conhecimento dos critérios de Roma III associada a uma atitude positiva de considerar o diagnóstico precocemente (diagnóstico de inclusão) pode levar o médico a conduzir o atendimento do paciente de uma maneira mais custo eficiente do ponto de vista de procedimentos diagnósticos. Vários fatores devem ser considerados como a idade do paciente, a presença dos sinais de alarme, a facilidade de acesso à investigação, os riscos e benefícios do tratamento farmacológico e as consequências econômicas desta decisão. O Comitê Roma III sugere que a abordagem dos pacientes dispépticos seja separada em dois grupos: aqueles com dispepsia não investigada e aqueles com diagnóstico sugestivo de DF. DISPEPSIA NÃO INVESTIGADA A literatura atual tem sugerido alguns critérios para a avaliação dos pacientes com dispepsia e que ainda não realizaram propedêutica: 1. Avaliação da presença/ausência dos sintomas de alarme (emagrecimento, vômitos recorrentes, disfagia progressiva, presença de sangramento, icterícia). A presença desses sintomas implica imediata investigação para exclusão de doenças orgânicas. 2. Exclusão do uso de ácido acetilsalicílico e outros anti- inflamatórios não esteroides. 3 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II 3. Na presença concomitante de sintomas típicos de refluxo, o diagnóstico provisório deve ser de DRGE. Recomenda-se, nesses casos, iniciar empiricamente o tratamento com inibidores da bomba de prótons. Se os sintomas persistirem, apesar da adequada supressão ácida, o diagnóstico de DRGE será pouco provável. 4. Em pacientes jovens, sem sinais e sintomas de alarme, exames não invasivos para pesquisa do H. pylori (teste respiratório, antígeno fecal ou sorologia) podem ser realizados e, nos casos positivos, deve-se iniciar o tratamento com antibióticos para erradicação do microrganismo. Essa estratégia – denominada testar e tratar – é muito utilizada nos países de menor prevalência da bactéria e tem sido recomendada uma vez que o tratamento do H. pylori poderia curar os casos de dispepsia relacionados com a úlcera péptica e também como prevenção de fuuras doenças gastroduodenais. É preciso ressaltar que apenas parcela dos pacientes portadores de DF se beneficiará com a erradicação do microrganismo, ou seja, poucos pacientes apresentarão melhora clínica significativa após esse tratamento. 5. A endoscopia digestiva é recomendada para pacientes que apresentam sinais de alarme e para aqueles com idade superior a 40 anos, especialmente naqueles com início recente dos sintomas. O limite de idade para recomendar endoscopia varia de acordo com a epidemiologia do câncer gástrico em cada região. É importante ressaltar que, no nosso meio, devemos sempre solicitar exames parasitológicos de fezes com o objetivo de excluir parasitoses intestinais, especialmente estrongiloidíase e giardíase, causa frequente de sintomas dispépticos entre nós. É preciso realizar exames seriados (no mínimo três amostras), solicitando ao laboratório os métodos mais apropriados para o diagnóstico desses dois parasitos, entre os quais aqueles de concentração de larvas como o Baermann modificado por Moraes e suas variações (para o diagnóstico de estrongiloidíase) e o exame direto das fezes ou o método de flutuação em sulfato de zinco (para o diagnóstico de giardíase). PACIENTES COM DIAGNÓSTICO DEDISPEPSIA FUNCIONAL O Consenso Roma III não definiu nenhuma estratégia investigatória de rotina para pacientes com diagnóstico de DF (síndrome do desconforto pós-prandial e/ou síndrome da dor epigástrica). A realização da endoscopia digestiva alta durante um período sintomático e, preferencialmente, sem terapia antissecretora é fundamental para o diagnóstico. As biopsias devem ser realizadas rotineiramente durante o procedimento endoscópico, visando também a detectar o H. pylori. A erradicação do microrganismo tem sido recomendada nos casos positivos, como discutiremos a seguir. A ultrassonografia não é indicada de rotina, devendo ser realizada quando houver suspeita de doença pancreática ou de via biliar. Testes de esvaziamento gástrico (cintigrafia, teste respiratório com ácido octanoico ou ultrassom) também não são em geral recomendados porque os resultados raramente alteram a conduta clínica. Estudos recentes demonstraram que menos de 30% dos pacientes dispépticos apresentam retardo do esvaziamento gástrico, quando se consideram exclusivamente pacientes com dispepsia funcional tipo síndrome do desconforto pós-prandial. Da mesma forma, o eletrogastrograma e o barostato gástrico têm sido de utilidade prática discutível na avaliação propedêutica desses pacientes. Deve-se afastar também a possibilidade de doença celíaca e de intolerância à lactose nos casos em que houver suspeita clínica. Importante avaliar a presença de cofatores psicológicos, ambientais e dietéticos e o uso de medicamentos que possam ocasionar ou agravar a sintomatologia dispéptica FISIOPATOLOGIA A fisiopatologia da DF permanece desconhecida e, da mes- ma forma que em outros distúrbios funcionais, uma série de anormalidades fisiológicas e psicológicas tem sido identificada, embora sua real importância seja controversa. Vários fatores etiológicos são considerados como hipersecreção ácida, alterações da motilidade gastroduodenal, da sensibilidade visceral, da acomodação gástrica, fatores psicossociais, além de gastrite associada ao Helicobacter pylori. Importante salientar que, em alguns pacientes, vários desses fatores etiopatogênicos podem estar presentes e, atualmente, acredita-se que uma combinação de fatores fisiológicos e psicossociais seja responsável pelo quadro clínico. Tabagismo, etilismo e uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) não são considerados fatores de risco de DF. Contudo, os pacientes portadores de DF apresentam maior probabilidade de desenvolver sintomas quando trata- dos com AINEs. Alguns novos mecanismos fisiopatológicos têm sido propostos, como dispepsia pós-infecciosa (sintomas surgem após episódio de gastrenterite, particularmente depois de surtos de salmonelose), presença de inflamação crônica no duodeno (in- filtração eosinofílica) e fatores genéticos. O gene GN beta-3 tem sido associado com frequência à DF e este é um caminho promissor para o entendimento da síndrome. DIETA Muitos pacientes com DF relatam que determinados alimen- tos, especialmente os gordurosos, as frutas cítricas, os condi- mentos, o café e o álcool, promovem o aparecimento de seus sintomas, porém existem poucas evidências de que esses ali- mentos possam sempre originar os sintomas dispépticos. Um estudo envolvendo 12 pacientes cuja sintomatologia dispép- tica era diretamente relacionada com a ingestão de alimentos gordurosos foi incapaz de reproduzir sintomas semelhantes ao serem oferecidos os mesmos alimentos, mas de forma disfarçada e não identificada. 4 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II Nos casos mais refratários, é importante avaliar a possibilidade de intolerância à lactose e ao glúten (doença celíaca ou apenas hipersensibilidade ao glúten), especialmente em pacientes com sintomatologia agravada pela alimentação. SECREÇÃO GÁSTRICA DE ÁCIDO Tem sido demonstrada a inexistência de relação causal primária entre a secreção gástrica de ácido e a DF. Tanto a secreção basal de ácido quanto a secreçãomáxima de ácido pelo estômago são normais nos dispépticos, quando comparados com indivíduos assintomáticos, não havendo evidências de que haja um subgrupo de hipersecretores. Vários estudos, no entanto, sugerem que alguns dispépticos funcionais possam ter uma sensibilidade exagerada a infusões intragástricas de ácido, enquanto, em outros, a injeção de pentagastrina se associa à maior frequência de episódios dolorosos. Além disso, ensaios terapêuticos controlados sugerem que alguns pacientes melhoram com antiácidos e/ou antissecretores. MOTILIDADE GASTRODUODENAL Existem inúmeras evidências de que a motilidade gastrintestinal é anormal em uma grande parcela de pacientes com DF. Malagelada e Stanghellini encontraram distúrbios de motilidade em 72% dos pacientes dispépticos estudados, e mais da metade destes pacientes apresentavam dismotilidade gástrica isolada; em aproximadamente 40%, observaram-se alterações gástricas e intestinais associadas. A contribuição de anormalidades motoras na geração de sintomas, no entanto, não é completamente estabelecida. Distúrbio motor (tipicamente retardo) do esvaziamento gástrico de sólidos é a alteração motora mais estudada na dispepsia. Para responsabilizar as alterações motoras pela sintomatologia dispéptica, seria necessária, no entanto, a observação temporal direta, ou seja, a ocorrência simultânea do distúrbio motor e do sintoma, o que raramente é observado. Além disso, é também discutível o fato de a dismotilidade ser constante e os sintomas intermitentes. A importância clínica desses achados é, dessa forma, muito controvertida, e a presença de sintomas sugestivos de dispepsia tipo dismotilidade não indica, com segurança, que esses pacientes tenham dismotilidade gastroduodenal e que possam beneficiar-se com drogas procinéticas. ATIVIDADE MIOELÉTRICA A atividade mioelétrica da musculatura lisa do estômago constitui a base da atividade motora gástrica. O eletrogastrograma (EGG), é um método não invasivo e que reflete o ritmo mioelétrico do estômago. O EGG normal é caracterizado por variações do potencial elétrico a uma frequência de três ciclos por minuto (2,4 a 3,6 cpm). As disritmias gástricas representadas por bradigastria, taquigastria ou associação dos dois ritmos (braditaqui) têm sido descritas em um pequeno grupo de pacientes portadores de dispepsia funcional. Alguns estudos sugerem que essas anormalidades mioelétricas possam preceder o início do desconforto epigástrico e das náuseas. HIPERALGESIA VISCERAL E ALODINIA Nos últimos anos, inúmeros pesquisadores, usando técnicas modernas e sofisticadas, demonstraram anormalidades da sensação visceral em pacientes com distúrbios gastrintestinais funcionais, resultando em inapropriada resposta à dor. De fato, muitos pacientes com DF parecem possuir um limiar reduzido para a dor ou respondem aos estímulos dolorosos com maior intensidade ou duração (hiperalgesia); outras vezes, a dor ou o desconforto é produzido por estímulos que normalmente não induzem tais sintomas (alodinia). Vários pesquisadores demonstraram que parcela de pacientes com DF apresentam uma sensação de desconforto e dor quando se insufla um balão dentro do estômago e essa hipersensibilidade se exacerba durante a infusão de lipídios intraduodenais. Esses dados sugerem a possibilidade de uma percepção visceral anormal capaz de induzir respostas exageradas nesses pacientes, diante de diversos estímulos. Alguns estudos recentes sugerem que o SNC processa anormalmente a informação em pacientes com distúrbios gastrintestinais funcionais. Esses achados também são observados em pacientes com outros distúrbios funcionais, como, por exemplo, na síndrome do intestino irritável, na qual tem sido demonstrado um limiar reduzido à dor quando se insufla um balão intrarretal. As bases das anormalidades da sensação visceral não são bem conhecidas e não parecem estar relacionadas com distúrbios da motilidade gastrintestinal. Estudos iniciais sugerem que essas alterações se restringem à função visceral aferente, e a sensação de dor somática está preservada. Nos últimos anos, diversas drogas capazes de atuar nos mecanismos das sensações viscerais, reduzindo a hipersensibilidade do sistema digestivo e, consequentemente, melhorando a sintomatologia dispéptica, vêm sendo testadas, o que gera grande expectativa para o aprimoramento da terapêutica dos pacientes com distúrbios funcionais. GASTRITE CRÔNICA E HELICOBACTER PYLORI O papel da infecção pelo H. pylori em pacientes com DF permanece controvertido, mas os resultados de metanálises recentes sugerem um pequeno benefício com a erradicação da bactéria em pacientes infeccionados. Embora o microrganismo seja encontrado em cerca de 50% dos pacientes portadores de dispepsia funcional, tal prevalência não é significativamente superior àquela observada em grupos-controles adequadamente pareados. Alguns estudos demonstram que esta infecção é mais prevalente entre os dispépticos tipo úlcera do que entre aqueles com dispepsia tipo dismotilidade ou inespecífica, sugerindo a possibilidade de que existam mecanismos fisiológicos distintos e que o H. pylori possa ter importância na patogenia de subgrupos de dispépticos funcionais. Evidências irrefutáveis responsabilizam hoje esse microrganismo como o principal agente causal da gastrite crônica antral e mesmo da pangastrite. A erradicação do H. pylori acompanha-se quase sempre de normalização histológica da mucosa gástrica, mas o efeito sobre a sintomatologia dispéptica é, no mínimo, muito controvertido. Há, entre os leigos, e também entre os médicos, uma 5 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II tendência antiga de relacionar gastrite crônica com dispepsia, continuando o debate de se a gastrite é ou não importante causa de sintomas digestivos altos. Sabemos, entretanto, que a correta definição clínica, endoscópica e histológica de gastrite não se correlaciona com sintomatologia dispéptica. A dispepsia funcional é uma entidade clínica, sem marcador biológico conhecido, e a gastrite crônica é uma entidade histológica que evolui, em geral, sem produzir sintomas. Até o momento, os estudos têm sido incapazes de estabelecer algum padrão sintomatológico distinto entre os pacientes dispépticos infectados e não infectados pelo H. pylori. Um estudo comparando o comportamento clínico, as alterações motoras e de percepção visceral (hiperalgesia) desses dois grupos de dispépticos foi incapaz de detectar diferenças entre eles, concluindo que as alterações inflamatórias induzidas pelo microrganismo não são responsáveis pela hiperalgesia observada em pacientes dispépticos. Os distúrbios de motilidade estão presentes em até metade dos pacientes dispépticos, sendo questionada a possibilidade de essas alterações se seguirem a uma infecção bacteriana. Entretanto, trabalhos atuais contrariam essa hipótese ao demonstrarem menor prevalência da infecção pelo H. pylori em dispépticos funcionais tipo desconforto pós-prandial. Poucos estudos demonstraram um real benefício com a utilização de antibióticos para a erradicação do H. pylori, e a maioria dos pacientes permanece sintomática após esse tipo de tratamento. Entretanto, estudos de metanálise, recentemente realizados, demonstram que a erradicação da bactéria resulta em um ganho terapêutico que varia de 4 a 14%, sendo superior ao placebo, e o tratamento anti-H. pylori é uma opção terapêutica para os dispépticos funcionais. Baseando-se nesses dados, os especialistas do Consenso Roma III recomendam que o H. pylori seja pesquisadoe, se presente, erradicado nesse grupo de pacientes. Da mesma forma, o último consenso europeu sobre H. pylori (Maastricht III) faz recomendação semelhante com a justificativa de que o tratamento anti-H. pylori beneficia um subgrupo de pacientes dispépticos, com a vantagem de reduzir, a longo prazo, o risco de evolução para úlcera péptica, atrofia e câncer gástrico. ACOMODAÇÃO O esvaziamento gástrico é regulado basicamente por dois compartimentos do estômago, distintos fisiologicamente. O estômago proximal acomoda os alimentos e regula a transferência para o estômago distal. Este, por sua vez, tritura e mistura o conteúdo intragástrico, além de participar na regulação da saída dos nutrientes para o duodeno. Muitos estudiosos têm tentado determinar se uma alteração da acomodação gástrica, ou seja, a má distribuição dos alimentos no estômago proximal, poderia levar ao aparecimento de sintomas dispépticos. Alguns estudos demonstraram que as alterações da acomodação gástrica são frequentes nos dispépticos funcionais. Em um recente estudo proveniente da Bélgica, foi demonstrado que alterações do relaxamento do estômago proximal estavam presentes em até 40% dos pacientes dispépticos. Foi ainda observada uma nítida relação com o sintoma de saciedade precoce, mas não com hipersensibilidade gástrica à distensão. EROSÕES PRÉ-PILÓRICAS E DUODENITE CRÔNICA As erosões pré-pilóricas que podem ser observadas na endoscopia de pacientes com dispepsia crônica têm a sua etiopatogenia muito controvertida. Essas alterações podem ser encontradas em indivíduos normais e em pacientes em uso de anti-inflamatórios não esteroides. É contraditória, também, a possibilidade de a duodenite levar a sintomas dispépticos. O número de pessoas com duodenite, isoladamente, é pequeno (menos de 20%), associando-se, na maioria das vezes, à inflamação crônica do antro gástrico. No nosso meio, associa-se às parasitoses intestinais, causa co mum de sintomas dispépticos entre nós. Na forma erosiva, é considerada como variante da doença cloridropéptica. FATORES PSICOSSOCIAIS Os fatores psicológicos também são considerados relevantes nesses pacientes. Diagnósticos psiquiátricos, especialmente ansiedade e depressão, são comuns em pacientes com DF. O estresse agudo pode alterar a função gastrintestinal, induzindo sintomas até mesmo em indivíduos normais. Os estudos clássicos de Wolff e Wolff, realizados em um único paciente, demonstraram dois padrões de alterações funcionais do estômago associadas a fatores emocionais: (1) hiperfunção gástrica com aumento da secreção gástrica, da motilidade e da vascularização, coincidindo com períodos de sentimentos de hostilidade e ressentimento; (2) hipofunção gástrica com redução da secreção gástrica, da motilidade e do fluxo sanguíneo durante sentimentos de medo, frustração e depressão. Outros estudos subsequentes confirmaram esses achados, porém é questionável se tais mecanismos explicam a sintomatologia crônica observada em dispépticos. Além disso, Camilleri et al. demonstraram também que pacientes portadores de dispepsia funcional, com ou sem hipomotilidade antral, apresentam respostas autonô- mica e humoral normais em situações de estresse. Alguns estudos revelam alta incidência de neuroses, ansiedade, depressão e tensão emocional entre os dispépticos funcionais quando comparados com voluntários assintomáticos, mas as diferenças absolutas foram pouco significativas, sugerindo que tais fatores eram de limitada relevância clínica. Evidências sugerem também que esses pacientes acham-se mais descontentes com o trabalho, com a qualidade de habitação e com a situação financeira do que os controles. Atualmente, vários autores levantam a curiosa possibilidade de que a ocorrência de eventos estressantes de vida, precedendo os sintomas, como, por exemplo, a separação dos pais, a perda de familiares ou o abuso sexual na infância, é mais prevalente entre os dispépticos, porém os resultados não têm mostrado diferenças significativas quando 6 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II comparados com os de grupos-controles adequadamente pareados quanto a sexo, idade e situação socioeconômica. Os fatores psicossociais e de personalidade parecem estar associados a um contingente expressivo de dispépticos funcionais, porém deve ser ressaltada a necessidade de estudos muito bem elaborados, objetivando uma melhor quantificação do estresse, tanto agudo como crônico, e das inter-relações entre função gastrintestinal, sistema nervoso autônomo, limiar de dor e estresse nessa fascinante e difícil área da Gastrenterologia. SOBREPOSIÇÃO DA DF COM A DRGE ECOM A S ÍNDROME DO INTESTINO IRRITÁVEL A dor epigástrica e o desconforto pós-prandial, que caracterizam a DF, são queixas muito comuns. O Comitê Roma III recomenda que na presença concomitante de pirose e de outros sintomas típicos do refluxo, mesmo com endoscopia digestiva normal, o diagnóstico de DRGE deve ser considerado. Por outro lado, a simples presença de pirose não deve excluir o diagnóstico de DF, especialmente naqueles casos em que os sintomas dispépticos persistem a despeito de uma adequada supressão ácida. Muito frequente também é o relato de sintomas compatíveis com a síndrome do intestino irritável em pacientes dispépticos funcionais. Cerca de 30% dos pacientes com diagnóstico de DF relatam concomitantemente dor na região inferior do abdome, distensão e alteração do hábito intestinal. TRATAMENTO A maneira mais apropriada de tratar o paciente é através de uma abordagem ampla e global, tentando identificar fatores desencadeantes ou agravantes da sintomatologia, inerentes a cada paciente. Uma boa relação médico-paciente continua sendo funda- mental. É necessário que os pacientes sejam esclarecidos de que seus sintomas são decorrentes de distúrbios funcionais e não caracterizam nenhuma doença grave ou risco de vida, assegurando-lhes que o problema será tratado de forma interessada e racional. Muitos pacientes obtêm melhora com simples mudanças em seu estilo de vida e adoção de hábitos salutares em seu cotidia- no como a dieta mais saudável, atividade física regular e exercícios de relaxamento. Devemos sempre recomendar hábitos dietéticos saudáveis (comer devagar, mais vezes/dia, menor quantidade), evitando-se alimentos gordurosos, condimentados, ácidos, café, cigarro e álcool em excesso. O empachamento pós-prandial em geral melhora com a retirada de alimentos gordurosos da dieta, enquanto a saciedade precoce pode ser aliviada com o fracionamento das refeições. A utilização de medicamentos está indicada para as fases sintomáticas, cuja duração é variável, esperando-se pelos períodos de melhora clínica em que deverão ser suspensos. O tratamento medicamentoso preconizado visa a aliviar o sintoma predominante. Os fatores emocionais devem ser abordados em todos os grupos de pacientes, através de uma conversa franca e aberta, tentando também esclarecer ao paciente a provável associação de seus sintomas com distúrbios emocionais. Muitas vezes, está indicada a psicoterapia, ou outras técnicas que objetivem a redução do estresse, sendo observada excelente resposta em alguns subgrupos de pacientes TRATAMENTO MEDICAMENTOSO O tratamento medicamentoso disponível visa principalmen- te a aliviar o sintoma predominante, e a estratégia terapêutica vai depender basicamente da natureza e intensidade da sintomatologia, do grau do comprometimento funcional e dos fatores psicossociais envolvidos. Inúmeros estudos demonstraram que a melhoraclínica, durante e após o tratamento medicamentoso tradicional, ocorre em menos de 60% dos dispépticos, e em geral não se observa resposta uniforme a essa terapêutica. Sabemos que a DF é uma síndrome heterogênea e é frequente o relato concomitante de pirose ou sintomas gastrintestinais baixos, o que dificulta ainda mais a real interpretação dos resultados terapêuticos. Deve-se lembrar que a resposta ao placebo é, em geral, muito alta. Estudos controlados e duplo-cegos demonstram que o placebo é capaz de promover melhora dos sintomas em um grande número de pacientes (25 a 60%), indicando que a terapêutica com drogas nem sempre é necessária. Para o tratamento clássico da DF, podem ser utilizados diversos medicamentos, destacando-se, entre eles, antiácidos, drogas antissecretoras, procinéticos, antibióticos para erradicação do H. pylori, ansiolíticos e antidepressivos. O Comitê Roma III sugere Que os inibidores da secreção ácida (bloqueadores H2 ou inibidores da bomba de prótons) sejam a primeira escolha para os pacientes com DF e predomínio de dor epigástrica, 7 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II Os procinéticos (metoclopramida, domperidona, bromoprida) para aqueles com desconforto pós- prandial. ANTISSECRETORES Os antissecretores são drogas seguras e se constituem em medicação de primeira linha para os pacientes com síndrome da dor epigástrica. INIBIDORES DA SECREÇÃO ÁCIDA Tanto os bloqueadores H2 como os inibidores da bomba de prótons são amplamente prescritos e recomendados como terapêutica de primeira linha. Recente metanálise sugere que os inibidores da bomba de prótons devem ser os escolhidos, pois se mostram mais eficazes no alívio da dor ou queimação epigástrica. Devem ser utilizados na dose padrão, 1 vez/dia. Tem sido demonstrado que a prescrição de doses mais elevadas não melhora a resposta terapêutica nos pacientes com DF. Obs.: A decisão de erradicar o H. pylori em pacientes dispépticos funcionais deve sempre levar em consideração o custo/benefício dessa opção terapêutica. Em se optando pela erradicação, o esquema terapêutico mais utilizado continua sendo IBP na dose-padrão, claritromicina (500 mg) e amoxicilina (1 g) antes do café da manhã e antes do jantar, durante 7 dias. PROCINÉTICOS Os procinéticos se mostram superiores ao placebo em vários ensaios clínicos, estando indicados em especial para os pacientes portadores da síndrome do desconforto pós- prandial. Esses medicamentos (metoclopramida, domperidona, bromoprida, cisaprida, neostigmina, ondasetron e tegaserode, além dos motilíneos derivados da eritromicina) são potencialmente capazes de melhorar vários parâmetros da motilidade gastroduodenal ao aumentar o tônus gástrico, a motilidade antral e, sobretudo, a coordenação antroduodenal, além de alguns deles serem capazes também de relaxar o fundo gástrico. A melhora dos sintomas com o emprego dessas drogas tem sido de 20 até 45 pontos percentuais maiores que na do placebo, e os procinéticos devem ser indicados, de maneira especial, para pacientes com sintomas de empachamento pós- prandial. Entretanto, Moayyedi et al., em um estudo de metanálise, observaram inúmeras falhas metodológicas ao avaliar 19 ensaios clínicos que utilizaram procinéticos na DF, o que dificulta conclusões sobre a real eficácia dessas drogas no alívio dos sintomas dispépticos ANTIDEPRESSIVOS Resultados bastante promissores têm sido obtidos com o emprego de antidepressivos tricíclicos (amitriptilina, desipramina e imipramina) e daqueles que atuam predominantemente na inibição da captação de serotonina dos neurotransmissores (fluoxetina, paroxetina, sertralina e citalopram). Esses medicamentos têm sido utilizados por apresentarem ação analgésica central, sendo capazes de bloquear a transmissão da dor do trato digestivo para o cérebro. Em recente estudo, a venlafexina, no entanto, não se mostrou mais efetiva do que o placebo nesses pacientes. Em metanálise recentemente publicada, demonstramos que a eficácia e segurança dos antidepressivos são semelhantes às dos procinéticos e antissecretores no alívio dos sintomas dis- pépticos. Recomenda-se iniciar com doses mais baixas do que as convencionalmente utilizadas e, caso ocorra melhora clínica, o tratamento deve ser mantido por 4 a 12 meses. OUTROS A insatisfação com a limitada resposta às terapias conven- cionais utilizadas para o tratamento da DF tem estimulado, nos últimos anos, pacientes e médicos a buscarem terapias não convencionais que possam ser mais eficazes do que aquelas tradicionalmente utilizadas. O tratamento psicológico (hipnose, psicoterapia e terapia cognitiva comportamental) e/ou as terapias alternativas (ervas chinesas, japonesas e indianas, acupuntura e probióticos) devem ser considerados para pacientes com sintomas mais graves, para os que não respondem ao tratamento farmacológico e para aqueles com doenças psiquiátricas associadas. A escola de Manchester, na Inglaterra, tem relatado resultados animadores com hipnose no tratamento da DF. É necessário ressaltar que a maioria dos estudos realizados empregando esse tipo de intervenção terapêutica não foi randomizada, controlada com placebo e, nem tampouco, apresenta desenho metodológico adequado, o que dificulta qualquer conclusão sobre a possível eficácia desse tratamento na dispepsia funcional. O gastrenterologista deve, no entanto, sempre incentivar a prática de atividades ou técnicas que envolvam relaxamento físico e mental, como ginástica, ioga ou caminhadas, respeitando obviamente as preferências de cada paciente. 8 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II DEFINIÇÃO Gastroenterologia essencial: Poucos termos em gastrenterologia propiciam maior confusão e ambiguidade do que gastrite. Assim, ela possui diferentes significados para o leigo, o clínico, o endoscopista e para o patologista. Enquanto o leigo e, mesmo alguns clínicos, a utilizam como sinônimo de sintomas mal caracterizados, hoje englobados sob a denominação de dispepsia funcional ou não ulcerosa, o endoscopista a emprega para descrever o que seriam apenas anormalidades macroscópicas como hiperemia ou enantema de mucosa, por exemplo, que pode ser secundária a outras causas que não inflamação da mucosa, como hemorragia subepitelial, dilatação capilar e depleção de mucina, sem configurar o real sentido do termo, ou seja, a presença de inflamação aguda ou crônica da mucosa gástrica. Por outro lado, o exame histológico de uma mucosa gástrica endoscopicamente considerada normal pode, muitas vezes, revelar inflamação extensa. Tratado de gastroenterologia: Gastrite e definida como inflamacao do revestimento do estomago associada a lesao da mucosa gastrica. O estudo da gastrite e dificil porque, mesmo com alteracoes acentuadas da mucosa, ela e, na maioria das vezes, assintomatica e sem aspectos radiologicos, gastroscopicos ou sorologicos especificos. Seu diagnóstico é, então, essencialmente histopatológico. Representa a resposta do estômago a uma agressao. O Helicobacter pylori (H. pylori) e o fator etiologico mais frequentemente associado a gastrite. GASTRITES AGUDAS Embora raramente observadas em biopsias gástricas de ro- tina, as gastrites agudas são classificadas em três grupos: Gastrite aguda por Helicobacter pylori (H. pylori), Gastrite supurativa ou flegmonosa aguda Gastrite aguda hemorrágica ou gastrite erosiva aguda. Esta última, também denominada por alguns como lesão aguda da mucosa gastroduodenal (LAMGD), pode ser secundária ao uso de álcool, ácido acetilsalicílico, anti- inflamatórios, corticosteroides eem situações clínicas como choque, trauma, cirurgias extensas, queimaduras, septicemia, insuficiência respiratória, hepática ou renal, entre outras. Histologicamente, independentemente da causa (álcool, drogas ou eventos estressantes), o quadro acomete todo o estômago, para, a seguir, predominar no antro e duodeno. As alterações histológicas se localizam apenas em áreas imediatamente adjacentes às lesões e se caracterizam, na zona subepitelial, por edema difuso da lâmina própria, congestão capilar e diferentes graus de hemorragia intersticial. Erosões podem ou não estar presentes, já que são rapidamente reparadas. Como os achados inflamatórios são tipicamente ausentes ou discretos, muitos autores preferem o termo gastropatia, em vez de gastrite, nestas eventualidades. GASTRITE AGUDA POR HELICOBACTER PYLORI Contágio e fisiopatologia: Adquirido por via oral, o microrganismo penetra na camada de muco e se multiplica em contato íntimo com as células epiteliais do estômago. O epitélio responde com depleção de mucina, esfoliação celular e alterações regenerativas sinciciais. As bactérias aí assestadas liberam diferentes agentes quimiotáticos que penetram através do epitélio lesado e induzem a migração de polimorfonucleares para a lâmina própria e epitélio. Os produtos bacterianos também ativam os mastócitos e, através de sua degranulação, há liberação de outros ativadores inflamatórios que aumentam a permeabilidade vascular, a expressão de moléculas de adesão de leucócitos nas células endoteliais e também contribuem para uma maior migração de leucócitos. O H. pylori estimula o epitélio gástrico a produzir uma potente citocina, a interleucina-8, cuja produção é potencializada pelo fator de necrose tumoral e pela interleucina-1 liberados pelos macrófagos em resposta à lipopolissacáride bacteriana. Nos poucos casos de infecção aguda estudados, parece haver igual envolvimento do antro e corpo gástricos. Nesta fase, ocorre pronunciada hipocloridria e ausência de secreção de ácido ascórbico para o suco gástrico. A secreção ácida retorna ao normal após várias semanas, e a secreção de ácido ascórbico para o suco gástrico persiste reduzida enquanto durar a gastrite crônica. Esta fase aguda é de curta duração. Com exceção de algumas crianças que eliminam espontaneamente a bactéria, a resposta imune é incapaz de eliminar a infecção e, após 3 a 4 semanas, ocorre um gradual aumento de células inflamatórias crônicas. Como consequência, a gastrite neutrofílica aguda dá lugar a uma gastrite ativa crônica. Quadro clínico: Embora a primoinfecção por H. pylori passe despercebida pela maioria dos pacientes, às vezes, após um período de incubação variável de 3 a 7 dias, alguns indivíduos desenvolvem um quadro clínico caracterizado por dor ou mal estar epigástrico, pirose, náuseas, vômitos, flatulência, sialorreia, halitose, cefaleia e astenia. Tais casos expressam a ocorrência de gastrite aguda à histologia, conforme comprovado em alguns estudos. Os sintomas tendem a permanecer por 1 a 2 semanas. As anormalidades macroscópicas são extremamente variáveis à endoscopia, desde pequeno enantema até erosões, úlceras ou, mesmo, lesões pseudotumorais. Na maioria dos pacientes, as alterações concentram-se fundamentalmente no antro, podendo, às vezes, comprometer também o corpo gástrico. Embora o quadro clínico seja autolimitado, evoluindo sem sintomas, ou com sintomas persistindo por até 2 semanas, na 9 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II quase totalidade dos casos a infecção, se não tratada, permanece indefinidamente e se acompanha sempre de quadro histológico de gastrite crônica. Diagnóstico: O diagnóstico laboratorial da infecção aguda pode ser feito através de histologia, testes respiratórios com carbono 13 ou 14, cultura e teste da urease. A sorologia também pode ser usada, embora, em pacientes recentemente infectados, possam ocorrer resultados falso-negativos. GASTRITE FLEGMONOSA AGUDA Fisiopatologia: É uma entidade rara, às vezes também presente em pacientes pediátricos, que se caracteriza por infecção bacteriana da muscularis mucosa e submucosa do estômago, com infiltração de células plasmáticas, linfócitos e polimorfonucleares. Na maioria dos casos descritos, a inflamação não ultrapassa o cárdia e o piloro, sendo a mucosa gástrica relativamente pouco acometida. O quadro costuma se instalar como complicação de doença sistêmica ou septicemia, tendo sido descrita após empiema, meningite e endocardite pneumocócica, entre outras. Quando causada por agentes formadores de gás, é denominada gastrite enfisematosa. Muitas vezes, podem-se observar alguns fatores predisponentes, como cirurgia gástrica prévia, hipocloridria, câncer gástrico, úlcera gástrica e gastrite. Na maioria dos casos descritos até hoje, foram isolados germes gram-positivos, especialmente Streptococcus spp., embora Pneumococcus spp., Staphylococcus spp., Proteus vulgaris, Escherichia coli e Clostri- dium welchii também já tenham sido identificados. Quadro clínico: A evolução clínica é rápida, com dor epigástrica, náuseas e vômitos purulentos, constituindo sintomas comumente observados. Outras vezes, podem-se encontrar sinais de irritação peritoneal. A visualização de gás na submucosa gástrica na radiografia simples de abdome sugere a possibilidade de germes formadores de gás, tipo Clostridium welchii. Diagnóstico: O diagnóstico clínico é muitas vezes difícil. Com frequência, o diagnóstico é feito através de laparotomia exploradora ou, mesmo, na necropsia. Leucocitose com desvio para a esquerda é quase sempre descrita, sendo a amilase normal. O estudo radiológico do estômago revela espessamento das pregas gástricas com redução da distensibilidade antral. Sendo a mucosa gástrica habitualmente poupada, a biopsia convencional pode não definir o diagnóstico, sendo necessário o uso de procedimentos especiais para se obter material da submucosa gástrica. GASTRITE AGUDA HEMORRÁGICA Fisiopatologia: As lesões agudas da mucosa gastroduodenal ou úlceras de estresse se iniciam nas primeiras horas após grandes traumas ou doenças sistêmicas graves e acometem as regiões proximais do estômago. Ocasionalmente, podem também envolver o antro gástrico, duodeno ou esôfago distal. Quadro clínico: São caracterizadas por múltiplas lesões hemorrágicas, puntiformes, associadas a alterações da superfície epitelial e edema. Como complicação clínica, a gastrite aguda pode exteriorizar-se por hemorragia digestiva alta. A sua patogenia não é bem conhecida, sendo os mecanismos mais aceitos aqueles relacionados com alterações nos mecanismos defensivos da mucosa gastroduodenal. Diagnóstico: Endoscopias realizadas dentro de 72 h após trauma cranioencefálico ou queimaduras extensas mostram anormalidades agudas da mucosa gástrica em mais que 75% dos pacientes, e, na metade dos casos, existem evidências endoscópicas de sangramento recente ou em atividade. Apesar disso, um percentual mínimo de pacientes apresentará evidências hemodinâmicas consequentes à perda aguda de sangue. Estudos epidemiológicos estimam que 1,5 a 8,5% dos pacientes internados em unidades de terapia intensiva apresentam sangramento gastrintestinal visível, podendo, entretanto, acometer até 15% daqueles que não recebem tratamento profilático adequado. É hoje aceito que pacientes internados em unidades de terapia intensiva e que apresentem alto risco para o desenvolvimento de lesões agudas da mucosa gastroduodenal devam receber tratamento profilático. GASTRITES CRÔNICASEm decorrência do desconhecimento da etiologia das principais formas de gastrite e pelo fato de as gastrites agudas raramente constituírem um problema para o patologista, pois habitualmente são afecções transitórias e quase nunca biopsiadas, as diferentes classificações das gastrites propostas, desde 1947, por Schindler, levaram em consideração os aspectos morfológicos em especial, além de se dirigirem fundamentalmente para o estudo das formas crônicas, inequivocamente as mais prevalentes. As contradições existentes entre as diversas classificações das gastrites e a imperiosa necessidade de se uniformizar a terminologia após a identificação e reconhecimento do H. pylori como o principal agente etiológico da gastrite crônica determinaram o desenvolvimento, em 1990, de uma nova classificação denominada Sistema Sydney para a classificação das gastrites. Em 1994, 4 anos após sua introdução, o Sistema Sydney foi reavaliado, sendo mantidos os princípios gerais e a graduação do que foi originalmente proposto em 1990, e acrescentada uma escala analógica visual com o objetivo de tornar mais homogêneas e menos subjetivas as graduações das gastrites. A terminologia da classificação final foi também aperfeiçoada para enfatizar a distinção entre gastrite atrófica e não atrófica. Para o 10 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II adequado estudo das gastrites, é recomendada a realização de, pelo menos, cinco biopsias, sendo uma da grande e outra da pequena curvatura gástrica, a 2 a 3 cm do piloro, uma da incisura angular, uma da pequena curvatura a 4 cm acima do angulus e outra na grande curvatura a 8 cm do cárdia. O Quadro 18.2 mostra a das gastrites crônicas baseadas na topografia, morfologia e etiologia, segundo o Sistema Sydney atualizado. GASTRITE CRÔNICA ASSOCIADA AO H. PYLORI Fisiopatologia: O H. pylori é hoje considerado o principal agente etiológico em mais de 95% das gastrites crônicas. Essa bactéria coloniza a mucosa gástrica humana com mínima competição por parte de outros microrganismos e parece estar particularmente adaptada a esse ambiente. Embora a presença do H. pylori evoque resposta imune local e sistêmica, a infecção, uma vez adquirida, persiste para sempre, sendo raramente eliminada espontaneamente. Mais ainda, é sempre acompanhada por gastrite histológica, de intensidade variável. O antro é tipicamente a primeira região a ser acometida, podendo às vezes predominar o comprometimento do corpo ou, mesmo, de todo o órgão (pangastrite). A distribuição do H. pylori no estômago é importante, pois parece ser um indicador do padrão de evolução da gastrite. Assim, indivíduos com gastrite predominantemente antral terão secreção gástrica normal ou elevada graças à manutenção de mucosa oxíntica íntegra e poderão ter um risco aumentado para úlcera duodenal. Indivíduos com gastrite acometendo de forma predominante o corpo do estômago terão secreção ácida reduzida, em consequência da destruição progressiva da mucosa oxíntica. Histologicamente, exibem uma mistura de gastrite crônica superficial e alterações atróficas com tendências a progredir com o passar dos anos (ou décadas), podendo ocorrer também o desenvolvimento de metaplasia intestinal. Estima-se que a gastrite crônica do corpo gástrico, associada a atrofia acentuada, eleva de três a quatro vezes o risco de carcinoma gástrico, do tipo intestinal. Quadro clínico: A gastrite crônica do antro associada a H. pylori é habitual mente uma condição assintomática. Apesar de alguns estudos tentarem associá-la à dispepsia funcional, a maioria dos estudos não encontrou correlação entre sintomas gastrintestinais e a extensão ou intensidade da gastrite. Desta forma, o principal significado clínico da gastrite crônica associada ao H. pylori reside em sua estreita associação etiológica com a úlcera péptica duodenal e com o carcinoma e linfoma gástrico. Complicações: A sequência infecção pelo H. pylori → gastrite crônica → atrofia glandular → metaplasia intestinal constitui um conjunto de alterações associativas muito frequentemente observado na espécie humana e desencadeado pela infecção pelo H. pylori ou tendo como passo inicial essa infecção. Embora a progressão da atrofia e da metaplasia, associadas ao H. pylori, possa trazer outras consequências fisiopatológicas como a úlcera péptica, o ponto de maior interesse está localizado, hoje, no desenvolvimento do câncer gástrico. Entre elas, a mais importante é o adenocarcinoma tipo intestinal que, de acordo com muitos, poderia ser colocado como a etapa final da sequência evolutiva anteriormente descrita, em um número significativo de pacientes. Portanto, atrofia glandular e metaplasia intestinal são consideradas, hoje, como corresponsáveis pelo câncer gástrico do tipo intestinal, havendo controvérsias na literatura acerca do grau de importância de cada uma. Metaplasia intestinal no estômago se refere à reposição progressiva do epitélio gástrico pelo epitélio tipo intestinal, ou seja, por um epitélio neoformado que apresenta características bioquímicas e morfológicas (tanto à microscopia óptica como à eletrônica) do epitélio intestinal, tanto do delgado como do cólon. Assim sendo, o epitélio metaplásico pode ser constituído por diferentes linhagens de células próprias da mucosa in testinal como células caliciformes, células absortivas, células de Paneth e células endócrinas. A atrofia da mucosa gástrica associada à gastrite crônica sinaliza para a possibilidade da existência de metaplasia intestinal ou torna sua ocorrência mais provável. A associação entre metaplasia intestinal e sinais histológicos conspícuos de atrofia glandular ocorre na maioria dos casos, não oferecendo dificuldade diagnóstica. Como já é conhecido, os pacientes que apresentam gastrite crônica que afeta, em graus semelhantes, tanto o antro quanto o corpo do estômago (pangastrite crônica) costumam evoluir com atrofia glandular do estômago e são exatamente os casos em que o câncer gástrico desenvolve-se com mais frequência. Em relação ao carcinoma gástrico tipo intestinal, o elo principal entre estas lesões precursoras é admitido como sendo a metaplasia intestinal. Tendo em vista a alta 11 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II frequência de metaplasia intestinal e a relativa baixa frequência do câncer gástrico, alguns autores ressaltam que a atrofia da mucosa gástrica seria tão relevante quanto a metaplasia intestinal, ou mais, em relação à carcinogênese gástrica. Gastrite atrófica, atrofia gástrica e metaplasia intestinal constituem sequelas frequentes de gastrite crônica secundária à infecção por H. pylori. Um grande estudo multicêntrico japonês relatou a presença de gastrite atrófica em 89,2% dos indivíduos infectados e em apenas 9,8% naqueles não infectados. Da mesma forma, metaplasia intestinal foi detectada em 43,1% dos indivíduos H. pylori positivos, enquanto somente 6,2% daqueles não infectados apresentavam tal anormalidade. GASTRITE CRÔNICA AUTOIMUNE Fisiopatologia: Conhecida também como gastrite tipo A, acomete o corpo e fundo gástricos, raramente atingindo o antro. Caracteriza-se por uma atrofia seletiva, parcial ou completa, das glândulas gástricas no corpo e fundo do estômago, ocorrendo uma substituição, parcial ou completa, das células superficiais normais por mucosa tipo intestinal (metaplasia intestinal). A mucosa antral, por quase não ser acometida nesta entidade, mantém sua estrutura glandular normal e apresenta células endócrinas hiperplásticas. Funcionalmente, a atrofiadas glândulas gástricas do corpo se associa com hipocloridria (atrofia parcial) ou, em casos avançados, acloridria, secundária à redução da massa de células parietais; paralelamente, há um decréscimo também na secreção de fator intrínseco, podendo ocasionar a redução da absorção de vitamina B12 e o aparecimento de manifestações clínicas da anemia perniciosa. A preservação funcional da mucosa antral resulta em estimulação constante das células G com hipergastrinemia. Evidências imunológicas e experimentais sugerem um componente autoimune nesta entidade. Assim, a maioria dos pacientes apresenta testes imunológicos positivos, enquanto vários evoluem com outras doenças autoimunes, como, por exemplo, as tireoidites autoimunes. Estudos em famílias de portadores de gastrite atrófica demonstram uma incidência aumentada de gastrite em parentes de primeiro grau, sugerindo uma base genética, sendo a anemia perniciosa, a expressão final da gastrite crônica autoimune do corpo, hoje considerada como determinada por um gene autossômico único. Quadro clínico: A gastrite autoimune é assintomática do ponto de vista gastrintestinal, advindo sintomas hematológicos e/ou neurológicos na ocorrência de anemia perniciosa. Em decorrência da acloridria, com a consequente elevação do pH gástrico, tem sido descrita uma maior suscetibilidade desses pacientes a infecções entéricas por bactérias, vírus e parasitos. Diagnóstico: O diagnóstico da gastrite crônica autoimune do corpo é eminentemente histopatológico. À endoscopia, quando se insufla ar no estômago, o pregueado mucoso do corpo se desfaz total ou parcialmente e observa- se uma mucosa de aspecto liso, brilhante e delgado, com os vasos da submucosa facilmente visualizados. Deve-se proceder à coleta simultânea de material para exame histopatológico do corpo e antro gástricos, para se ter certeza da localização do processo inflamatório. Os índices de concordância da histologia com a endoscopia são conflitantes, embora, nos casos mais avançados, a correlação seja razoavelmente boa. Anticorpos anticélula parietal e antifator intrínseco, embora presentes em até 90% dos portadores de anemia perniciosa, com frequência estão ausentes em porta- dores de gastrite atrófica apenas, sem alterações hematológicas. A gastrina sérica acha-se comumente elevada, embora possa estar normal ou reduzida em um pequeno número de casos, quando a atrofia atinge também o antro gástrico. A acloridria pode ser detectada através da secreção gástrica basal e estimulada. A medida isolada do pH gástrico em jejum pode mostrar também uma boa correlação com hipocloridria verdadeira ob- servada na gastrite do corpo e fundo. As determinações séricas de pepsinogênio, especialmente a relação entre pepsinogênio I e II, constituem testes não invasivos promissores para a detec- ção de gastrite atrófica do corpo e antro. GASTRITES QUÍMICAS Terminologia adotada no lugar de designações encontradas em outras classificações, como gastrites reativas, gastrite de refluxo ou gastrite tipo C. Engloba os achados observados no refluxo biliar, em associação com certas drogas ou sem relação causal evidente, porém com aspectos histológicos comuns, constando de hiperplasia foveolar, edema, vasodilatação, fibrose ocasional e escassez de componente inflamatório. GASTRITE QUÍMICA ASSOCIADA AO REFLUXO BILIAR Fisiopatologia e etiologia: Refluxo enterogástrico é um fenômeno comum após procedimentos de ressecção gástrica, independentemente do tipo de reconstituição do trânsito empregada, seja Bilroth I ou II. Também tem sido observado após vagotomia troncular com piloroplastia e, quando presente, é de mínima monta depois de vagotomia superseletiva. Entre os achados histológicos, a hiperplasia foveolar com alongamento e/ou tortuosidade constitui o achado histológico mais sugestivo de gastrite reativa associada ao refluxo biliar. Quadro clínico e epidemiologia: Na maioria dos casos sintomáticos, o quadro se desenvolve após cirurgia gástrica para úlcera péptica, com a sintomatologia se iniciando dentro 12 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II de poucas semanas a vários anos depois do ato cirúrgico. A exata incidência é desconhecida, com alguns estudos sugerindo que possa ocorrer em até 9% dos pacientes operados. Os casos descritos em pacientes sem cirurgia gástrica anterior estão quase sempre associados à co- lecistectomia prévia. Clinicamente, o quadro se caracteriza por dor epigástrica, vômitos biliosos, perda de peso e anemia. A dor não é aliviada por antiácidos ou outros antiulcerosos, se agravando com os alimentos e, com frequência, se associando com eructações pós-prandiais, distensão abdominal e pirose; menos frequentemente, pode ocorrer anemia secundária à perda oculta de sangue pelas fezes. A correlação entre refluxo duodenogástrico, sintomas e a presença de gastrite é incerta. Embora alguns estudos demonstrem que a infusão de suco duodenal autólogo no remanescente gástrico possa reproduzir os sintomas em pacientes previamente sintomáticos, a maioria dos pacientes com gastrite e/ou refluxo é, na verdade, assintomática. Diagnóstico: O diagnóstico se baseia na presença de sintomas e na exclusão de outras afecções como úlcera pós- operatória, obstrução pilórica, síndrome de alça eferente, síndrome do intestino irritável, afecções biliopancreáticas, dentre outras. O estudo da secreção gástrica normalmente mostra hipo ou acloridria, com mínima resposta ao estímulo com pentagastrina. Em alguns pacientes, a determinação de gastrina sérica auxiliará na exclusão de estados hipergastrinêmicos como a síndrome do antro retido após ressecção a Billroth II, gastrinoma ou hiperplasia de células G. O Bilitec 2000, instrumental que inclui eletrodos posicionados no estômago e/ou no esôfago, é capaz de monitorar por 24 h, através de propriedades espectrofotoquímicas, a exposição das mucosas destes segmentos a material refluído contendo bilirrubina. Constitui hoje o melhor método diagnóstico para a presença de refluxo alcalino, duodenogástrico ou gastresofágico. Finalmente, estudos de esvaziamento do remanescente gástrico, empregando métodos isotópicos, podem ser necessários para avaliar distúrbios de motilidade, já que a cirurgia de derivações em Y de Roux pode não beneficiar, ou mesmo agravar, pacientes com estase apreciável do coto gástrico. GASTRITE LINFOC ÍTICA Fisiopatologia: Denominada como gastrite varioliforme ou gastrite erosiva crônica pelos endoscopistas em outras classificações, se caracteriza pela presença de múltiplas nodulações com erosões centrais e hiperemia circunjacente. As erosões têm, em média, 0,5 a 1 cm de diâmetro e se distribuem em filas no topo de pregas geralmente espessadas. A etiologia é desconhecida, e um mecanismo de hiper- sensibilidade parece estar envolvido. Alguns autores também postulam que ela possa representar uma forma particular de resposta imunológica a determinados casos de infecção pelo H. pylori, ou uma manifestação de doença intestinal, tipo celíaca o ou espru, em que a infiltração linfocítica, observada nestas en- tidades, pudesse acometer o epitélio gástrico. Sua presença é raramente observada. Entre nós, Ribeiro et al., em Belo Horizonte, estudando 800 biopsias gástricas de rotina, encontraram apenas seis casos de gastrite linfocítica. Quadro clínico: A maior parte dos pacientes é assintomática, alguns podem apresentar sintomatologia sugestiva de úlcera péptica e/ou evidências de hemorragia digestiva alta, manifesta ou oculta. Diagnóstico:O diagnóstico é suspeitado pelo padrão macroscópico à endoscopia. O exame histológico revela a presença de mais de 30 linfócitos intraepiteliais/100 células epiteliais, enquanto, em estômagos normais, se observam, no máximo, sete linfócitos intraepiteliais/100 células epiteliais (Figura 18.1). A história natural é variável, com alguns pacientes se tornando assintomáticos em poucas semanas ou permanecendo com queixas dispépticas, contínuas ou intermitentes por anos. 13 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II GASTRITES GRANULOMATOSAS NÃO INFECCIOSAS Constituem cerca de 0,3% de todas as gastrites e se caracterizam pela presença de infiltrado granulomatoso. Funcionalmente, o granuloma representa uma reação inflamatória localizada em resposta a inúmeros fatores desencadeantes, muitas vezes de etiologia não definida. Entre os fatores etiológicos conhecidos, encontram-se os granulomas do tipo corpo estranho em reação à presença de fio de sutura e talco, granulomas secundários a in ecções como tuberculose, sífilis, histoplasmose, esquistossomo- se etc., além daqueles secundários a neoplasias como linfomas e carcinomas e a doenças idiopáticas como sarcoidose, doença de Crohn ou gastrite granulomatosa isolada, entre outras. Á EPIDEMIOLOGIA Constitui a neoplasia gástrica mais frequente, responsável por 95% dos tumores malignos que acometem o estômago humano. Embora a incidência do carcinoma gástrico (CG) venha declinando de uma maneira contínua e regular nas últimas décadas, ele constitui a segunda causa de óbito por câncer no mundo, com registro de mais de 900.000 novos casos ao ano. Em geral, sua magnitude é de duas a três vezes maior nos países em desenvolvimento e é mais prevalente no sexo masculino que no feminino. Sua distribuição na população mundial não é uniforme, apresentando um padrão variável, e sua incidência é alta no Japão, China, Chile, Costa Rica, Leste Europeu, algumas regiões da antiga União Soviética, América do Sul e América Central. No Brasil, o Ministério da Saúde estimou em 21.500 os novos casos de câncer gástrico no Brasil no ano de 2010, sendo 13.820 em homens e 7.680 em mulheres. Estes valores correspondem a um risco estimado de 14 casos novos a cada 100 mil homens e 8 para cada 100 mil mulheres. A diminuição na incidência de câncer de estômago tem sido observada em vários países, inclusive no Brasil, e pode ser explicada por reduções nas taxas de prevalência de fatores de risco. Nos EUA, a maioria dos casos de CG originava-se no estômago distal, ou seja, antro e corpo, mas, desde 1976, de acordo com dados da Surveillance Epidemiology and End Result Program, tem havido uma redução do número das lesões distais e um concomitante aumento contínuo e gradativo da incidência do adenocarcinoma proximal, ou seja, da junção esofagogástrica e cárdia. A taxa de crescimento desses tumores excede a de qualquer outro tipo de câncer, incluindo câncer de pulmão e melanoma, sugerindo que os cânceres da porção proximal do estômago e o da junção esofagogástrica têm patogênese e epidemiologia partilhadas e, provavelmente, diferentes do ade- nocarcinoma distal. FATORES DE RISCO O adenocarcinoma gástrico tem etiologia complexa e mul- tifatorial. Fatores dietéticos e hábitos de vida tradicionalmente recebem grande ênfase no estudo do adenocarcinoma gástrico. O maior consumo de frutas e vegetais permanece como fator capaz de reduzir o risco de desenvolvimento de câncer gástrico, embora estudos prospectivos recentes não tenham sido capazes de confirmar esse efeito. Tampouco a suplementação de vita- minas na dieta foi capaz de reduzir o risco de câncer gástrico. Apesar da enorme quantidade de estudos avaliando o papel do consumo de álcool e da ingestão de sal e nitratos na dieta na etiologia do câncer gástrico, não existe consenso estabelecido no efetivo papel destes fatores no câncer gástrico. O hábito de fumar constitui um fator de risco estabelecido para o adenocarcinoma gástrico. Um extenso estudo europeu recente estima que 17,6% dos casos de câncer gástrico são atribuídos ao tabagismo. Associação entre câncer gástrico, gastrite autoimune e anemia perniciosa é reconhecida há anos. Hsing et al., em uma coorte com 4.517 pacientes portadores de anemia perniciosa e acompanhados por até 20 anos, observaram um aumento no risco de câncer gástrico de até 3 vezes. A maior parte dos adenocarcinomas gástricos ocorre esporadicamente, enquanto 8 a 10% têm um componente familial envolvido. Carcinoma gástrico pode ocasionalmente se desenvolver em famílias com mutações genéticas nos genes p53 (síndrome de Li-Fraumeni) e BRCA2. É estimado que 1 a 3% dos tumores gástricos derivam de mutações no gene codificador E- cadherina, proteína de adesão celular, que originam uma predisposição ao câncer gástrico (câncer gástrico hereditário difuso) com penetrância de 70%. O câncer gástrico pode também se desenvolver como parte da síndrome do câncer colorretal hereditário sem polipose (HNPCC) e de outras síndromes polipoides gastrintestinais como a polipose adenomatosa familiar e a síndrome de Peutz-Jeghers. 14 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II A infecção por Helicobacter pylori (H. pylori) constitui hoje o maior fator de risco para o desenvolvimento do adenocarcinoma distal de estômago, e, desde 1994, este microrganismo é considerado um carcinógeno tipo 1 (definido) para o desenvolvimento de câncer gástrico no homem. Sua presença no estômago humano eleva cerca de 6 vezes a incidência desse tipo de tumor. A prevalência exata da infecção por H. pylori em pacientes com câncer gástrico não é facilmente estimada, já que ela pode ter desaparecido espontaneamente com o progredir das lesões pré-neoplásicas, dificultando o seu diagnóstico mesmo por métodos sorológicos. Os mecanismos de carcinogênese gástrica induzidos pela infecção por H. pylori vêm sendo progressivamente aclarados e parecem relacionados com a capacidade de promover de- sequilíbrio entre proliferação celular e apoptose, liberação de citocinas pró-inflamatórias, formação de radicais livres, desregulação da Cox-2, subversão da imunidade e estimulação da angiogênese. Além disso, é sabido o papel da inflamação crônica do trato gastrintestinal na proliferação, adesão e transformação celulares. No ambiente intragástrico, a proteína CagA produzida por algumas cepas de H. pylori é hoje considerada como potencial agente oncogênico direto. Esta proteína, produzida pelo gene CagA, é introduzida dentro das células epiteliais gástricas através do sistema de secreção tipo IV do H. pylori (como uma “seringa molecular”). Uma vez injetada no interior da célula epitelial, esta proteína é fosforilada pelas quinases da família SRC e ativa a fosfoquinase SHP2, que atua como oncoproteína humana, e, em conjunto com outras quinases, são capazes de subverter a fisiologia celular, gerando processos pré- neoplásicos como ativação de receptores de fa- tores de crescimento, proliferação celular aumentada, evasão de apoptose, angiogênese sustentada, dissociação celular e in- vasão tecidual, entre outros. Também fatores relacionados com o hospedeiro têm sido estudados no processo de carcinogênese gástrica associada ao H. pylori. El-Omar et al., em trabalho memorável, estudando pacientes com câncer gástrico e familiares de portadores de câncer gástrico, demonstraram que fatores genéticos do hospedeiro – polimorfismos dos genes que codificam a interleucina IL-1β – são capazes de aumentar a possibilidadede resposta hipoclorídrica crônica à infecção por H. pylori e o risco de câncer gástrico, presumivelmente por alterar os níveis de IL-1β no estômago, sugerindo, assim, por que alguns indivíduos infecta- dos por H. pylori desenvolvem câncer gástrico, enquanto outros não o fazem. Sendo esse câncer uma doença multifatorial, ou- tros fatores estão certamente envolvidos, justificando-se, desse modo, por que nem todos os indivíduos com este genótipo irão desenvolver o câncer no estômago. Recentemente, estudos experimentais em ratos colonizados por H. felis têm questionado a teoria epitelial para a carcinogênese gástrica. No experimento, a mucosa gástrica infectada tornou-se atrófica, sendo colonizada por células-tronco da medula óssea que se diferenciariam em células intestinais, dando sequência à metaplasia intestinal, displasia e câncer intraepitelial. FISIOPATOLOGIA- ANATOMIA PATOLÓGICA Segundo Pelayo Correa, a carcinogênese gástrica constitui processo multifatorial que se desenvolve em etapas sucessivas ou sequenciais a partir da gastrite crônica induzida pela bactéria. As lesões evoluiriam progressivamente e culminariam no adenocarcinoma gástrico do tipo intestinal ou difuso. Naqueles do tipo intestinal, a mucosa assemelha-se, em seu aspecto, ao intestino delgado, o adenocarcinoma gástrico localiza-se com mais frequência no antro, não está associado a grupos sanguíneos definidos, é mais frequente em homens de idade avançada e predomina em populações de alto risco. Está ainda relacionado com a presença de gastrite crônica com atrofia, metaplasia intestinal e displasia epitelial antecedendo o aparecimento do câncer. Nos tumores do tipo difuso (menos frequente que o tipo intestinal), a localização principal é o fundo gástrico, o adenocarcinoma gástrico acomete pacientes mais jovens, é li- geiramente mais frequente em homens e pode estar associado ao grupo sanguíneo A. Histologicamente, é composto por focos de células malignas com infiltração inflamatória mínima, em uma quantidade substancial de tecido fibroso, sendo mais frequente em populações de baixo risco para carcinoma gástrico. Nestes casos, a gastrite crônica por H. pylori, sob modulação de fatores genéticos, progrediria mais diretamente a partir de lesões hiperplásicas e talvez displasia para o adenocarcinoma difuso. Embora, algumas vezes, a classificação dos adenocarcinomas como difusos ou intestinais não seja possível, esses dois tipos de tumores parecem representar desordens distintas, com diferentes fatores epidemiológicos e etiológicos. Macroscopicamente, a classificação morfológica de Bor- rmann, divide os adenocarcinomas gástricos em quatro grupos: Tipo I: polipoide, exofítico, papilar ou vegetante, correspondente às lesões que se projetam para o lúmen gástrico e que, variando de tamanho, podem atingir grandes proporções. Tipo II: são os cânceres ulcerados que medem mais de 3 cm de diâmetro, bem delimitados, sem infiltração do tecido vizinho. Suas bordas são caracteristicamente elevadas, irregulares e mamelonadas. Apresentam fundo de cor acinzentada, com tecido necrótico mesclado com coágulos de sangue, podendo apresentar ilhas de mucosa normal. Tipo III: câncer ulcerado e infiltrante, com bordas menos salientes que no tipo II e com disseminação parcialmente difusa. 15 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II Tipo IV: é a infiltração neoplásica difusa de um segmento da parede gástrica ou de toda essa parede, podendo ocorrer ulcerações de profundidade variável. Quando a infiltração se estende por todo o estômago, os limites não são distinguidos pela palpação, nem tampouco por métodos radiológicos ou endoscópicos; é a chamada linitis plastica, na qual as paredes do estômago tornam-se rígidas e o órgão toma forma tubular sugestiva de uma bota de couro para vinho. QUADRO CLÍNICO O adenocarcinoma gástrico incide mais sobre homens, em uma proporção de 2:1 homem/mulher, assim como é mais encontrado entre os negros. As manifestações clínicas do adenocarcinoma gástrico precoce são tipicamente vagas e inespecíficas, raramente provocando sintomas que possam induzir a um diagnóstico precoce da doença, ocasião em que o tumor é superficial e potencialmente curável pela cirurgia ou procedimentos endoscópicos. O tumor torna-se sintomático, na grande maioria dos casos, em uma fase avançada da doença, ou quando já existem metástases. Perda de peso, desconforto abdominal insidioso, acompanhado de plenitude pós-prandial e dor epigástrica tipo úlcera ou incaracterística, de intensidade variável, são os sintomas mais comumente referidos pelos pacientes. Anorexia e náuseas leves são sintomas comuns, mas em geral não são representativos da doença. O vômito pode ocorrer quando o tumor invade o piloro, enquanto a disfagia é o principal sintoma associado à lesão do cárdia. Hematêmese e melena são relatadas em 20% dos casos. Podem ocorrer, ainda, eructações, flatulência e distúrbios do hábito intestinal. Entre os sintomas dependentes da disseminação metastática, destacam-se dores ósseas, sintomas pulmonares, hepáticos e neurológicos. O exame objetivo dos pacientes com CG precoce nada apresenta de anormal; apenas nas formas mais avançadas do tumor, constatam-se caquexia, icterícia, palidez cutânea com pele de tonalidade amarelo- pálida. Às vezes, evidencia-se a presença de massas palpáveis, dolorosas ou não, no epigástrio, bem como ascite e edema de membros inferiores. Pode ocorrer a disseminação por invasão direta através da parede do estômago, com adesão ou invasão de estruturas subjacentes, tais como pâncreas, fígado e cólon. Quando a doença se estende para o cólon transverso, podem surgir vômitos fecaloides e, às vezes, observam-se alimentos recentemente ingeridos nas fezes. A doença também pode se disseminar, através dos linfáticos, para os linfonodos intra- e extra- abdominais, destacando-se, dentre estes, os linfonodos palpáveis na fossa supraclavicular esquerda (gânglio de Virchow-Troisier), nódulos ou empastamento do fundo de saco de Douglas ao toquretal (sinal de Blumer), aumento do volume do ovário ao exame ginecológico (tumor de Krukenberg). Ocasionalmente, podem ocorrer síndrome paraneoplásica, anemia hemolítica microangiopática, glomerulopatia membra- nosa, queratose seborreica, acantose nigricans (lesões filiformes e papulares com pigmentação nas dobras da pele e de membranas mucosas), coagulação intravascular crônica causando trombose arterial e venosa e, em raras ocasiões, dermatomiosite 16 Rayssa Mirelle S. Carvalho Tutoria 02- MOD II DIAGNÓSTICO DOENÇA PRECOCE Nos casos de doença precoce, o diagnóstico é possível apenas quando se realizam programas de rastreamento na população assintomática, como é, rotineiramente, feito no Japão e na Coreia, ou, o diagnóstico se faz por acaso durante exame endoscópico em pacientes com outras queixas. DOENÇA AVANÇADA Nos casos de doença avançada, os exames laboratoriais podem demonstrar anemia (42% dos casos) presença de sangue oculto nas fezes (40% dos casos) hipoproteinemia (26% dos casos) anormalidades das provas de função hepática (26% dos casos). A determinação dos níveis plasmáticos do pepsinogênio A e C em combinação com a soro positividade do H. pylori têm sido sugeridas como exames promissores para o rastreamento de lesões pré-malignas do estômago. Embora o estudo contrastado do estômago possa contribuir para o diagnóstico do adenocarcinoma gástrico, a
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