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Curso de Educação à Distância Licenciatura em Letras Leitura e Produção de Texto Conteúdo Program ático - Período 1 4 LIVRO 01 Presidente da República Federativa do Brasil Dilma Rousseff Ministro da Educação Aloisio Mercadante Presidente da Capes Jorge Almeida Guimaraes Universidade Federal de Alagoas Reitor Eurico de Barros Lobo Filho Vice-Reitor Rachel Rocha de Almeida Barros Coordenador UAB/CIED Luis Paulo Leopoldo Mercado Coordenador Adjunto UAB/CIED Fernando Silvio Cavalcante Pimentel Coordenação de Projetos e Fomentos/CIED Mylena Araujo Coordenadora do Núcleo de Formação/CIED Lilian Carmen Lima dos Santos Coordenação de Tutoria/CIED Rosana Saria de Araujo Coordenador do Núcleo de Comunicação e Produção de Materiais Didáticos/CIED Guilmer Brito Responsável pelos Projetos de Design Gráfico/CIED Raphael Pereira Fernandes de Araújo Projeto Gráfico Luiz Marcos Resende Júnior Diagramação e Finalização Lucas Gerônimo Villar 5Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Disciplina 4 Leitura e Produção de Texto Professora: Susana Souto Silva Revisão ortográfica: Andréia da Silva Pereira 6 7Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4D4 INTRODUÇÃO Seja bem-vindo à disciplina Leitura e Produção de Texto em Língua Portuguesa, do Curso de Letras a Distância com Habilitação em Língua Espanhola! Nesta disciplina, serão discutidos procedimentos de leitura e escrita, duas complexas práticas sociais aqui compreendidas como históricas e culturalmente constituídas. Essa reflexão será feita a partir da contínua leitura e produção de textos pertencentes a vários gêneros do discurso. Iremos, portanto, ler e produzir diversos textos, buscando compreender o que chamamos língua portuguesa, principalmente, em sua dimensão escrita. O nosso desafio é fazer isso associando saber e sabor, duas palavras que têm o mesmo étimo (origem). As diversas atividades propostas buscam, portanto, aliar a dimensão acadêmica do aprendizado à experiência lúdica de conhecimento da língua, que estão intimamente associadas ao conhecimento de nós mesmos e do mundo. “As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase”, escreve Carlos Drummond de Andrade, em um dos seus belos poemas, “A flor e a náusea”, que compõe o livro A rosa do povo. Esse verso é um convite para que vejamos com ênfase, com entusiasmo, o estudo que iniciamos. É também um lembrete de que o processo de conhecimento é um processo de perplexidade, de dúvida, um processo que exige abertura para o novo e o contínuo questionamento de nossas certezas. Parabéns pela aprovação no processo seletivo do Curso de Letras e bom semestre! 8 9Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 APRESENTAÇÃO DO PROFESSOR Meu nome é Susana Souto Silva. Fiz graduação em Letras: Português/Literatura, na Universidade Federal de Alagoas. Cursei o mestrado em Literatura Brasileira, na Universidade de São Paulo, onde desenvolvi pesquisa sobre a obra de Clarice Lispector que resultou na dissertação intitulada “Diálogos possíveis: primeiros críticos de Clarice Lispector” (1999). O meu doutorado foi realizado na Universidade Federal de Alagoas, na área de Estudos Literários, com a tese “O caleidoscópio Glauco Mattoso”, defendida em 2008. Iniciei a minha carreira no ensino médio, na década de 90. Em 1997 comecei a ministrar aula de literatura brasileira e língua portuguesa no ensino superior, na Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), em Chapecó-SC. No mesmo ano, mudei-me para Brasília, onde trabalhei na Universidade Católica de Brasília até 2004, ministrando aulas de literatura brasileira, teoria literária e língua portuguesa. Em 2008, tornei-me professora efetiva na Ufal, universidade na qual já atuava desde 2005 como professora substituta. Atuo na graduação e na pós-graduação da Faculdade de Letras; além de ministrar aulas, oriento trabalhos de graduação, mestrado e doutorado. Organizei, em parceria com Herbert Nunes dos Santos, o livro Trilhas do humor na literatura brasileira. Publiquei diversos artigos sobre literatura em revistas especializadas da área de Letras. Escrevo regularmente para a coluna Obra aberta da revista Língua portuguesa. A minha pesquisa está centrada na literatura brasileira moderna e contemporânea. Para saber mais você pode acessar meu currículo lattes (http://lattes.cnpq.br/6356306442921117). PLANO DE DISCIPLINA Curso: Letras UAB - Espanhol Disciplina: Leitura e Produção de Texto em Língua Portuguesa Carga Horária: 80h/a (teórica: 40h/a; Prática: 40h/a) Professora: Susana Souto Silva Ementa: Prática de leitura e produção de texto, de diversos gêneros, em português, fundamentadas no conceito de linguagem como atividade interlocutiva e no texto como unidade básica significativa na língua. Conteúdos: Unidade 1 1.1. Apresentação da disciplina, da docente responsável e dos tutores que acompanharão a turma. 1.2. Apresentação do Plano de Ensino da Disciplina. 1.3. Concepções de língua, leitura e escrita, a partir da leitura e produção de textos diversos. 1.4. Leitura de textos teóricos sobre língua, leitura e escrita. 1.5. Produção de textos. Unidade 2 2.1. Compreensão da definição e da diversidade dos gêneros do discurso, com base na leitura de textos. 2.2. Produção de textos de diferentes gêneros do discurso: narrativa, resumo, resenha e artigo. Obs.: As questões especificamente gramaticais serão abordadas a partir da produção textual dos estudantes, de acordo com as principais dificuldades apresentadas. 10 11Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 Metodologia: A metodologia está centrada na concepção de ensino- aprendizado como uma relação dialógica, que se efetua no contínuo debate de textos teóricos, bem como na produção textual do estudantes, compreendida como processual. Serão utilizados os recursos convencionais, aulas expositivas, trabalhos escritos em sala, nos encontros presenciais, bem como os recursos da modalidade ensino a distância, na qual se insere este curso. Além da leitura e produção de textos escritos em língua portuguesa, serão também utilizados vídeos, depoimentos, músicas, como recursos de ensino. Avaliação: Unidade 1. Presencial: Análise de textos e elaboração de texto escrito acerca da relação entre escrita e leitura. EAD: Participação no fórum de discussão e questionários sobre textos lidos. Unidade 2. EAD: Leitura de textos teóricos, literários, críticos e jornalísticos. Produção de textos de acordo com os gêneros estudados: narrativa; resumo do texto de Mikhail Bakhtin; resenha sobre obra literária lida; leitura e elaboração de artigo sobre tema livre, a ser definido pelos estudante em diálogo com a professora responsável. Presencial: Prova escrita sobre conteúdo ministrado. Objetivos Gerais: Promover a leitura e a produção de textos em língua portuguesa, de modo crítico e criativo, a partir de uma compreensão dialógica da língua. Objetivos Específicos: Compreender as definições de língua, escrita e leitura, a partir da contínua prática da leitura e produção de textos; Conhecer as definições de gêneros do discurso, associando-as às práticas de escrita e leitura; Conhecer as normas de produção de textos acadêmicos, com destaque para a elaboração de resumos, resenhas e artigos Bibliografia Básica: FARACO, C. A. e TEZZA, C. Prática de textos para estudantes universitários. Petrópolis, Vozes, 1992. GALVEZ, C; ORLANDI, E. e OTONI, P. (Orgs). O texto: escrita e leitura. Campinas, Pontes, 1997. GARCIA, O. Comunicaçãoem prosa moderna. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1997. GERALDI, J.W. O texto na sala de aula. Cascavel, Assoeste, 1984. SERAFINI, M. T. Como escrever textos. Rio de janeiro, Globo, 1990 Complementar: Está disposta ao longo dos textos deste material e será apresentada também no ambiente virtual, relacionada a cada tópico do programa. 12 13Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4CONCEPÇÕES DE LÍNGUA, LEITURA E ESCRITA Unidade 1:Orientações iniciais aos alunos. Planeje as suas leituras. Leia cuidadosamente o Plano de Curso e tente se programar para cumprir todas as atividades previstas, leituras e produção de textos. O encontro presencial é importante para conhecer o docente, colegas e tutores. Procure chegar na hora prevista para o início da aula. Pergunte, seja presencialmente, seja por e-mail, busque esclarecer dúvidas e solicitar mais exemplos, quando o conteúdo não ficar claramente exposto para você. Não acumule dúvidas, elas irão atrapalhar bastante o desenvolvimento do seu curso. Organize um horário de estudos e cumpra-o. A disciplina na EAD é fundamental, pois o tempo das disciplinas é mais concentrado. Tente manter um ritmo diário de leitura e elaboração de textos (trabalhos solicitados). P Para compreender melhor os textos lidos faça um fixamente. O fichamento consiste em um resumo comentado, você faz um resumo das ideias centrais do texto estudado e acrescenta comentários e observações. Toda vez que encontrar uma palavra desconhecida, procure-a no dicionário 14 15Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 Apresentação Ao longo desta unidade, que se divide em duas semanas de aulas, nós iremos discutir concepções de língua, leitura e escrita. Essa discussão se dará com base em teóricos representativos da área, bem como a partir da leitura de textos elaborados pela docente responsável pela disciplina. A reflexão teórica pretende ampliar as possibilidades de compreensão das práticas do texto. É importante que o estudante realize as leituras indicadas, no material impresso e também ambiente virtual, e efetue as atividades propostas de acordo com o cronograma estabelecido, a fim de que a disciplina cumpra seu papel e possa ser proveitosa para todos! A língua, essa (des)conhecida “Gosto de sentir minha língua roçar A língua de Luís de camões Gosto de ser e estar E quero me dedicar A criar confusões de prosódia E uma profusão de paródias Que encurtem dores E furtem cores como camaleões” (Caetano Velo, Língua) Há muito tempo, nós conhecemos a língua portuguesa, nós a falamos, ouvimos e lemos diariamente. Ela faz parte de nossa vida desde que nascemos e somos inseridos em um universo em que ela é fundamental, como é o caso do Brasil e de todos os demais países do mundo que a têm como língua oficial. Muitos, no entanto, dizem que não conhecem língua portuguesa (o engraçado é que dizem isso em língua portuguesa!). Normalmente, quando as pessoas dizem que não conhecem a sua própria língua, elas estão dizendo que não dominam as normas que regem as formas consideradas “cultas” de produzir enunciados orais ou escritos em sua língua. Essa afirmação está, não raro, calcada na noção de língua como um código, algo homogêneo, estável, que pode ser dominado de modo completo, noção essa que circula com frequência no cotidiano, pois faz parte de um senso comum sobre a língua, uma visão que é difundida e aceita pela maioria. No entanto, diversos estudiosos da linguística, a partir de cuidadosas pesquisas, já questionaram essa noção e mostraram que a língua é um complexo sistema, que se constitui de modo processual, em um contexto histórico, social, político, econômico, cultural, um desses estudiosos, o teórico russo, linguista, filólogo, estudioso da literatura, Mikhail Bakhtin afirma que “[...] a língua não é um sistema abstrato de formas normativas, porém uma opinião plurilíngue concreta sobre o mundo. Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra determinada, uma pessoa definida, uma geração, uma idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um contexto ou contextos, nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa” (BAKHTIN, QLT, p. 96). Bakhtin chama a nossa atenção para o fato de que a língua existe a partir da imensa variedade com a qual os falantes elaboram seus enunciados, ela está vinculada a um contexto, não é algo abstrato e perfeito. Esse complexo sistema é heterogêneo e vivo, pois é afetado por tudo que nos constitui como povo e cultura. Assim, é bom lembrar que esse sistema não pode ser “dominado” por um único falante, não pode ser completamente conhecido, pois está em contínua transformação e é formado por uma grande variedade de elementos, ele é, portanto, heterogêneo e dinâmico. Elaborar enunciados orais ou escritos em língua portuguesa é participar de uma comunidade de falantes dotada de uma dinâmica que não pode ser completamente apreendida pelas regras da gramática, compreendida de modo equivocado apenas como um livro que apresenta um conjunto de regras “corretas”. Gramática é algo muito mais complexo, como vocês irão ver nas aulas de linguística. É importante ressaltar que as regras, que estudamos em todos os nossos longos anos na escola, são muito importantes, mas é ingênuo e inexato pensar que conhecer a língua é conhecer apenas essas regras, é memoriza-las e aplicá-las de modo rigoroso. Nem elas mesmas são rigorosas, são cheias 16 17Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 de exceções; elas são importantes, mas devem ser pensadas também como parte da língua, não como a totalidade da língua. Não se trata também de um aprendizado que passa pela memorização e aplicação de normas. Em um curso de Letras, escrever e ler não se dissociam da reflexão acerca da leitura e da escrita. Cristovão Tezza e Carlos Alberto Faraco postulam que “A primeira coisa que devemos fazer ao pensar sobre a realidade da língua, é separá-la em duas categorias básicas: língua falada e língua escrita. Na verdade, a realidade primeira da língua é a fala, tanto na história da humanidade como na nossa história pessoal. Isto é, a escrita surgiu depois, e fundamentada na realidade da fala.” (2001, p. 9). Falamos e escrevemos de modos distintos. Basta observarmos as pessoas a nosso redor. O melhor de pesquisar a língua portuguesa, em nosso caso, é que o nosso cotidiano se constitui como um amplo espaço de pesquisa. Um bom exercício para apreender a complexidade, a heterogeneidade, a multiplicidade da língua, é passar um dia anotando modos variados de falar e escrever. Faça esse registro e você se surpreenderá com a riqueza da língua. Observe, inclusive e principalmente, você mesmo, os modos como fala e escreve, quando, como, com quem... Há, portanto, vários modos de falar e escrever uma língua. Cada um de nós conhece vários desses modos, falamos de maneiras distintas em contextos distintos, somos mais ou menos formais de acordo com a circunstâncias. Não há modos melhores ou mais corretos, há modos diferentes, que estão associados a distintas situações concretas, regidas também por normas diversas, que remetem a modos de interação social. Como pesquisadores da linguagem, cabe a nós compreender, sem acusações ou julgamentos, como nós e as demais pessoas falam, leem e escrevem língua portuguesa. Para nos ajudar a compreender a complexidade da língua, ao mesmo tempo, tão conhecida e tão misteriosa, nós iremos ler alguns textos teóricos. Além disso, em outras disciplinas, como Linguística, vocês irão aprofundar esseconhecimento, ampliando as possibilidades de compreensão da língua. O que é importante registrar é que a língua não pode ser conhecida plena e absolutamente. a Atividade 1 Veja o que diz o Projeto Político Pedagógico do Curso de Letras a Distância: Habilitação espanhol (2012, p.21): Pode-se falar de dois grandes modelos teóricos de interpretação da linguagem humana, que foram desenvolvidos a partir do surgimento da Linguística, no começo do século XX: um que entende a língua numa concepção formalista e outro que a entende numa perspectiva social/cultural ou social/discursiva. Esses modelos se distinguem da concepção tradicional, que identifica o estudo da linguagem com o estudo da gramática. Para você, o estudo da língua é apenas o estudo da gramática? Desenvolva sua resposta, apresentando argumentos que a justifiquem. Pesquise, na internet, opiniões de um gramático, de um linguista e de um escritor (romancista, cronista, poeta, contista...) sobre essa questão e compare-as. ATIVIDADE 2 Ouça a canção “Língua”, de Caetano Veloso, leia a letra da canção, escolha um trecho e comente-o, associando-a à reflexão sobre língua portuguesa que o texto acima propõe. Algumas definições de leitura Abordar a leitura é uma tarefa difícil, pois essa palavra não nos remete para um conceito fechado, arrumado, pronto para ser memorizado por um estudante aplicado. Antes, a palavra leitura nos leva para um conjunto de práticas difusas, que vão do prazer ao dever, que passam pela relação com o jogo, com o conhecimento, com a sonoridade da palavra, com sua visualidade. Lemos não apenas as palavras, lemos o céu, a 18 19Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 para saber se vai chover, lemos o mar, para saber se a maré está baixa ou alta, lemos as expressões faciais daqueles que amamos ou que tememos, lemos o aspecto da comida antes de consumi-la (o que envolve não apenas a dimensão visual, mas também olfativa, por exemplo), lemos inclusive o silêncio, pois, em muitos momentos, ele é bastante significativo. A semiótica, a área de conhecimento que estuda os processos de significação, afirma que o mundo é um grande texto que se oferece a nossa compreensão o tempo todo. Sabemos disso e exercitamos continuamente a busca de sentido para o que vemos, ouvimos, sentimos, pensamos... Aqui, iremos tratar de modo mais específico da leitura de textos escritos em língua portuguesa, ou seja, iremos nos restringir a pensar a leitura de textos escritos com palavras, com signos linguísticos. Nunca, na história da humanidade, houve tantas pessoas aptas a ler textos escritos. Vivemos em uma sociedade na qual a escrita é central. É em textos escritos que circulam as leis que regem nossa vida, pois pertencemos a um Estado de Direito. Em textos escritos, temos também a difusão de trabalhos científicos. Nossas relações profissionais, amorosas (o casamento, por exemplo) são regidas por contratos escritos. Diariamente lemos e escrevemos uma significativa quantidade de textos em diversos suportes, no jornal, no livro impresso, na tela do computador, na aparelho celular... Estamos cercados de textos por todos os lados. Como nos ensinam os teóricos, toda leitura envolve seleção, julgamento, comparação com textos anteriormente lidos. Um bom modo de leitura é começar pela origem da palavra. No caso da palavra leitura, seu étimo, “lego”, nos leva ao verbo colher, que também nos remete à ideia de escolha, quando colhemos algo, nós o escolhemos. Um primeiro ponto, portanto, que vale destacar é que a leitura é um processo seletivo, não lemos “tudo”, selecionamos, colhemos, escolhemos alguns elementos do texto. Segundo Roland Barthes, um estudioso francês, autor de muitos livros interessantes que vocês conhecerão ao longo do curso de Letras, a leitura não é um processo isolado, solitário, mesmo quando estamos sozinho, nós realizamos um ato que foi aprendido, que é regido por normas que absorvemos, pois “(...) toda a leitura deriva de formas transindividuais: as associações engendradas pela letra do texto (mas onde está essa letra?) nunca são, façamos o que fizermos, anárquicas; são sempre tiradas (colhidas e inseridas) de certos códigos, de certas línguas, de certas listas de estereótipos. A leitura mais subjetiva que se possa imaginar nunca é senão um jogo conduzido a partir de certas regras.” (1984, p. 28). E Barthes pergunta: de onde vêm essas regras? E propõe como resposta que elas vêm “(...) de uma lógica milenar da narrativa, de uma forma simbólica que nos constitui mesmo antes do nascimento, numa palavra, desse imenso espaço cultural de que nossa pessoa (de autor, de leitor) não é senão uma passagem.” (1984, p. 28). Ler, em sua origem, também tem o sentido de enumerar: “ler: a palavra veio tal e qual, por simples transposição, do grego e do latim para as línguas modernas. Como designa a atividade de recepção do texto escrito? Parece ser por intermédio de um dos sentido que nem em latim nem em grego é o primeiro: contar, enumerar. Ao ler, enumero unidades de texto, letras, sílabas, ou outras” (BARTHES & COMPAGNON, 1978, p. 188). Nesse mesmo texto, o verbete intitulado “Leitura”, da Enciclopédia Einaudi, os autores apresentam e discutem concepções correntes de leitura. Começam destacando que “ler é uma técnica”. Essa definição é muito difundida e pressupõe que, sendo uma técnica, a leitura comporta um aprendizado, ou seja, é algo aprendido, não é algo natural, que já sabemos sabendo. Esse aprendizado confronta-se com dois modos extremos: um que pode reafirmar a miragem do literal, como não raro a escola faz, criando a ideia de que há um sentido único, fechado, que pode ser apreendido pelo emprego correto da técnica, o que leva, muitas vezes, o leitor que não consegue chegar a esse sentido, a sentir-se fracassado, incapaz, desanimado para prosseguir em seu aprendizado. E há outra forma de pensar a leitura que irá levar-nos à literatura, texto em que o sentido não está determinado, pronto, fechado, o que é chamado de plurissignificação, uma vez que o texto literário, quase sempre, ressalta e fortalece a polissemia (poli= muitos, diversos e sema = sentido, significado). No entanto, ecoa nessa concepção a noção de língua como código, que precisa apenas do domínio da técnica, o que não corresponde 20 21Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 à complexidade da língua ou da leitura. Em seguida, examinam a definição de leitura como uma prática social. Essa definição destaca o fato de que a leitura é uma atividade regulada institucionalmente pelo estado, ela envolve diversas instituições, restrições e normas. Ler é também pensado como “uma forma de gestualidade”. Lemos com o corpo. Deitados, sentados, em voz alta, agregando gestos largos ou contidos, transformando em outros signos as palavras escritas no livro que temos a nossa frente ou na tela do computador. Ler é também fazer alguns gestos. Outra definição corrente de leitura é de que ela se constitui como uma “forma de sabedoria”. De acordo com essa concepção, bastante difundida, aliás, a leitura põe em comunicação um “sujeito” e um “tesouro”. Ela é via de acesso ao conhecimento. É um modo de absorvermos esse conhecimento. Por isso, credita-se aos leitores uma grande sabedoria, um grande acúmulo de conhecimentos, informações. A escola é uma instituição que se baseia, quase sempre, nessa ideia muito difundida. Infelizmente, há um preconceito que deriva, muitas vezes, dessa concepção, a desvalorização dos saberes tradicionais que são passados de geração à geração oralmente. O livro tende a ser sacralizado, em nossas sociedades de escrita, porém, não podemos incorrer nessa sacralização,devemos manter sempre viva a crítica em relação a todo tipo de texto; não é por que algo foi escrito em um livro que se tornou verdadeiro, correto, demonstrado. Tampouco faz sentido desprezar o que não está escrito, como se os saberes tradicionais não fossem dotados de valor porque estão fora dessa forma de circulação. Correlata à noção de ler como uma técnica, há outra em que a leitura é vista como um método, segundo Compagnon e Barthes. Mais do que uma técnica, nessa acepção ela é vista como um método intelectual destinado a organizar o saber. Então a leitura confunde-se com a escrita. A técnica seria a primeira etapa, é um conhecimento amplo, que pressupõe o domínio das normas de relações estabelecidas entre os sinais gráficos que desenham a página em branco. Mas essa técnica é insuficiente, daí a noção de método. Aprendida a técnica, cabe ao leitor ser iniciado em métodos. Essa noção remete também aos mecanismos de controle da leitura, a sua dimensão social. Não basta saber “decodificar” os sinais gráficos, é preciso agora fazer associações que estão além da superfície do texto. É preciso articular aquele texto com outros, para compreender sua trama de conceitos e referências, seu lugar na tradição, de acordo com um saber institucionalizada, reconhecido como válido. Daí a existência de textos intitulados: Lendo Foucault, Como ler Machado de Assis, Roteiro de leitura de A hora da estrela.... Para ler um texto é necessário ler outros que irão guiar a sua leitura. Essa noção de leitura é muito vinculada ao mundo acadêmico. Dando continuidade ao exame das definições mais correntes, comuns, de leitura Barthes e Compagnon afirmam que a leitura é “uma atividade voluntária”, voluntária no sentido de estar desvinculada de uma obrigação ou de uma perspectiva pragmática, fora das relações de troca que marcam outras atividades. Essa ausência de uma “utilidade” irá justificar, muitas vezes, em uma sociedade de consumo (do útil) a condenação da leitura do texto literário como uma atividade in-últil. Interessante notar aqui que a leitura é uma atividade que pressupõe vontade e também autonomia. Ninguém poderá ler por você, podem até ler para você, mas a leitura só ocorrerá se você prestar atenção, se tiver interesse no que está sendo lendo ou no que você estiver lendo. Fala- se em hábito de leitura, mas essa é uma expressão falha, pois hábito remete a uma repetição mecânica de algo. A leitura é um momento de fruição, de mergulho no texto, de compreensão. Não é um hábito, é um modo de apreensão do mundo e da língua, que envolve uma série de conhecimentos do mundo, da língua, de nós mesmos. Todas essas concepções arroladas por Barthes e Compagnon estão em nossa vida, são difundidas diariamente e nos ajudam a pensar a leitura. Nenhuma delas é suficiente para esgotar esse ato complexo, mas todas nos ajudam a pensar como a nossa sociedade pensa a leitura, qual o sentido que essa prática tem em nosso cotidiano, em nossa formação acadêmica, religiosa, profissional. Michel de Certeau assina um belo texto intitulado “Ler: uma operação de caça”. Podemos inicialmente pensar na metáfora que o título propõe como definição de leitura: caça. Como caçamos? Por que caçamos? O que caçamos? A 22 23Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 caça está associada à necessidade, as pessoas caçam para se alimentar, e também ao jogo, caçam para se divertir (hoje cada vez menos, a não ser que você pertença à família real inglesa). A caça, assim, remete à necessidade e à diversão. Podemos, então, pensar essa dimensão dupla da leitura. Lemos por prazer, lemos por necessidade, para cumprir as tarefas escolares, as obrigações profissionais. Na bela imagem de Certeau, sonos caçadores furtivos em terras de outros proprietários. Não raro, o resultado dessa caça vai ser reelaborado em outros textos, nos nossos textos. Não há um sentido único inscrito no texto ao qual se chega pelo método correto, certo, adequado. O que o leitor faz, segundo Michel de Certeau, é combinar “[...] os fragmentos e criar algo não–sabido no espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de significações” (2001, p. 265). Utiliza ainda a imagem da bricolagem para falar da leitura, na qual vários textos são agregados. Nessa bricolagem, entra um mecanismo que denomina “arte sutil”. Uma arte que infiltra no texto lido mil diferenças e relações, a partir de avanços e recuos, típicos do ato da leitura. O leitor insurge-se, pula, elimina, corta, edita... Caçamos o que nos interessa, observamos com mais atenção o que reconhecemos, o que nos afeta, o que move nossos afetos. Assim, é diferente ler uma carta de amor e ler um relatório de trabalho. Ao longo de um curso de letras, nós iremos à caça de muitos textos, iremos percorrer várias florestas de signos, para retomar a bela imagem de Paul Valéry, Essas caçadas serão feitas com as armas que tivermos. Cabe a esta disciplina fornecer mais instrumentos para que essa caçada seja significativa, seja produtiva. Não no sentido de nos levar ao acúmulo de alimentos que não iremos sequer provar, mas na acepção de trânsito por territórios, textos diversos, que nos mostrarão que nem sempre encontramos o que incialmente pretendíamos, mas podemos descobrir modos outros de circular pela floresta de signos. Saímos para caçar algo que pensávamos conhecer e encontramos o que sequer suspeitávamos existir nessa floresta, nesse texto, que lemos. Quando lemos, portanto, fazemos funcionar o nosso corpo, a nossa memória, aquilo que sabemos acerca da língua, a do mundo, do outro, de nós mesmos, de diversos asuntos. Entramos em um universo que tem regras. Selecionamos e combinamos elementos a fim de construir sentidos possíveis, sabendo que não há um único sentido para nenhum enunciado, seja oral, seja escrito, que a língua é o espaço da diversidade, da multiplicidade, não da univocidade. No entanto, não lemos de modo aleatório ou totalemente livre. Dizer que um texto permite várias interpretações é muito diferente de afirmar que ele aceita qualquer interpretação. No âmbito da universidade, as nossas leituras são guiadas por métodos, procedimentos. Aquilo que nós articulamos a partir do que lemos deve ser fruto da reflexão. Aqui vocês exercitarão outros modos de leitura. Espero que o prazer não seja eliminado. Há uma visão corrente segundo a qual a análise de um texto elimina o prazer que sentimos com a leitura. Não acredito nisso. Há também um prazer na leitura crítica, na leitura orientanda por métodos. Quando escolhemos o curso de letras, fomos movidos pela paixão pela língua, pela literatura, já somos pessoas apaixonadas pela linguagem e por tudo que ela envolve e constitui. Antes de concluir esse breve texto sobre leitura, gostaria que vocês observassem (lessem) como ele foi produzido. Há vários outros autores que participam da reflexão proposta sobre leitura. O meu texto se faz como espaço de encontro de outros textos que li e reuni aqui. Não sou uma autora isolada, que “rompe o eterno silêncio de um mundo mudo” (BAKHTIN, p. 291). Escrevo a partir do que li e reelaboro essas leituras em um novo texto, em um outro texto, que assino e ofereço para outros leitores. O meu texto é formado por outros e é também convite para que vocês leiam os textos aqui citados. Ele parte desses textos e projeta novos leitores para esses textos, em um movimento que não se esgota e que destaca o que há de intertextual e dialógico em qualquer enunciado. ATIVIDADE 3 Vamos conhecer outras reflexões sobre leitura. Selecione uma delas e comente-a. 24 25Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4Texto 1 “[...] ao seguiro texto, o leitor pronuncia seu sentido por meio de um método profundamente emaranhado de significações aprendidas, convenções sociais, leituras anteriores, experiências individuais e gosto pessoal.” “[...] Para extrair uma mensagem desse sistema de sinais brancos e pretos, apreendo primeiro o sistema de uma maneira aparentemente errática, com olhos volúveis, e depois reconstruo o código de sinais mediante uma cadeia conectiva de neurônios processadores em meu cérebro, cadeia que varia de acordo com a natureza do texto que estou lendo e impregna o texto com algo – emoção, sensibilidade física, intuição, conhecimento, alma – que depende de quem eu sou e de como me tornei o que sou” (MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p. 54-55) Texto 2 “Ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É, a partir do texto, ser capaz de atribuir- lhe significação, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista” (LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, P. 59). Texto 3 “Admitamos, como a maior parte dos autores, eu um texto só existe, verdadeiramente, na medida em que há leitores (pelo menos potenciais) aos quais tende a deixar alguma iniciativa interpretativa; tendência crescente, na medida em que diminui a função informativa ou imperativa do texto em causa” (p. 27) “[...] a leitura é diálogo. A ‘compreensão’ que ela opera é fundamentalmente dialógica: meu corpo reage à materialidade do objeto, minha voz se mistura, virtualmente, à sua.” (p. 74) (ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000). Escrita e intertextualidade Intertextualidade é uma palavra que se faz a partir de duas outras: “inter”, que significa “relação”, “articulação”, e “textualidade”, que, segundo o Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa, significa “qualidade, condição ou caráter do que é textual”. Essa noção deriva de uma outra elaborada por um teórico russo, Mikhail Bakhtin, denominada dialogismo. Julia Kristeva, uma pesquisadora búlgara radicada na França, leu Bakhtin, e propôs, então, o conceito de intertextualidade, ou seja, a noção de que um texto se faz a partir da leitura e incorporação de outros textos, da articulação com outros textos e com outras elaborações simbólicas. Mas afinal o que seria o dialogismo? A etimologia da palavra pode nos dá uma boa pista. Vejamos. Essa palavra vem do grego: “diá”, que significa “através de” (lembra- se de “diacrônico”?) e “logos”, que é “ideia”, “conceito”, “palavra”. Decompondo a palavra e recuperando a sua origem grega, temos: através de ideias, conceitos diferentes. Assim, para Bakhtin, todo enunciado, oral ou escrito, “é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados” (1992, p. 291). Aprendemos a falar ouvindo ou observando outras pessoas falando. Assim como aprendemos a escrever lendo, não só os livros, os textos de outros autores, mas o mundo. Nossos textos são respostas a esses outros textos. Nessa perspectiva, todo enunciado é dialógico, é intertextual. Vamos recuperar a história desta palavra tão usada: texto. Etimologicamente, texto tem um parentesco com tecido. Texto e tecido têm a mesma origem. Em tecido essa origem permanece de forma mais evidente no adjetivo a ele correspondente – “têxtil”. 26 27Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 A imagem do tecido pode nos levar a uma visualização da intertextualidade: assim como o tecido é elaborado a partir do entrecruzamento de fios, em duas direções, o que dá a ele elasticidade, leveza ou rusticidade, compondo a trama das estampas, o texto também é formado pelo entrelaçamento de outros textos lidos/ouvidos/vistos, enfim, conhecidos anteriormente pelo autor. Todo autor é, portanto, também um leitor, do mundo ou de outros textos, de uma tradição, que se transmite de forma oral ou escrita. Ele tece o seu texto com fios de outros textos, que ele combina de modos diversos. Escrever é tecer fios de outros tecidos, é compor a tessitura do seu enunciado com os fios de outros textos, reelaborando a sua ou outras tradições, respondendo ao estímulo que outros autores lhe provocaram, como os fios de galo do poema de João Cabral, significativamente intitulado “Tecendo a manhã”: Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. Nesse belo poema de João Cabrl, nós temos uma imagem de vozes distintas, de galos, que podem ser lidos como metáforas de todas as outras vozes/textos/enunciados, que se cruzam e assim formam a manhã. Não há canto isolado, o canto existe como ligação com um outro canto, é retomada, ligação com algo anterior. A língua se processa de modo social, ela não pertence a um indivíduo isolado, como nos ensinou Saussure. Nós quando falamos nos inserimos nessa longa cadeia de enunciação. Por exemplo, quando escolhemos um nome para um filho, nós pensamos nos significados desse nome. Quase sempre se escolhe um nome que remeta a algo positivo, até mesmo algo extraordinário, fora do ordinário, do comum, como um nome de santo, no Catolicismo, damos nomes que irão atuar como proteção, Antônio, Francisco, José, Maria. Escolhemos esses nomes a partir de um conjunto de referências que fazem parte da nossa cultura, que guiam a nossa relação com a palavra. Normalmente, não escolhemos Judas ou Caim, nomes associados a narrativas bíblicas que são vistas como negativas ou violentas. Falar e escrever é inserir-se em uma rede de significação que precede esse momento em que elaboramos nosso enunciado. Na universidade, tomamos mais consciência dessas conexões, investigamos os modos como distintos enunciados se articulam, qual a fundamentação teórica, qual o fio de diálogo que liga um teórico que publicou um livro hoje a um outro que viveu antes mesmo do nascimento de Cristo, por exemplo. Por meio da leitura e escrita, recompomos um grande diálogo que os textos estabelecem entre si e participamos também desse diálogo. Pois bem. A intertextualidade define o texto (assim como todo e qualquer enunciado escrito ou oral) como entrecruzamento de outros (diversos) textos, trama de ideias, ideias que se deixam ver nas linhas e entrelinhas do mosaico que vamos compondo a partir do conhecimento de outros tantos tecidos/textos. Escrever é, portanto, colocar textos em diálogo, interligá-los, articulá-los, ligá-los, fundi-los. A noção de originalidade é, assim, questionada. Noção esta que nem sempre teve o mesmo significado. Na Idade Média, original era aquilo que tinha existido desde o início; depois, houve uma inversão no significado e original passou a ser o que rompia com o que havia desde o início, criando um novo objeto, sem precedentes. Agora estamos diante de uma teoria que propõe a impossibilidade da originalidade absoluta, já que lidamos com a língua, um sistema complexo necessariamente social. Ser absolutamenteoriginal, no sentido romântico, pressupõe a criação de uma língua até 28 29Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 então desconhecida, um sistema de comunicação inédito e, portanto, inócuo, pois sem a existência de um grupo, previamente conhecedor dessa língua não é possível a compreensão do que está sendo dito/escrito, enfim, enunciado: O próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locutor que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência dos enunciados anteriores – emanantes dele mesmo ou do outro – aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação (fundamenta-se neles, polemiza com eles), pura e simplesmente já os supõe conhecidos do ouvinte. (BAKHTIN, 1992, p. 291) Claro que ainda podemos definir fronteiras para o plágio, a cópia desonesta, que visa se apropriar de modo indébito da criação de outrem. Mas esta é uma questão cada vez mais discutida pela Justiça (há inúmeros casos de plágios sendo julgados, e direitos autorais hoje constituem uma área em franco crescimento). No campo da arte, gera muitos debates acerca de apropriações. A arte atua com mais liberdade, muitas vezes, questionando os limites das regras, das normas, das leis. No campo da ciência, ou da produção acadêmica, todos os textos citados literalmente devem ser escritos entre aspas, os sinais gráficos que indicam que o trecho citado é de outro autor ou de outro texto. Quando é feita uma paráfrase, algo muito comum também, deve-se indicar o autor ou os autores parafraseados, uma forma de remeter o leitor daquele texto para a cadeia enunciativa na qual ele foi elaborado. O dialogismo, assim como a intertextualidade, ou a ideia da elaboração de obras a partir do conhecimento de outras, da referência a outras, ou da incorporação/devoração de outras, já havia sido apresentada de formas diferentes antes. Bakhtin, no entanto, foi o primeiro a sistematizá-la, a elaborar uma teoria e uma proposta de análise do processo de elaboração/compreensão de enunciados. Assim como a Julia Kisteva foi também a primeira a elaborar de modo sistemático a noção de intertextualidade e de difundi-la como procedimento de análise. Como se pode perceber, na perspectiva da intertextualidade, não há separação entre ler e escrever. São duas atividades correlatas. Escrevemos a partir do que lemos, ouvimos, vemos, pensamos, imaginamos, sonhamos, e a leitura é uma reescritura, pois cada leitor modifica o texto, dando-lhe novos sentidos. É nessa passagem que os textos são deixados na paisagem, na forma de outros textos. Essas regras de elaboração e compreensão são anteriores à leitura e, por isso, presidem esse ato, mas elas não são d, têm uma margem de transformação, de deslocamento: Uma história do ler afirmará que as significações dos textos quaisquer que sejam, são construídas, diferencialmente, pelas leituras que se apoderam dele.[...]. Antes de mais nada, [é preciso] dar à leitura o estatuto de uma prática criadora [...] (CHARTIER, 2001, p.79). Escrevemos reunindo textos, incorporando-os, devorando-os, dialogando com o anteriormente visto/lido/ ouvido/imaginado. O nosso texto é um lugar de encontro de muito textos, um lugar em que eles se encontram e conversam. Tramas, teia que se tece e nos enreda, na leitura e na escrita. Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad.: Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Vol 1. 3 ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996. CHARTIER, Roger. (org.). Práticas da leitura. 2 ed. Trad. Cristiane Nascimento. São Paulo: estação Liberdade, 2001. MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de 30 31Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 Hoje eu canto só você; Só você, Que eu quero porque quero, por querer. Não canto de Melô pérola negra; De Brown e Hebert, uma brasileira; De Ari, nem a baiana nem Maria, Nem a Iaiá também, nem minha faceira; De Dorival, nem Dora nem Marina Nem a morena de Itapoã; Divina garota de Ipanema, Nem Iracema, de Adoniran. De Jackson do Pandeiro, nem Cremilda; De Michael Jackson, nem a Billie Jean; De Jimi Hendrix, nem a doce Angel; Nem ngela nem Lígia, de Jobim; Nem Lia, Lily Braun nem Beatriz, Das doze deusas de Edu e Chico; Até das trinta Leilas de Donato, E de Layla, de Clapton, eu abdico. Só você, Canto e toco só você; Só você, Que nem você ninguém mais pode haver. Nem a namoradinha de um amigo E nem a amada amante de Roberto; E nem Michelle-me-belle, do beattle Paul; Nem Isabel - Bebel - de João Gilberto; E nem B.B., la femme de Serge Gainsbourg; Nem, de Totó, na malafemmená; Nem a Iaiá de Zeca Pagodinho; Nem a mulata mulatinha de Lalá; E nem a carioca de Vinícius E nem a tropicana de Alceu E nem a escurinha de Geraldo E nem a pastorinha de Noel a ATIVIDADE 4 Leia atentamente o texto acima e faça um resumo desse texto, em apenas um parágrafo, destacando as ideais centrais apresentadas e os principais argumentos. Elenque todos os teóricos citados, para perceber que o texto não só aborda a intertextualidade, mas também se constroi a partir dessa noção, ou seja, a partir do entrecruzamento de outros textos lidos. ATIVIDADE 5 Leia a letra da canção do cantor e compositor pernambucano Lenine, “Todas elas juntas num só ser” e tente identificar todas as referências intertextuais que ele articula. Não canto mais Babete nem Domingas Nem Xica nem Tereza, de Ben jor; Nem Drão nem Flora, do baiano Gil; Nem Ana nem Luiza, do maior; Já não homenageio Januária, Joana, Ana, Bárbara, de Chico; Nem Yoko, a nipônica de Lennon; Nem a cabocla, de Tinoco e de Tonico; Nem a tigresa nem a vera gata Nem a branquinha, de Caetano; Nem mesmo a linda flor de Luiz Gonzaga, Rosinha, do sertão pernambucano; Nem Risoflora, a flor de Chico Science, Nenhuma continua nos meus planos. Nem Kátia Flávia, de Fausto Fawcett; Nem Anna Júlia do Los Hermanos. Só você, 32 33Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 E nem a namorada de Carlinhos E nem a superstar do Tremendão E nem a malaguenha de Lecuona E nem a popozuda do Tigrão Só você, Hoje elejo e elogio só você, Só você, Que nem você não há nem quem nem quê. De Haroldo Lobo com Wilson Batista, De Mário Lago e Ataulfo Alves, Não canto nem Emília nem Amélia, Nenhuma tem meus vivas! E meus salves! E nem Angie, do stone Mick Jagger; E nem Roxanne, de Sting, do Police; E nem a mina do mamona Dinho E nem as mina – pá! - do mano Xiz! Loira de Hervê e loira do É O Tchan, Lôra de Gabriel, o Pensador; Laura de Mercer, Laura de Braguinha, Laura de Daniel, o trovador; Ana do Rei e Ana de Djavan, Ana do outro rei, o do baião Nenhuma delas hoje cantarei: Só outra reina no meu coração. Só você, Rainha aqui é só você, Só você, A musa dentre as musas de A a Z. Se um dia me surgisse uma moça Dessas que com seus dotes e seus dons, Inspira parte dos compositores Na arte das palavras e dos sons, Tal como Madallene, de Jacques Brel, Ou como Madalena, de Martinho; Ou Mabellene e a sixteen de Chuck Berry, E a manequim do tímido Paulinho; Ou como, de Caymmi, a moça prosa E a musa inspiradora Doralice; Se me surgisse uma moça dessas. Confesso que eu talvez não resistisse; Mas, veja bem, meu bem, minha querida; Isso seria só por uma vez, Uma vez só em toda a minha vida! Ou talvez duas... mas não mais que três... Só você... Mais que tudo é só você; Só você... As coisas mais queridas você é: Você pra mim é o sol da minha noite;É como a rosa, luz de Pixinguinha; É como a estrela pura aparecida, A estrela a refulgir, do Poetinha; Você, ó flor, é como a nuvem calma No céu da alma de Luiz Vieira; Você é como a luz do sol da vida De Steve Wonder, ó minha parceira. Você é pra mim e o meu amor, Crescendo como mato em campos vastos, Mais que a gatinha para Erasmo Carlos; Mais que a cigana pra Ronaldo bastos; Mais que a divina dama pra Cartola; Que a Donna pra Ventadorn, Bernart; 34 35Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 Que a Honey Baby pra Waly Salomão E a Funny Valentine pra Lorenz Hart. Só você, Mais que tudo e todas, é só você; Só você, Que é todas elas juntas num só ser . GÊNEROS DO DISCURSO Unidade 2: 36 37Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 Escrevemos e falamos língua portuguesa há muito tempo, quando entramos na universidade, mas mesmo assim ainda temos medo de escrever e de falar? Não temos muita clareza do que esperam de nós, de como seremos agora avaliados. Sabemos, porém, que não sabemos e que teremos dificuldade. Mas será que não sabemos? Vamos pensar sobre os chamados gêneros do discurso. Para Mikhail Bakhtin, a unidade da língua é o enunciado, oral ou escrito. Esse enunciado é elaborado a partir do que o teórico russo chama de “consciência genérica”, ou seja, do que sabemos acerca da elaboração de enunciados. Quando produzimos um enunciado, seja oral ou escrito, nós seguimos regras que aprendemos em nosso cotidiano, ouvindo, falando, lendo, estudando. Gêneros do discurso, para Bakhtin, são “tipos relativamente estáveis de enunciados” (ECV, p. 279). Observem que o autor destacou “relativamente estáveis”, o que indica que a estabilidade não é absoluta, há variações. Há várias possibilidades de elaborar enunciados, quando mais possibilidades conhecemos, maior o repertório de escolha na hora de elaborarmos os nossos enunciados. Damos ordens diariamente, fazemos pedidos, declarações de amor, relatórios, seguimos orientações que conhecemos, mas também acrescentamos algo que distingue o nosso enunciado de outros. Os gêneros¹ literários não existem enquanto modelos fixos, acabados e impostos. Eles atuam como um referencial para a produção. Como já foi dito, Bakhtin, em Estética da criação verbal (1992), postula que os gêneros são “tipos de enunciados relativamente estáveis” (p. 290) que orientam a produção e a leitura desses enunciados, na medida em que, a partir do que o teórico russo chama de “consciência genérica”, o leitor elabora hipóteses de leitura e, então, submete-se (e submete o texto) a um conjunto de possibilidades que é modulado, mas não determinado, por essa referência. Mesmo quando esse referencial é questionado e subvertido, isso só pode ser compreendido no âmbito mais amplo do diálogo do autor/leitor com o gênero no qual seu enunciado se inscreve, ou seja, só pode ser compreendido porque há uma consciência genérica que identifica essa transformação. Há uma íntima relação entre gênero e leitura, pois, “Um gênero só funciona plenamente se determinar não apenas A raiz GEN, de que provém o verbo latino gigno, conexiona a forma, igualmente latina, genus quer com a idéia de sexo (de onde, o gênero gramatical) quer com a de estirpe ou de linhagem, enquanto princípio de classificação: temos assim, entre os usos literários da palavra, genus scribendi ‘estilo’, e os genera literários, agrupamentos comparáveis aos das ciências, onde subsiste também uma“ diferença de generalização (genus, por oposição a species)” (SEGRE, 1989, p. 70). 38 39Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 a estrutura do discurso, mas for igualmente identificado pelo público literário, tornando-se assim um coeficiente da leitura” (GLOWISNKI, 1995, p. 117). Bakhtin vê, porém, a diversidade da atividade humana como geradora de novos gêneros, o que o leva a afirmar que “[...] cada esfera dessa atividade [a humana] comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (BAKHTIN, 1992, p. 279). Distingue dois tipos de gêneros: os primários e os secundários, sendo os primários referentes aos enunciados cotidianos, quase sempre orais, de caráter menos elaborado e os secundários, relacionados à escrita, “[...] aparecem em circunstância de uma comunicação verbal principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica” (1992, p. 281). Os gêneros primários, quando são absorvidos e transmutados pelos secundários, “[...] perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios [...]” (p. 281). Ou seja, são recortados da realidade cotidiana pelos limites da página do seu suporte, livro, site, jornal, folheto, e pelo pertencimento ao discurso literário, o que os relaciona a outros enunciados desse mesmo campo e aciona modos ou protocolos de leitura. O gênero não é uma lei imutável, ele sofre diversas variações no decorrer da história literária. A relação passa a ser mediada pelo texto que, em sua organização, dá novos sentidos para os gêneros absorvidos e transmutados. A distinção entre os gêneros, porém, é exercício de teorização e, como tal, de redução, pois os gêneros parecem resistir à separação pelo contexto, cotidiano ou literário. Diferentes gêneros são lidos de diferentes modos. A leitura é também modulada pelo gênero ao qual o enunciado, oral ou escrito, pertence, na medida em que “[...] o receptor acomoda o seu aparelho cognitivo às exigências do gênero que um dado texto representa e esforça-se, ao longo de sua leitura, por adotar uma leitura consentânea com o que o texto sugere ou mesmo impõe” (GLOWINSKI, 1995, p. 117). Há duas posturas básicas em relação à classificação dos textos, com as suas respectivas características: 1. normativa, prescritiva – pretende fornecer normas para que as pessoas elaborem textos, no caso, quase sempre texto literários; 2. descritiva: limita-se a tentar arrolar as características de um determinado gênero, sem assumir uma postura prescritiva. Tem sido mais comum, nos estudos da área. Segundo Bakhtin ainda, há gêneros, como os literários, que são mais abertos à criatividade, que permitem maior variação. Outros são mais fechados, como, por exemplo, os gêneros ligados ao mundo do trabalho e da burocracia, relatórios, cartas comerciais, recibos, notas fiscais... Há muitos gêneros. Utilizamos diversos em nossa vida. Conhecemos as suas regras, mesmo que não sejamos capazes de especificá-las. Mas se pararmos para refletir, logo descobrimos que já dominamos uma quantidade impressionante de modos relativamente estáveis de elaborar enunciados, para retomarmos a definição anteriormente apresentada. Vamos agora elaborar esse conhecimento em três atividades, duas de leitura de textos e uma de produção textual. ATIVIDADE 6 a Leia o texto “Os gêneros do discurso: problemática e definição”, pertencente ao livro Estética da criação verbal, de Mikhail Bakhtin, e responda: 1. Como Bakhtin define enunciado? 2. Como define gênero? 3. Qual a relação entre gênero e elaboração de enunciados, segundo o autor? 4. Na perspectiva bakhtiniana, qual a relação entre gênero e leitura? 40 41Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 5. Escolha um trecho do texto e comente-o. 6. Elabore uma pergunta relacionada ao texto lido. ATIVIDADE 7 a Leia os textos abaixo e indique qual o gênerode cada um deles, justificando a sua resposta. Considere: vocabulário utilizado, o modo como as palavras estão dispostas na página (em verso? Em prosa?), tema (fala de quê?), polissemia (há muitos significados?), sintaxe (usa a ordem direta ou não?). Texto 1 Tragédia brasileira Manuel Bandeira Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria. Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo o que ela queria. Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado. Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa. Viveram três anos assim. Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa. Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos... Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul. Texto 2 Cota zero Carlos Drummond de Andrade Stop. A vida parou ou foi o automóvel? (Alguma poesia, 1930) Texto 3 Gregório de Matos Guerra A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar cabana e vinha; Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem frequente olheiro, Que a vida do vizinho e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha, Para o levar à praça e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos sob os pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia, Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam muito pobres: E eis aqui a cidade da Bahia. (Obra completa. São Paulo: Cia. das Letras, 1989) Texto 4 O poder à vista Jânio de Freitas 42 43Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 O impasse decorrente da presença do deputado-pastor Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos e de Minorias não é um caso político qualquer. Tanto expõe uma situação atual até aqui mal observada, como indica uma situação futura bastante problemática no Congresso, em particular na Câmara. O caso em torno do pastor Marco Feliciano agrava- se mais, com sua decisão de afrontar os opositores e entregar a relatoria de projetos, na Comissão, a evangélicos notoriamente contrários a tais propostas, referentes a assuntos como aborto e sexo profissional. Mas o comando da Câmara e a maioria dos líderes partidários estão acovardados, diante da dupla ameaça de reação do grupo de deputados-pastores à saída forçada de Marco Feliciano. Agora, tumultuariam a Câmara com ações deles próprios e com grandes mobilizações externas; depois, seriam campanhas acusatórias, nas eleições, aos autores de “perseguição religiosa” no Congresso. Marco Feliciano está convidado para uma reunião, na terça-feira, com líderes das bancadas partidárias que tentariam demovê-lo da permanência como presidente daquela Comissão. (Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ janiodefreitas/1254867-o-poder-a-vista.shtml. Acesso: 2 de ALGUNS GÊNEROS Narrativa Narramos muito, narramos de várias maneiras. Narramos histórias no cinema, nas artes plásticas, na dança, no teatro, nos quadrinhos, nos jornais, na TV, na internet, nos poemas, nas músicas, nos contos, nos romances... No cotidiano, também narramos muito, seja por escrito, seja oralmente. Quando nos acontece alguma coisa importante, ligamos para um amigo ou amiga, escrevemos para nós mesmos ou para outros, conversamos com alguém, transformamos o que nos aconteceu em narrativa. A fofoqueira da cidade é uma grande narradora, conta tudo, muda, acrescenta, levanta hipóteses, observa atentamente os acontecimentos da tribo. Mas afinal por que narramos tanto e de tantas formas? Segundo pesquisadores, o homem confere sentido ao que vive narrando, quando está triste, quando está alegre, quando está entediado, quando está sozinho ou acompanhado, e, assim, tenta organizar o que vive, imagina, o que teme, o que deseja, em forma de narrativas. Há outras formas também, mas narrar tem sido a maneira preferida dos homens desde a época das cavernas, para tentar construir algum sentido para o vivido. Desenhos, palavras, fumaça, sinais diversos, gravados em pedra, dispersos no ar, contam histórias do que somos, do que sonhamos... Walter Benjamin, um pensador alemão, em um belo texto, “O narrador”, diz que a fonte da narração é a experiência que passa de pessoa a pessoa, ele acrescenta que a narração é o “lado épico da verdade”, ou seja, o lado da verdade que pode ser narrado. Afirma ainda que, nos primórdios da arte de narrar, encontramos dois grupos principais de narradores: 1. aquele que viaja muito e conta o que viu em outras terras (marujos, guerreiros); 2. quem permanece em sua terra e narra a sua experiência de vida e de trabalho (camponeses). Depois os artífices aperfeiçoaram esta arte, pois nas oficinas medievais esses dois grupos conviviam, misturavam-se e narravam. Da Idade Média nos chegaram as novelas de cavalaria, o universo de reis, rainhas, príncipes, bruxas, universo este que ainda hoje encanta milhões de leitores no mundo inteiro, em filmes como os da série Harry Potter, por exemplo. Narrativa e memória Narramos para não esquecer? Essa é uma das hipótese dos pesquisadores para o número imenso e a variedade de narrativas em nossa vida. Há uma íntima relação entre narrativa e 44 45Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 memória. O conto é, entre as narrativas, talvez a mais antiga. A que começou quando os primeiros homens se reuniram em torno de uma fogueira, depois de um dia de caminhada, de caça, de coleta de frutas, para alimentar o corpo e o espírito. Há lendas, mitos, narrativas diversas organizadas com poucos elementos. Muitas das narrativas mais antigas estão reunidas em um famoso livro traduzido para várias línguas: As mil e uma noites, um livro que tem autoria coletiva, que não tem um só autor figurando como criador na capa. De países árabes e da Pérsia, nos vêm essas histórias cheias de fatos fora do comum (extraordinários), com violência, paixão, morte, feitiços, viagens, traição, amizade... A primeira história desse livro fala de um sultão chamado Shariar que foi traído pela esposa. Ficou revoltado, matou-a e decidiu que nunca mais seria traído. Assim, sempre que desejava, ele casava-se e, após a noite de núpcias, mandava degolar a esposa (o casamento durava apenas uma noite). Sharazade, uma jovem narradora maravilhosa, resolve mudar essa história. Oferece-se para a ser a próxima esposa do sultão. Na noite do casamento, ela disse a sua irmã: “Fique na porta do quarto, quando perceber que não há mais barulho ou movimento, entre e peça ao sultão para que eu lhe conte uma última história, antes de morrer”. A irmã obedeceu. O sultão concedeu e Sharazade contou uma história para a sua irmã e também para o sultão que está próximo. Ele fica curioso e seduzido pela narrativa. Quando amanheceu, Sherazade ainda não havia terminado a sua história, porém, ela silenciou. Ele, curiosos para saber o final, disse: “Termine a história”. Ela respondeu: “Não, que eu vou morrer”. Ele: “Termine, eu lhe concedo mais alguns minutos”. Ela: “Não. Só termino na noite seguinte, se você permitir que eu viva até lá”. Ele, movido pelo desejo de ouvir o final da narrativa, concedeu maisum dia de vida a sua esposa. Isso se repetiu por mil e uma noites insones, nas quais o sultão ouviu uma narradora adiar sua morte com as histórias que conhecia. Após esse tempo, ela, que já havia lhe dado um filho, havia provado que era fiel, e foi, então, liberta pelo sultão da ameaça, assim também como ficaram livres o sultão e o reino, da violência, da morte. Narramos para não morrer? Narramos porque morremos e queremos que muito permaneça após a nossa morte? Narramos para adiar a morte? Há muitas interpretações para essa história maravilhosa que nos foi legada por um povo distante. Uma delas é esta: narramos para adiar a morte. Mas há ainda outra lição: Sherazade sobreviveu porque soube narrar e porque soube a hora exata de calar. Nós ainda vivemos as mil e uma noites de várias formas, inclusive lendo-as, pois há muitas edições em várias línguas. A estrutura de narrar e interromper no auge do suspense para que o receptor deseje conhecer o final e volte no dia seguinte foi usada pelo folhetim, no século XIX, pela rádio-novela, no século XX e ainda hoje orienta a organização das novelas de TV, não é verdade? O capítulo do dia termina deixando no ar um suspense, criando no público o desejo de voltar a assistir a novela no dia seguinte. Elementos da narrativa Há muitas formas de narrar. A historiografia narra (ou tenta narrar) o que aconteceu a um povo, recuperando uma memória social, coletiva. A história do Brasil império, por exemplo, organiza os principais fatos vividos por personagens desse período da história brasileira. Diversos campos do conhecimento científico narram com recursos específicos. Nós mesmos já experimentos diversos modos. Mas o que é uma narrativa? Quais são os elementos que a constituem? A seguir, serão apresentados sucintamente os elementos principais da narrativa. Há uma vasta bibliografia sobre cada um deles. A pesquisa pode se concentrar mais atentamente em apenas um. Por exemplo, é possível pesquisar a construção da personagem em um romance de Machado ou o tempo como elemento fundamental na narrativa clariceana. Em toda narrativa (seja literária, cinematográfica, historiográfica, jornalística, etc.), temos ações vividas por personagens (reais ou fictícios), situadas no tempo e no espaço; todos esses elementos são ordenados de uma determinada perspectiva, ou seja, a partir de um foco narrativo. Assim, temos, na definição acima, todos os elementos da narrativa: • enredo: o conjunto de ações apresentadas na narrativa. Pode ser ordenado de diversas formas. O modo 46 47Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 mais convencional é: apresentação, conflito, clímax e desfecho; • personagem: podemos escrever/dizer a personagem ou o personagem. No primeiro caso, concordamos com a etimologia, com a origem da palavra: personagem vem de persona, que origina também a palavra personalidade. Vale, portanto, lembrar que a personagem tem uma configuração física (que pode ser apresentada por meio de uma descrição bastante sucinta e econômica pelo narrador ou sequer mencionada), mas é principalmente, uma personalidade, um conjunto complexo de traços. Quase sempre, a personagem é na narrativa o elemento do qual mais nos lembramos, talvez porque, não raro, elas se parecem conosco, nós nos identificamos com elas. Afirma Candido que a personagem “é o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística” (1985, p. 54). • tempo: que pode ser delimitado de modo explícito ou não, pode ser cronológico ou psicológico. O tempo na narrativa remete à duração da história (posso contar um dia da vida de um personagem no século XVII, ou posso contar a saga de uma família em três séculos) e o tempo em que ela ocorre (escrevo uma história situada no século XX ou no século XII e essa escolha afeta todos os outros elementos que constituem essa narrativa); • espaço: lugar ou lugares nos quais transcorrem os fatos narrados. A descrição do espaço, por exemplo, da casa da personagem, pode nos falar da condição econômica da personagem. O espaço não é mero cenário, às vezes, atua como personagem na narrativa, está intimamente articulado com os outros elementos do conto e, às vezes, aparece já no título da narrativa breve ou longa: O cortiço, de Aluízio Azevedo, O ateneu, de Raul Pompéia, São Bernardo, de Graciliano Ramos, Os sertões, de Euclides da Cunha; • e foco narrativo: a perspectiva a partir da qual são articulados todos os demais elementos da narrativa. Aqui, vale a pena recuperar a analogia com o foco da câmera fotográfica. Quando tiramos uma foto, nós aproximamos ou distanciamos mais o foco. Quando aproximamos, podemos ver os detalhes, destacar elementos mais sutis. Quando distanciamos, perdemos os detalhes, mas englobamos algo mais amplo. Assim também o foco narrativo. A narrativa pode ser organizada por um narrador onisciente, por exemplo, aquele que, semelhante a um deus, tudo sabe, o que as personagens fizeram, farão, sentem, pensam etc. Vamos investigar um pouco mais como esses elementos articulam-se em textos de diversos gêneros: conto, novela, fábula, romance, crônica. Para isso, todos devem ler o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, um dos mais ilustres autores alagoanos, que será discutido em um chat, no ambiente virtual, bem como as crônicas e contos ali apresentadas, com indicação de atividades de reescrita correspondentes. Espero que este seja o início de mil e uma noites de leituras instigantes para todos! Referências CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: A personagem de ficção. 7. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1985. ATIVIDADE 8 a Muitos gêneros nós conhecemos ainda na infância. Um exemplo disso é a fábula, o texto que se define por: 1. ser uma narrativa, ou seja, contar uma história, com personagens, tempo, espaço e foco narrativo; 2. ser, quase sempre, curta; 3. ter como personagens, quase sempre, animais com características humanas (eles falam, tem sentimentos...); 4. ter, muitas vezes, no final, a chamada “moral da história”, uma lição relacionada à história contada. 48 49Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 Escolha uma fábula, pode ser, por exemplo, “A cigarra e a formiga”, de Esopo, transcreva-a e reescreva-a, mudando o final e, consequentemente, a moral da história. RESUMO Ao longo do seu curso de graduação, você fará muitos resumos dos textos lidos. Os professores irão solicitar diversas vezes, resumos, para comprovar a leitura do material bibliográfico indicado. O resumo resulta de uma leitura atenta, normalmente realizada mais de uma vez, a fim de compreender a apresentação do tema e dos principais argumentos de um texto, no caso de um texto teórico. Veja mais sobre resumo nestes links: http://www.dep.ufsc.br/pibic/Resumo_como_fazer.htm http://www.pucrs.br/manualred/resumos.php ATIVIDADE 8 a A paráfrase é fundamental na elaboração de resumos. Assim, faça paráfrases dos trechos abaixo, de forma resumida, ou seja, reescreva-os com “suas” palavras, excluindo o que você considera acessório. Lembre-se de indicar o nome do/a autor/a parafraseado/a (use as fórmulas: segundo ______; de acordo com ______; na concepção de _________,). Texto 1 “A aceleração das inovações tecnológicas se dá agora numa escala multiplicativa, uma autêntica reação em cadeia, de modo que em curtos intervalos de tempo o aparato tecnológico vigente passa por saltos qualitativos em que a ampliação, a condensação e a miniaturização de seus potenciais reconfiguram completamente o universo das possibilidades e expectativas, tornando-o cada vez mais imprevisível, irresistível e incompreensível” (SEVCENKO, 2001, p. 16). Texto 2 “Em razão de um antigo preconceitoem nossos espíritos e que performa nossos gostos, todo produto das artes da linguagem se identifica com uma escrita, donde a dificuldade que encontramos em reconhecer a validade do que não o é.” (ZUMTHOR, 1997, p. 11). Texto 3 “Em meados do século XX, os fracassos do marxismo e a revelação do mundo stalinista e do gulag, os horrores do facismo e, principalmente, do nazismo e dos campos de concentração, os mortos e as destruições da Segunda Guerra Mundial, a bomba atômica – primeira encarnação histórica “objetiva” de um possível apocalipse – a descoberta de culturas diversas do Ocidente conduziram a uma crítica à ideia de progresso.” (LE GOFF, 2003, p. 14). RESENHA A resenha constitui uma descrição e um comentário crítico acerca do livro resenhado, exige, portanto, uma leitura atenta. Não há modelos fixos, mas toda resenha tende a apresentar o livro e dar informações sobre o seu autor, obras anteriores, perspectiva teórica. Não raro, indica a importância da obra resenhada para a área à qual pertence. Veja um exemplo de resenha escrita por mim, neste link: http://revistalingua.uol.com.br/textos/63/artigo249020-1.asp Veja outro exemplo no quadro abaixo. Formas breves e instigantes Susana Souto Silva O escritor argentino Ricardo Piglia, atualmente professor da Universidade de Princenton, nos Estados Unidos, alem de romances (Respiração artificial, Cidade ausente, Dinheiro Queimado) e contos (A invasão, Nome falso), escreveu também textos críticos. O volume Formas breves, recém publicado pela Companhia das Letras, reúne textos críticos desse escritor. Alguns desses ensaios foram publicados em livros anteriores, como O 50 51Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 laboratório do escritor (Iluminuras, 1994) e El arte de narrar (Humanitas/FFLCH/USP, 1999), que aparece agora dividido em dois trabalhos, “O ultimo conto de Borges” e “Novas teses sobre o conto”. Onze ensaios curtos e um epílogo formam o livro em que se lê uma interessante definição de crítica: “A critica é a forma moderna de autobiografia. A pessoa escreve sua vida quando crer escrever suas leituras”. Escrevendo, portanto, sua autobiografia, a biografia de um leitor voraz, Piglia retoma, partilhando com outros leitores, as suas descobertas e perplexidades diante das obras de Macedônio Fernandez, Jorge Luis Borges, Robert Arlt, Julio Cortazar. Mas não só os escritores argentinos figuram nesse diário de leituras. Em um belo ensaio, “Os sujeitos trágicos (psicanálise e literatura)”, o autor coloca em dialoga Freud, Joyce, Nabokov, Jung, Kafka. Essas formas breves de Piglia problematizam o estatuto da crítica. Estamos diante de escritos que mesclam propositalmente o diário intimo e a análise literária, o relato ficcional e o histórico, compondo textos nos quais o crítico e o escritor de textos literários misturam-se, e embaralham as fronteiras, ha muito indistintas, entre esses dois campos, pois se a critica é uma forma de autobiografia, podemos desdobrar essa afirmação e dizer que, assim como a autobigrafia é uma forma de ficção, a crítica também o é, como nos mostra Borges em diversos dos seus textos, entre os quais o mais famoso e comentado talvez seja “Pierre Menard, autor de Quixote”. Piglia leva ao extremo essa proposição e nos leva, encantados e surpresos, a sua cabeceira, onde vivemos a ilusão de partilhar notas escritas a margem dos seus livros preferidos, criando entre o leitor e o autor do texto crítico uma inuasitada intimidade, como se conversássemos com ele em uma mesa de bar, na qual a descontração e a confissão dessem o tom da conversa, despindo a crítica da pretensão, não raro enfadonha, de ser mais importante do que a obra. Saímos da leitura dessas formas breves com reflexões que se prolongam, com o desejo de buscar textos ainda não conhecidos e de retornar a textos já lidos, guiados por um autor que vê a literatura como um texto que nos provoca, como ele mesmo escreve, “surpresas, epifanias, visões. Na experiência renovada dessa revelação que e a forma, a literatura tem, como sempre, muito que nos ensinar sobre a vida”. ARTIGO Entre os gêneros do discurso que produzimos com frequência na universidade está o artigo. Ele se configura como um texto em que analisamos uma obra ou apresentamos os resultados de uma pesquisa, seja de caráter bibliográfico, o que predomina em nossa área, ou não. Como se faz em âmbito acadêmico, segue as normas da ABNT, Associação Brasileira de Normas Técnicas, e está fundamentado na leitura de textos teóricos, que fornecem também orientação metodológica. Assim, há vários procedimentos de elaboração de artigos, de acordo com o tema tratado, com a teoria adotada e com os procedimentos metodológicos. Você deve sempre buscar ler artigos publicados em revistas especializadas, em jornais ou em revistas de opinião, para construir um repertório de modelos que pode ser utilizado como referência na hora de elaborar os seus próprios artigos. Há trabalhos que se debruçam sobre a elaboração de artigos e dão algumas orientações práticas, como se pode ver nos links abaixo: http://www.bu.ufsc.br/ArtigoCientifico.pdf http://www.cristovaotezza.com.br/textos/palestras/p_ linguabrasileira.htm A seguir, há um artigo meu, publicado na Revista de Letras, da Universidade Católica de Brasília. Leia-o e observe os seus traços constitutivos. A ESCRITA DO FRAGMENTO Susana Souto Silva UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - UFAL RESUMO: Este artigo discute o fragmento como constitutivo da escrita clariceana, a partir de crônicas dessas autora publicadas no livro A descoberta do mundo (1984). PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector. Crônica. Fragmento. 52 53Licencenciatura em Letras - Espanhol Licencenciatura em Letras - Espanhol Livro de Conteúdo Livro de Conteúdo Leitura e produção de texto Leitura e produção de texto Disciplina 4 Não se resiste Ao deus atroz Que os próprios filhos Devora sempre. (Ricardo Reis) De todas as imagens que a mitologia grega nos legou, a que representa a noção de tempo é uma das mais instigantes: Cronos, o pai devorador. A sua narrativa assusta-nos e comove- nos. Fala do que é em nós a corrosão cotidiana do tempo, a cruel irreversibilidade do tempo, que, ao passar, “imprime em toda flor sua pisada”, como canta Gregório de Matos. Cronos (http://pt.wikipedia.org/wiki/Cronos), o deus, simultaneamente, doador e devorador da vida, é uma bela metáfora do tempo. Para escaparmos a essa devoração constante ou, ao menos, para esquecê-la ou lembrá-la esteticamente, temos a arte, e, mais especificamente, temos a literatura, a arte que se faz com palavras. Cronos está presente em diversos vocábulos: cronológico, diacrônico, sincrônico. Está inscrito na palavra “crônica”, que pode ser lida como adjetivo (quando qualifica uma doença, por exemplo) e como substantivo, quando usado como gênero do discurso. Como gênero, foi, muitas vezes, considerado menor. Nos últimos tempos, porém, a crítica tem tentado quebrar essa régua invisível e injusta para se defrontar com os textos, sem a perspectiva de medi-los. Como destaca Carlos Heitor Cony, um dos cronistas em atividade no Brasil: A crônica só é gênero menor em termos de literatura. Admite-se como inabalável a certeza de que a literatura tende a ser perene, intemporal. Não faltam teóricos para garantir que a arte, nela incluindo a arte literária, existe para superar a morte. E, se a literatura busca a infinitude, a crônica é crônica mesmo, expressão de finitude. É temporal, fatiada da realidade e desvinculada do tempo maior que é o da literatura como arte. (Disponível em http://www.saa.com.br/quadro/ponto/ cronica.htm. Acesso em maio de 2007). A crônica atuaria, assim, em uma dupla temporalidade: a pretensamente perene da arte e a precária, fugaz, do jornalismo. O jornal é um suporte
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