Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Introdução Este livro, cujo tema central é o da Economia Urbana no Brasil, tem suas origens no início da década de 1980, no Instituto de Economia da Unicamp, quando instituímos um programa de doutoramento sobre Economia do Setor Público. Nossa equipe inicial tinha sólida formação sobre o tema do Desenvolvimento e das especificidades do Subdesenvolvimento. Contudo, a temática central daquele curso, além de envolver questões basilares sobre desenvolvimento econômico, infra estrutura econômica e social, distribuição de renda, papel do Estado e políticas sociais, exige também um entendimento maior sobre economia regional e urbana. Graças a meu anterior trabalho na Cepal, tinha conhecimentos sobre a especificidade dos processos de urbanização em países subdesenvolvidos, e, desde a década de 1970, em função de minha carreira acadêmica na Unicamp, realizei várias pesquisas e reflexões sobre a questão regional brasileira.1 Pela leitura de algumas obras clássicas, sabia que em seu processo histórico, a urbanização brasileira apresentava grande diversidade e dispersão espacial, e que, pelo menos até 1930, havia sido construída em razão das diferentes células regionais exportadoras, e pelas raras rotas da precária integração de alguns mercados regionais.2 Sabia também, por leituras e pesquisas, que o estado de São Paulo tivera processo distinto, e criara uma notável rede urbana, bastante avançada em relação aos demais estados, em razão das especificidades da economia cafeeira paulista. Assim, tomei a meu cargo estudar mais o tema da urbanização, tendo como base o espaço econômico paulista, Para tanto, formei uma equipe básica e, desenhei e coordenei algumas pesquisas, em convênio com o governo do Estado de São Paulo, que constituíram a base para que realizássemos nossos objetivos. 3 Com essas pesquisas procuramos enfrentar algumas questões metodológicas que, em sua maior parte, restringiam em grande medida a análise da economia urbana, a uma visão “intra-muros”. Nossas pesquisas tentaram fundamentar melhor a análise da dinâmica da urbanização, utilizando um espectro maior e mais detalhado de relações de interdependência setorial com os vários compartimentos sociais e econômicos do urbano e do rural. Dessa forma, procuramos entender melhor as inter-relações do urbano com o rural, e os nexos que disto decorrem para alterar o urbano. Dentro do próprio setor urbano, procuramos destacar e dar ênfase às múltiplas relações entre os setores industriais e os serviços, assim como lançar alguma luz sobre a dinâmica “autônoma” que o próprio movimento demográfico e social urbano pode imprimir sobre a dinâmica da economia urbana. 1 Tais estudos estavam consubstanciados em minhas teses de doutorado, Raízes... (1975), que discute o período 1870-1929, e a de Livre-Docência, e Desequilíbrios... (1982), que abarca o período 1929-1970, posteriormente editadas. Ver: Cano 2007 A, 5a. ed. e 2007 B, 3a. ed. Essas reflexões seriam atualizadas mais tarde, com novas pesquisas constituindo um terceiro livro (Cano 2008). 2 São exemplos disso a mineração do século XVIII em Minas Gerais,, Goiás e Mato Grosso, abrindo rotas que semearam muitas cidades naquelas zonas e entre elas e regiões do Rio e Janeiro,Nordeste, São Paulo e extremo sul do país. 3 A síntese dessas principais pesquisas foram publicadas em: Cano (Coord., 1988 e 1992), abarcando a primeira, o período de 1920 a 1980 e a segunda, o de 1970 a 1989. Em nova pesquisa, atualizamos esse estudo, publicado em: Cano e outros, 2007.. Em convênio com a Prefeitura Municipal de Campinas, fizemos trabalho semelhante sobre a Região Metropolitana de Campinas (Cano e Brandão, Coords. 2002). 2 Dedicamos especial atenção ao estudo dos vários componentes do Setor Serviços, dada a grande complexidade metodológica que o envolve. Procuramos ainda entender melhor as razões e os sentidos maiores dos fluxos migratórios interestaduais e inter-regionais e seus efeitos positivos e negativos sobre a dinâmica urbana. Além de nossas preocupações acadêmicas, tínhamos também outras, tão ou mais importantes do que aquelas, no sentido de indagar sobre as ações e omissões do Estado na questão do planejamento urbano, do uso do solo e de suas políticas sociais, bem como dos atores principais na órbita privada – o capital mercantil, imobiliário e construtor. Por outro lado, os nefastos efeitos da “explosão” urbana da década de 1970 geraram seqüelas que se acumularam à grave crise econômica e social da década de 1980. Isso nos estimulou a pesquisar e refletir sobre aquele tema, para tentar entender melhor aquele processo e poder refletir sobre os maus prognósticos que então vislumbrávamos, antevendo a piora sensível que alguns daqueles problemas urbanos poderiam sofrer, caso não se alterasse o quadro institucional e as políticas sociais sobre o urbano brasileiro. Não se tratava, obviamente, de profecias ou adivinhações. Os graves problemas urbanos de então passariam a ser “ciclópicos”, no sentido de que à medida que o tempo passasse, os custos, o tempo e os recursos necessários à sua superação cresceriam desmedidamente. É o caso das atuais tragédias urbanas que assistimos em anos recentes, principalmente em 2009, 2010 e neste início de 2011. Tragédias que não decorrem exclusivamente de fenômenos ou desequilíbrios naturais, mas também, e na maioria dos casos, principalmente, pela omissão (ou más ações) do Estado, cooptado ou não pelo capital mercantil urbano. Os resultados de nossas pesquisas foram altamente compensadores. Com eles, em primeiro lugar, consolidamos a formação de uma equipe de pesquisa, que forneceu a base para aquele curso, e que se estendeu, anos mais tarde, a novo programa de pós- graduação, o de Desenvolvimento, Espaço e Meio Ambiente, onde hoje acumulamos considerável acervo de teses e pesquisas realizadas. Mas acima de tudo, as pesquisas deram maior sustentação a nossos temores, o que o leitor poderá constatar através dos textos inseridos neste livro. Eles abarcam questões que tratávamos em nossas pesquisas, discussões e aulas, desde a década de 1970. e foram adquirindo a forma de textos mais breves e mais ágeis para divulgação e publicação partir de 1985. Conteúdo do livro O livro reúne 14 textos - 2 dos quais em co-autoria -, 4 publicados em livros e os demais em anais e revistas especializadas. Em que pese o fato de que todos eles têm traços comuns, em termos de problemas reais ou de teoria, julguei melhor separá-los em 4 grupos, de conformidade com suas especificidades principais. Todos os textos trazem a data e a referência de sua publicação original I – Agricultura, Urbanização e Reforma Agrária. 3 Os artigos nos. 1 e 2 foram publicados em 1985 e 1986, ao findar o regime militar e início da “Nova República”, quando os problemas da crise social e da econômica retornam com vigor no debate político acadêmico e no nacional. O tema da Reforma Agrária, praticamente excluído durante o regime militar retomara seu lugar na agenda política do país, desde as vitórias das oposições, em eleições estaduais em 1982 e na nacional em 1985, e era visto como um dos principais problemas sociais do país. O tema retorna e, no início, ainda era justificado como necessário a uma reparação de justiça social, diminuição do desemprego e como estímulo para o aumento da oferta de alimentos, mas este argumento foi perdendo terreno, à medida que a produtividade agrícola subia, e a produção alimentar – não tanto quanto a de exportáveis – crescia, atendendo a demanda explicitada no mercado capitalista nacional. Contudo, à medida que os problemas urbanos adquiriam contornos mais graves e a crise mantinha o emprego restringido, a questão da Reforma Agrária adquire nova justificação, crescendo como fonte provável de emprego, e, principalmente como mecanismo para sustar a expansão urbana, que, na década de 1970 havia sido“explosiva”, e não mais “suportável”, como a que ocorreu durante as de 1950 e 1960. Como se verá na leitura dos demais grupos – notadamente do II – os temas da agricultura e da reforma agrária estarão presentes em quase todos os textos, fortemente imbricados na dinâmica da urbanização, principalmente no que se refere ao “inchaço” urbano. II – Dinâmica da Urbanização: estrutura, principais determinantes, e proposições de políticas. Este grupo contém 6 artigos que trataram de: i- alguns dos principais problemas teóricos e metodológicos que envolvem a dinâmica da economia e do planejamento da urbanização; ii- análise (sintetizada) de nossos processos históricos de crescimento regional e urbano; iii- elaboração de propostas de reformulação da legislação e das políticas urbanas, como tentativa de corrigir ou atenuar alguns dos problemas urbanos ali apontados. Na metodologia e na análise, especial atenção foi dada: i- à periodização daqueles processos históricos, harmonizada com o movimento macroeconômico nacional; ii- à interação da política econômica nacional, com as de desenvolvimento regional e urbano, Guerra Fiscal, e algumas políticas setoriais e sociais; iii- à interdependência técnica (renda e emprego) entre os setores primário, secundário e terciário da economia; iv- à ausência quase absoluta de cálculos e estimativas dos custos-benefícios decorrentes do uso de políticas de descentralização-desconcentração industrial, em 4 termos de seus principais efeitos: arrecadação e gasto público; renda, emprego, poluição, oferta e demanda de serviços públicos básicos, etc.; v- à necessidade de se avaliar, separadamente, os efeitos urbanos gerados dentro do próprio território do Estado de São Paulo e os que decorrem de relações inter- regionais, como por exemplo, os fluxos migratórios interestaduais, as políticas de desenvolvimento estaduais e regionais, e a Guerra Fiscal. O artigo no. 3 (Dinâmica..., de 1985) é texto pioneiro e sua estrutura serviu de base à formulação de uma importante pesquisa (Interiorização...) sobre o período 1929- 1979 e que nos permitiu aprofundar o estudo do tema da economia urbana. O no.4 (O Setor Terciário.., em co-autoria com Ulisses C. Semeguini) discute os principais problemas metodológicos e teóricos para a análise do setor serviços, pelas óticas da renda e do emprego. Os dois seguintes (5-Subsídios.... e 6- Urbanização...) detalharam mais algumas análises da dinâmica urbana e avançaram em termos de propostas de reformulação legal e de políticas para o setor. Foi a partir deles que nos convencemos do perigo que a sociedade corria com o provável agravamento futuro da maior parte dos problemas urbanos que então constatávamos, e que acabariam resultando em vários desastres urbanos “naturais” que têm ocorrido com freqüência. Contemporâneo a esses quatros, o no. 7 (Questão regional e...) sintetiza a evolução e principais transformações na dinâmica regional e na urbanização do país, ao longo do período de 1930 a meados da década de 1980, destacando as principais diferenças regionais nesses processos. O no.8 (Reflexões sobre ...capital mercantil...), publicado em 2010, é um texto teórico e analítico sobre os efeitos da dominação do capital mercantil em vários espaços rurais brasileiros e sobre sua ação no mundo urbano, travestido de capital imobiliário, incorporador ou construtor, dirigindo e comandando os processos de especulação imobiliária e agravando os efeitos nefastos do descontrole do poder público sobre a urbanização III – Concentração econômica, urbanização, diversificação e metropolização. Este tema, que ganha grande importância, para os países subdesenvolvidos a partir da segunda metade do século XX, é aqui tratado em dois textos distintos. O no. 9 (Base e Superestrutura..) contém uma discussão teórica bastante polêmica, que é a da interdependência entre as transformações da estrutura produtiva e sua infra estrutura, e as que se manifestam nas artes, na política, nas relações sociais, etc.). O artigo destaca a polêmica existente e as próprias ressalvas que Marx e Engels fizeram, limitando a interdependência direta da Base com a Superestrutura, mostrando que podem existir outras formas de interação direta e indireta entre aqueles dois espaços sociais. O texto está centrado na década de 1920, no espaço que futuramente constituiria a Região Metropolitana de São Paulo, mostrando importantes transformações quantitativas e qualitativas nas estruturas produtivas e na Superestrutura, apontando ainda para a capacidade que essa região já mostrava para receber transformações modernizadoras (nacionais e internacionais) que ocorriam no período. Em especial, aponto também para o desiderato das pressões econômicas, políticas e sociais que ali fermentavam, e que iriam desaguar na “Crise de 29”e na subseqüente Revolução de 5 1930, instaurando o processo de industrialização no Brasil. Em suma, é a partir desse momento – os anos vintes – que a cidade de São Paulo vai, efetivamente, ganhando a condição de futura primaz da urbanização brasileira, passando a ser uma grande cidade, superando demograficamente a cidade do Rio de Janeiro na década de 1950. O texto no. 10 mostra como as transformações proporcionadas pela industrialização vão alterando as estruturas da RMSP, convertendo-a, já na passagem da década de 1950 para a de 1960 em metrópole nacional, e, com a explosão urbana da de 1970, em metrópole de caráter internacional, ostentando agora não só a primazia da industrialização, mas também a dos serviços, que se diversificam extraordinariamente, passando também a ser a sede nacional do sistema financeiro. Entretanto, a velocidade desse progresso e a incúria e o casuísmo do setor público sancionaram a piora dos principais problemas urbanos, notadamente os que atingem mais as camadas de menor nível de renda. IV - Crise e necessidade de um novo Modelo Nacional de Desenvolvimento São quatro textos mais recentes, que tratam da evolução do processo de urbanização ao longo da profunda crise que nos assola desde a década de 1980, chamando a atenção para a gravidade do momento atual, em que o neoliberalismo nos colocou uma camisa de força na política macroeconômica, privilegiando o superávit fiscal, constrangendo a taxa de inversão e o crescimento econômico. Os textos nos. 11, 12 e 13 mostram que, com isso, os problemas urbanos e sociais se agravaram sobremodo, proliferando uma série de desastres urbanos “naturais”, como enchentes, deslizamentos e soterramentos que estão ceifando milhares de vidas humanas e destruindo domicílios. O texto no. 13 (O movimento do pêndulo...,escrito em co-autoria com Ana C. Fernandes) discute e critica a “inventiva” neoliberal do Poder Local, analisando as dimensões políticas e econômicas das diferentes escalas espaciais em que a questão regional e a urbana podem ser tratadas, cobrando maior transparência e democratização na tomada de decisões. As conclusões dos textos convergem para o texto no. 14 (Agenda....), no sentido da necessidade de formulação de um novo Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico que rompa com o compromisso neoliberal, volte-se mais para o mercado interno e resgate o enorme débito social da nação. Por seu tamanho (75 páginas), evitei incluir aqui um texto síntese sobre a ampla pesquisa que coordenei junto com outro colega, sobre a RM de Campinas.. O leitor poderá consultá-la em: Cano, W. e Brandão, .A.C. A Região Metropolitana de Campinas : urbanização, economia, finanças e meio ambiente. Ed. Unicamp, Campinas, 2002, 2v. Correções e definições de algumas expressões Fiz pequenas correções de erros da digitação anterior e substituí alguns vícios de linguagem, termos ou palavras para esclarecer melhor o texto específico. Acrescento 6 ainda um pequeno número de notas de rodapé para atualizações ou correções que julguei indispensáveis, às quais, no rodapé,serão adicionadas a expressão (NA). Além disso, acrescento abaixo algumas informações ou definições sobre algumas expressões usadas ao longo dos textos, para melhor compreensão do leitor: i-- Califórnia Paulista: cunhei esta expressão, ao realizar as primeiras pesquisas, para chamar a atenção para a área que compreende o vetor Campinas/Ribeirão Preto/São José do Rio Preto, dado o grande avanço das forças produtivas capitalistas no agro e no setor urbano dessa área, bem como pelo seu alto nível de renda média, um dos mais altos do Brasil. ii- Caos urbano: expressão cunhada pela opinião pública, na década de 1970, para se referir aos problemas urbanos mais gritantes (transporte coletivo, habitação, saúde e educação) e a desorganização social que isto causa no cotidiano. iii- Descentralização ou Desconcentração, seja de produção, de empresas, de serviços, ou de recursos públicos, deve-se entender por: descentralização, o processo ou procedimento através do qual uma quantidade de bens (reais ou imateriais) se transfere fisicamente de uma localidade para outra. Este fenômeno, no setor industrial, ocorre com baixa freqüência. Por desconcentração entende-se a diminuição da participação relativa de uma localidade X, no total (A a Z) da produção nacional de um determinado bem ou serviço, podendo isto se dar sem que haja descentralização de X para Y, mas sim pelo resultado estatístico decorrente de a localidade Y ter crescido mais do que a X. Isto se dá em função das variações relativas da produção nas diversas regiões de um país. Por essa razão, substitui a primeira expressão pela segunda, em vários dos artigos aqui publicados, em que o uso daquela expressão era indevido. iv- Urbanização “suportável”: assim denominei a urbanização que se manifesta até a década de 1960, durante a qual os processos de deterioração dos serviços urbanos ainda não haviam atingido a situação crítica que se verificaria a partir da de 1970. A periferização das maiores cidades, embora já se manifestasse, era ainda reduzida, e o sistema de transportes coletivos, mesmo precário, dava conta da demanda então manifestada. Embora o saneamento básico fosse precário, a questão habitacional ainda apresentava “soluções” (mutirão, pequena construção mercantil, baixa inflação, lotes baratos, etc.) que minoravam seu déficit. O ensino e a saúde ainda eram serviços praticamente só públicos, e atendiam razoavelmente a demanda. v- Urbanização “explosiva”: assim denominei a que se manifesta a partir da década de 1970, com a aceleração da industrialização, a consolidação da ocupação do Centro Oeste e o início da Amazônia, expandindo sobremodo a urbanização, em uma velocidade que potenciava ainda mais os efeitos dos desmandos do Estado em termos da oferta de serviços públicos básicos e tornava crítica a especulação e a degradação urbanas. É partir desse momento que a maior parte dos problemas urbanos se tornam “ciclópicos”, isto é, adquirem um enorme volume absoluto, exigindo elevadas somas de recursos. Dadas as pressões sobre as finanças públicas (em todos níveis hierárquicos) e os cortes no gasto público, começa a entrar em cena outro fatídico personagem: a privatização – de fato ou de jure - de serviços públicos. Agradecimentos 7 Agradeço meus colegas Profs. Ana C. Fernandes e Ulisses C. Semeguini, pela cessão de direitos de co-autores de dois textos inseridos neste livro. A meu colega Prof. Barjas Negri, que me estimulou a fazer este livro, no início da década de 1990, idéia que relutei na época, mas que, diante do grande número de cópias que tenho dado nesses anos todos, para atender solicitações de pesquisadores e de diversos cursos que versam sobre a matéria, resolvi edita-lo. Agradeço ainda a Marcos Barcellos - doutorando de nosso Programa no IE-, pela leitura atual e observações feitas sobre alguns destes textos. 1- EXPLOSÃO URBANA E REFORMA AGRÁRIA1 Wilson Cano No que se refere à questão social entendida em um Plano de Reforma Agrária, há dois pontos a ressaltar. O primeiro refere-se ao problema da miséria e do desemprego que promovem a degradação humana na sociedade brasileira. Acho que nos tempos modernos é uma situação nunca vista e que gera um número de violências igualmente impensado. Presenciamos ademais uma degradação urbana com uma expansão periférica e a privatização dos serviços públicos adotada de acordo com o velho receituário. Esse velho receituário tanto foi usado pela Arena como pelo PDS e hoje pelo PMDB. Não há recursos, dizem. Não há recursos como não há imaginação criadora. Não há uma ação efetiva e firme de lideranças entre executivos municipais e estaduais para tentar enfrentar a coisa com um pouco mais de firmeza e de coragem. É o que está faltando neste país nos dias que correm. No plano econômico eu vejo três questões essenciais que devem ser colocadas no tocante ao desejo de uma política de reforma agrária. Na primeira questão refiro-me ao “problema do emprego”; a segunda diz respeito aos investimentos sociais e aos custos de urbanização; a terceira questão ao problema da “oferta de alimentos”. No tocante à mão-de-obra e ao desemprego, ainda que os conservadores viessem a obter resultados positivos no sentido de uma expectativa otimista para a recuperação da economia nacional, nós teríamos que analisar cuidadosamente alguns pontos. Primeiro, que a manutenção ao atraso agrário e agrícola do país é um fator de expulsão de mão-de-obra, pelo menos nos últimos 55 anos. Segundo, que a expansão modernizadora da agricultura brasileira, a partir de meados da década de 1960 é, também, por outras razões, expulsadora de mão-de- obra. É um lado tão forte que, deixada a agricultura à sua tendência manifesta das últimas décadas, será inexorável uma forte contração do emprego do setor primário da economia. O emprego industrial, ainda que o país venha recuperar-se da crise perversa que tem atravessado nesta década, vai defrontar-se com uma questão crucial. Trata-se da questão do endividamento externo que nos força, qualquer que seja a postura política deste ou de outros governos que venham a se suceder, a enfatizar políticas de expansão das exportações. E isto exige, portanto, a necessidade de manter um alto nível de competitividade internacional em 1 Apresentado oralmente em agosto de 1985, na Assembléia Legislativa de São Paulo, em Seminário sobre A primeira proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República e o Brasil dos anos 80, promovido pela Assoc. Brasileira de Reforma Agrária – ABRA, Centro de Estudos de Cultura Contemporânea – CEDEC e Núcleo de Estudos, Pesquisas e Documentação Rural – ILCSE/UNESP. 2 nossa pauta exportadora, hoje grandemente constituída de produtos, primários em bruto e transformados. Isso exigirá um processo de atualização tecnológica e, portanto, ainda que a indústria volte a crescer daqui a dois anos, digamos assim, e por todo o resto da década, este crescimento não geraria efeito expressivo em termos de incorporação de força de trabalho na indústria. E incorporação de empregados no setor terciário da economia dificilmente tornar- se-ia uma incorporação produtiva, dado que, pelos problemas da estrutura industrial, da complementaridade industrial e do desenvolvimento tecnológico acentuado dos chamados setores de ponta, dificilmente essa incorporação se daria de forma tal que a situação do emprego industrial fosse compensada com uma expansão produtiva do emprego terciário. Portanto, o quadro pode ser desenhado. É a continuidade de um terciário inchado, é a continuidade de uma marginalização do trabalho urbano. A explosão urbana, a partir da década de 1970 é acompanhada notavelmente de uma expansão do desemprego aberto ou disfarçado, de uma expansão dos anéis periféricos, antes apenas nas metrópoles, depois, nas cidades grandes, hoje, nas médias e também em muitas pequenas. Não sóno Estado de São Paulo, mas no Brasil inteiro essa explosão tem gerado uma degradação humana bastante violenta. Ela aparece associada com o descaso pela gestão pública, com a incompetência de nossos administradores públicos, com a corrupção, e pura e simplesmente, como herança do governo autoritário. O acúmulo desses fatores fez com que essa inchação, essa explosão urbana se manifestasse de uma maneira bastante cruel sobre as finanças públicas municipais. As cidades explodiram, se encheram de gente, se encheram de pobres. Pobres que fazem demandas bastante acentuadas por serviços públicos, mas que ao mesmo tempo não são cidadãos no sentido pleno da palavra, ou seja, não são cidadãos capazes de, através de um engajamento econômico produtivo, gerarem uma contrapartida de receitas fiscais. A situação fez com que nos confrontássemos permanentemente com uma propalada escassez de recursos, com uma dicotomia entre gastos públicos e sociais explodidos e receitas municipais em franca contenção ou em franco descenso. É espantoso mesmo que, estando muito próximo de uma Constituinte e bastante precisados de uma reforma tributária de emergência, não saibamos o que fazer com a receita pública das finanças municipais. A terceira questão se refere à oferta de alimentos. Ela está presente na proposta, mas não está aprofundada. Por que? Porque acreditamos que uma proposta de reforma agrária, ainda que iniciada com técnicas simples de cultivo, certamente com um mínimo de apoio de estrutura de crédito de financiamento possibilitaria uma expansão da oferta? Por uma razão muito simples. Na verdade, deve-se responder a essa questão com uma outra pergunta. O sistema capitalista de produção injetou uma acentuada quantidade de técnica e de capital na agricultura, nos últimos 25 anos. Porque ela, ao invés de produzir coisas para exportar, ou coisas para serem industrialmente transformadas, porque ela não produziu mais, os chamados alimentos básicos? Essa é uma pergunta fundamental a ser formulada. Acredito que a resposta esteja, simplesmente, no sistema de preços e na relação salários/preços. Ou seja, nós dispomos de uma estrutura de produção alimentar que produz alimentos básicos relativamente “baratos”. São alimentos que, se produzidos com a utilização de técnicas mais avançadas, por empresas capitalistas, teriam que, necessariamente, equalizar seus preços a níveis internacionais. Isso só seria compatível com um sistema absolutamente livre de preços agrícolas no mercado nacional. Caso assim ocorresse, resultaria numa fatal 3 explosão da estrutura e da faixa de salários. Estas coisas têm que ser ditas com todas as cores, com toda a sua profundidade a esse movimento conservador da classe dominante. Ele deve entender o que é uma estrutura de custos da produção. Lamentavelmente, estamos aqui, todos, propugnando um programa de reforma agrária. De fato, temos que deixar bem claro que estamos, a bem da verdade, fazendo uma petição política a esse segmento miserável da sociedade brasileira que não tem os acessos para a inclusão capitalista, que não pode ser submetida formalmente pelo capital, porque esse capital débil e periférico não tem condições de submetê-lo. Então, nós temos que pedir desculpas a esses marginalizados e dizer-lhes: olha, nós vamos fazer um programa de reforma agrária, vamos colocar vocês nesse processo e vocês aguardem, nessa condição de trabalhadores ou pequenos produtores rurais, pelo menos uns vinte anos. Quem sabe, daqui a vinte anos, esse capital se desenvolva, suficientemente, de tal forma que possa incorporá-los produtivamente na economia urbana. Acho que essa questão deve ser colocada com sua devida crueza para que tenhamos um entendimento um pouco mais sério sobre essa questão. Dessa problemática e de sua co-irmã que é a explosão urbana. Se nós não atentarmos para essa problemática urbana, para a gestação da violência, estaremos caminhando para um beco sem saída e não para uma sociedade efetivamente democrática. Estou estarrecido, por exemplo, com a forma como o governo da Nova República, encaminha um mutirão contra a violência e divulga as medidas a serem tomadas. Elas foram reduzidas ao reequipamento policial e judiciário. É assim que o segmento conservador da classe dominante brasileira apresenta o seu receituário para o problema da crise social que nós enfrentamos. Finalmente, diria que a questão do financiamento da reforma agrária se apresenta muito preocupante. No que se refere às metas do programa de reforma agrária para o biênio 85/86, ainda que fossem triplicados os custos que constam na proposta, orçados em 16,5 milhões por família – acredito que estejam subestimados – eles não atingiriam 2% da correção monetária da dívida pública interna para este ano. Portanto, um governo com decidido apoio político não teria grandes dificuldades em um processo “confiscatório”, e necessariamente terá que ser confiscatório, de parte da dívida pública interna. Não é pedir muito, dizer que se retire 2% que estão engordando mais ainda esse segmento especulativo nacional, para financiar este primeiro momento do Programa de Reforma Agrária.2 2 (NA) Viria a ser o próprio segmento conservador que aceitaria os termos do confisco praticado pelo Governo Collor em 1990, sobre vários ativos financeiros privados, reduzindo fortemente a dívida pública, mas não dando qualquer atenção aos problemas sociais do país. 1 2- AGRICULTURA E URBANIZAÇÃO1 Wilson Cano2 Até recentemente, a reflexão sócio-econômica sobre os problemas da agricultura e sobre a urbanização era praticada de forma excludente, como se as duas temáticas só devessem e pudessem ser tratadas de forma separada. Isto decorria do rígido corte disciplinar que havia entre a sociologia urbana, a economia e a agronomia, que felizmente parece estar com seus dias contados. Por outro lado, os estudos sobre a questão da urbanização no mundo subdesenvolvido só atingiram maior realce a partir do início da década de 1960, face ao avanço da Industrialização e à conseqüente expansão do mundo urbano, notadamente na América Latina. A década de 1970, particularmente para o Brasil - mas não só para este país - traria à superfície uma intrincada teia de problemas em nossas principais cidades a que chamei de “caos urbano”. Problemas os mais variados como os de transporte, habitação, água, esgoto, saúde, educação, emprego, violência, lazer, etc., defrontavam-se não só com a “clássica” observação da “falta de recursos” mas também com a perplexidade de acadêmicos, políticos e planejadores, muitos dos quais passaram então a apelar para a “solução” do tipo “a cidade deve parar de crescer”. Mais recentemente, as preocupações acadêmicas têm se voltando para uma reflexão que tenta - na medida do possível -, integrar as visões compartimentadas num processo de reflexão global, entendendo o urbano não apenas como fruto de sua própria evolução mas como resultante, também, do processo rural (Cano, 1985, Rangel, 1986). Alguns trabalhos recentes têm incursionado nessa questão, tentando mostrar o problema basilar da heterogeneidade estrutural das economias latino-americana e brasileira resultante de seus processos de desenvolvimento econômico, particularmente da industrialização modernizadora. 3 Tal heterogeneidade, resumidamente, decorre do fato de que os países subdesenvolvidos, em sua transição para o capitalismo industrial, o fizeram de uma forma duplamente retardatária (Cardoso de Melo, 1983). Primeiro, porque o fizeram após os países “centrais” terem atingido processos avançados de industrialização. Segundo, e principalmente, porque o fizeram após o capitalismo superar a etapa concorrencial e passar a oligopólica, com crescente internacionalização. Enquanto os países que primeiro se desenvolveram puderam promover mais cedo e mais lentamente a transformação de sua agricultura, ajustando, – no tempo e noespaço -, sua modernização à industrialização por que então passavam, os latino-americanos sofreram processo diverso. Praticavam agricultura atrasada, e mesmo no segmento exportador – gerador básico de sua transição para o capitalismo -, a agricultura não guardava identidade tecnológica com a dos países desenvolvidos. Contrariamente, a indústria mecanizada que vem sendo implantada 1 Texto original transcrito dos Anais do 24º Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural-Sober 1986, ampliado e publicado na Revista Reforma Agrária de 1-4/1986. 2 Professor Titular do Instituto de Economia da Unicamp. 3 Entre outros, ver os de Cano (2007 B: usei neste texto a 1a. ed. de 1985), Fajnzylber ( 1983), Rodrigues ( 1985) e Tavares (1981) 2 no mundo subdesenvolvido desde fins do século XIX, o era com a tecnologia imperante naquele momento nos países centrais. Vale dizer: desenvolvia-se o capitalismo periférico e retardatário, com modernidade na indústria e atraso na agricultura. Nos países desenvolvidos, a heterogeneidade estrutural que ainda existia no inicio do século XX era consideravelmente menor do que a que surgiria nos países subdesenvolvidos, mesmo se comparada com os países menos desenvolvidos da Europa Ocidental. Isto porque, nesses países, a modernização e o avanço da industrialização se deu de forma mais estável e, portanto seus processos de urbanização manifestaram-se de maneira menos abrupta do que os verificados no mundo subdesenvolvido, particularmente na América Latina e no Brasil.4 Por outro lado, suas estruturas agrícolas pré-existentes também não sofreram mudanças abruptas, salvo aquelas decorrentes dos parâmetros da industrialização. Portanto, trata-se de economias com uma estrutura produtiva agrícola mais estável e igualmente com uma estrutura fundiária mais eqüitativa e estável. 5 Como são países cujas dinâmicas econômicas funcionaram com maior grau de estabilidade estrutural, seus sistemas de preços eram mais estáveis, também no que tange à agricultura. Essa menor flutuação dos preços é radicalmente distinta do que ocorre no mundo subdesenvolvido, com permanentes pressões inflacionárias. Como o capitalismo nesses países se desenvolveu de maneira mais integrada em termos setoriais, a questão do abastecimento e da distribuição de produtos agrícolas em bruto ou transformados é algo que, igualmente, também não sofreu rupturas abruptas, tendo, portanto grau de estabilidade muito maior do que no mundo subdesenvolvido. Dado que esse desenvolvimento econômico e a modernização se deu de maneira menos desigual entre a agricultura e a indústria, também os desníveis de produtividade entre a atividade agrícola e as atividades urbanas foram muito menores do que os observados no mundo subdesenvolvido. Este fato reforçou a tendência à diminuição do diferencial entre a taxa de salário na agricultura e na economia urbana, ao contrário do que ocorre no mundo subdesenvolvido. Isto contribuiu também para que a distribuição da renda naqueles países se desse de forma muito mais eqüitativa do que no mundo subdesenvolvido. Ao mesmo tempo em que o processo de modernização dessa agricultura se deu de maneira mais branda, a aceleração do desenvolvimento das atividades urbanas pôde processar um enxugamento mais rápido e menos doloroso do excedente virtual de mão-de-obra agrícola que era expulsa pela modernização. Isto permitiu uma expansão urbana muito mais amena do que a que se verifica no mundo subdesenvolvido. Por essas razões, a formulação das políticas agrícolas e agrárias nos países desenvolvidos, tem caracteres muito mais estáveis. De um lado, porque a estrutura de oferta e as condições para essa produção são muito mais estáveis; por outro lado, porque a estrutura de demanda e as condições em que se esta se forma, igualmente são muito mais estáveis do que no mundo subdesenvolvido. 4 (NA) O que se quer dizer é que a modernização que também se dava na agricultura não era tão intensa quanto a da indústria, ao mesmo tempo que as transformações e expansão da indústria intensificaram o emprego urbano, amortecendo a queda do rural e incluindo seus ex-trabalhadores na economia urbana. 5 (NA) Salvo nos países que realizaram transformações na estrutura fundiária ou programas de reforma agrária, - como a Inglaterra, EUA e Japão -, acelerando a modernização no campo e, com isso, intensificando as transformações capitalistas de suas economias. 3 Assim sendo, os maiores problemas das políticas agrícolas do mundo desenvolvido são o de tentar manter uma estrutura de preços relativos próxima e compatível com a dos preços urbanos e, principalmente no que tange à Europa Ocidental, de se manter o mais competitivo possível frente à agricultura norte-americana. Por outro lado, além da reduzida heterogeneidade estrutural, como essa agricultura já não precisa enfrentar problemas cruciais como o do emprego rural, do abastecimento e distribuição nos mercados urbanos, e do meio ambiente rural, a formulação de sua política agrícola pode contemplar um caráter mais setorial e especifico e menos globalizante, ao contrário das necessidades correntes que se fazem presentes no mundo subdesenvolvido. Em nossos países, o atraso da agricultura até a década de sessenta era o traço marcante desse setor. No compartimento produtor para exportações algum grau de modernização se manifestava para que se pudesse manter competitividade no mercado exterior. No amplo setor produtor para o mercado interno, a produção se manifestava com baixo grau tecnológico, crescendo vegetativamente pela expansão da área plantada, o que permitia um crescimento do contingente populacional, urbano e rural, a taxas muito mais elevadas do que as verificadas nos países desenvolvidos. A manutenção do atraso dessa agricultura piorava cada vez mais as condições de sobrevivência do imenso contingente de sua população rural. No caso brasileiro, pelo menos desde a década de 1930, isto engendrou um grande fluxo de emigração, o chamado êxodo rural, em direção não só às zonas urbanas mais densamente povoadas como Rio de Janeiro e notadamente São Paulo, mas também para áreas rurais mais distantes e de mais fácil acesso à terra como eram o Centro Oeste e o Paraná. Contudo, a partir da década de 1960, parte dessa agricultura, - notadamente seu segmento mais voltado para o mercado exportador, ou para a produção de insumos para transformação industrial (cana-de-açúcar, cítricos, soja etc.)-, acelera seu processo de modernização. Agora, por razões diferentes, ou seja, por elevar sobremodo a produtividade do trabalho, gerava um acréscimo àquele fluxo migratório, engrossando as fileiras do êxodo rural em direção às grandes cidades (Graziano da Silva, 1981; Kageyama, 1985). Dado que a industrialização que aqui se manifesta e seus serviços urbanos complementares introjetam tecnologias modernas, o emprego urbano de mão-de-obra é incapaz de dar vazio àquele excedente estrutural. Resumidamente, a industrialização e urbanização que vão se processando são incapazes de absorver aquele excedente que está sendo liberado tanto pela manutenção do atraso quanto pela modernização da agricultura. Por outro lado, seu segmento exportador é reflexo às vicissitudes da demanda externa, tendo altas e baixas decorrentes de flutuações econômicas cíclicas e de eventos naturais como secas, geadas etc. Essa instabilidade exige maior rigor e maior amplitude da política agrícola. O acentuado desnível entre o crescimento da renda gerada na agricultura e o ritmo de crescimento urbano-industrial, bem como dos já referidos desníveis de salários imprime movimentos mais abruptos às flutuações da demanda de alimentos, gerando pressões sobre o nível de preços e crises de abastecimento. O segmento mais moderno voltado para a produção de exportáveis e para a produção de insumosque serão transformados pela indústria e para energéticos, tornou-se passível de rápida capitalização nas duas últimas décadas, graças aos estímulos de preços e de crédito.6 6 (NA) Isto foi possível graças às novas políticas de crédito rural e de incentivos às exportações, a partir de 1965- 66. 4 Essa capitalização permitiu-lhe não só uma grande e rápida expansão dessa produção como também uma rentabilidade garantida e elevada. Contudo, não ocorre o mesmo com o segmento produtor de alimentos simples, que opera com outro colar de preços internos, - determinado por outras condições institucionais, econômicas e sociais, face à absurda concentração pessoal da renda e aos baixos níveis salariais aqui praticados. Estas condições inibem a modernização deste compartimento produtivo, impondo-lhe baixos níveis de produtividade da terra e do trabalho. Assim sendo seu crescimento é vegetativo, na dependência de expansão do emprego urbano e do nível dos salários. Sua menor eficiência econômica produtiva causa-lhe a perda de competitividade pelo uso do solo, na concorrência com o compartimento produtor modernizado e isto faz com que sua atividade seja expulsa dos espaços antes ocupados - relativamente próximos à grandes concentrações urbanas - deslocando-se espacialmente em direção às periferias nacionais.7 Resumidamente, são os seguintes os principais problemas gerados pela agricultura nos países subdesenvolvidos e que afetam o mundo urbano. No segmento moderno (insumos para a indústria e exportáveis), a modernização elevou a produtividade do trabalho gerando, ao mesmo tempo, expulsão liquida de mão-de- obra e transformando o restante de seus trabalhadores na esdrúxula situação dos “bóias-frias”, que vivem produtivamente no mundo rural, mas socialmente no mundo urbano. Essa modernização, contudo pouco fez em relação aos rendimentos físicos da terra que continuam baixos.8 O uso indiscriminado de agrotóxicos, por sua vez, tem contribuído fortemente para a degradação ambiental, especialmente das águas, muitas delas usadas para o abastecimento humano urbano. No segmento produtor de alimentos simples, não é a modernização que expulsa sua população, mas sim a manutenção do atraso, pela baixa produtividade e pelo crescimento da miséria. Seu constante deslocamento espacial tem gerado uma série de problemas ao abastecimento urbano: as distâncias cada vez maiores implicam maiores custos de transporte e crescentes dificuldades de armazenagem e distribuição. Estes impactos se multiplicam gerando aumentos de custos e de preços. 9 Essas condições em que opera a agricultura põem a nu a necessidade premente de elaboração e implantação de uma política agrícola e agrária abrangentes e de perspectivas de prazos curto, médio e longo. Penso que essa formulação deveria contemplar as seguintes diretrizes fundamentais: 1. Política de zoneamento agrícola, contemplando todo o território nacional, com vistas aos seguintes objetivos: a) eliminação do excesso de transporte de produtos agrícolas, como absurdamente ocorre hoje; b) diminuição dos gastos com energéticos, especialmente com referência ao 7 (NA) Esse fenômeno, chamado por Furtado de Agricultura Itinerante, está tratado no capítulo II de seu livro Furtado (1972). Ver também a atualização dessa discussão em Cano (2006). 8 (NA) À medida que o capitalismo no agro se intensificou, particularmente a partir da década de 1980 e a fronteira agrícola se expandiu ainda mais para o CO e o NO, essa situação se modificou, com grandes aumentos de produtividade e de produção. 9 (NA) Também parte deste segmento passou por modernização, além das profundas transformações de sua estrutura comercial de abastecimento, que sofre acentuada modernização e concentração capitalista. 5 programa do álcool, descentralizando e alternando parte de suas atuais condições de distribuição; c) discriminar espaços regionais para preservar terras para cultivo preferencial de alimentos simples; d) facilitar a elaboração e melhor cumprimento de políticas espacializadas de preservação do meio ambiente, notadamente nas bacias hidrográficas que abastecem centros urbanos. 2. Política de reforma agrária, que persiga os seguintes objetivos principais: a) expandir a produção alimentar; b) retenção de parte do êxodo rural-urbano, pelo aumento da ocupação rural; c) melhoria do padrão de vida da mão-de-obra rural; d) aumentar o uso de terras ociosas e dar-lhes eficiência produtiva. Esta política deveria ser formulada respeitando a política de zoneamento agrícola, e sua estratégia deveria contemplar dois momentos de atuação: uma imediata, para regularização jurídica e para atender os mais graves e inadiáveis conflitos explicitados; a outra, de longa duração - a propriamente chamada reforma agrária - elaborada e implantada conjuntamente com as demais políticas agrícolas, notadamente a de zoneamento da produção. 3. Política social rural, para acabar de vez com as condições deprimentes em que vive a maioria de nossa população rural. 10 Ela deveria perseguir; a) melhorias das condições de trabalho; b) consolidação jurídica das relações do trabalhador rural; c) atendimento sanitário e educacional; d) atendimento à questão habitacional para os que trabalham no campo, perseguindo o objetivo de conter e retardar o fluxo rural-urbano. 4. Política de diferenciação do uso dos instrumentos de política econômica, tais como os preços mínimos, seguro agrícola, crédito de custeio e de investimento, taxas de armazenagem, assistência técnica e compras governamentais para regularização de estoques. A diferenciação aqui sugerida é distinta da atual, que persegue, grosso modo, atender às regiões menos desenvolvidas (NO e NE) e aos pequenos produtores. Essa diversificação não basta, e é preciso aplicá-la como decisivo instrumento de apoio à política de zoneamento agrícola, às metas de produção de alimentos simples, com os objetivos de emprego rural e de melhoria das condições de vida dos que trabalham no mundo rural. Concluindo, penso que a complexa e crescente interação rural/urbana (Agricultura / Indústria / Serviços) requer, urgentemente, uma radical mudança no Processo de Planejamento. Entendo que a interação dos problemas e das propostas para suas soluções (metas e objetivos das políticas setoriais) deve ser feita mediante um trabalho conjunto das instituições envolvidas. 10 (NA) Essa população teve melhoria de suas condições, principalmente a partir da Constituição Federal de 1988, com a aposentadoria rural, com o Estatuto do Idoso (“aposentadoria” aos maiores de 65 anos) (2003) e com os programas mais recentes tipo Bolsa Família e reajustamento real do salário mínimo, notadamente a partir de 2006. 6 Assim, o Ministério da Agricultura faria uma primeira formulação da política agropecuária, mas esta seria submetida - junto com as demais políticas setoriais elaboradas por seus respectivos Ministérios - a um “Conselho lnterministerial” que daria o ajuste final da compatibilização com os demais. 3- Dinâmica da Economia Urbana de São Paulo: uma proposta de investigação1 Wilson Cano2 1- Introdução3 O objetivo deste texto é discutir a necessidade de uma urgente reformulação do diagnóstico e do planejamento urbano. Pretendo criticar a visão tradicional "intramuros" que tem predominado sobre o espaço urbano brasileiro. A dinâmica da Economia Urbana tem sido estudada de maneira específica, quando, a meu juízo, deveria ser pensada num plano global e integrado da economia. Há que discutir alternativa metodológica para estudar e planejar o urbano, não em seus específicos limites, mas como produto de uma dinâmica sócio-econômica, que transcende os limites do urbano. Assim, devemos contemplar, além das variáveisque atuem dentro de um contexto urbano específico, outras que embora pertençam a outra esfera - a rural - ou a outros espaços urbanos, têm crucial importância sobre uma específica dinâmica urbana. O espaço aqui enfocado será o do Estado de São Paulo. Diferente desta proposta, a visão "intramuros" estuda o urbano praticamente dentro de seus específicos limites. Não analisa o papel exercido sobre o urbano, pela agricultura paulista. Não cogita também, do papel das dinâmicas regionais do Brasil sobre a expansão da massa urbana paulista. Quando muito, considera apenas alguns de seus efeitos aparentes e imediatos. Essa forma de diagnosticar o urbano tem estreitado a capacidade analítica sobre sua dinâmica. Tem permitido projeções ("ao ano 2.000") superficiais de nossas cidades, em que pese a sofisticação econométrica e sociométrica crescentemente adotada. Refeito o diagnóstico, essa visão também deverá ser superada na fase do planejamento, o que ensejará novo detalhamento das principais variáveis responsáveis pela renda e pelo emprego urbano. A primeira parte do texto ("Questões para um novo planejamento urbano"), critica o objetivo explicitado nas políticas de interiorização e de descentralização industrial, propondo readequação da metrópole e uma política de localização regional de atividades econômicas. Tais questões também estarão relacionadas com a do constrangimento atual das finanças públicas estaduais e municipais. 1 Texto publicado na Revista de Administração de Empresas-ERA, FGV-SP, São Paulo, v.25, no. 1 ; jan- mar/1985 2 Professor Titular do DEPE – UNICAMP (NA) DEPE, Depto.de Estudos e Planejamento Econômico era a célula institucional que deu origem ao atual Instituto de Economia da Unicamp. 3 Este texto tem como base relatório de pesquisa feito pelo autor em Convênio com a FUNDAP/UNICAMP/DEPE. ("Proposta metodológica sobre o desenvolvimento da economia paulista e a problemática de sua urbanização"; documento-base; UNICAMP; Campinas, 3/1983 - mimeo). (NA) O projeto, abarcando o período 1920-1970, foi executado, e publicado em 1988. Posteriormente, dei continuidade a essas pesquisas, publicando as referentes aos períodos 1970-1989 e 1970-2005. Ver, na Introdução deste livro, as respectivas referências bibliográficas. 2 A segunda ("Questões para um novo diagnóstico"), procura se concentrar na revisão da periodização e do espaço. A complexidade da periodização aumenta, dada nossa intenção de se afastar daquela visão que se encerra "intra-muros". Ao procurarmos investigar a influência de outros espaços sobre a dinâmica do setor urbano, defrontamo-nos com variáveis de distintas periodizações. Quanto ao âmbito espacial do diagnóstico, os cortes analíticos levarão em conta o município de São Paulo, a aglomeração metropolitana e as principais regiões do Estado. A terceira parte especifica os principais determinantes da dinâmica urbana. Considero, primeiro, os determinantes externos ao Estado de São Paulo, que atuam na dinâmica urbana deste Estado. Em seguida, especifico os principais determinantes internos ao Estado de São Paulo, sobre os quais a análise setorial ganhará destaque. Há que evidenciar o impacto que as dinâmicas agrícola e industrial exercem sobre a do setor terciário, além da dinâmica interna própria e restante do urbano, stricto sensu. As ações da política econômica atuantes sobre a dinâmica urbana também serão contempladas. 2. Questões para um novo Planejamento Urbano A população paulista cresceu, ao longo do período 1940/80, de 7,1 milhões para 25,0 milhões de habitantes, isto é, 3,5 vezes, ao passo que sua população urbana, no mesmo período, passou de 3,2 milhões para 22,5 milhões de habitantes, isto é, 7 vezes, mostrando o "caráter explosivo" dessa expansão. A taxa de urbanização do Estado é cerca de 88% e a da Grande São Paulo próxima a 96%, aqui se concentrando a maior parte da população urbana estadual. O vaticínio e o temor de uma "explosão" demográfica, "vis-à-vis" o agravamento das finanças públicas, estimulou, salvo raras exceções, formas de pensar "soluções" escamoteadoras ao problema urbano. Isso foi reforçado pelo autoritarismo pós 1964 e as falsas soluções resultaram de posturas político-institucionais como as de que: "São Paulo precisa parar"; "faz-se necessário uma política de interiorização da indústria”; "faz-se necessária uma política de desconcentração industrial" e outras semelhantes. Face a esses simplismos, pergunta-se: quais as questões centrais que nortearam as diversas "políticas" setoriais e regionais? Como foram consideradas as questões técnicas e políticas? Quais se sobrepõem prioritariamente a outras? O tema apresenta questões extremamente complexas que não podem ser respondidas de forma superficial. Neste trabalho pretendo chamar a atenção para alguns equívocos, pois a leitura crítica daquelas medidas e do seu discurso político permite-nos concluir que as orientações para tais políticas de interiorização "privilegiaram" a questão espacial, em detrimento da social. Essa postura tecnocrática produziu, ao longo das últimas duas décadas, um grande acervo de planos, programas e projetos de discutível aplicabilidade concreta, reduzida eficácia e alta dose de distanciamento para com os problemas mais graves que afetam a parte maior da sociedade brasileira, notadamente a de baixa renda. A titulo de ilustração, merece destaque a intenção do Governo Federal em obrigar, indistintamente, os municípios brasileiros a adotarem o conhecido "Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado - PDDI", que nada mais foi do que uma forma de ampliar a demanda por serviços tecnocráticos bem remunerados. Argumentava-se que os municípios 3 com PDDI's aprovados encontrariam maiores exeqüibilidades para obter recursos financeiros na esfera federal. No entanto, ao se adotar tal medida estava-se usurpando recursos da própria esfera municipal, face aos elevados custos para elaboração desses Planos. O exposto tem a finalidade de contrapor as questões técnicas às de ordem política. As orientações tecnocráticas padeceram sempre do mesmo vicio, isto é, foram implantadas nos marcos do modelo centralizador e autoritário que ainda permanece na estrutura político- administrativa federal. Essa postura esteve duplamente viciada na sua origem: porque o regime autoritário promoveu uma produção tecnocrática e, porque se valeu de interpretação insuficiente e pouco crítica do fenômeno da urbanização. Para explicitar melhor nossa crítica, lembremos da política de interiorização que norteou os governos paulistas durante a década de 1970. Sua leitura atenta deixa clara a quase ausência de considerações sobre a dinâmica da urbanização e sobre as especificidades maiores da estrutura produtiva da economia paulista; da interação de sua agricultura - que passou por profundas transformações - com o próprio setor industrial; a questão da adequação ou não da oferta e demanda de serviços urbanos nas diversas regiões do Estado, etc. Entendo que a interiorização do desenvolvimento deve ser estudada como um processo mais geral pelo qual passa a economia capitalista que envolve tanto questões migratórias e as atinentes à intensificação capitalista da produção no campo, como as da própria dinâmica da expansão e diferenciação dos serviços nos grandes centros urbanos. Assim, há que se entender criticamente o sentido da política de descentralização industrial (ou a da interiorização) sem o que persistirá o risco das falsas soluções. Requer-se um repensar das políticas concebidas para as áreas metropolitanas e sua possível readequação. Alem disso, faz-se necessário o desenho de uma efetiva política de localização industrial e repensar a dinâmica do fenômeno da urbanização, substituindo-se sua visão "intramuros". Estas sugestões serão aprofundadas na terceira parte deste texto. Isso posto, cabe responder de forma mais detalhadaà seguinte questão: porque, nas circunstâncias políticas e econômicas atuais, as poli- ticas de interiorização do desenvolvimento e/ou de descentralização industrial, são escamoteadoras? O escamoteamento reside no fato de que tenta-se interiorizar e/ou "descentralizar" indústrias, atividades de ordem econômica de modo geral e, até mesmo órgãos estaduais, como foi a proposta da "Nova Capital", durante o governo Maluf, a pretexto de "harmonizar a expansão urbana face ao chamado caos urbano". Ou seja: a pretexto de desenvolver o interior (do país ou de um Estado) tenta-se, na verdade, transferir espacialmente alguns problemas de complexa solução. Por exemplo, transferir determinada indústria poluidora porque o custo político e econômico da despoluição é alto.4 Lembremos que o desenvolvimento econômico do país, nos últimos 50 anos, não se resume à considerável expansão industrial, com seus enormes efeitos de urbanização. Isto foi acompanhado por uma expansão capitalista diversificada na agricultura, que também repercute no urbano, não só com efeitos positivos, mas também com os efeitos negativos do êxodo rural. Além disso, não se pode ignorar a considerável expansão havida com o terciário e a construção civil. 4 (NA) A palavra transferir, aqui não dever tomada à risca, isto é , de uma transferência física de uma atividade, de um local para outro, mas também, e principalmente, o de desconcentrar a produção, fenômeno que pode não envolver qualquer transferência física do local A para B, mas tão somente, resultar de um aumento da participação de B no conjunto espacial em questão (A+B). 4 A escamoteação também decorre de que, ao não se estudar profundamente a dinâmica do urbano, é incorreto tentar-se descentralizar a economia urbana, valendo-se de precários estudos de processos insuficientemente interpretados. Ainda é precário o conhecimento dos custos derivados da descentralização e/ou interiorização, como também pouco se sabe sobre a interação da agricultura com a indústria e destas com a dinâmica das cidades. Não é demais lembrar que existem indústrias que apresentam difíceis problemas técnicos e econômicos para uma eventual mudança espacial. O autoritarismo tecnocrático e a ausência de um correto diagnóstico tornou o poder público estadual e municipal impotente financeira, política e tecnicamente diante dessa incontida expansão urbana. O resultado não se fez esperar: os Estados adotaram rapidamente a fórmula simplista da "descentralização" e os municípios a ilusão das políticas de atração das indústrias. Diante desse quadro confuso há que pensar em readequações das regiões metropolitanas ao mesmo tempo preparando e adequando novas áreas de menor dimensão (em outras cidades), a fim de antecipar-se ao agravamento de problemas que persistirão nas grandes áreas metropolitanas e que vêm gerando a degradação de cidades de porte médio. Para que essa proposição possa ser melhor estudada ha que se ter claro que está inserida dentro de uma nova postura política e que passa, necessariamente, pelas questões da participação das finanças públicas e da construção das linhas gerais de uma efetiva e dinâmica política de localização de atividades econômicas. Com relação às readequações das regiões metropolitanas, ha que ver com outros olhos a questão da finança e do gasto público e se fazer um planejamento urbano que dê conta dos reais interesses da coletividade e não aqueles decorrentes dos determinantes dos lucros imobiliários que, em grande parte, estimulam uma verdadeira ciranda de especulação imobiliária. Algumas administrações de cidades de porte médio do interior de São Paulo adotaram postura mais crítica a essas questões, viabilizando, com seus próprios recursos, melhores soluções para alguns problemas urbanos. Contudo, tem predominado a postura tradicional. Por exemplo, a localização de conjuntos habitacionais tem significado, predominantemente, a "urbanização" de espaços vazios destinados à especulação.5 Conseqüentemente, os problemas daí advindos (transportes coletivos, saneamento básico, iluminação pública, etc.), passam a onerar em demasia os gastos públicos. Por isso, faz-se necessário, também, repensar a alternativa do crescimento horizontal ou vertical das cidades. É oportuno lembrar a necessidade urgente de se efetivar a participação democrática do povo na tomada das decisões. Embora constituísse uma das principais promessas explícitas dos candidatos de oposição nas eleições de 1982, foi escassamente posta em prática. Recentes e elevados aumentos na carga tributária estadual e de inúmeros municípios, sem ampla discussão e consulta atestam sua ausência. A continuidade da "privatização" do setor público corrobora o fato. Diante da autoritária e consumada estrutura tributária nacional as Prefeituras Municipais - de oposição ou não -, com raras exceções, acostumaram-se a isso, continuando a exercer em estilo privado - com objetivo de “lucro” -, gastos que são 5 (NA) Ver, neste livro, o texto Reflexões sobre o papel do capital mercantil... 5 essencialmente públicos. Esta maneira de operar a coisa pública, somente poderá ser alterada mediante decisiva participação popular. A questão da localização das atividades produtivas deve considerar as especificidades setoriais, mas também seu inter-relacionamento multisetorial. Uma política de zoneamento agrícola, do ponto de vista macro-regional, além de levar em conta os tipos de solo, clima, topografia, etc., deve ser acoplada a uma efetiva política de minimização de custos de transporte, de armazenamento e, fundamentalmente, a uma política de abastecimento micro e macro-regional. Por sua vez, a "política" de localização industrial, deve ser modificada em relação a seus atuais padrões. Hoje está lastreada por uma política generalizada de incentivos ao capital. É necessário, portanto, elaborar uma política setorial que determine corretamente quais os setores e regiões que devem ser disciplinados. Para isso, uma política de localização industrial deve levar em conta os problemas técnicos de complementaridade industrial, (por exemplo, as especificidades dos complexos agro-industriais ou de outros complexos) e a melhor utilização dos recursos naturais, entre outros aspectos. É bom ter presente que a indústria é um setor que contém muitas especificidades (técnicas, econômicas, de escala, etc.) e, portanto, uma política de localização deve, necessariamente, levá-las em conta. Com respeito a relocalização industrial, deveria haver maior coordenação por parte do governo federal, no sentido de, democraticamente, ouvir os interesses regionais. Com isso, é de nosso entender que uma política de relocalização ou descentralização industrial deverá levar em conta as especificidades de cada área e setor. Por exemplo, o tratamento dessas questões nas áreas metropolitanas antigas não pode ser equivalente ao das áreas metropolitanas emergentes. Hoje, mesmo com o alto poder discricionário que tem, o Governo Federal não possui uma política nacional de localização industrial que contemple aquelas especificidades. Ao contrário, ela tem sido discricionária e autoritária, valendo-se, antes, por critérios tecnocráticos ou de políticas de clientelismo. Complementarmente, e de acordo com as determinantes principais da dinâmica da urbanização, deve-se pensar em acoplar a uma política de descentralização (desconcentração) industrial, políticas de localização de atividades do setor terciário que são direta ou indiretamente complementares à atividade econômica e/ou necessárias ao aglomerado urbano. Passa ainda pelo problema da localização, a controvertida questão dos critérios do uso do solo urbano, cujo debate tem aumentado devido à recente proposta do Governo Federal em alterar a atual legislação6, proposta que pode ferir ainda mais a autonomiamunicipal. A complexidade desse problema transcende os limites deste trabalho. Cabe lembrar ainda que um planejamento urbano eficiente e que atenda prioritariamente as populações urbanas de baixa renda, não pode ignorar o problema da especulação imobiliária. O disciplinamento do uso racional do solo e o combate à especulação imobiliária constituem posturas decisivas para aquele atendimento popular. Sem tais atitudes não há como praticar uma política habitacional e de infra-estrutura acessível àquelas camadas. A que se pratica hoje no Brasil, é a antítese da que deveria ser feita. Através da especulação e do desordenado uso do solo se pratica uma política habitacional absurda e que resulta no seguinte: maior valorização especulativa de terrenos; 6 (NA) A legislação referida era a contida na Lei Lehmann (6766/1979). 6 maior custo de inversão e manutenção da infra-estrutura feita; maior distância de transporte; impossibilidade de melhor atendimento social (saúde, educação, segurança, lazer) , etc. Com o processo de abertura política ampliou-se o debate sobre a excessiva concentração dos recursos tributários na esfera federal. Este debate concluiu pela necessidade de uma profunda e urgente reforma tributária. Seus objetivos centrais seriam: restaurar a crônica situação das finanças estaduais e municipais; repor a autonomia dessas duas esferas institucionais e, ao mesmo tempo restaurar o caráter público e social dos atuais serviços “públicos”. Contudo, enquanto não se alcance essa medida, não se pode permanecer na imobilidade decorrente da manutenção do atual Código Tributário Nacional, para solucionar os graves problemas urbanos.7 Enquanto for mantido esse impasse, julgo que a alternativa mais conveniente é a de se tentar analisar a questão do ponto de vista do gasto público. Não se trata, contudo de se repensar o gasto público tecnocraticamente. Isto tem sido feito durante os 20 anos do autoritarismo. O que se necessita urgentemente é abandonar a postura tecnocrática e adotar uma postura política que atenda às efetivas necessidades e aos anseios democráticos do povo. Caso contrário, os estados, e principalmente os municípios continuarão a atuar basicamente pelo lado da receita pública, majorando impostos, taxas, tarifas e preços públicos, acima, inclusive do nível geral de preços, sem qualquer consideração sobre o poder aquisitivo do contribuinte. Muito embora a tecnocracia tenha sido imposta no Governo Federal, ramificou-se, via autoritarismo, nos estados e nos municípios. Por isso, se requer uma profunda discussão e um trabalho de repensar politicamente a aplicação dos recursos públicos. Durante esses anos todos, punidos pelas finanças públicas, as autoridades estaduais e municipais privilegiaram certos investimentos que, dadas as condições de seu financiamento e a estreiteza de recursos "exigiam" uma taxa de retorno, tal qual no setor privado. Por outro lado, várias atividades antes atendidas por uma Repartição Pública, passaram a sê-lo por Empresas Públicas que, como tais, vieram também a se comportar como empresas capitalistas, vendendo serviços públicos como se fossem privados, objeto de mercado e de apropriação particular. Não escaparam a essa conduta, coisas como o fornecimento de água, energia elétrica, telefonia, serviços funerários, manutenção rodoviária e habitação popular. O transporte coletivo, por exemplo, deixou de ser um serviço público para se institucionalizar como um dos negócios mais rendosos na esfera privada municipal. Não há sequer, uma política estadual para as tarifas municipais. Cada município tem sua própria política tarifaria e chega-se ao absurdo de um ônibus em Campinas, com trajeto de distância 4 a 5 vezes menor que algumas linhas da Capital, praticar tarifa mais alta do que a de São Paulo. Essa postura impede até mesmo que se pense em novas alternativas para esse importante serviço. Embora tenhamos consciência de que só com a descentralização 7 (NA) A Constituição Federal de 1988 modificaria aquela estrutura repartitiva, aumentando a participação dos governos estaduais e municipais na receita. Porém o governo federal usou de outros ardis, usando as Contribuições Sociais como meio de anular grande parte do efeito redistributivo. O pior ato foi o da negociação das dívidas públicas daqueles entres subnacionais com o federal, em 1995 que causou profundo abalo na capacidade financeira daqueles entes 7 financeira haverá recursos para se reprogramar esse serviço, ainda há muito a fazer, dentro das próprias limitações atuais. A canalização e distribuição de água potável e a coleta de esgotos sanitários são tratados de modo diferenciado no Estado como um todo; parte dos municípios são atendidos pela SABESP e o restante por serviços municipais locais. Esse é um serviço que deve ter tratamento homogêneo pelo Governo Estadual e que o planejamento urbano deve levar em conta, pois não se pode ter dentro do mesmo Estado, disparidades tão gritantes, como o da precariedade das redes de água potável e de esgotos de muitos municípios paulistas. As tarifas também devem ser revistas, tendo em conta as disparidades entre o custo do serviço e a renda diferenciada das famílias. O ideal seria uma política de preços diferenciados, com tarifas progressivas, privilegiando-se as famílias de mais baixa renda. O Governo do Estado de São Paulo tem elevada participação na geração e distribuição de energia elétrica no território estadual. No entanto, as decisões para a expansão da rede de iluminação pública estão sob responsabilidade dos municípios, responsáveis por grande parte dos investimentos da extensão das redes. Assim, os de menor arrecadação tributária privam seus contribuintes desse importante serviço. Portanto, dever-se-ia mudar a ótica dessa questão, retirando-lhe o peso desse investimento, sem, contudo, retirar-lhe a autonomia da decisão. Por outro lado, os serviços de educação e saúde - cujo aumento de demanda é induzido pela urbanização - contam com reduzidas dotações orçamentárias e sofrem ainda do mal da pulverização de recursos. Paradoxalmente, o problema é agravado pela obrigatoriedade de aplicação de recursos, por meio de tributos vinculados, como no Fundo de Participação dos Municípios (FPM), onde 20,0% dos recursos devem ser aplicados em Educação e Cultura, de preferência no Ensino de 1º grau. No caso do Estado, essa obrigatoriedade é integral, no que diz respeito à quota-parte estadual do salário educação. A tecnocracia, ao criar a obrigatoriedade de alocação de recursos em gastos de capital, em detrimento dos de custeio, tem proporcionado muitas obras públicas que, contudo, oferecem péssimo atendimento. É o caso de hospitais e de escolas que, em que pese disporem de instalações, não dispõem de materiais de consumo e de pessoal convenientemente preparado e remunerado. Ainda, há que se lembrar que planejar significa também manter o que existe, e não apenas criar novas obras e equipamentos sociais. De outro modo, corre-se o risco de piorar ainda mais a manutenção do existente, ao mesmo tempo em que se compromete as metas a serem atingidas pelo planejamento. O grave problema das "cidades-dormitório" também deveria ser repensado, pois suas receitas municipais são insuficientes para resolver seus problemas mais simples, quanto mais arcar com a responsabilidade adicional de tentar resolver problemas que são causados, acima de tudo, por questões externas ao limite dos seus municípios. A situação financeira desses municípios tende, a longo prazo, ao agravamento, dado que parcela significativa de sua população trabalha em outros municípios, ali gerando rendas, empregos e impostos. Essas populações, ao residirem em municípios de menores recursos e renda, potenciam as dificuldades financeiras desses municípios, pois constituem agrupamentode pessoas de baixa renda e, portanto, de reduzida capacidade de contribuição de impostos. 8 Por possuírem baixos rendimentos, são carentes de necessidades básicas como saúde, habitação, saneamento básico, pavimentação, etc. Face às questões ora levantadas pressionam fortemente as autoridades locais, que são impotentes para oferecer esses serviços, o que deteriora ainda mais as condições de vida dessa mesma população. Como enfrentar essa questão? Dever-se-ia pensar em formas de redistribuição estadual macro-regional dos recursos. Por exemplo, cotejando-se a arrecadação, renda, emprego e domicílio gerados em cada espaço, com a redistribuição espacial das necessidades básicas das populações de baixa renda, explicitadas espacialmente. Afora as questões antes levantadas, o planejamento urbano deve estabelecer uma metodologia que concilie as responsabilidades em cada esfera de Governo, ao mesmo tempo em que deve utilizar da melhor maneira possível, os recursos disponíveis. Deixemos claro, porém, que estamos propondo apenas uma reorientação do gasto público entre os três níveis de Governo em termos cooperativos, escapando-nos, no momento, a discussão da questão mais profunda que é a Reforma Tributária. 3. Questões para um Novo Diagnóstico Porque o planejamento urbano não tem tido maior eficácia? Certamente, não por falta de Planos Urbanísticos Gerais, Planos Diretores e outros, produzidos em quantidade nas últimas décadas. Além de apoio político, institucional e financeiro, sua coerência, diante de uma dada realidade, requer, antes de tudo, um correto e abrangente diagnóstico. Contudo, previsões precárias como a de que haverá uma "explosão urbana no ano 2000", vaticinadas para várias áreas metropolitanas - como a do México, para a qual se estima 30 milhões de habitantes e para a de São Paulo, que viria a ter 25 milhões -, em função de "tendência", colaboram para manter a equivocada maneira de diagnosticá-las.8 Propomos aqui não o abandono do estudo histórico (para estimar “tendências”), mas sua revisão, no sentido de incorporar-lhe as mudanças que vão ocorrendo não só no espaço- objeto do diagnóstico, mas também em outros espaços e outros setores que podem alterar, nesse espaço-objeto, a tendência até então observada. Como tentarei mostrar na parte 3, os cortes periódicos deverão ser feitos, sempre que possível, não só para obter os "resultados líquidos da década", como tem sido a utilização censitária, mas sim, para perceber a natureza e a dinâmica do processo de urbanização, e levar em conta as transformações fundamentais ocorridas no período. Entre estas, devem ser examinadas as alterações: na dinâmica da produção e do emprego; nos níveis setoriais da produtividade do trabalho; nos fluxos migratórios e suas causas; na política econômica e políticas urbanas. No que tange ao diagnóstico urbano municipal, deve-se estudar o processo de apropriação privada do solo urbano, sua utilização e a variável que inexoravelmente o acompanha, a especulação, que tem sido a principal responsável pela ausência de melhor atendimento às necessidades sociais das populações da periferia de nossas cidades. 8 (NA) Com efeito, os dados censitários de 2000 mostrariam que as metrópoles de São Paulo e do México teriam, respectivamente, 17,5 e 17,6 milhões de habitantes. 9 Estas transformações têm sido pouco consideradas pelos planejadores urbanos. Exemplifiquemos um pouco o problema através de alguns fatos ocorridos nos espaços de São Paulo e em espaços rurais ou urbanos de outras regiões que não o da área metropolitana ou do Estado de são Paulo, mas que geraram efeitos importantes tanto nessa área como nos principais núcleos urbanos do Estado de são Paulo: - as grandes áreas do Nordeste e a contínua expulsão rural naquela região, geram fluxos migratórios que desde muito tempo demandam os mercados de trabalho do Estado de São Paulo, contribuindo fortemente para sua expansão demográfica, notadamente para sua área metropolitana. - a erradicação do café no Paraná, durante a década de 1960, gerando forte fluxo migratório demandando outras áreas rurais ou urbanas do país e boa parte dele se dirigiu para o Estado de São Paulo. - a intensificação capitalista, no complexo soja-trigo no extremo sul do país, diminuindo a minifundização naquela região promoveu também importante fluxo migratório que, embora demandasse várias regiões do país, encontrou acomodação parcial no Estado de São Paulo. - as transformações tecnológicas que ocorreram na própria agricultura de São Paulo, alteraram sua estrutura de emprego, e aumentaram a quantidade de trabalhadores temporários, principalmente nas culturas de algodão, café, cana-de-açúcar e laranja. Esses trabalhadores - "os bóias-frias” -, produzem no setor rural, mas são obrigados a residir na área urbana, com isto repercutindo fortemente no crescimento periférico de várias cidades médias do Estado de São Paulo. - a própria dinâmica cíclica da indústria paulista, tem gerado, em sua expansão física, uma série de transformações qualitativas na estrutura do emprego urbano, de forma direta e indireta. Dentro do próprio setor serviços, podemos distinguir dois tipos de fenômenos de longo prazo que decorrem das transformações por que passam as maiores aglomerações urbanas. Parte desses fenômenos constitui efeitos positivos, que decorrem de alterações da demanda pessoal. Isto repercute positivamente na estrutura da oferta de serviços, reajustando também o nível e a estrutura do emprego. Contudo, também surgiram efeitos negativos, repercutindo na constituição de ampla e crescente marginalidade urbana, promovendo a "inchação" do terciário, também chamada de "proliferação de serviços informais". Esses exemplos reforçam nossa preocupação de que no diagnóstico histórico e também na prospecção para o planejamento, a periodização constitui problema dos mais complexos. Ou seja: fenômenos com dinâmicas específicas, ocorrendo em espaços distintos (A,B e C) e em períodos distintos (t1, t2 e t3), ensejam num mesmo momento (suponhamos, t4) diversos efeitos sobre um mesmo espaço urbano (D). 9 Acrescentem-se ainda mudanças estruturais de longo prazo (renda, costumes, saúde, educação, e outras), que podem afetar sensivelmente as taxas médias de crescimento demográfico no longo prazo.10 Note-se que esses efeitos, - como se verá na seção três - tanto se manifestam no nível do emprego quanto no da renda. Vale dizer: sua explicitação demográfica repercute também na ótica da demanda por novas necessidades sociais e pressiona as finanças públicas para 9 (NA) Estes símbolos (números e letras) não constavam da edição original. 10 (NA) Adendo feito para esta edição. 10 novos atendimentos. Como se vê não se pode pura e simplesmente fazer projeções das tendências demográficas "dos últimos 20 anos" sem se dar conta daqueles fenômenos. No que se refere à questão do espaço, deve-se considerar suas grandes transformações de longo prazo e a insuficiência da regionalização "político-administrativa", como a do tipo "Município de São Paulo", da mesma forma que é necessário ter consciência da complexidade envolvida ao se tomar como corte analítico, um agregado do tipo "Grande São Paulo". Essa complexidade decorre do fato de que, esse espaço maior - a Grande São Paulo -, compreende espaços com graus diversos de heterogeneidade, como as áreas que constituem espaços predominantemente com função de cidade-dormitório e outros, que tem como função primordial à produção industrial. Evidentemente, cada um desses espaços apresenta dinâmicas distintas de expansão, assim como problemáticas distintas no que tange à questão da finança e do gasto públicos. Por outro lado, a área do Estado de São Paulo que exclui sua região metropolitana hoje é administrativamente dividida em onze "regiões". Essa
Compartilhar