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Introdução_+A_poesia_dos_cancioneiros_(SARAIVA_&_LOPES_p _35_-_75)[1]

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CAPÍTULO I
INTRODUçÃO
A sociedade. 
- 
Na época em que Portugal se constitui como estado inde-
pendente, em meados do século XII, encerra-se a chamada <Idade das Trevasr,
isto é, a idade em que a economia, a sociedade, a vida política e a cultura esti-
veram dominadas pela economia rural de auto-subsistência. Começa a desen-
volver-se a economia rnercantil; em face dos castelos, sobranceiros aos domínios
senhoriais, brotam as vilas e cidades povoadas de rrburguesesr. Os produtos da
terra começam a ser lançados e procurados nos mercados pela gente citadina.
Entre o senhor, que usufrui do rendimento da terra, e o servo, que o produz,
novas classes se instituem, quer ligadas ao trabalho rural, como os pequenos
proprietários e os rendeiros livres, quer a novas actividades económicas, como
os mesteirais, os mercadores e negociantes de dinheiro.
As circunstâncias da Reconquista na Península Ibérica, exigindo uma
militarização mais disciplinada, determinaram certos aspectos peculiares nas formas
jurídicas e políticas que as relações senhoriais aqui assumiram; isso levantou
mesmo a certos historiadores, como Herculano, o problema da existência ou
inexistência, na Idade Média peninsular, do feudalismo, concebido este segundo
o estrito modelo francês medieval. No entanto, a menor descentralização política
e administrativa das monarquias ibéricas relativamente à carolíngia e capetíngia,
as manifestações relativamente precoces da auton0mia concelhia peninsular,
o facto de a principal nobreza portuguesa estar sujeita, não a uma cadeia de
'dependências pessoais, mas a um serviço régio pago mediante conli¿s monetárias
-não desmentem este facto essencial: a relação económico-social dominanteera também entre nós (e não podia deixar de ser) a da renda rural. Como observa
Armando de Castro no mais recente estudo de sintese sobre o assunto, as próprias
¿¿Ìnfias representam a redistribuiçâo pela nobreza de uma parte do excedente
que o rei obtinha dos seus mais vastos domínios próprios e dos tributos concelhios.
Deve no entanto salientar-se o seguinte: a aristocracia neogótica adaptou-se
a certas condições (como a directa chefia monárquica e certa autonomia das
36 HISTÓRIA DA LITERATURÁ. PORTUGUES.å,
populaça)es viloas importantes) que lhe permitiram desalojar uma outra aristo-
cracia nrilitar-rural, a muçulmana, já estruturada sobre uma rede de economia
mercantil e monetária; e, pelo que especialmente nos importa, o reino fundado
por D. Afonso Henriques foi já bafejado pelo desenvolvimento europeu das
forças produtivas e do comércio que se relaciona com as cruâdas, cujas frotas
colaboraram aliás na conquista dos nossos portos meridionais e os inseriram nas
rotas comerciais então a estender-se desde o Báltico até ao Mediterrâneo oriental.
Existiu, por conseguinte, desde as origens do reino de portugal, uma
navegação costeira e comercial que activava portos marítimos, como Lisboa
e Porto, e portos fluviais de acesso ao interior, como Coimbra e Santarém.
Nestas e noutras cidades desenvolveram-se uma actividade mercantil, que já
nos relacionava com outros países da Europa, e a burguesia comercial corres-
pondente, da qual convém distinguir a burguesia judaica, que se dedicava
especialmente ao comércio do dinheiro e desempenhava um papel activo na
administração financeira da casa real e das grandes casas senhoriais. As pro-
duções mais características da economia portuguesa (truta, azeite, vinho, mel,
sal, peixe salgado, couros) propiciavam uma exportação que, em navios portu-
gueses ou estrangeiros, se cruzava com a importação de cereais, têxteis, etc.
No entanto, a aristocracia feudal, constituÍda pela nobreza e pelo clero,
cuja base económica eram as prestações em dinheiro, trabalho ou géneros a que
estavam sujeitos os agricultores (colonos ou servos), não deixava de ter em
Portugal uma posição dominante. A nobreza, que se sustentava também dos
despojos da guerra contra os Árabes, concluída em 1250 com a conquista do
Algarve, era sobrepujada pelo clero, quer em nivel de cultura, quer em poderio
económico, quer ainda porque ele estava apoiado na organização internacional
da Igreja e fortalecido pela primazia geralmente reconhecida, nos séculos XII
e XIII, ao <poder espirituab (ou seja, o poder eclesiástico) sobre o poder civil.
os reis de Portugal consideram-se durante muito tempo vassalos da santa sé;
e calcula-se que no séc. XIV os rendimentos totais do clero e da coroa eram
pouco mais ou menos equivalentes.
Convém distinguir entre o clero secular (arcebispos, bispos, párocos) e o
clero regular, que vive em regime comunitário e obedece a uma regra especial.
É, este último que desempenha o papel mais activo na história da cultura.
Ao constituir-se o Estado Português, existiam já no seu território vários con-
ventos, alguns muito antigos, que tinham sobrevivido à ocupação árabe, como
o de Lorvão. Nos primeiros anos da monarquia, são fundados dois importantes
conventos, o dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz de Coimbra e o dos Cister-
cienses em Alcobaça. Ambos, sobretudo o último, exercem uma importante
função cultural.
Em meados do século XIII, introduzem-se em Portugal as ordens men-
dicantcs - Franciscanos e Dominicanos, principalmente - 
que se dedicam ao
apostolado das novas populações urbanas, rompendo o isolamento em que se
1." ÉPOOA_DAS OR"TGENS A FERNÃO LOPES JI
confinavam oS Beneditinos e Cistercienses. Alcançam, desde o início, uma posi-
çã'o preponderante na corte e extraordinária influência nas camadas populares.
o poder real estava limitado pelos privilégios do clero, das casas senho-
riais e dos concelhos, que exerciam sobre os seus territórios uma grande parte
dos poderes administrativos hoje confiados ao Estado. Para alcançar a ajuda
do clero, n¡bteza e Concelhos, SObretudO quando necessitava de recursos finan-
ceiros, o rei reunia aS cgrtes, assembleia de representantes daqueles três <estados>,
cujo.parecer tinha menor ou maior peso conforme as circunstâncias. A Casa Real,
embòra decisivamente superior às outras casas senhoriais, era ainda relativamente
pobfe e modesta, constituída por reduzido número de pessoas. o rei viajava
pelo País usufruindo dos seus direitos de aposentadoria, procurando os locais
de mais fácil abastecimento e de melhores condições sanitárias contra a peste,
mal endémico, embora residisse com mais frequência em certas cidades, como
Coimbra, na 1.a dinastia. Só a partir de D. Pedro haverá instalação permanente
para o arquivo do Reino, e só a partir de D. João I será Lisboa reconhecida como
capital. Mas já no reinado de D. Afonso III se notam sintomas do desenvolvi-
mento da vida sumptuária na corte, que correspondem ao progresso da actividade
merCantil nos pOrtoS pgrtugueses, e Se acentuam n0 reinado de D. Fernando.
As ínstítuíções de cultura. - Antes da invenção da imprensa, os 
livros
reproduziam-se pelo processo de cópia manuscrita em folhas de pergaminho.
A produção de manusCritos era lenta e cara, e a sua circulaçãO extremamente
reduzida. Anteriormente ao século XIII, só ngs conventos existiam condições
para o trabalho da produção de manuscritos. Mais tarde, constituem-se corpo-
rações de escribas profissionais, principalmente à volta das Universidades. Este
processo de reprodução dá causa a variantes e interpretações de manuscrito
para manuscrito, segundo um processo até certo ponto comparável ao da repro-
dução por via oral. Desta forma, alguns textos em que entraram muitas mãos
u.áb"* por poder considerar-se de autoria cglectiva. É o caso, como veremos,
d.e Amadís.
Em Portugal, os conventos com oficinas de manuscritos foram principal-
mente os de Lorvão (que já existia sob o domínio muçulmano), santa cruz de
Coimbra e Alcobaça. Neste último reuniu-se a maior livraria medieval portuguesa.
Mas a escrita constituía então um meio acessório da transmissão da
cultura; temos de contar com a transmissão oral, através dos jograis-recitadores,
cantores e músicos ambulantes que divulgam nas feiras, castelos e cidades um
repertório musical e literário estimuladodirectamente pelos ouvintes. Desem-
penham um papel importantíssimo os pregadores eclesiásticos, que estabelecem
a ligação entre o saber livresco e as massas populares.
As duas literaturas - a oral e a escrita - apresentam cafacterísticas 
muito
diferentes. Ao passo que os livros produzidos ou reproduzidos nos conventos,
destinando-se sobretudo à preparação dos clérigos e ao serviço religioso, consis-
38 IIISTÓRIA DA IJITERATUR"A PORTUGUESA
tiam principalmente em tratados e obras de devoção escritos em latim, o reper-
tório dos jograis, pelo contrário, dirigido a um priblico iletrado de vilões, burgueses
e nobres, servia-se das línguas locais, inspirava-se na vida e interesse desse público
e consistia sobretudo em poemas e narrativas versificadas. É, com os jograis
que nascem as literaturas românicas e os géneros modernos de ficção, tais como
o poema lírico e o romance. r
A cultura literâria e científica por via escrita e escolar estava muito pouco
disseminada, e restringiu-se, durante muito tempo, aos clérigos. A palavra clérigo
(francês clerc) tornou-se sinónima de letrado. Em troca pode falar-se de uma
cultura rtradicionab, transmitida oralmente, que fixava padrões de vida, uma
visão do mundo, uma escala de valores, um património literário oral, ditames
de sabedoria prática, etc.
As mais antigas escolas de que há notícia em território português são
as escolas episcopais ou catedrais, destinadas à preparação do futuro clero, que
funcionavam junto das sés, regidas por um membro do cabid,o, o <mestre-escolar>;
e as escolas conventuais, destinadas especialmente à instrução dos noviços.
Destas últimas distinguiu-se a de Alcobaça. o ensino ministrado nas escolas
episcopais e conventuais de que há notícia em portugal não excederia muito os
rudimentos da língua latina; e quem queria adquirir instrução superior tinha
de frequentar as universidades estrangeiras, entre as quais os estudantes portu-
gueses preferiam as de Paris, Mompilher e Bolonha.
Desde o começo do século XII desenvolvera-se na Europa o grande
movi¡nento das universidades, escolas de Direito, de Teologia e de Filosofia
aristotélica que transbordavam dos quadros pedagógicos da lgreja. As uni-
versidades desempenham um papel capital tanto na Igreja como no Estado,
pois ali se preparan os teólogos e os letrados indispensáveis a uma e outro.
só em 1290 se propaga a Portugal este movimento, com a fundação, no reinado
de D. Dinis, do studium Generale de Lisboa, escola concebida segundo o modelo
da de Bolonha. o seu programa incluía cadeiras de Gramática e Lógica (as duas
primeiras do Trivíum, faltando a terceira, Retórica), Medicina, Direito Canónico
e civil, e, a partir da segunda metade do século xIV, a Filosofia Natural, baseada
na Física de Aristóteles. A Teologia ficava reservada aos conventos dos men-
dicantes. Após um período de vaivém entre Lisboa e coimbra, a universidade
portuguesa fixou-se em Lisboa a partir de 1377, até à reforma de D. João III (1536).
A sua história durante esta fase da sua existência parece não ter sido brilhante,
e muitos escolares portugtteses continuam a ¡irocurar universidades estrangeiras.
o ambiente cultural na Europa. - À viragem da vida social e políticainiciada no século XII corresponde uma viragem na vida cultural. É, nesta
época que verdadeiramente se inicia o renascimento geral da cultura que virá
a dar os seus melhores frutos na grande Renascença do século XVI. Ao mesmo
tempo que o feudalismo declina e as cidades se multiplicam, desenvolvem-se as
1.'ÉPOOA_DAS OR,IGENS Á. T'ERNÃO LOPEiS 39
unh¡ersidades, traduzem-se obras desconhecidas de Aristóteles, no meio de agi-
tadas polémicas; surgem e alastram heresias, quer de origem universitária, como
o Averroísmo latino, nascido em Paris, quer de expressão popular, como a dos
Cátaros ou Albigenses, reprimida a ferro e fogo. Através dos Valdenses e de
outros, divulga-se entre os leigos a leitura da Biblia. Os Franciscanos e outras
ordens adaptam às camadas laicas certas preocupações religiosas, que até então
quase só existiam nos conventos. Na arte, à austeridade maciça e guerreira do
estilo'românico sucede a riqueza, diversidade e elegância do estilo gótico, possi-
bilitado pelo progresso do artesanato e pela tiqteza da burguesia urbana.
A expressão característica do feudalismo guerreiro na literatura foram
os cantares épicos, como os Niebelungos, as sagas nórdicas e as canções de gesta
francesas. No século XIII, as canções de gesta francesas, das quais a mais
célebre ,ë a Chanson de Roland, estão já entradas em declinio. Mas na Península
Ibérica, devido possivelmente à persistência da mentalidade guerreira por acção
das lutas contra os .Árabes, o gosto da literatura heróica prolonga-se até mais
tarde, como veremos,
Em contraste com o sentimento gregário, hierárquico e bárbaro das can-
ções de gesta, e com os seus temas sanguinolentos, o lirismo oriundo da Provença
(seria mais exacto ampliar esta designação e dizer Occitânia, domínio linguístico
da Langue d'oc, tro Sul da França actual, região que desempenhou um papel
privilegiado na reanimação comercial do Mediterrâneo, com as Cruzadas), é marca-
damente individualista, suprime as distâncias sociais com o salvo-conduto do
amor, transpõe a ideia de vassalagem ao plano da submissão do amante, e canta
o que há de delicado, subtil e suave na mulher e na Primavera. Por outro lado,
graças a antecedentes que permanecem desconhecidos, os poetas occitânicos
aparecem-nos senhores de uma técnica de expressão surpreendentemente desen-
volvida. Atingidos pela repressão desencadeada contra os hereges albigenses,
os seus trovadores e jograis dispersam-se pelas cortes de ltália, Aragão e outras
regiões, onde divulgam a sua arte. Os Provençais tornaram-se, desta maneira,
os mestres de toda a poesia medieval posterior.
O florescimento e a propagação do lirismo provençal correspondem ao
desenvolvimento da vida da corte, que se concentra em torno dos reis e dos grandes
magnates senhoriais. O nobre adapta-se à vida sedentária e mundana, e cria
novos interesses. Às canções épicas, relegadas para as populações rurais, sucede
nas cortes o romance cortês em prosa, que da França do Norte irradia para toda
a Europa. O facto de ser redigido em prosa atesta o progressivo deperecimento
do jogral e da literatura cantada e o desenvolvimento de um público com capa-
cidade crescente de leitura ou de atenção seguida. Originado possivelmente nas
lendas nacionais e nos motivos folclóricos dos Celtas ingleses, desde cedo um dos
ciclos de romances dessa época - o ciclo bretão - reflecte o ambiente e os
interesses da vida de corte, de que a Távola Redonda do Rei Artur é, afinal, uma
idealização.
40 EISTÓRIA DA LITERATUR"q. PORTUGUESA
O ciclo novelístico bretdo ad,aptou-se, ao longo do tempo, a diversos gostos
e influências religiosas que orientam os seus heróis para a busca do santo Graal,
símbolo da Graça divina, e contrapuseram aos heróis amorosos, como Tristão
e Lançarote, heróis ascéticos, como Ctalaaz e Perceval.
Outros temas ainda (mormente da Antiguidade, transmitidos, tal como
numerosos lugares-comuns retóricos, pelo clero letrado de coÉe: Tróia, Alexan-
dre, Júlio César) confluíram no intenso caudal do romance cortês, cuja procura
só veio a esgotar-se no século XVII, dando origem à caricatura de Cervantes
no Don Quijote de la Mancha.
Mas outras fontes de inspiração, além da aristocrática, convergem na
literatura. O desenvolvimento das universidades e o consequente surto da
Escolástica relacionam-se com uma literatura sábia mas dirigida a um vasto
prlblico, que usa largamente das alegorias ou personificações de ideias abstractas
e tem o seu principal monumento no Roman de la Rose, que é, em parte, uma
sátira da nobreza, da corte, das ordens mendicantes e de outras instituições
medievais. O progresso das cidades incentiva uma literatura satírica e realista,
representada pelo Roman de Renard, espécie de paródia da epopeia, pelos fabliaux
(contos em verso), pela farsa, pelo lirismo burguês do Norte da França, que
contaentre os seus cultores Adam de la Halle e Rutebeuf. Toda esta literatura
de ambiente citadino e inspiração burguesa ou popular está animada de espírito
antinobiliárquico e anticlerical.
Note-se que a civilizaçâo medieva não caminha em toda a parte ao mesmo
ritmo. A Itália conhece muito cedo o triunfo do capitalismo mercantil, e isso
possibilita o aparecimento de uma cultura de tipo novo, prenunciada por Dante
e, já desde o séc. XIV, representada por Petrarca, Boccaccio, pelo pintor Giotto.
Mas esta nova estética não é ainda assimilável pelo resto da Europa.
A literatura portuguesa e as \iteraturas peninsulares. - Anteriormente aFernão Lopes, deve falar-se de uma literatura de língua portuguesa (inicial-
mente galego-portuguesa) dentro do âmbito de uma cultura peninsular. Se há
na Idade Média uma literatura ibérica de raiz autónoma em relação à do resto
da Península, é a literatura catalã, intimamente ligada (até por afinidade tin-
gulstica) à cultura occitânica de além-Pirenéus. Esta literatura peninsular em
língua portuguesa e galego-portuguesa foi cultivada na corte de Fernando III
e sobretudo na de Afonso X, o Sábio, reis de Castela e Leão, e seus sucessores.
Mas é a personalidade política portuguesa, são'as cortes dos seus reis, os mosteiros
de Santa Cruz e Alcobaça, que lhe asseguram continuidade.
Como vamos ver em pormenor, atgumas das obras que geralmente se
incluem no património literário português medieval são produzidas noutras
regiões da Península, como sucede com grande parte das composições dos Can-
cioneiros primitivos, e com as Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio;
outras são obras de portuguesse sobre matéria de interesse para toda a península,
1." IóPOCA-DAS ORIIGENS A. FERNÃO LOPES 4l
caso da Crónica Geral de Espanha de 1344; outras, ainda, foram veículo, dentro
da þenínsula, de correntes literárias transpirenaicas, caso da tradução do ciclo
do Graal, depois retraduzidapara castelhano. Há o caso de um texto cuja naciona-
lidade se discute e que é produto de uma cultura peninsular comum, podendo
indiferentemente ter nascido em português ou castelhano: a primeira versão do
Amadis de Gaula.
O período aqui considerado ainda, portanto, não se diferencia integral-
mente.como fase da história literária portuguesa; trata-se de uma literatura
que a precede e prepara, de língua portuguesa mas em certa medida regional,
dentro da Ibéria.
A literatura portuguesa pode considerar-se emancipada com o advento
da dinastia de Avis. Inicia-se então uma prosa doutrinal portuguesa original
com D. Duarte e uma historiografia nacional com Fernão Lopes. Mas até ao
séc. XVII as relações entre a literatura castelhana e a portuguesa serão tão
íntimas, que alguns dos mais notáveis escritores portugueses, como Gil Vicente,
Camões, Sá de Miranda, D. Francisco lvlanuel de Melo, ilustraram as duas
línguas, prolongaram a sua influência em ambos os lados da fronteira e per-
tencem por isso a ambas as literaturas. No século XVI a palavra <rEspanhar,
tal como a empregam, por exemplo, João de Barros e Camões, servia para designar
o conjunto peninsular em que os Portugueses se consideravam incluídos, e essa
acepção do termo mantém-se com frequência até ao século XVIII.
BIBLIOGRAFIA:
Como introdução à problenâtica actual e fontes de história medieval
ver dois rlteis vols. da Nouuelle Clio, Patis:. Le XIII Siècle Europëen, 1968,
e L'Occident aux XIV et XV siècles, 1971.
Henri Pirenne, Histoi,re ëconomique et socíale du Moyen-Â,ge,' há várias
edições e tradução pelo <Fondo de Cultura Económicarr, México.
Marc Bloch, La Sociëtë Féodale, colecção L'É,volution de l'Humanítë, 2 vols.
Abilio Barbero, Marcelo Yigil, La formacíón del feudalismo en la Península
Ibérica, Grijalbo, Barcelona, 1978 (exposição actualizada dos problemas relativos
ao processo social ibérico, incluindo o território portucalense, desde a romanjzação
ao séc. XI).
Faul Jacques, Histoíre IntëIectuelte tle l'Occídent Mëdiéval, A. Colin,
Paris, 1973 (com larga bibliografia).
Ernest Robert Curtius, La Littérature Europëenne et Ie Moyen-Â,ge Latin,
trad. francesa, Paris, 1956, da 2.a ed. alemã de 1953; há também tradução para
42 'ÏIISTÓRIA DA LITERATUR,A PORTUGUESA
castelhano, pelo (Fondo de Cultura Económicar, México. (Obra capital para
estudo da cultura literária medieval e do papel que ela representa como trans-
missão da cultura greco-romana.)
Jacques Le Goff, Les Intellecluels au Moyen-Âge, Seuil, paris, 1g6g.
P. I. Badel, Introiluctíon à lavie littëratre du Moyen Â,ge¡Bordas, paris, lg6g.
Reto R. Bezzola, La Formqtion des Líttërøtures Nationales e !-es Genres
Liltëraires au Moyen-Â,ge, in Histoire des Littëratures, 2, Encyclopëdie de la ptéíade.
(Obra de larga síntese, com abundante bibliografia.)
Nos rlltimos anos tem-se assistido a uma reinterpretação da literatura
medieval à luz d,a estética da recepção, de novas teorias do texto e dos sistemas
e subsistemas tópicos e formais de cada periodo. Salientemos: R. Guiette,
Questions de littërature, Gand, lg60; C. Segre, I Segni e la critíca, Turim, Ig6g;
H. R. Jauss, História literdria como desafio à. ciência titerdria. A literatura med.íeval
e a teoria dos géneros, trad. port., Porto, lg74; paul Zumthor, Essøi de poëtique
mé.diévale, Seuil, 1972, Langue, texte, ënigme, 1g75. Há dois artigos de sintese
por P. Zumthor e H. R. Jauss em poétique,3l, Setembro de 1g77.
Teses dominantesz alteridad¿ dos textos medievais relativamente ao nosso
sentir, o que recomenda uma abordagem através das suas sucessivas recepções
históricas; anonimato fundamental desses textos, sua oralidade, instabilidade
e integração em tradições e subtradições conflituais; insubstancialidade dos
géneros, sua dependência quanto aos sistemas de oposições epocais características
de cada época, e suas mudanças de função; carácter convencional e formal da
poesia medieva, sobretudo cortês. Estas propostas ainda não foram confrontadas
com a poesia galaico-portuguesa, o que provavelmente contribuiria para a revisão
de certos pontos de vista que ainda mantemos no capítulo II.
Alexandre Herculano, cartas sobre a Históría de portugal, sobretudo
4.4 e 5.4, in Opúsculos, vol. 5.o, e História de portugal, tomos VI, VII e VIII
da 7.4 ed., 1916, de David Lopes, reprod. em 8.e e g.a ed., s/d. Convém atender
a precisões e correcçôes de Gama Barros, Alberto sampaio, Rui de Azevedo,
David Lopes, Menéndez Pidal, Paulo Merêa, sánchez-Albornoz, T. Sousa soares,
e outros. outros contributos de ainda maior actualização em Alexandre Herculano
ù Luz d.o Nosso Tempo, vol. colectivo da Academia portuguesa de História,
1977, nomeadamente o de Humberto Baquero Moreno sobre Herculano e a Histöria
social e Económica, e os artigos concernentes do Dic. de Históría de portugø\,
dir. por Joel Serrão, 4 vols., 1963-Zl.
Jaime Cortesão, Os Fact,res .Democrtiticos na Formaçdo de portugal,
cap. I da Hislöria do Regímen Republicano em portugal, vol. I, 1g30, reed. em
obras complelcs, I, Lisboa; o sentido da cultura em portugal no século xIV,
separata de Seara Nouø, 1956.
1." ÉPOOA.-D,AS ORTGENS Á. FERNÃO LOPÐß 43
. Armando de castro, A Evoluçdo Económíca de portugøl dos séculos x I I
a xIv, nove volumes publicados em lg64-20 (obra que ordena, clarifica e discute
as prévias contribuições eruditas para a nossa história socio-económica medieval);
Portugal na Europa do seu Tempo - História socio-Económica Medíeval com-parada, Lisboa, 1970, livro que condensa e situa a matéria da obra anterior.
Humberto Baquero Moreno, Tensões sociais em portugal na ldade Mëiliø,
Porto, 1976.
Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrôneo e o Atlântíco, l.a ed. 194b,
4.4 ed. ref., Lisboa, 1977, e Introduções Geogrdficas à Históría de porrugal,
ed. Imprensa Nacional - casa da Moeda, lgrz (importantes contributos exposi-tivos ou críticos da geografia física e humana para a teoria da formação e história
de Portugal). Ver ainda como contributos para actualização na correcção das
teses <atlantistasr da formação portuguesa os estudos de Fernando castelo
Branco sobre o <LitoralPortuguêsr> e a <Navegação Fluviab, no Diciondrío de
Históría de Portugal, dir. de Joel serrã0, vol. Itr; e, mais genericamente, a
discussão do condicionamento geográfico em Armando de castro, Hístória Econó-
mica d.e Portugal, I vol. ( Introd.uçdo), Ed.. Caminho, Lisboa, lg7g.
António José Saraiva, Históría d.a Cuttura ern portugal, vol. I, livro I,
caps. II e III.
António cruz, santa cruz d.e coimbra na cultura portuguesq da ldade
Mëdia, I, Porto, 1964.
A. Moreira de Sá, Primórdios da Cultura portuguesa, in Arquivos de
Hístöría da cultura Portuguesa, I, Lisboa, lg67 (sobre escolas, catedrais e monás-
ticas, dos sécs. XI-XII; no mesmo vol., outro artigo sobre o mesmo assunto
de Francisco da Gama caeiro). o mesmo autor publicou o chartelarium uni-
versitatis Portugalensis, I e II, 1966-68, respeitante à época medieval.
Mário Martins, Estudos de Líterøtura Medieval, Braga, 1g56. (Estuda
o fundo medieval alcobacense.)
A. H. de oliveira Marques, Guia do Estudante de Históríø Medieval
Portuguesa e A socíedade Medieval portuguesa (Aspectos da vida euotidiana),
publicados em Lisboa, 1964, sendo o primeiro uma obra fundamental. de orien-
tação bibliográfica e arquivística, e o segundo um panorama descritivo da vida
social- Em seus Ensaios de História Medieval, Lisboa, 1g65, encontrar-se-á,
além de várias monografias eruditas, uma formulação muito sugestiva dos prin-
cipais problemas da economia medieval portuguesa, com bibliografia adequada.
Ver também a sua Histöria de Portugal, I, Lisboa, várias edições.
44 EISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA
Joaquim Veríssimo Serrã0, flistória de Portugal (7080-7415), Yerbo,
Lisboa, 1977 (informação erudita minuciosa, dentro de uma perspectiva histórica
passadista).
José Hermano Saraiva, Hístória Concisa de Portugal, Lisboa, 1978.
Vitorino Magalhães Godinho, Ensaíos, I I, Sobre a Histtlia de Portugal, 7969.
(Contém dados e reflexões importantes sobre a periodização histórica e a estru-
tura social e administrativa do Estado português medievo.)
António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, antologia em 4 vols.
de textos de origem árabe sobre a época da ocupação muçulmana, Seara Nova,
Lisboa, 1972-73-75.
CAPITULO II
A POESIA DOS CANCIONEIROS
Os Cancíoneíros primítivos. - Quase todas as literaturas se iniciam porobras em verso. Exceptuando as novas nacionalidades resultantes da emigra-
ção de Europeus a partir do século XVI, a poesia surge mais cedo do que a prosa
literária. Não é dificil explicar este facto: nas civilizações do passado, a mais
corrente forma de comunicação e de transmissão da obra literária nâo é escrita,
mas oral. Antes de se fixarem no bronze, na pedra, no papiro, no papel ou no
pergaminho, as histórias, as narrativas, e até os códigos morais e jurídicos
gravavam-se na memória dos ouvintes; e havia artistas que se encarregavaît
de as divulgar, os aedos e rapsodos entre os Cregos, os bardos entre os Celtas
os jograis entre os povos românicos medievais. O verso é, inicialmente, entre.
outras coisas, uma forma de ritmar a fala que facilita a memória, quer esse ritmo
se baseie em esquemas de contraste quanto à duração das sílabas (caso do verso
grecoJatino), quer em esquemas de contraste de intensidade silábica reforçados
por aliterações (caso da poesia germânica), quer no isossilabismo, isto é, na
regularidade quanto ao nrimero de sílabas reforçada pela rima (caso das litera-
turas românicas medievais), quer ainda noutras componentes fonéticas. Vestígios
desta literatura oral são ainda hoje os provérbios que, como facilmente se verifica,
obedecem a ritmos ou recorrências fónicas de fácil fixaçã0. As literaturas
românicas medievais nasceram, como já notámos, da literatura oral, cujos prin-
cipais agentes eram os jograis, também chamados segrëís na Península, embora,
por via clerical, desde logo assimilem certos temas e lugares-comuns retóricos
de tradição greco-romana.
Os mais antigos textos literários em língua portuguesa são
composições em verso coligidas em Cancioneiros de fins do século XIII
e do século XIV, algumas das quais remontaráo a fins do século XII.
Mas devemos supor muito anterior a tal época o culto da poesia
--..-
46 IIISTÓRIA DA IJIIERATUR,A PORTUGUESA
testemunhado por estes textos escritos. A literatura oral, com efeito,
só se fixa por escrito em época tardia da sua evolução, quando as
condições ambientes já clivergem muito daquelas que lhe deram origem.
Portanto seria errado pensar que a poesia portuguesa nasceu com
os Cancioneiros; estes não passam de colecções, mais.ou menos tardias
e limitadas.
Uma parte, pelo menos, da poesia conservada pelos Cancioneiros
supõe um longo passado e uma. tradição oral que nos levam a épocas
muito mais remotas do que aquelas em que se compuseram os mais
antigos poemas dos Cancioneiros, datados, como vimos, de fins do
século XII. Adiante aludiremos às carias, que parecem revelar a
existência, no seio das populações submetidas ao dornínio muçulmano,
de uma poesia popular muito provavelmente precursora daquela que
tais cancioneiros conservaram.
Conhecem-se trës Canctoneiros ou colectâneas, aliás estreitamente
aparentadas entre si, de poemas de autores diversos em língua galego-
-portuguesa. O mais antigo, o Cancioneiro da Aiuda, foi provavel-
mente compilado ou copiado na corte portuguesa em fiñs do século XI I I.
Os outros dois, o Cancioneíro da Biblioteca Nacional (antigo Colocci-
-Brancutti) e o Cancíoneiro da Vaticana são apógrafos ou cópias,
realizadas em ltália no século XVI sobre originais que datam prova-
velmente do século XIV.
Destes três, o Cancioneiro da Ajuda é o menos completo, porque
apenas abrange composições anteriores ao reinado de D. Dinis,
excluindo, por exemplo, a vasta produção deste rei; e porque 0 seu
coleccionador deixou de fora os géneros mais vulgares, isto é, as
cantígas de amigo e as de escdrnio ou maldizer, de que adiante falaremos.
Mas tem o interesse especial de o seu manuscrito pertencer à própria
época da maioria dos poetas seus colaboradores, e é um documento
valioso, pela grafia, pela decoração e sobretudo pelas iluminuras,
que testemunham o carácter cantado, instrumental e até coreográfico
de, pelo menos, uma parte das suas poesias, integrando-as no conjunto
do espectáculo jogralesco a que se destinavam.
Os cancioneiros da Vatlcana e da Bibltoteca NacionøI, compi-
lados depois da morte de D. Dinis, abarcam um espaço de tempo
1.'ÉPOOA_DAS OR,I'GENS A FERNÃO LOPES 47
maior, isto é, não só os poetas contemporâneos de D. Afonso III
e anteriores, mas ainda os contemporâneos de D. Dinis e de seus
filhos; abrangem por outro lado todos os géneros de composições,
e não só as cantigas de amor. Destes dois, o Cøncioneiro da Biblioteca
Nacional é o mais completo, pois inclui quase todo o material recolhido
no Cancioneíro da Vaticana e muito outro. O Cøncioneiro d.a Ajuda
contém 64 poesias não transcritas nos outros dois. Um catálogo do
coleccionador quinhentista italiano, Ângelo Colocci, a quem se deve
a preservação do Cancioneiro da Bi.blioteca Nacional, revela-nos que
qualquer dos cancioneiros se encontra hoje mutilado. É bem possível
que estejamos em presença de sucessivas cópias de uma e a mesma
colecção, que se iria talvez encorpando porlco a pouco; e uma das
tiltimas fases da compilação deve ter sido certo divro das cantigas>
mencionado no testamento do conde de Barcelos, D. Pedro, filho
de D. Dinis (1350).
O mais antigo dos trovadores conhecidos dos Cancioneiros
é João Soares de Paiva, nascido cerca de I 140, dois anos após a
batalha de Ourique, pertencente, portanto, à geração de Sancho I,
que também figura c0m0 presumível autor de uma das mais antigas
cantigas. Isto situa o início da literatura escrita portuguesa conhecida
cerca de começos do séc. XIII. É plausível relegar para depois dos
dois trovadores mencionados a discutidíssima Canttga da Garvaia
(manto escarlate) de Paio Soares de Taveirós, que até há pouco se
datava de entre 1 189 e 1 l98. Rodrigues Lapa aceita I lg6 e outros 1213
como data da mais antiga cantiga (de escárnio) de Soaresde Paiva.
O trovador mais recente é o mencionado conde de Barcelos, falecido
em 1354.
Os autores'pertencem a diversas regiões da Península, e em
grande parte viveram e poetaram na corte do rei de Castela:
tal é o caso do rei Afonso X, o Sábio, e dos poetas da sua corte lite-
rária, muitos deles portugueses e galegos, que ocupam uma parte
importante dos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca. Não deve-
mos imaginar todos, nem talvez mesmo a maior parte dos poetas
dos Cancioneiros, dentro do ambiente da corte de D. Afonso III,
de D. Dinis, ou da roda de seu filho, D. Pedro, conde de Barcelos,
_r
48 EISTÓRI.II' DA I,ITERATUB,A PORTI]GUESA
mas sobretudo dentro da corte leonesa-castelhana, desde a presença
influente de um jogral Palha em 1136 sob Afonso Vil, com o apogeu
sob Afonso X, o Sábio (1252-84). Na realidade, os Cancioneiros não
constituem colecções de poesia nacional, mas sim de poesia penin-
sular em língua galego-portuguesa. Tudo se passa Ëomo se houvesse
na Idade Média uma só literatura românica peninsular, mas poli-
dialectal, consoante os géneros, à maneira do que acontecera com a
literatura grega clássica. Devemos acrescentar aos Cancioneiros
profanos (ou, melhor dizendo, às três versões do Cancioneiro profano)
as Cantígas de Santa Maria, coligidas na corte de Afonso X e, em parte,
da autoria deste rei. São para cima de quatrocentas, com refrão e
acompanhamentos musicais conhecidos, alternando séries de poesias
narrativas sobre milagres da Virgem com loas que lhe são também
dedicadas.
Os géneros dos Cancioneíros. - Notámos que vários géneros de
poesia estão representados nos Cancioneiros dø Vaticana e da Biblioteca
Nacíonal. Este último inclui também um tratado poético truncado
do século XIV (perdeu-se todo o texto anterior ao cap. IV da 3.a Parte),
relativamente tardio, portanto, e com certa influência francesa' que
pretende classificar aqueles géneros e dar as suas regras.
Distingue este tratado três géneros: as cantigas de amigo, as
cantígas de amor e as cantigas de esctirnio e maldizer-
A diferença entre as cantigas de amor e as de amigo consiste,
segundo 0 mesmo tratado, em que nestas se supõe que fala uma mulher,
ao passo que naquelas o trovador fala em seu próprio nome. As cantigas
de amigo são portanto, quanto ao tema, cantigas de mulher, e o nome
por que são conhecidas designa o seu objecto, o amígo ou namorado,
geralmente referido logo no primeiro. verso. Nas poesias dialogadas,
o critério de classificação é, segundo a mesma arte de trovar fragmen-
târia, o do ponto de vista sentimental dorninante: o de eløs ou
o de ¿/¿s.
Quanto às cantigas de escárnio e maldizer, são, é claro, de
assunto satírico, e chamam-se de ¿scrirnio se o poeta se exprime
ironicamente, sugerindo uma apreciação oposta à que patece fazet,
1.'ÉPOOA-DÁ.S ORIGENS 'A FERNÃO LOPES 49
ou simplesmente se abstém de nomear o satirizado; de maldizer,
se'o poeta apoda ou acusa directa e nomeadamente.
Esta classificação exprime o estado de coisas da poesia de corte,
tal como aparecia aos poetas palacianos do século XIV. Mas estes
géneros tinham sofrido uma longa evolução, partindo de origens
diferentes, antes que viessem a alinhar lado a lado na poesia da corte,
como modalidades diversas de uma mesma arte. A história da cantiga
de aràor é diferente da história da cantiga de amigo, embora com ela
venha convergir.
As cantígas de amigo. - Se atendermos sobretudo aos exem-plares mais típicos, os cantares de amigo não se distinguem dos de
amor unicamente por aparecerem ali <elasr¡ e aqui <eiesl a falar, mas
também por outras diferenças de forma e intenção.
Cerca de uma quarentena de tais cantigas, nomeadamente
designadas como (paralelísticasr, apresenta uma estrutura rítmica
e versificatória própria, redutível a um muito simples esquema.
A unidade rítmica não é a estrofe, mas o par de estrofes, 0u, mais
precisarnente, o par de dísticos, dentro do qual ambos os dísticos
querem dizer o mesmo, diferindo só, ott quase só, nas palavras da
rima, que são de vogal tónica a núm dos dísticos de cada par, e i
os ô, no outro; o riltimo verso de cada estrofe é o primeiro verso
da estrofe correspondente no par seguinte. Cada estrofe vem seguida
de refrão.
A este sistema deu-se o nome de paraleltsmo. Mediante ele,
é possível construir uma composição de seis estrofes e dezoito versos
em que apenas há cinco versos semanticamente diferentes (incluindo
o refrão), como se vê pelo seguinte esquema:
estrofe I
verso A
verso B
refrão
l.o par
estrofe 2
verso A' (variante
verso B'(variante
refrão
I
I
de A)
de B)
4
50 HISTÓR,IA DA LITERATURA PORTUGUESA 1.' ÉPOOA_DAS OR.IGENS ,A FERNÃO LOPES 5l
O refrão atesta a existência de um coro. A disposição das
esirofes aos pares e a alternância das mesrnas rimas ao longo de toda
a cornposição deixam entrever que se alternavam dois cantores ou
dois grupos de cantores. A repetição, à cabeça de cada nova estrofe,
do verso final duma estrofe anterior é talvez o vestígio de um primitivo
processo de composição improvisada, que obriga um dos improvisa-
dore.s a repetir o último verso do outro, para o qual devia achar
sequência (leixa pren, processo que ainda subsiste nas quadras ao
desafio). O facto, enfim, de, em virtude deste sistema de repetições,
a letra se reduzir a um número pequeno de versos mostra-nos que
ela se subordinava ao canto e ao ritmo da dança, e que a invenção
literária desempenhava, dentro deste conjunto, um papel relativa-
mente secundário. Até hoje, foram só descobertos os acompanha-
mentos musicais para sete cantigas do jogral galego Martin Codax;
mas, como dissemos, as iluminuras do Cancioneiro da Ajuda repre-
sentarn grupos instrumentais, que incluem viola de arco, guitarra,
saltério, sonalhas, pandeiro, etc., além de cantores e de bailarinas,
dirigidos por uln nobre trovador sentado com a letra em punho.
Estas características e indícios levam-nos a uma fase da história
da poesia em que o poerna não passa de um esboço, urna letra, para
musicar, sem autonomia em relação ao canto e à dança. De resto,
o próprio nome de cantígas é a este respeito muito elucidativo;
e a o-rte de trouar apeilsa ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional por
várias vezes se refere a problernas de relacionação da letra com o szm.
A estrutura rítmica que estudámos na sua forma mais típica
admite variantes ou complicações. De facto, na sua maior parte,
as cantigas de amtgo oferecem uma estrutura mais complexa. Assim:
em lugar cle dísticos, silrgem estrofes, ou coplas, de três, quatro ou
mais versos; o paralelismo anafórico (ou seja, a repetição literal entre
estrofes pareødas, com excepção das palavras da rima, ou pouco mais)
dá lugar a um pareamento ou emparelhamento mais lasso, em que
a segunda estrofe de cada par apenas repete a ideia geral da anterior;
algumas composições já não respeitam regularmente o emparelhamento
das coplas; e o próprio refrão cleixa de aparecer no final de cada estrofe,
ora intercalando-se no texto, ora (o que é rnais irnportante) admitindo
t
I
I
L
vers0
verso
refrdo
B
c
2.o par
estrofe 3
estrofe 4
verso B'
verso C'
refrdo
estrofe 5
verso C
verso D
refrão
3.o par
estrofe 6
Um exemplo permitirá compreender melhor este esquema:
Vayamos irmãa, vayamos dormir
nas ribas do lago hu eu andar vi
a las aves meu amigo.
Vayamos irmãa, vayamos folgar
nas ribas do lago hu eu vi andar
a las aves meu amigo.
Nas ribas do lago hu eu andar vi
seu arco na mão as aves ferir
a las aves meu amigo.
Nas ribas do lago hu eu vi andar
seu arco na mão a las aves tirar
a las aves meu amigo.
Seu arco na mão as aves ferir
a las que cantavan leixáJas guarir
a las aves meu amigo.
Seu arco na mão a las aves tirar
a las que cantavan non nas quer matar
a las aves meu amigo.
(Fernando Esquio)
c'
D'
verso
verso
refrão
52 EISTÓRIA DA I,ITEBATUR,A PORTUGUESA
pequenas variações. Com este desenvolvimento da inventividade
discursiva, chega-se à canttga de meestría; o tratado trecentista de
arte poética define-a como sendo a desprovida de refrão, que é a forma
elementar de paralelisrno.No entanto, nuÍrerosas cantigas, chamadas
de paralelisml purl, respeitarn sensivelmente o esquernq.atrás descrito.
O seu evidente destino coreográfico permitiria classificá-las como bailtas
ou baíladas, designação usualmente reservada a cantigas, mesmo de
paralelismo imperfeito, que aludem ao acto de se dançar enquanto
são cantadas.
À cornplicação formal do esquema paralelístico corresponde,
em geral, uma variação temática. Nos cantares de amigo pode
distinguir-se, com efeito, mais de um estrato de cultura, de ambiente
social, embora sempre mais ou menos assimilado por uma elabora-
ção cortês.
Um grupo numeroso de cantigas inspira-se na vida popular rural. Tem
como personagem principal a rapariga que vai à fonte, onde se encontra com o
namorado; que vai lavar ao rio a roupa ou os cabelos; que na romaria espera
o amigo, ou oferece promessas aos santos pelo seu regresso. Este género de cantar
apresenta-nos geralmente uma situação cujos elementos paisagísticos, muito
simples e padronizados, se carregam do simbolismo de velhos ritos pagãos,
e coloca-os perante uma ou mais personagens, sob a forma quer de diálogo,
quer de monólogo, quer até (caso raro mas muito significativo) de breve narra-
tiva, como se fosse um fragmento de um <rimance¡r: a rapariga que vai ao rio
lavar camisas, o corpo <velido> que baila na romaria. Não se trata, no sentido
actual da palavra, de poesia lírica, mas de um género sincrético primitivo em
que se confundem o lírico, o dramático e o narrativo. Esta matéria corresponde
às cantigas de estrutura mais simples, construídas dentro do chamado <parale-
lismo perfeito,r. É, de notar uma referência na Arte de Trovør a uma categoria,
considerada rude, de cantigas de viløas (vilãs), segundo leitura de J.-M. d'Heur,
anteriormente lida como de vílaos (vilãos).
Outro grupo de cantigas leva-nos antes para ambientes domésticos-
Deixa-nos ver a moça a fiar o sirgo em casa, a discutir com a mãe e com as
amigas; o Íapaz a pedir autorização à mãe da moça para a namorar, A prota-
gonista aparece-nos muito mais desembaraçada de língua e segura de experiência;
sabe jogar às escondidas com o amor, conhece o seu poder de sedução e maneja-o;
conhece a arte de provocar o ciúme, de que aliás também frequentemente é
vítima. Os autores destas cantigas revelam um experimentado conhecimento
do comportamento feminino; e deixaram no conjunto das suas obras como que
1.' ÉPOCA_DA.S ORI.GENS Á. FERNÃO LOPES 53
uúl romance de amor, que vai desde a alvorada do primeiro encontro até ao
casamento. Corresponde esta matéria às cantigas de estrutura mais complicada,
que, sem alterar substancialmente o esquema paralelístico, conseguem adaptáJo
a uma invençâo literária mais rica.
Um terceiro estrato situa-se no ambiente da corte. O seu tema é o amor
.cortês (que estudaremos a propósito das cantígas de amor), tal como o trovador
fidalgo o imaginaria sentido pelo lado da mulher, seja para a lisonjear apresen-
tando-a como muito consciente de ser fremosa, Iouçda ou uelída, seja para se
jactar daquelas que se finam de saudades por ele. Nem sempre é fácil determinar
exactamente a fronteira entre as cantigas de tipo tradicional e as de tipo cortês,
tanto mais que a origem manifestamente popular do processo apenas se nos
revela através de imitações ou reelaborações palacianas, mas é muito plausível
situar no ambiente de corte motivos como o do rei que manda pedir tranças
à moça, e no ambiente da vila ou do campo temas como a entrevista do preten-
dente com a mãe da moça.
Tal estratificação da poesia dos Cancioneiros, em diversas
camadas correspondentes a meios sociais ou a épocas diferentes,
é naturalmente interferida por factores vários, como influências
recíprocas e contactos dos diversos meios sociais. Assim é que vemos
assinadas por nomes da alta nobteza cantigas de tipo primitivo, de
ambiente flagrantemente popular e vazadas no paralelismo puro
- caso de numerosas composições de D. Dinis, grande apreciadorda poesia folclórica. (Esta parece ter sido reposta em moda na sua
época, depois de passada uma fase em que prevaleceu na corte um
gosto rnais acentuadamente provençalizante.) Tais autores limitam-se
a recolher ou a imitar cantares tradicionais; só assim se entende que
variantes das mesmas cantigas apareçam subscritas por mais de um
nome, como sucede com as duas tão próximas \tariantes da famosa
bailada das <avelaneiras floridasD, assinadas, uma pelo poeta culto
Airas Nunes, e outra pelo jogral Joáo Zorro.
Este facto, se por um lado torna incertas as divisórias entre
os estratos que distinguimos na produção dos Cancioneiros, cons-
titui, por outro lado, uma prova da sua existência, visto revelar
,o interesse e a imitação da poesia folclórica por parte dos poetas
de corte. A existência de uma herança tradicional peninsular pre-
,servada nos cantares de amigo parece atestada já no século XI pelas
,carjas, designação árabe dos remates de certas composições da autoria
!r
54 ,IIISTÓRIA DA IJITERATURA PORTIIGUESA
de poetas hebreus e árabes escritas entre meados do século XI e o
final do século XIII. Estas carjas são em língua moçárabe (isto é,
em língua românica fortemente penetrada de arabismos, falada, como
vinros, pela parte da população cristã sob o domínio árabe), con-
quanto seja hebraica ou árabe a ntuaxd, isto é, o corpoda composição;
e consistem precisamente em cantigas de mulher que lembram niuito
de perto os caracteres das de amigo. os poetas semitas recorheram-nas
certamente clo folclore popular do seu tempo.
Sucessivos jograis e poetas, sucessivas épocas e meios sociais
adaptaram e variaram, pois, a poesia folclórica. As formas versifica-
tórias mais sirnples coincidem grlssl modo com os temas rurais e
primitivos; e as mais complexas, formadas a partir daquelas, revestem
os ternas burgueses e cortesãos. o estrato rural deve ser o mais antigo.
A cantiga de amigo nasceu ira comunidade rural, como complemento
do bailado e do canto colectivo dos ritos primaveris, próprios das
civilizações agrícolas em qile a mulher goza da maior importância
social; e é assim que, não apenas na Fenínsula ou na.România, mas
em povos tão distantes como o chinês, se verificam vestígios, quer
do paralelismo, quer da cantiga de mulher. Transplantada a outros
meios, as suas formas variaram e, em muitos seniidos, enriqueceram-se,
ao mesmo tempo que se adaptavam a novos temas característicos
de urna cultura mais mercantil ou cortês.
O primitivismo de muitas cantigas de amigo constitui precisa-
mente a sua principal atracção para muitos leitores de hoje. Algo
se oferece nelas de muito diferente da mentalidade do homem actual,
permitindo entrever certas formas de sensibilidade, que nem por
terem sido recalcadas por aquisições posteriores deixaram de subsistir
na psicologia moderna, sempre prontas a despertar. Há, por exemplo,
em alguns cantares de amigo uma intimidade afectiva com a natureza
que é muito diferente do gosto cenográfico da paisagem (como quadro
ou reflexo dos sentimentos humanos), e que deve antes relacionar-se
com o animismo típico de certa mentalidade pré-mercantil. Dir-se-ia
existir uma afinidade mágica entre as pessoas e tudo o qlte parece
mover-se ou transformar-se por uma força interna: a âgua da fonte
e do rio, as ondas do mar, as flores da Primavera ou Verão, os cervos,
1." ÉPOCTA_DAS O'R,IGENS A FERNÃO LOPES 55
a luz da alva, a dos olhos. Todas estas coisas participavam ainda
de tantas associações mágicas, as suas designações evocavam tantas
correspondências entre o impulso amoroso e o florescer das árvores,
os actos dos animais, os movimentos das coisas mais presentes, que
o esquema repetitivo era como o imperceptível e subtil desenvolvi-
mento de um tema através de modulações que sugerem os seus
ines$otáveis nexos com a vida. Assirn, na tão simples cantiga de
Fernando Esquio com que ficou atrás exemplificado o paralelismo
típico, a imagem das raparigas que, por sugestão de uma delas,
entrevemos dispostas a dormir na margem de um lago - só grada-tivamente se apaga perante a imagem das aves feridas peloamigo
de arco em punho; dir-se-ia que as moças vã0, incautas, substituir
tais peças de caça. Mas, em nova lenta gradação, a nota de crueza
dissipa-se no amigo, pois o seu ferino arco poupa as aves canoras,
e isso faz pressentir a ternura do seu trato amoroso perante a doce
fala da moça, depois de sentirmos a sua prévia desenvoltura cruenta
de caçador. Não poderia traduzir-se melhor o enleio da donzela
frente ao seu másculo e, todavia, meigo namorado. Ora imagens
como estas de uma altanaria extensiva ao amor eram símbolos tra-
dicionais, imediatamente reconhecidos e, pela sua própria obliquidade
de alusã0, capazes de evocar em conglomerado muito diversas vivên-
cias dos cantores-dançarinos e seu público. E observernos que, a
julgar pelos poucos textos musicais subsistentes, o canto desta lírica
acusa a influência da antífona ou do responsório eclesiásticos, - os quaispor seu turno tiveram uma das suas origens em ritos rurais antiquís-
simos.
Nada disto (nem os processos formais repetitivos, nem o erotismo
feminino como que ritualizado em slmbolos) se pode atribuir apenas
à veia popular galaico-portuguesa. Alguns traços de arcaísmo fonético,
nomeadamente a manutenção do n intervocálico em palavras-chave
como fontana, louçana, etc., permitem suspeitar neste género uma
origem que vem da proto-história, talvez moçárabe, do Português.
As carjas atrás referidas fazem supor uma tradição românica penin-
sular suficientemente antiga e pujante para ser comum, quer a uma
lírica moçárabe meridional do séc. XI pelo menos, quer a uma lírica
56 IIISTÓRI.I\ DA LITERATUR"A PORTUGUESA
do Noroeste peninsular, onde pouco se fez sentir a influência árabe.
É, mesmo possível, como recentemente observou Rodrigues Lapa,
entrever um fundo tradicional românico de poesia lírica popular
baseado em dísticos paralelísticos seguidos de refrão, do qual pro-
viriam, quer a bailta galaico-portuguesa, quer a caria'moçárabe, quer
o conductus litúrgico, quer o strambotto italiano. Sobre esta comum
tradição se teria elaborado a poesia folclórica galego-portuguesa, a
qual teria acabado por diferenciar-se e enraizar-se na vida local,
como atestam certos traços regionais bem distintivos de flora (pinheiro,
avelaneira), paisagem física e humana (ria de Vigo, ribeiras e romarias
nortenhas).
Em toda a Cristandade medieval, viu-se a Igreja obrigada a
reprimir a prâtica de ritos e festas pagãs, cuja persistência mais ou
menos ingénua sob a liturgia cristã apresentava como um dos seus
aspectos rnais pertinazes os cânticos eróticos de mulheres dentro
dos próprios tempios, por ocasião de romarias ou das festas pascais
que cristianizaram as festas gentílicas das Maias sob a forma de júbilo
da Ressurreiçã0. Há, em línguas castelhana e catalâ, vestígios antigos
de paralelismo em cantigas de mulher. O que singulariza o lirismo
galaico-português mais típico é a sua confinação à estética do parale-
lismo, mesmo nos espécimes já de certo reelaborados que nos chegaram.
Dá-se uma rarefacção extrema de elementos narrativos ou descritivos;
avultam poucos mas densos símbolos de participação anímica entre,
por um lado, certas coisas naturais e, por outro lado, uma coita
feminina sem individualidade, sem ambiente doméstico, quase toda
personificada nos (meus olhosr a luzirem numa situação vaga - na
presença ou ausência do amigo, que todo ele se reduz também à carga
amorosa de sinal contrário. Cada verso vale por si, recortado por
repetições simétricas e modulantes, reevocado por outras associações
(como as da rima final e do refrão, à intervalos fixos), delimitado
por uma nítida pausa de pontuação. A impreclsão dos sinónimos e
do uso dos tempos verbais, nos lugares das rimas alternairtes, afrouxa
a já lassa ligação lógica, que poucas e monótonas conjunções sustentam.
Dificilmente se poderá imaginar um tipo de poesia mais próximo
da encantação mágica, ou da música. Mas o mais impressionante
1." ÉPOCA_DA"S OR,IGENS "A. F'ERNÃO LOPES 57
é eftcontrarem-se, dentro de uma tal simplicidade estilística, algumas
das melhores poesias que jamais se fizeram em língua portuguesa.
Contam-se entre elas as que principiam por <Sedia-m'eu na ermida
de Sã Sirneõr (Meendinho), <tlevad'amigo, que dormides as rnanhanas
friasr (Nuno Fernández Torneol) e <Levantou-ss'a velidar (D. Dinis),
cujo esquema repetitivo estrutura um poderoso crescer e multiplicar
de representações emocionais, cujas modulações de timbres vocálicos
dão fundo harmónico às modulações do humor ou sentimento, cujas
hipérboles ou ambiguidades, autenticamente mitológicas pela sua
audácia, nada ficam a dever à liberdade metafórica da poesia moderna.
Nestas composições, as proezas ou maravilhas de que a poesia, ainda
um pouco ingenuamente mágica, julgava capazes as pessoas ou as
coisas revelam-nos, na máxima sobriedade de expressão verbal, algumas
fundas aspirações ou fruições estéticas que as possibilidades técnicas
modernas tendem a ocultar. Já, evidentemente, nos encontramos,
com estas poesias, perante elaborações cultas de uma tradição;
o próprio D. Dinis, e ainda Pêro da Ponte, entre outros, chegam a
combinar habilrnente certos recursos paralelísticos com recursos de
origem cortês occitânica. É de resto impossível saber a que nível
chegara a poesia folclórica antes de perfilhada pela aristocracia.
Mas não há dtivida de que tais pequenas obras-primas são a consu-
mação de uma arte paralelística de trovar assente numa cultura
arcaica com alguns traços regionais.
É costume classificar as cantigas de arnigo, segundo os seus
temas, em baíIadas ou bøilias, cantigas de romarta, marinhas ou
barcarolas, a que, não menos justificadamente, se poderiam âcres-
centar cantigas de fonte, de cenas venatórias, de amiga e mãe, de
amiga e amigas (às vezes designadas corno irmanøs), de despedida, etc.
O que, realmente, mais interessa apontar é a grande quantidade
(cerca de B0) das cantigas onde há referência a romarias que se podem
quase todas localizar na Galiza ou no Minho; a originalidade temática
galaico-portuguesa destas e ainda de cerca de uma vintena de outras
respeitantes a um ambiente marítimo (mar, ondas, ria, barcas partindo
ou chegando); o carácter geralmente muito castiço das bailias, por-
ventura representantes do estrato histórico mais antigo porque mais
Y
58 HISTÓRIA DA LITERATUR,A PORTUGUESA
difundido na Europa, senão em todo o rnais velho mundo agrário
(cerca de meio cento de espécimes).
Se os cantares de amigo de tipo primitivo, evocadores de uma
época remota da história da poesia, podem interessar sob estes aspectos
alguns leitores modernos, os de tipo rnais complexo] correspondentes
às estratificações burguesa e palaciana, não deixarn também de ter
interesse, embora diverso. Não é urna sugestão encantatória (e, nos
nrelhores casos, extraordinariamente moderna) a que fica da sua
leitura. os poetas corrseguern dar com vivacidade os diversos estados
da mulher namorada, no decorrer cla intriga sentimental. A saudade,
o ciúme, o ressentimento, os amuos, as ansiedades, desconfianças,
a reivindicação da liberdade de amar perante a intervenção materna, etc.,
exprimem-se de rnodo muito vivo; e ao lado da diversidade de situações
é de notar a dos tipos psicológicos retratados: as mulheres ora são
ingénuas, ora experimentadas; ora compassivas e inclinadas à piedade,
ora astutas e calculistas; ora indiferentes, ora susceptíveis; ora se
entregam, ora desfrutam os amtgos. Os trovadores .deixaram nestas
poesias o resultado duma experiência ampla da vida sentimental,
com a qual seria possível compor um romance no tipo da Menina
e Moça. É, de notar, por outro laclo, a simpatia com que alguns destes
poetas sabern colocar-se dentro do ponto de vista da mulher e dos
interesses femininos, com uma candura que ainda ressoa na poetisa
galega moderna Rosalía cle Castro.
A infl.uêncía provençal e as cantigas de amor. - Outro caminhoternos de seguir se quisermos estudar, nas suas origens, a cantiga
de amor' 
euer, eu en maneira de proençal
lazet agora úu cantar d'amor
escreve o poeta D. Dinis, declarando o que provavelmentetodos
os trovadores galego-portugueses tinham presente no espírito: a ideia
de que os Provençais eram os modelos a seguir.
Com efeito, foi nas cortes feudais occitânicas (e não restritamente pro-
vençais, como costuma dizer-se) que floresceu a primeira grande escola da poesia
românica, elaborada numa língua (Langue d'oc) que seria mais tarde eclipsada
1.'ÉPOOA_DAS OR,IGENS A FERNÃO LOPES 59
pelo Francês do Norte (Langue d'oíl) mas que então exprimia unia civilização
mais adiantada, como consequência directa da reactivaçã0, pelas Cruzadas,
do comércio mediterrânico. Ainda hoje se investiga e se discute quais fossem
as tradições literárias que permitiram uma tão rápida evolução do lirismo provençal.
Nâo há dúvida, porém, de que uma parte da cultura latina clássica deve ter sido
transrnitida até aos trovadores por intermédio cia literatura eclesiástica medieval,
sobretudo através de certas formas ainda em latim rnas já impregnadas de espírito
profano. (epistolografia amorosa espiritualizada entre clérigos e freiras, poesia
dos goliardos, estudantes medievais); e é ainda mais evidente que entre o canto,
a poesia, o drama litúrgico com que o clero fomentava a participaçãro do povo
na celebração do cuito, e, por outro lado, o folclore rural, de origens mais antigas
que o cristianismo, se exerceu, durante toda a Idade }Iédia, uma intensa influência
recíproca a cujos progressos rnuito deveu essa nascente literatura aristocrática
de corte.
Com efeito, após longa polémica, os filólogos apüraram a etimologia do
verbo trovar, que afinal vem de trypare; isso reforça as ligações históricas já
conhecidas entre a lírica profana medieval e oE tropos, desenvolvimentos musicais
e depois também versificados (estróficos e rimados) que desde os séculos VItrtr
e IX se inseriram na liturgia. Essa inovação, mais tarde condenada no séc, XVI
e que tanta importância teve no desenvolvimento da poesia, <ia música e até do
teatro religioso e laico, é o resultado de urna tendência do clero romano para
melhor atrair os fiéis populares e os trazer à participação do culto, tendência
evidente desde a adopção Co canto litrirgico no séc. IV até ao incremento da
salmodia responsarial (solista e ccro, corno na ladainha) e antifonal (dois semicoros),
cujas relações com o paralelismo galaico-português já apontámos. A inovaçâo
dos tropos fora aliás precedida pela da sequência (textualmente pro sequentia, q:ule,
por abreviatura, refez e prestigiou a palavra prosø), adaptação de textos ao
melisma (neste caso, jubilus) da vogal final da palavra A,leluia, que se sustentava
originariamente sobre sucgssivas notas musicais.
Os Provençais foram depois os mestres e iniciadores da poesia europeia
moderna, sem os quais se não compreenderiam nem Dante nem Petrarca.
Os jograis occitânicos levaram a sua arte apuradíssima a todas as cortes da Europa.
Diversas notícias documentam as suas estadias na Península lbérica, e a corte
de Afonso X, o Sábio, foi um dos refrlgios dos trovadores dispersos pela matança
dos Albigenses. A moda de trovar à maneira provençal introduziu-se, pois, nas
cortes peninsulares, incluindo a corte portuguesa, onde já se manifestava sob
o reinado de Sancho I. Havia de resto entre as cortes de além-Pirenéus e o novo
reino do Ocidente da Península relações estreitas que facilitavam a influência
transpirenaica: o conde D. Henrique trouxe consigo numerosos senhores franceses;
são bem conhecidas as influências do clero, nomeadamente através das reformas
monacais de Cluny e Cister, que se relacionam com as origens francesas da dinastia
portuguesa e se estendem ao próprio ritual e à adopção da escrita carolíngia em
60 IIISTÓRIA DA LITERATUR,A. PORTUGUESA
substituição da anterior escrita visigótica; muitos portugueses frequentavam
a peregrinação a santa Maria de Rocamador, no sul da França, e muitos trova-
dores occitânicos vieram peregrinar a Santiago de Compostela; e diversas vagas
de emigração, como a provocada pelas lutas civis do tempo de D. Afonso Il,
levaram senhores portugueses a França, destacando-se entre g¡as, pelas influências
literárias bem conhecidas que trouxe, a que acompanhou na sua juventude o
futuro Afonso III. Os casamentos de D. Afonso Henriques, D. Sancho I e
D. Afonso III com princesas criadas em cortes cuitural e até politicamente ligadas
com a Provença, respectivamente Sabóia, Aragão (unida com a Catalunha)
e Bolonha, devem também ter facilitado a influência occitânica. No entanto
o encontro mais produtivo da joglaria galaica com o trovar occitânico deve ter-se
produzido na corte castelhana.
Quando a poesia provençal, através dos seus trovadores e
jograis ou dos seus imitadores peninsulares, chegou à Península,
existia já aqui (é difícil duvidar) uma escola local de poesia jogralesca,
provavelmente relacionada com as carias moçárabes' aquela mesma
que recolheu, adaptou e divulgou nas vilas e nas cortes a poesia
folclórica a que pertencem as cantigas de amigo. O Galego, falado
aquém e além do Douro, era a língua materna dos jograis tradicionais.
A Galiza além-Douro escapou ao domínio mllçulmano e teve um
desenvolvimentg cultltral precoce relacionado com diversos factores,
entre os quais as peregrinações a Santiago de Compostela' em que
participavam romeiros de toda a Europa. O mais antigo jogral
galego de que há notícia pertenceu à corte de Afonso VI, avô do
primeiro rei de Portugal.
É inegável nas cantigas de amor galego-portuguesas uma avassa-
ladora influência provençal. A própria língua dos poetas ficou embutida
de provençalismos, como s¿n, senso (em vez da palavra indígena sesa,
clonde provém o actual siso); clr (em vez de clraçln); prez (em vez
dc preço); gréu (em vez de grave, com o sentido de pesado, difícil).
Com estas e muitas outras palavras e com diversas fólmulas também
de origem provençal, forjaram os poetas galego-portugueses um for-
mulário de expressões que se distingue da língua dos cantares de
amigo de inspiração folclórica, embora também nestes' e logo na fase
mais antiga que o Cancioneiro cortês documenta, se verifiquem ves-
tígios da influência estrangeira.
1.' ÉPOCA-DAS OR,IGENS "å. FEBNÃO LOPES 61
,Quanto aos temas, elaboraram os Provençais o ideal do amor
cortês, muito diferente do idílio rudimentar nas margens dos rios
ou à beira das fontes que os cantares de amigo nos deixam entrever.
Não se trata agora de uma experiência sentimental a dois, mas de
uma aspiração, sem correspondência, a um objecto inatinglvel, de
um estado de tensão que, para permanecer, nunca pode chegar ao
fim do.desejo. Manter este estado de tensão parece ser o ideal do
verdadeiro amador e do verdadeiro poeta, como se o movesse o amor
do amor, mais do que o amor a uma mulher. E não só a esta dirigem
os poetas as suas implorações, queixas ou graças, mas ao próprio
Amor personificado, figura de retórica muito comum entre os trova-
dores provençais e por eles transmitida aos galego-portugueses.
O Amor reina, até, numa Vila ideal, com as suas cortes, os seus
foros e leis.
O trovador imaginava a dama como um suserano a quem
<servial numa atitude submissa de vassalo, confiando o seu destino
ao <rbon senl da <senhorD. <rJe soy votre homme liger>, diz em língua
francesa e em termos de vassalagem feudal um poeta português.
Todo um código de obrigações preceituava o <serviçor do amador,
que, por exemplo, devia guardar segredo sobre a identidade da dama,
coibindo toda a expansão prlblica da paixão (o autodomínio, ou
(mesuraD, era a sua qualidade suprema), e que não podia ausentar-se
sem sua autoúzação. O apaixonado deveria passar provações e fases
comparáveis aos ritos de iniciação nos graus da cavalaria, antes de
chegar a drudo, amante espiritual da midons, ou dama. Mesmo em
algumas cantigas de amigo as damas manifestam o seu desagrado
por os amadores respectivos terem infringido estas ou outras regras
do <serviço>.
A este ideal de amor corresponde certo tipo idealizado de
mulher, que atingiu mais tarde a máxima depuração na Beattiz
de Dante ou na Laura de Petrarca: os cabelos de oiro, o sereno e
luminoso olhar,a mansidão e a dignidade do gesto, o riso subtil
e discreto. As cantigas de amor oferecem-nos uma cópia simplificada
e fruste do retrato original pintado pelos trovadores provençais, refe-
rindo-se ao <rcatar> (olhar) da <senhort, ao seu (prezù ou <bon riirl, etc.
62 IIISTÓRIA DA I,ITER,ATUR,A PORTUGUESA
É, também com os Provençais que os poetas dos Cancioneiros
peninsulares aprendem a objectivar paisagens. A descrição das flores
de Maio, da brisa excitante da Primavera, do cantar malicioso dos
rouxinóis são motivos obrigatórios dessa lírica cortês. D. Dinis,
discípulo confesso dos occitânicos, mas, como vimoji, tambérn fiel às
tradições nacionais, critica rnesmo o conr¡encionalismo deste quadro
primaveril obrigatório do amor provençal. Teve entre os Provençais
grande voga o tema do cavaleiro que, seguindo por um caminho
florido, encontra e requesta de arnores uma pastora. Este género,
denominado entre nós pastorela, é cultivado por alguns poetas mais
cultos dos Cancioneiros com urna nitidez descritiva que nos deixa
muito longe do ambiente paisagístico sugestivo mas vago das canttgas
de amigo. (Veja-se a célebre pastorela: <Pelo souto do Crexente>
de João Airas de Santiago.) De um para outro caso difere muito a
relação do homem com o meio. Na pastorela desfruta-se o espectáculo
corno amador das coisas belas, referidas segundo urna ordem retórica
precisa, como urn cenário, ao passo que nas canttgas de amigo de origem
folclórica há antes, como vimos, e pata usar termos'conhecidos, uma
participação animista entre sentimentos e coisas.
Resultado da influência provençal é ainda o esboço de análise
introspectiva que se encontra em alguns dos trovadores peninsulares.
O sentimento dos contrastes do amor - do querer e não-querer, datimidez e da violência impulsiva do desejo, clo doce-amargo da saudade
- são temas muito correntes entre os Provençais, que os transmi-tiriam a Petrarca, em quem por sua vez irã.o aprendê-los Bernardirn
Ribeiro e Camões. Os poetas dos Cancioneiros galego-portugueses
não os desconhecem, mas repetem-nos um pouco como fórmulas
decoradas e reduzem-nos quase sempre a breves esquemas verbais
exprimindo unidade na contradiçã0, como prl-zer-pesar, víver-n'tlrrer,
bem-mal.
tsasta um breve confronto para revelar que as qualidades
características da poesia trovadoresca provençal se degradam ao
serem adaptadas à língua e ao estilo dos trovadores peninsulares.
A nitidez descritiva, a introspecçã0, o brilho e a justeza das ana-
logias e imagens, tudo isto se embacia nas páginas dos nossos
L.' ÉPOOA,-DA"S ORTIG,ENS .A. FERNÃO LOPE'S 63
Cancioneiros. As imagens quase aqui não existem, até ao ponto
de bTilhar pela singularidade um poeta que diz ser a sua dama como
um rubi entre as pedras: o retrato da darna é extremarnente vago
e convencional; só numa ou noutra pastorela se encontram alusões
descritivas ao mundo das plantas e aves; a análise dos sentimentos
estereotipa-se. Por outro lado, a poesia occitânica caracteriza-se por
uina grande variedade de temas, mas a monotonia domina o conjunto
dos cantares de amor recolhidos nos Cancioneiros peninsulares, excep-
tuando um ou outro poeta, como Airas Nunes, que descreve a.
Primavera, que nota o ccntraste entre a constância dos sentimentos
e a mudança das estações, on como João Garcia de Guilhade, que se
arrna de ironia no jogo do arnor.
Mas a diferença entre o lirismo provençal e o dos Cancio-
neiros peninsulares revela-se principalrnente na estrutura fo¡mal.
O género provençal característico, a cansó (canção), não se aclimatou
na Península, a nã,o ser muíto rnais tarde, no sécnlo XVI, por influência
de Petrarca. As cantigas de arnor sem refrão nem repetições - conhe-cidas pelo nome de <cantigas de meestriaD por serem aquelas que
exigiam maior conhecimento da técnica provençal - constituemminoria. O refrão encontra-se, efectivamente, na maior parfe das
cantigas de amor, assim como o paralelisrno, ernbora atenuado e por
vezes mascaractro. O poeta galego-português só por excepção desenrola
um pensarnento corn princípio, meio e firn ao longo de urna série de
estrofes; prefere o processo de modular em cada estrofe, variando
palavras e rirnas, a rnesma ideia.
Esta construção dá à maior parte das cantigas de amor um
tom de lamento repetido e insistente, quando muito um desenvol-
vimento, por assim dizer, em espiral, espécie de compromisso entre
a retórica de progressão rectilínea dos provençais e a estética repeti-
tiva, circular, das bailtas. Há quem considere isto como o produto
de uma sensibilidade étnica, mas há que ter em conta que faltava
aos poetas peninsulares ocidentais (portugueses, galegos, Ieoneses
castelhanos) uma preparação artística que lhes permitisse acompanhar
o largo fôlego, a complexa estrutura e a eloquência discursiva da
cansó provençal. Nestas condições se vazaram os temas provençais,
64 EISTÓRI.A" DÂ IJTERATURJA PORTUGUESA
aliás imperfeitamente assimilados, dentro dos rnoldes praticados pela
escola jogralesca local, isto é, dentro do paralelismo e do refrão;
a isso ajustaram os seus dons, às vezes notáveis.
A influência provençal, portanto, ainda que flagrante, é assi-
milada por uma poesia peninsular, de origem folglórica, difundida
por jograis galegos, cujas formas originárias estão representadas nas
cantigas de amigo de estrutura paralelística mais sirnples.
O relativo primitivismo dos trovadores galego-portugueses que
assimilaram a influência provençal, adaptando-a às formas poéticas
já existentes no seu país, não deve confundir-se com a expressão
de uma pura espontaneidade. Pelo contrário, há exemplos de como
o paralelismo e o refrão constituem para muitos deles um quadro
formal artificiosamente aproveitado. É, tecit docurnentar em nume-
rosas cgmposições dos cancioneiros, sobretudo nas cantigas de arnor,
um exerclcio formalista, que dispõe de uma técnica ainda prirnitiva.
Numerosos poetas se dedicam a inventar sentidos novos com jogos
de ritmos e de palavras.
Contam-se entre estes processos formalistas os do tdobrer e
do <mordobrer (noutra leitura <mozdobreu). consistia o primeiro
em repetir uma palavra por cada estrofe, sempre nos mesm0s lugares
de estrofe e verso (por exemplo, no final do primeiro e do último verso),
jogando por vezes com os seus vários sentidos, o que transformará
em trocadilho um simpies processo repetitivo. Assim, um poeta
cgmemora a tomada de valença (Valência), repetindo este vocábulo,
ora para significar a cidade conquistada, seu valor ou importância,
ora para designar a valentia do rei conquistador. o mordobre só
difere do dobre por se não lazer com uma forma única, mas cOm
flexões da mesma palavra ou com formas etimologicamente afins.
Tal é o caso também do processo conhecido pelo nome de
<atá-fiindar (noutra leitura atehuda), aliás pouco vulgar entre os
provençais: cada estrofe termina no meio de uma frase, de modo
que o leitor tenha de procurar imediatamente o seu complemento
na estrofe seguinte, seguindo sem parar até a um remate de dois ou
três versos, onde finalmente o período se completa. Trata-se, afinal,
de uma utilização do encavalgamento ou <enjambement>, pelo qual
1." ÉPOCA-DAS ORTIGENS'A FERNÃO LOPE'S 65
as palavras indispensáveis ao sentido de um verso são atiradas para
o verso seguinte, com a particularidade de que os versos assim
ligados constituem, na <atá-fiindar, o termo e o começo de duas
estrofes consecutivas. Ao contrário do que poderia parecer à primeira
vista, geralmente não conduz a uma sequência ininterrupta do dis-
curso, porque cada estrofe exprime afinal o mesmo pensamento,
segundo o processo repetitivo tradicional. É um mero jogo rítmico
(não coincidência da pausa frásica com a pausa estrÓfica); espertina
a atenção do leitor, e cria nele um estado de expectativa que pode
ser utilizado para pôr em relevo a conclusão ou <fiinda>. o uso regular,
estrofe a estrofe, do verso branco (<palavra perdudar) é também consi-
derado, na Arte de Trovar do cancioneiro da Biblioteca Nacional,
como um artifício de mestria, por tornar ritmicamente menos nítida
apercepção d0 verso, apoiando-a apenas no isossilabismo (número
certo de sílabas). Todos estes processos, quebrando a coincidência
clas pausas sintácticas com as pausas versificatórias, criando uma
certa margem de imprevisibilidade e de indeterminação rítmica (e isto
numa altura em que o predomínio da transmissão oral sobre a escrita
ainda mais acentuava a importância do ritmo do verso) constituem, sem
dúvida, manifestações de uma mestria versificadora superior àquela
que era exigida pelos esquemas paralelísticos ou repetitivos mais fixos.
A análise destes e de outros processos formais permite-nos
acompanhar o trabalho laborioso de poetas, em rnuitos casos pro-
fissionais, como Pêro da Ponte, que ensaiam formas de expressão,
adaptando esquemas antigos e imitando modelos estranhos. o con-
junto dos cantares de amor ressente-se destes tenteios, deste esforço
dos poetas para ascenderem a uma expressão culta a partir de formas
primitivas. Daqui resulta uma forma por vezes inacabada, uma série
de tentativas malogradas, uma oscilação entre o primitivismo e o
preciosismo ingénuo que caracterizam no seu conjunto este género,
onde é difícil seleccionar urna obra-prima. iVlerecem todavia salien-
tar-se algumas realizações de D. Dinis, Pêro da Ponte, João Garcia
de Guilhade, Airas Nunes e alguns mais.
Entre os géneros occitânicos de que é possível encontrar corres-
pondência nos cancioneiros galaico-portugueses contam-se a past1rela,
5
r;{ì HISTÓRIA DA ü.ITERATURA PORTUGUESA
já rncncionada; a alba, despedida dos amados ao romper do dia
(csboço da célebre cena shakespeariana em Romeu e Julíeiø), cujo
melhor espécime entre nós se pode considerar a cantiga atrás referida
de Nuno Fernández Torneol; a canção de tear (chanson de toíIe),
de que podemos aproximar a encantadora cantiga de,Estêvão Coelho,
<Sedia la fremosa seu sirgo torcendor; o pranto à morte de um senhor
venerado; a despedida (congé) e o descordo (deseort), que pretende
traduzir um abalo emocional por várias rnudanças de estrutura estró-
fica, por uma sintaxe acidentada de hipérbatos ou por pretensas
inconsequências lógicas. De um modo geral, as correspondências
galaico-portuguesas a estes géneros caracterizam-se pela simplificação
já apontada, pelo recato da notação sensual, pela imaturidade das
suas tentativas doutrinais e por uma tendência para a expressão
parale!ística da subjectividade feminina, o que permite classificá-las,
por vezes (como com maior ou menor razã,o se tem feito a muitas),
entre as cantigas de amigo.
A' stitira - As cantigas de esctirnio e maldtzer bcupam grandeespaço nos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional
de Lisboa. Têm por assunto, na sua grande rnaioria, certos
aspectos particulares da vida de corte e especialmente da boémia
jogralesca.
A sua leitura revela-nos, além do resto, uma sociedade boémia
em que entravam jograis de corte, cantadeiras, soldadeiras (bailarinas),
fidalgos. O jogral e a sua companheira tinham um estatuto social de
rnarginais. Eram <<artistasr da boémia, e por isso mesmo permi-
tiam-seJhes liberdades de costumes e de fala vedadas no mundo
regularmente constituldo. Isso explica que os vícios mais lntimos,
as aventuras mais pícaras destes heróis truanescos surjam assoalhados
às escâncaras: as andanças e percalços de uma bailarina versátil,
os sapatos dourados de um fidalgo pretensioso, a voz de um cantor
enrouquecida pelos abusos do álcool, etc., não faltando rnesmo uma
abadessa elogiada ou satirizada por um segrel quanto à sua experiência
sexual. Mas estes marginais fraternizavam com fidalgos, clérigos
e até reis no mundo da boémia; vemo-los misturados nos rnesrnos
1.'ÉPOCA_DAS ORIGENS A FERNÃO LOPES 67
moxericos, usando a mesma linguagem, com grande abundância de
termos hoje considerados obscenos.
É, raro encontrarem-se nas cantigas de escárnio temas de alcance
geral. Mas, nos muitos casos anedóticos a que se referem, distin-
guem-se certos motivos frequentes, condicionados pelo ambiente.
Toda uma massa de composições espelha os problemas típicos da vida
jogralesca. Numerosas cantigas, por exemplo, ocupam-se da sovinice
dos ricos-homens, da miséria envergonhada dos infanções: à escassez
das classes nobres sã0, naturalmente, muito sensíveis os jograis que,
em paga do seu trabalho artístico, pedem roupas ou alimento. Outro
grupo de cantigas mostra-nos as disputas entre os jograis e os trova-
dores fidalgos: aqueles porque pretendiam ultrapassar a sua condição,
que era, pelo menos convencionalmente, de simples executantes musi-
cais, e se metiam também a compor versos; estes porque defendiam
a jerarquia, que limitava o papel do jogral a0 acompanhamento
instrumental e ao canto da composição já criada pelo trovador.
Patenteia-se nestes conflitos que o jogral era urn vilão, e o trovador,
na maior parte dos casos, um indivíduo da classe nobre. Não admira
por isso que também a ideologia da nobreza se exprima em nume-
rosas cantigas satíricas. O plebeu, nobilitado ou não, aparece muitas
vezes coberto de ridículo, nos seus trajos e na sua figura: esboça-se
aqui o tipo do <burguêsr, satirizado já pela comédia clássica, e mais
tarde pela commedia dell'arte, por Molière (Le Bourgeois Gentilhomme)
e pelos românticos. Mas não é menos frequente a troça à pelintrice
da pequena nobreza, de um modo que preludia a farsa vicentina sobre
os escucleiros esfomeados.
Como repertório pícaro ou pitoresco de costumes, testemunho
voluntário ou involuntário de uma ideologia, a sátira trovadoresca
completa os lívros das linhagens,. em muitos casos o gosto, por assim
dizer, naturalista, da anedota vivida ou testemunhada prevalece
mesmo sobre a intenção trocista. E assim perpassam, já só por si
interessantes, o velho que desesperadamente se pinta e enroupa muito
caro; a rapariga que a mãe antes ensina a saracotear-se do que a coseí
e fiar; um cavalo faminto abandonado, como mais tarde o de Tolentino,
mas que se refaz com erva fresca depois das chuvas; gabarolices de
ôrì HISTÓRIA DA,I,TTERATURA PORTUGUESA
falsos romeiros à Terra Santa; fracassos imprevistos por um astrólogo;
urn juiz que se deixa peitar; agoiros e superstições; incidentes variados
de viagem e hospitalidade; uma ex-soldadeira queixando-se, no
confessionário, não dos antigos pecados, mas da velhice; raparigas
casadas (o poeta considera que vendidas) à força, oa impunemente
raptadas; abadessas cheias de condescendências; etc. Estas pequenas
iluminuras satíricas de costumes são apresentadas com uma cordia-
líssima satisfação pelos simples factos, ou com uma desfaçatez, um
amoralismo, uma reai ou imaginária auto-ridicularizaçã,o pelos seus
protagonistas que contrastam surpreendentemente com a pudicícia
moralizante de quase toda a posterior literatura portuguesa.
Contam-se pelos dedos as composições em que os poetas cul-
tivaram a sátira como género de interesse geral, versando temas
morais ou sociais, à imitação do r<sirventêsr moral occitânico: tal é
o caso de dois clérigos - ambos muito conhecedores dos rnodelosprovençais - Martim Moxa e Airas Nunes. O primeiro 
justifica uma
visão pessimista apocalíptica do mundo com os desacatos da honra
e autoridade, a venalidade dos validos régios, o ernpobrecimento
geral, a omnipotência da lisonja e o desprezo pela clerezia, ou cultura,
chegando a abonar a imoralidade própria com a alheia. O segundo
apresenta-se procurando de porta em porta e sem resultado uma
Verdade que não existe em parte alguma, nem nos conventos e mos-
teiros, nem na cidade santa de Santiago de Compostela. Pêro da Ponte
dá-nos também alguns dos melhores testemunhos do tempo, quer
através dos seus prantos, de que a sátira não está ausente, quer pela
crítica às arbitrariedades exercidas sobre certos concelhos.
Como arma política, instrunento de acção sobre a opinião
pública, também a sátira foi entre nós pouco brandida. Sobressaem,
no entanto, as canções compostas por Afonso X, o Sábio, acerca dos
fidalgos que desertaram numa campanha contra Granada; e as com-
posições em que se profligam os alcaides dos castelos que atraiçoaram

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