Prévia do material em texto
FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÃO “A Faculdade Católica Paulista tem por missão exercer uma ação integrada de suas atividades educacionais, visando à geração, sistematização e disseminação do conhecimento, para formar profissionais empreendedores que promovam a transformação e o desenvolvimento social, econômico e cultural da comunidade em que está inserida. Missão da Faculdade Católica Paulista Av. Cristo Rei, 305 - Banzato, CEP 17515-200 Marília - São Paulo. www.uca.edu.br Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. Todos os gráficos, tabelas e elementos são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência, sendo de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Diretor Geral | Valdir Carrenho Junior Professoras | Vania Marques Cardoso Licia Maria Pedreira de Almeida Sumário UNIDADE 1 – HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO – CAMINHOS CRUZADOS INTRODUÇÃO .................................................................7 1. Filosofia da Educação no contexto histórico ..................7 2. Períodos históricos e pensamento educacional ............10 2.1. Antiguidade .............................................................10 2.1.1. A educação grega .................................................12 2.2. Medievalidade .........................................................14 2.2.1. Renascimento ........................................................18 2.3. Modernidade ...........................................................20 3. Processos históricos contemporâneos ..........................23 4. A educação contemporânea e as várias leituras filosóficas .................................................................26 CONCLUSÃO ................................................................33 ELEMENTOS COMPLEMENTARES ....................................33 REFERÊNCIAS .................................................................34 UNIDADE 2 – EDUCAÇÃO NO BRASIL: ENTRE HISTÓRIA E FILOSOFIA INTRODUÇÃO ...............................................................37 1. Influências filosóficas da formação da educação brasileira na modernidade .........................................37 2. Educação no Brasil Colonial ......................................41 3. Educação no Brasil Monárquico .................................45 4. Educação no Brasil Contemporâneo ..........................49 5. Limites e possibilidades da educação brasileira contemporânea ........................................................52 CONCLUSÃO ................................................................55 ELEMENTOS COMPLEMENTARES ....................................56 REFERÊNCIAS .................................................................57 UNIDADE 3 – EDUCAÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: FATORES HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS COMO LIMITES E POSSIBILIDADES INTRODUÇÃO ...............................................................60 1. Influências filosóficas na educação brasileira contemporânea ........................................................60 2. Reformas da educação contemporânea brasileira .......63 2.1. Reforma Caetano de Campos ...................................64 2.2. Reforma Sampaio Dória............................................65 2.3. Reforma Lourenço Filho – Ceará ...............................66 2.4. Reforma Anísio Teixeira – Bahia .................................67 2.5. Reforma Fernando de Azevedo ..................................68 3. Educação no Estado Novo e democratização .............69 4. Influências internacionais nas políticas públicas educacionais entre o golpe militar de 1964 e o processo de redemocratização do Brasil .....................73 5. Limites e possibilidades da educação brasileira contemporânea ........................................................78 CONCLUSÃO ................................................................80 ELEMENTOS COMPLEMENTARES ....................................81 REFERÊNCIAS .................................................................82 UNIDADE 4 – EDUCAÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: TEMAS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS INTRODUÇÃO ...............................................................86 1. Currículo ..................................................................86 2. Prática pedagógica ...................................................90 3. Papel da história e da filosofia na identidade docente ..93 CONCLUSÃO ................................................................97 ELEMENTOS COMPLEMENTARES ....................................97 REFERÊNCIAS .................................................................98 Unidade 1 Objetivos de aprendizagem da unidade • Conceituar filosofia da educação, compreendendo-a na relação com o contexto histórico • Destacar os marcos sociais, culturais e econômicos do pensamento educacional nos diferentes períodos históricos • Apontar as principais mudanças no cenário social da contemporaneidade, destacando seus efeitos na educação e na instituição escolar • Distinguir correntes do pensamento filosófico educacional a partir dos autores do século XX e XXI, analisando-as como elemento de reflexão sobre a realidade brasileira Professora Mestre Vania Marques Cardoso HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO – CAMINHOS CRUZADOS História e filosofia da educação – caminhos cruzados 7 Unidade 1 INTRODUÇÃO Olá! Seja bem-vindo(a) aos estudos desta unidade. Nossa proposta é trabalhar assuntos de relevância para a compreensão dos fundamentos históricos e filosóficos da educação que materializam a realidade educacional e as práticas docentes na escola contemporânea brasileira. O primeiro tema, “Filosofia da educação no contexto histórico”, objetiva conceituar filosofia da educação, compreendendo-a na relação com o contexto histórico. O segundo tem foco nos “Períodos históricos e pensamento educacional” e pretende analisar o percurso da educação desde a antiguidade, de modo a destacar os marcos sociais, culturais e econômicos do pensamento educacional nos diferentes períodos históricos para compreender o percurso que resultou na educação contemporânea. “Processos históricos contemporâneos” representa um terceiro tema que vai permitir assinalar as principais mudanças no cenário social da contemporaneidade, destacando seus efeitos na educação e na instituição escolar. Finalmente, mas não menos importante, com o tema “A educação contemporânea e as várias leituras filosóficas” o aluno poderá desvendar a complexidade da sociedade contemporânea, situando as questões educacionais no bojo de suas contradições, apontando reflexões possíveis sobre o momento social em curso. Pronto(a) para começar? Então, boa leitura e bons estudos! 1. FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NO CONTEXTO HISTÓRICO Neste tópico vamos abordar a filosofia da educação no contexto histórico. Entretanto, antes de mergulharmos no assunto, é importante comentar rapidamente a respeito do cruzamento que existe entre os fundamentos históricos e filosóficos e as implicações com a educação. O ser humano se distingue pela memória, registro e historicidade no exercício da dinâmica social de apreender e transformar valores e relações ao longo do tempo e é movido pelo questionamento sobre seu destino e sua origem (LUCKESI, 2011). Numa relação entre o fatual, no espaço e no tempo, e a reflexão sobre os conceitos que surgem do real, a filosofia fez um caminho cruzado com a história, construída de forma dinâmica e ininterrupta: Assim como é difícil pensar o meramente factual sem conceito, porque pensá-lo significa sempre já concebê-lo, tampouco é possível pensar o mais puro dos conceitos sem alguma referência à facticidade [...] Se a verdade tem, de fato, um núcleo temporal, então o conteúdo histórico torna-se, em sua plenitude, um momento integral dessa verdade [...].(ADORNO, 2003, p. 26). Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 8 A filosofia sustenta ou rejeita concepções educacionais Fonte: Pixabay. Os fundamentos históricos e filosóficos assim entrecruzados travam com a educação o desvendar de possibilidades contidas no seu conceito entre educare (amamentar, criar, alimentar) e educere (conduzir para fora, fazer sair, modificar), de modo a evidenciar uma contradição entre dirigir e apoiar, diante das perplexidades das dimensões objetivas e representações que se influenciam mutuamente no campo educacional. [...] certa objetividade do contexto histórico não é de todo negada [...], ela não pode ser alcançada pelo pensamento que, inevitavelmente, está sempre imerso em uma cultura. Assim como não há uma plataforma supracultural, um ‘gancho celeste’ a partir do qual se possa sair da própria cultura para contemplar o mundo ‘lá fora’, não pode haver um estado mental cujo conteúdo pudesse ser o ‘espelho do mundo’. A sua representação só pode ser textual, cultural etc. (MORAES, 2003, p. 163). A filosofia é entendida como um corpo de conhecimento baseado na busca do ser humano por compreender o seu mundo e dar sentido a ele (LUCKESI, 2011). É uma área separada da educação, mas, ao mesmo tempo, justifica os pressupostos éticos e epistemológicos dela e sustenta ou rejeita as concepções educacionais em torno da produção do pensamento social em cada período histórico. Assim, mesmo que as reflexões filosóficas não representem o objeto ou o tema da educação e seus agentes, elas vão se penetrando na formação cultural da sociedade, nos ideais educacionais, nas políticas públicas para a educação e nas práticas sociais efetivas que compõem o tecido educacional. O conhecimento que a filosofia constrói sempre legitima e contesta a ordem historicamente estabelecida. “Filosofia da Educação é o exercício de um pensar sistemático sobre a educação, ou seja, de um pensar a educação, procurando entendê-la na sua integridade fenomenal. Pressuponho, pois, que se possa pensar a educação [...]”. Fonte: SEVERINO (2002, p. 269). História e filosofia da educação – caminhos cruzados 9 Unidade 1 Sem os fundamentos históricos, a realidade educativa não pode ser compreendida. Sem holofote no rememorar o passado se escurecem e obscurecem os meandros da interpretação da ação transformadora do homem no tempo, no espaço e nas condições objetivas e subjetivas nas quais experimenta o mundo. Não para obter respostas e explicações definitivas, na medida em que permite várias interpretações, mas para, como defende Benjamin (1985), negar uma marcha sucessiva ao progresso que enquadre os mais diferentes eventos históricos num continuum, vendo a história como devir que contém o passado de conceitos para lê-los à luz do presente, aproximá-los e distanciá-los, colocando quem a olha como se fossem “adivinhos” (BENJAMIN, 1985, p. 232) que consultavam o tempo e os astros para refletir sobre suas indicações de certa distância. De acordo com o dicionário Léxico.pt ([s.d.]), o termo devir significa “acabar por vir a ser; modificar-se ou transfigurar-se; dar-se, ocorrer, verificar-se ou acontecer”. No contexto da Filosofia, é identificado como “designação da passagem de uma condição para outra; movimento de alteração ou transformação contínua ou frequente.”. Conforme o Dicionário Online de Português ([s.d.]), a palavra, originada do latim devenire, significa o “processo de mudanças efetivas pelas quais todo ser passa; movimento permanente que atua como regra, sendo capaz de criar, transformar e modificar tudo o que existe; essa própria mudança.”. Fonte: Elaborado pela autora. Dessa forma, a história situa a educação nas profundezas do tempo/espaço, revelando-a em seu papel nos diferentes contextos de materialização educacional dos princípios filosóficos que resultam da própria sociedade e das relações sociais, fundamentam caminhos a partir de como situa o homem num mundo interpretável sobre o qual a educação se realiza (LUCKESI, 2011) e como instância de busca de avanço para o humano. Ao longo dos períodos históricos da educação foram se dando encontros e desencontros entre a perspectiva histórica e a filosófica (PAVIANI, 2006). A organização social absorveu a educação em seu tecido, uma vestimenta indispensável à própria diferenciação humana, na capacidade de pensar e conhecer, instância do próprio ato de conviver socialmente, e a organização educacional, da escola e da formação cultural expressa tanto a sociedade historicamente construída como o pensamento filosófico que as sustentam. “O educar e o filosofar identificam-se na medida em que ambos se esclarecem, se autojustificam, pensam o próprio pensamento e a própria ação.” Fonte: PAVIANI (2006, p. 20). Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 10 2. PERÍODOS HISTÓRICOS E PENSAMENTO EDUCACIONAL Considerando a educação como parte da sociedade e, portanto, presente desde os primórdios do surgimento da espécie humana, neste tópico propomos um recorte para analisar os períodos históricos, os quais partem da antiguidade como marco da filosofia e da história da educação que deu origem a um conjunto de transformações que desembocaram na educação contemporânea. Serão consideradas a Antiguidade, a Medievalidade, a Modernidade e a Contemporaneidade. 2.1. Antiguidade A Antiguidade foi um período histórico no qual a filosofia despontou como reflexão sobre o cotidiano no mundo antigo a partir de questões sobre os motivos da existência e da essência humana, buscando justificativas para os dilemas da humanidade. Tais justificativas iam além das explicações místicas. Esse momento trouxe também o pensar sobre o conhecimento e sua produção, impulsionando debates, conceptualizações e práticas educativas. Assim, foram surgindo inquietações educacionais: o que ensinar? para que ensinar? qual é a melhor forma de ensinar? (ARANHA, 2006). Na educação dos povos antigos, como podemos ver resumidamente no quadro a seguir, a educação foi organizada de diferentes formas. Confira: Organização da educação no Oriente e no Ocidente ORIENTE POVO ORGANIZAÇÃO EDUCACIONAL EGÍPCIOS • Funcionou em templos e casas; turmas de cerca de 20 alunos • Ensinava com predomínio da memorização • Usava castigo • Formava em separado escribas, funcionários administrativos e legais, médicos, engenhei- ros; arquitetos • Tinha conteúdos práticos • Fazia estudos de geometria botânica, zoologia, mineralogia e geografia BABILÔNIOS • Fazia estudos científicos mesclados com magia e astrologia • Realizava estudos de escrita cuneiforme para escribas, voltados para a preservação da língua • Utilizava bibliotecas HINDUS • Fundamentava-se em livros sagrados Vedas à Rig-Veda (terceiro milênio a.C.) e Upa- nishads (entre 1500 e 500 a.C.) • Privilegiava brâmanes • Oferecia aos brâmanes tutores que revelam texto sagrado • Oferecia educação elementar para outras castas, exceção dos sudras e dos párias • Incorporou influência budista de Sidarta (século VI a.C.) CHINESES • Utilizava livros canônicos e clássicos - I Ching (Livro das Mutações) terceiro milênio a.C. • Realizava educação conceitual para os sábios com base em Lao Tsé e Confúcio (século VI a.C.) • Utilizava princípios e na aplicação prática e moral na formação dos jovens • Tinha mandarins como educadores • Realizava ensino superior para altos funcionários do imperador e administrativos com sis- tema de seleção rigoroso História e filosofia da educação – caminhos cruzados 11 Unidade 1 HEBRAICOS • Centrava-se numa nova ética de valorização individual e interioridade moral • Valorizava a educação para o trabalho manual como prevenção do pecado • Trabalhava com memorização de textos e palavras e cópias à mão com precisão • Fazia leitura em voz alta • Utilizava provérbios e parábolas partilhando perguntas e respostas • Realizava estudos de aritmética OCIDENTE POVOORGANIZAÇÃO EDUCACIONAL GREGOS • Foi o berço da educação ocidental • Visava a formar um elevado tipo de homem a partir de narrativas heroicas • Valorizava as virtudes de coragem, prudência e astúcia • Incluía atenienses, tebanos e espartanos • Fazia leitura coletiva de versos e prática de oratória ROMANOS • Progrediu de um sistema de educação informal e familiar, no início da república, para ou- tro baseado em aulas pagas durante o império • Fundamentava o sistema de ensino no sistema grego • Tinha professores particulares gregos (escravos ou libertos) • Dava ênfase à formação moral e do guerreiro • Utilizava como texto-base da educação as doze tábuas (451 a.C.) feitas em bronze e expos- tas no fórum • Exaltava tradição (o espírito, os costumes, a disciplina dos pais) e representava código civil com direitos e deveres Fonte: Elaborado pela autora. No Oriente e no Ocidente, a educação, especialmente a escolar, nasceu sob a égide de privilégio de alguns; não atingia o conjunto da população, mesmo porque aquelas sociedades eram configuradas como escravistas, demarcando a diferença de condições de vida e acesso à cultura. A educação grega e a romana foram as que mais influenciaram as sociedades ocidentais, e mesmo depois de superadas pelo cristianismo acabaram por ser absorvidas entre matrizes culturais que resultaram em uma concepção hegemônica que ainda configura a identidade cultural do Ocidente. Entretanto, o Egito foi reconhecido, pelos filósofos gregos e romanos, como referencial educacional vindo do Oriente Próximo, e muitos dos seus elementos foram incorporados nos sistemas ocidentais como a ênfase na disciplina de estudo: Andar à toa, cair na gandaia e vadiar pelas ruas eram motivos recorrentes de castigos, enquanto a destreza da mão na escrita era sinal de maturidade intelectual. Era essa a tradição dos ensinamentos egípcios e que continuou após a conquista grega. (BITTAR, 2009, p. 17). Da educação egípcia, retiveram-se, assim, o conteúdo e a preocupação com o objetivo de ensino e moralidade, matrizes que se perpetuaram na escola ocidental até a contemporaneidade. Outro elemento ainda presente da educação egípcia é a formação política perpassada pela retórica, como oratória capaz de convencer, e a formação do escriba como aquele que registra as mensagens públicas; os trabalhos escolares ainda têm componentes retóricos e de apresentação pública com complexidade crescente na trajetória dos estudantes na escola ocidental do ensino básico ao superior. Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 12 Retórica, do grego rhetorike, significa a arte do bem falar, se comunicar, transmitir ideias com convicção. Corresponde à formulação de um pensamento claro do orador, elemento da filosofia. Foi uma arte ensinada nas universidades da Idade Média, constituindo- se importante até o século XIX. Tornou-se ciência e prática, ocupando-se, inicialmente da oratória, se ampliou para os textos escritos e compôs a disciplina estilística. Portanto, a oratória, uso de normas de comunicação que permitem ao orador uma boa comunicação, é um meio pelo qual se manifesta a retórica. Fonte: Elaborado pela autora. 2.1.1. A educação grega A educação da Grécia antiga foi marcada, inicialmente, pela ação dos sofistas, originários da Sicília. Estes assumiam uma relação de tutoria e aulas pelo mundo grego com foco nos valores e na argumentação valorativa, entre o valor e o seu contravalor, conceito com aderência social e individual relativizado e argumentação discursiva que foi ganhando um contorno de retórica atribuída a Górgias (483-411 a.C.) com uso de metáforas, dicção poética e adornos estilísticos. No século V nasceu a figura do pedagogo, na Grécia, um escravo com conhecimento e cuja tarefa era conduzir a criança para a vida adulta. Ao longo do tempo, o conceito de pedagogo foi ampliado para definir toda teoria a respeito da educação (ARANHA, 2006). Os gregos esboçaram as primeiras linhas de uma intervenção consciente da ação pedagógica e assim influenciaram por séculos a cultura ocidental. O pensamento de Sócrates (469-399 a.C.), nascido em Atenas, questionou os sofistas, defendendo valores absolutos, não relativizáveis, igualando os positivos e os negativos. Valorizou o diálogo como elemento fundamental para alcançar o autoconhecimento, reconhecendo os seus limites; a própria ignorância era para ele tarefa crucial: a frase “só sei que nada sei”, que lhe é atribuída, é um marco do seu pensamento. O método de conhecer de Sócrates, a maiêutica, centrado no dissenso, no espectro das multiplicidades destaca a via dialógica como promotora do aprender (KONDER, 2006). Sócrates foi condenado à morte acusado de traição, pois durante a guerra criticara o regime democrático de Crítias. A maiêutica (maieutike - “arte de partejar”) é um método desenvolvido por Sócrates que busca a elucidação do conhecimento a partir da reflexão, num jogo de perguntas e respostas com perspicaz caráter que estimulam o conhecimento latente da mente humana, como num fazer nascer o conhecimento, retirar do Homem a verdade que está dentro dele, para atingir “verdades universais”. Uma primeira etapa envolve perguntas simples que pretendem contradizer a forma de pensar do interlocutor, revelando valores sociais que escondem o conhecimento; e a segunda é formada por respostas capazes de gerar novos conhecimentos. Assim, inicialmente, leva-se o interlocutor a duvidar do que julgava conhecer para, posteriormente, permitir a reflexão sobre a validade do conhecimento anterior. Dessa forma, os conceitos predefinidos do interlocutor são desmontados para que sejam “paridas” noções mais complexas sobre o objeto do conhecimento. Fonte: Elaborado pela autora. História e filosofia da educação – caminhos cruzados 13 Unidade 1 Platão (428-348 a.C.) descreveu a obra de Sócrates em textos, fundamentando conceitos sobre conhecimento, política e sociedade. No campo educacional defendeu a abundância do conhecimento, em que todos pudessem manifestar opiniões no alcance da transcendência do conhecer, numa valorização dos sábios como orientadores da sociedade para o domínio dos sentidos. Platão fundou uma escola, “A academia”, em 385 a.C., da qual tornou-se professor. Quer saber quem foi Crítias? Então, anote isso: “Político grego nascido em Atenas, líder dos Trinta Tiranos que governaram a cidade-estado durante o século V a.C. (404-403 a.C.), depois da Guerra do Peloponeso, entrando para história como um dos seus últimos vilões. De uma família aristocrática, foi educado na filosofia socrática e os sofistas e era o tio-avô de Platão. [...] Ele era antidemocrata e pró-Esparta [...]. Seu governo, apesar de curto, foi extremamente violento e ditatorial, com execuções em massa, como a ordenada contra os 300 homens em Eleusis. Ele defendia o uso de mentiras brancas: uma história inventada sobre o passado, mas com uma moral que deveria deixar marcas no presente. [...] Por ele ser tão odiado em Atenas, Sócrates também foi perseguido somente porque o filósofo tinha sido seu professor. Embora tenha sido um verdadeiro tirano, era muito inteligente e culturalmente de bom nível, escrevendo prosas, tragédias e poesia lírica.”. Fonte: UFCG ([s.d.]). Em A República descreveu a sua famosa “Alegoria da Caverna” ou “Mito da caverna”, na qual discutiu o conhecimento como elevação do espírito em direção à luz, um caminho para a descoberta da verdade, do mundo das ideias, para vislumbrar além do mundo conhecido pela sensibilidade aparente, percebendo o belo. Aristóteles (384-322 a.C.), apesar de ter estudado por 20 anos na Academia de Platão, não seguiu toda sua teoria e fundou em 335 a.C. o seu próprio Liceu. Esse autor foi o primeiro a conceber a escola como obrigação do Estado e direito de todos. Define o humano como dotado de alma (psique), que o torna um ser animado que julga pelo discurso e pela sensação, ao passo que os seres inertes são inanimados. Transcendersignifica elevar-se acima do vulgar, ir além de, ultrapassar um limite físico ou simbólico de algo. Representa a capacidade humana de transpor barreiras, se tornando superior às circunstâncias. Termo utilizado inicialmente para a referir a Deus na sua relação com o mundo, colocando-o acima dos limites, como criador com consciência externa ao mundo. Na filosofia moderna, transcendente liga-se àquilo que interfere nas possibilidades do conhecimento sobre o real. Algo transcende quando tem um papel no como pensar e experimentar a realidade, superando a mera impressão sobre os objetos. Fonte: Elaborado pela autora. Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 14 Ao estudar o raciocínio do ponto de vista formal, Aristóteles estabeleceu princípios de validade lógica que fundamentam o pensamento, apontando que os contrários são possibilidades de uma mesma forma; por exemplo, o contrário do mal pode ser o bem e o próprio mal. Também definiu a organização do pensamento com base em premissas que permitam conclusões, especialmente com o silogismo. A Academia de Platão Fonte: POMBO ([s.d.]). Silogismo é um termo filosófico com o qual Aristóteles designou a argumentação lógica perfeita, o argumento típico dedutivo, composto por duas premissas, juízos antecedentes, que geram uma conclusão, resultado consequente. Por exemplo: Todo animal é um ser vivo. O gato é um animal. Logo, o gato é um ser vivo. Para que um silogismo seja válido, sua estrutura precisa ter regras que permitam a sua confirmação: contém três termos; a conclusão é menos extensa que as premissas; a segunda premissa não entra na conclusão, de duas premissas negativas ou particulares nada se conclui; de duas afirmativas não pode haver conclusão negativa. Fonte: Elaborado pela autora. 2.2. Medievalidade O período medieval marcou a história da Europa, iniciando-se no século V, com a queda do Império Romano, resultante de um processo de declínio que se arrastava desde o século III com invasões bárbaras, crise econômica e disputas internas de poder. Era um cenário de colapso do sistema História e filosofia da educação – caminhos cruzados 15 Unidade 1 escravista que gerou decadência e estimulou um êxodo urbano e a criação de cenários de latifúndios em torno dos quais famílias viviam e trabalhavam, em regime de trabalho não escravo, mas sem propriedade da terra. Muitos latifundiários eram administradores, condes e chefes de província que vinham concentrando terras e se aliaram aos bárbaros para destruir a autoridade concentrada do Estado, já com dificuldade em se impor naquele vasto território descentralizado e baseado em poderes locais de tais senhores. Dessa forma, a invasão dos Hérulos em 476 acabou por estabelecer, de forma definitiva, essa nova configuração que a sociedade vinha ganhando. Mantiveram-se as instituições políticas, como o Senado e o Consulado, e o latim permaneceu língua oficial, mas a produção foi descentralizada, com divisão de terras em feudos independentes e designação de poder local para cada senhor. O cristianismo e a Igreja Católica, apostólica romana, fortalecida desde o século IV com a definição de seus dogmas (verdades inquestionáveis que a norteiam) em concílios e tornada religião oficial do Império, ganharam espaço político nesse momento de mudança. O domínio cristão se opôs ao intelectualismo do mundo grego, até mesmo escondendo as obras clássicas do acesso, permitidas apenas ao clero; a fé se tornou mais importante do que a razão, e os fundamentos filosóficos se desenvolveram em dois blocos: Patrística e a Escolástica (a primeira já vinha sendo trabalhada desde o século I no interior da instituição). A filosofia patrística, com a ampliação do poder católico em virtude da queda do Império, espelhou a educação e o sistema de ensino na Idade Média, restrito a uma minoria, com objetivos de inculcação dos preceitos religiosos, currículos fechados e escolas seletivas. Nesse momento tal filosofia voltou-se para a resignação aos princípios católicos, ressaltando a intuição e a revelação divina como forma de acesso ao conhecimento. Os objetivos educacionais fundamentados pela Patrística giravam em torno da formação religiosa, com ensino do latim para possibilitar o desenvolvimento de habilidades de interpretação dos textos religiosos, além de uma formação artística e transmissão de técnicas. As escolas europeias desse período eram divididas consoante o objetivo da formação. Assim, as episcopais formavam padres para exercício do sacerdócio; as monásticas, em regime de internato, formavam monges para a disciplina e a valorização do trabalho monástico em mosteiros afastados da cidade, que inicialmente visavam à formação de monges, mas depois também de leigos das classes proprietárias; e as palatinas, que recebiam os filhos dos nobres com currículo vasto (Gramática, Aritmética, Geometria, Astronomia, Dialética, Retórica, Filosofia) e de formação geral que exigia empenho dos estudantes. As ideias principais que fundamentaram a Patrística foram as de Santo Agostinho (354-430 a.C.), da África romanizada, cujo pensamento, considerado medieval em função das problemáticas tratadas e preocupações intelectuais que carregava, foi inspirado no idealismo de Platão. Seguidor do maniqueísmo –doutrina que prega a diferença radical entre Bem e Mal, Deus e o Diabo etc. –, difundiu a necessidade de compreender como elemento do crer, portanto a educação como sustentáculo da crença religiosa. Inspirado em Platão (427-347 a.C.), Agostinho considerava a filosofia uma disciplina religiosa e defendia a superioridade da alma humana, com supremacia do espírito sobre o corpo, a alma como criação divina de Deus capaz de promover uma liberdade verdadeira, aquela que se harmoniza com a vontade divina e afasta da escravidão, o pecado. Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 16 A concepção platônica de Agostinho apontava o mal como ausência do bem, cuja origem estava no livre-arbítrio concedido por Deus ao homem, único ser capaz de conhecer os sentidos presentes no humano e na natureza. Na defesa de uma ética fundada nos preceitos morais de fé, esperança e amor, o homem bom é o que aquele capaz de amar. A porção mais influente da obra de Aristóteles havia desaparecido das bibliotecas da Europa, embora tivesse sido preservada no Oriente Médio. Ela só começou a reaparecer no século XII, principalmente por meio de comentadores árabes, conquistando grande repercussão nos círculos intelectuais. O pensamento escolástico (da palavra latina schola = centro de encontro e de estudos) modificou a organização escolar e fomentou o surgimento das universidades a partir do século XII na França, Inglaterra e Itália, formadas por mestres e estudantes (universitas) que se dedicavam ao aprofundamento temático, pesquisa, reflexão e debate organizado em um ciclo de formação geral (Gramática, Retórica, Aritmética, Geometria, Filosofia, Lógica e Astronomia) e estudos em cursos específicos – os primeiros Medicina, Teologia e Direito. Esses espaços educativos promoviam discussão de temas polêmicos que resultaram em intervenção de reis, ordens religiosas e papas. A escolástica teve como principal expoente Tomás de Aquino (1225- 1274), monge dominicano e filósofo italiano canonizado como santo que estabeleceu novos fundamentos filosóficos para doutrina católica romana. Com ponto de partida nas ideias de realismo aristotélico, esse filósofo formulou o tomismo. Na filosofia tomista, grande parte do pensamento aristotélico serviu à finalidade de explicar a fé cristã, provar a existência de Deus por meio de cinco provas enumeradas: 1. a prova do ser movente que preconiza a existência de chegar a um primeiro ser que propulsiona o movimento, porque tudo aquilo que se move é movido por outro ser; 2. a prova da causa eficiente, na medida em que os efeitos têm sempre causas, teria que haver uma primeira causaeficiente responsável pela sucessão de efeitos; 3. a prova da necessidade e contingência, em que só o que existe pode deixar de existir, pois aquilo que não existe somente começa a existir em função de algo que já existia, portanto há um Deus que sempre existiu absolutamente necessário para a contingência de existir de outros; 4. a prova dos graus de perfeição, segundo a qual se as coisas podem ter “mais ou menos” perfeição em determinada característica, haverá a possibilidade de perfeição plena em Deus; e 5. a prova da finalidade do ser, em que todas as coisas, mesmo as brutas que não possuem inteligência própria, cumprem uma função natural que é dirigida para um objetivo, por isso Deus governa essa função. Essa perspectiva filosófica destacava Deus como causa primária de todos os acontecimentos. Por isso, considerava a metafísica como estudo de Deus, incorporando-a como método, numa associação entre as explicações pela razão e pela fé, formulando assim um novo pensamento filosófico cristão com base nos princípios esclarecidos no quadro a seguir. História e filosofia da educação – caminhos cruzados 17 Unidade 1 Princípios do tomismo PRINCÍPIO DEFINIÇÃO NÃO CONTRADIÇÃO Não existe nada que possa ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista SUBSTÂNCIA Na existência dos seres há a substância (a essência, propriamente dita, de uma coisa, sem a qual ela não seria aquilo que é) e o acidente (qualidade não essencial, acessória do ser) CAUSA EFICIENTE Os seres que captamos pelos sentidos são seres contingentes, não possuem, em si pró- prios, causa eficiente de suas existências FINALIDADE O ser existe em função de uma finalidade, de um objetivo, de uma razão de ser ATO E POTÊNCIA Todo ser possui duas dimensões: o ato e a potência. O ato representa a existência atual e a potência representa a aquilo que não se realizou, mas pode realizar-se. A passagem da potência para o ato explica mudança Fonte: Elaborado pela autora. “O termo metafísica se refere a um ramo da filosofia que estuda as leis da realidade e que dificilmente se contrasta empiricamente. A metafísica teve sua origem nas reflexões filosóficas mais antigas, mais precisamente na Grécia Antiga. [...] Durante muito tempo, foi uma disciplina de grande importância, mas com o surgimento de novas ciências e o desenvolvimento do método científico foi ficando para trás. No entanto, durante o século XX, grandes filósofos a impulsionaram novamente. Pode-se dizer que durante a Grécia Antiga, a metafísica era uma tendência comum nas posturas filosóficas existentes. Isto significa que a preocupação em relação à realidade era uma constante em qualquer tipo de questionamento. Assim, a apresentação filosófica socrática de Platão revela que a realidade existente é apenas a expressão de um mundo de ideias além dos sentidos. No entanto, Aristóteles foi o filósofo cuja metafísica transcendeu até a atualidade. Ele fez uma clara distinção entre essência, sustância e acidente para explicar a pluralidade da visível realidade.”. Fonte: CONCEITOS.COM ([s.d.]). No campo do conhecimento, a escolástica de Tomás de Aquino considerava o homem tábula rasa e o conhecer como advento dos sentidos que permite extrair a essência. A educação representava ação que transforma os potenciais humanos em conhecimento, mobilizando sua inteligência ativa sobre o mundo e passiva que transforma a experiência sensorial em conceitos formulados individualmente. Admite, portanto, que o estudante interfere no seu próprio desvendar de novos conhecimentos. O conhecimento envolve, para o autor, um processo de descoberta no qual a razão aplica princípios universais para, a partir daí, tirar as conclusões particulares. Já o ensino acontece por meio da transformação dos princípios universais para as conclusões particulares com ajuda de um intermediário, o professor, causa do conhecimento do aluno por meio do uso de sinais e outros instrumentos de auxílio, fazendo o aluno conhecer o que antes desconhecia. Portanto, Tomás de Aquino nos deixa uma filosofia que tem na abertura ao conhecimento e ao aluno a característica mais significativa (LAUAND, 2012). Tendo em vista que a teoria do conhecimento que o autor faz referência está fundamentada na vontade de cada um na direção do próprio aperfeiçoamento, à educação se deixa, ainda, o legado Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 18 de autodisciplina como marca do ensino cristão. Afirmando a ordem moral como independente da vontade divina, circunscrita na racionalidade humana, atribui transcendência ao homem, abrindo a possibilidade filosófica da existência dos santos, e constituiu um conjunto de argumentos para demonstrar e defender as revelações do cristianismo. O investimento nas cruzadas católicas para a expulsão dos mulçumanos do território da Europa associou-se a uma crise dos cânones religiosos, apontados pela sociedade como opostos às práticas religiosas comercializadas, como venda de relíquias sagradas por indulgências – em que ricos trocavam o perdão pelos pecados por doação de bens à igreja, fazendo com que este se tornasse um senhor feudal. A peste negra e o investimento estatal em derrotá-la; a monetarização da economia em substituição das trocas comerciais; a reorganização dos serviços centralizados nas metrópoles; a concentração de interesses da burguesia nascentes nesses espaços urbanos privilegiados; a incidência de impostos sobre a exploração de terras por vassalagem; e a absorção de vassalos no serviço do estado central; foram fatores que também influenciaram a ascensão da burguesia aos espaços públicos. Inclui-se até mesmo o âmbito escolar para a formação dos artesãos nas oficinas de manufatura que começavam a se expandir, dada a necessidade do domínio científico e tecnológico das novas relações comerciais que a escala das mercadorias e a expansão territorial estabeleceram, ao lado da absorção de máquinas nos vários setores produtivos, perpassada pela formação dos Estados nacionais. 2.2.1. Renascimento O conjunto de transformações econômicas, sociais e culturais desde a revolução comercial concentrou novamente a vida social nas metrópoles (Sevilha, Lisboa, Paris, Londres, Roma etc.). As grandes navegações permitiram o reconhecimento de novos espaços e povos, criaram eixos comerciais pelos oceanos afora, dominando colônias e fortalecendo os Estados Nacionais. No contexto da época, uma orientação humanista da filosofia fez renascer os referenciais gregos como modelo de excelência. Sem abandonar a ideia teocêntrica de que Deus concedeu uma única verdade ao mundo que produzira o cristianismo, assume-se a possibilidade de fragmentos divinos dessa verdade terem influenciado a cultura greco-romana, por isso tornou-se necessário fazer renascer ideias filosóficas dessas culturas, o Renascimento. Obra italiana do Renascimento (Michelangelo) Fonte: Pixabay. História e filosofia da educação – caminhos cruzados 19 Unidade 1 Teocentrismo (do grego, theos, “Deus”, e kentron “centro”) significa, literalmente, “Deus como centro do mundo”, fundamento de toda a ordem, inclusive as ações humanas. A Idade Média é considerada teocêntrica porque todas as suas ideias giravam em torno de Deus. Nesse período a Igreja detinha grande poder junto à nobreza, controlava a vida comunitária, castigava os opositores. Deus estava presente em toda a vida social, por exemplo, o rei era o representante de Deus na Terra. Fonte: Elaborado pela autora. Rumo à construção de um novo modelo de conhecimento e formação cultural da sociedade fundamentada na razão, a concepção de aprender como razão individual sobre evidências, a retomada do valor da retórica e estudos de língua refletem autores humanistas do século XVII. É o caso de Erasmo de Roterdã, Francis Bacon, Michel de Montaigne, que recolocam em circulação as ideias de Platão e Aristóteles, influenciando os campos da ética, lógica, teologia, direito,poética e artes e preconizam a formação global de um homem ideal: ao mesmo tempo filósofo, cientista e artista. A escola defendida por esses autores expande a estrutura de disciplinas escolares, num novo conceito de ensino e educação e absorção dos métodos científicos pela escola. Sob o manto católico, mas não sendo uma imitação literal da cultura antiga, nesse período houve uma tentativa eclética de harmonizar o platonismo pagão com a religião cristã, incorporando influências orientais, o estudo da magia, da astrologia e do oculto como linguagens simbólicas. A religião assumiu o humanismo como reinterpretação dos dogmas, de modo que ganhou flexibilidade e adaptabilidade diante da perda de poder social e político. Simultaneamente, no campo da didática se destacam Ratichius e Comenius, que formularam princípios de um método natural de ensinar. O primeiro defendeu que tudo devia ser ensinado na língua materna, por meio da experiência e experimentação nas quais primeiramente estava a coisa, e depois, a explicação. Comenius trouxe como princípio formar o homem para a vida temporal, civil e espiritual, ampliando a perspectiva religiosa, com foco no conhecimento das coisas. Esses filósofos pedagogos ofereceram elementos para o rompimento com a escolástica e, embora inseridos no humanismo, também questionaram a pedagogia centrada apenas nos estudos de textos, superando o ensino puramente literário e valorizando os sentidos, a experiência e o trabalho como aspectos do ensinar. Pestalozzi é, também, uma importante referência. Igualmente para esse educador uma educação natural é o princípio educativo, os sentimentos são o elemento que desperta a aprendizagem autônoma, valorizando o desenvolvimento das habilidades naturais e inatas ao longo da formação humana e seus elementos: a moral, a política e a religião a serem trabalhados na educação escolar em atividades diversificadas. Rousseau foi um pensador que valorizou a infância como sucessão de fases de desenvolvimento e partiu da ideia de que o homem nasce bom e se corrompe na sociedade, inclusive nas instituições educativas. Defendeu a necessidade de um contrato social em defesa da liberdade baseado na experiência política da antiguidade como referência de consenso e cidadania como exercício civil, de modo a recuperar a liberdade nata do ser humano e agregar o tecido social em torno de objetivos comuns. Esse pacto social controlaria a ação dos “soberanos” e produziria liberdade moral autônoma do indivíduo e a soberania popular em um Estado Civil. Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 20 No contexto histórico do Renascimento, o aperfeiçoamento da imprensa e a fundação de bibliotecas ampliaram o acesso ao conhecimento e aos autores clássicos. Também nesse período foram inventados diversos instrumentos científicos e enumeradas leis naturais; a face do planeta se alterou com as grandes navegações, ampliando o conhecimento e o uso da física, matemática, astronomia, engenharia e filologia e aumentando sua complexidade e exatidão. O Renascimento abriu a era da razão, fundamentou o Iluminismo, construiu sua base, questionou a autoridade de lado, abriu para a diversidade de opiniões, reordenou a arte e revisitou o conceito de história, valorizando-a na continuidade e na ruptura, aproximando-se de uma releitura crítica no passado projetado no presente. Também carregou para a educação a retomada dos clássicos e dos conteúdos de formação geral que se contrapunham ao período histórico anterior que colocou as obras da antiguidade enclausuradas em monastérios e para acesso exclusivo do clero. O centro do Iluminismo foi a França, e seu marco filosófico foi a publicação da grande Enciclopédia por Diderot (1713-1784) com contribuições de centenas de intelectuais, como Voltaire (1694-1778) e Montesquieu (1689-1755). Surgiu sustentado no racionalismo, centrado na razão e no conhecimento científico dela evidenciado e comprovável na realidade, se distanciando do mitológico e do dogma religioso e propulsionando progresso da civilização, tendo o humano como produtor do conhecimento, capaz de reverter a sua condição de origem. O avanço da ciência desembocou no racionalismo que foi afastando o conhecimento e a educação da religião (ARANHA, 2006), o campo educativo se distanciou da dominância religiosa, compreendida como encargo do Estado, projetando o ensino elementar como obrigatório e gratuito, com foco no nacionalismo, ênfase nas línguas vernáculas (nativas de determinado país ou região), em detrimento do latim, e orientação para os ofícios, apontando uma aliança entre a ciência e sua aplicação prática. Ao lado do desenvolvimento técnico e científico, houve um descontentamento popular, liderado pela burguesia emergente, contra um Estado interventor e centralizador da economia baseada no mercantilismo, na colonização e na subordinação da atividade econômica ao poder estatal. Fundidos, esses elementos impulsionaram o Iluminismo, movimento intelectual que mobilizou a razão, manifestando-se contra a intolerância da Igreja e do Estado, advogando um conhecimento apurado da natureza para torná-la útil ao homem moderno. 2.3. Modernidade As transformações ocorridas a partir do Renascimento e o início da ciência moderna levaram a um grande questionamento sobre os critérios e métodos para aquisição do “conhecimento verdadeiro”. Uma das funções da filosofia passou a ser a de investigar em que medida o saber científico atingia o objetivo de gerar esse conhecimento. A consolidação do capitalismo gerada pelo desenvolvimento industrial, desde o século XVIII, evidenciava a exploração do trabalho humano, ao mesmo tempo que se vislumbrava o avanço tecnológico e científico. Por conseguinte, o século XIX refletia a consolidação desses processos e as convicções ancoradas no progresso tecnocientífico. Aos poucos as máquinas substituíram a força humana, e a ideia de progresso foi disseminada em todas as sociedades do mundo. Essas alterações no cenário mundial promoveram a institucionalização da escola pública, com ordenação do tempo e do espaço escolares, instituindo-se sistemas organizados em direção ao progresso e à civilização. História e filosofia da educação – caminhos cruzados 21 Unidade 1 A Modernidade foi um período marcado pelo otimismo, relacionado ao novo, à quebra com a tradição, com sentido positivo de mudança e progresso, valorização do indivíduo e sua subjetividade. Historicamente, esse momento se caracterizou pela transição, na Europa e Estados Unidos, da forma artesanal para a produção fabril, com aprimoramento de processos que permitiram uma melhor e maior exploração de recursos naturais com crescente utilização da energia a vapor, substituindo a madeira e o carvão, e promoveu o desenvolvimento de máquinas e ferramentas para produção de novos produtos. Esse contexto gerou uma nova organização social que transformou a vida e o trabalho, refletindo-se na educação. O advento da Revolução Francesa carregou para o campo político as transformações econômicas em processo, garantiu a ascensão da burguesia, que vinha se projetando ao poder, transformando o Estado aristocrático no qual a nobreza se posicionava no topo da pirâmide social, seguida pelo clero e deixava a sociedade numa base piramidal inferior. Então, o Estado era defendido como elemento que contribuía na expansão das atividades econômicas em aliança com as forças industriais em crescimento, regulando as suas relações com a sociedade, sem retirar a liberdade de mercado. Sob a perspectiva iluminista, fincada na ideia de uma natureza humana universal, de autonomia do sujeito, de educabilidade humana, de emancipação pela razão, se acentuou uma educação de formação geral para o autodomínio. A educação foi emancipada dos modelos religiosos, a técnica, os valores de ciência prática foram enaltecidos e a educação escolar se institucionalizou em torno das necessidades de formação de mão de obra, floresceu comoinstância subordinada aos interesses do Estado e da sociedade, com objetivos sociais mais amplos, e deixou de ser controlada pelas religiões. A queda da Bastilha Fonte: WIKIPEDIA ([s.d.]). Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 22 A filosofia da educação moderna constitui-se a partir da aliança entre a filosofia do sujeito e a educação humanista, justificando a ação educativa como se o “[...] objetivo da educação fosse exatamente o de transformar o homem em sujeito, capaz de estar de posse da verdade como ‘senhor consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos’” (GHIRALDELLI JR., 2000, p. 44), dando-lhe um caráter esclarecedor. Fonte: Elaborado pela autora. É clara a riqueza de modelos formativos de autores como Pestalozzi, Kant, Herbart, Froebel e Durkheim, que concretizam teorias sobre a prática educativa assentada no progresso e que têm em comum a acentuação do poder da razão, defesa de uma cultura universal a ser transmitida às novas gerações, da educação como direito e do papel dos educadores como intervenção pedagógica pelo esclarecimento de valores universais, racionalidade, autoconsciência, autonomia. É um período no qual velho e novo se acham na busca de um mundo antropocêntrico, livre e inovador, de modo que há a criação de uma nova estética, a partir da releitura dos clássicos antigos. Então, “também o indivíduo deve submeter-se a uma remodelação, através do ideal do ‘cortesão’ e das regras de ‘sociabilidade’, que estabelece os princípios e as formas da socialização” (CAMBI, 1999, p. 244) e se vai estabelecendo uma nova noção de tempo cronológico, definido pelo relógio, indicador homogêneo de produtividade, de trabalho disciplinado. Assim, na modernidade, a escola assumiu a função de tornar os sujeitos socializados, livres e emancipados intelectualmente, uma escola que instrui e que forma, que ensina conhecimentos, construindo a consciência de cidadão e emancipando-o intelectualmente, liberando-o de preconceitos, tradições e fé. Em simultâneo, o cotidiano escolar sofre a pressão temporal que faz o tempo escolar equivaler a valor e a escola em que disciplina para a produção, distanciando-se da concepção de liberdade; a igualdade se dá na ampliação da escola, mascarada pelas situações sociais e econômicas diferenciadas que, desde esse marco, impediam a frequência escolar. A modernidade embalou a corrida do progresso, ao mesmo tempo que acentuou a desigualdade, afastando-se dos seus ideais. Com o avanço do capitalismo foram sendo perdidas as perspectivas inicias; o que progrediu não representou a ampliação da igualdade, mas uma configuração de uma sociedade sob o signo da administração total, que produz um coletivo massificado e subtrai a subjetividade, submetida ao poder da racionalidade técnica, da escravidão à máquina e à mercadoria, numa lógica de sedução das pessoas pelo dinheiro e pelo consumo. No processo histórico de conquista do poder pela burguesia se modelam comportamentos para a produtividade social, e a escola é espaço dessa modelação. Constrói-se um mito da educação como capaz de renovar a sociedade, dotá-la de comportamentos homogêneos e funcionais para o seu próprio desenvolvimento. Então desenvolve-se um “sistema escolar” orgânico e submetido ao controle público; com programas de ensino únicos, focados na alfabetização e difusão da cultura como processo de crescimento democrático coletivo que se impõe como direito inserido no círculo produtivo da sociedade e sua lógica. Nesse cenário, o ato de educar se torna um mecanismo de controle para a burguesia e de certa autonomia social para o conjunto da população. Paradoxalmente, apesar da promessa, a escola na Modernidade não efetiva a emancipação, pois na medida em que conforma o indivíduo emancipado, o normaliza. História e filosofia da educação – caminhos cruzados 23 Unidade 1 Fonte: Pixabay. A Segunda Grande Guerra (1939-1945) colocou em causa a possibilidade de as ideias da modernidade se concretizarem. Na educação, os estragos da Guerra evidenciaram a fragilidade da saída educacional como promotora da sonhada igualdade e mobilidade social, desmistificando a escola como transformadora, mas em contrapartida valorizaram a escolarização como elemento do desenvolvimento da reconstrução dos países da Europa e os Estados Unidos, bem como seu domínio econômico sobre outros países. 3. PROCESSOS HISTÓRICOS CONTEMPORÂNEOS No século XX grandes transformações demarcaram as relações sociais entre as nações. O avanço da livre concorrência econômica estimulou monopólios e instigou a disputa por mercados consumidores e matérias-primas e pela dominação de países com recursos ainda não explorados. Refletidos numa era de incertezas, contradições e dúvidas geradas por resultados inesperados marcaram os acontecimentos desse século. Formaram-se potências internacionais que lutavam pelo domínio do capitalismo internacional e cujos choques culminaram, num momento de expansão da indústria armamentista, na Primeira Grande Guerra (1914-1918) e fragilizaram a Europa. No rastro da instabilidade causada, eclodiu a Revolução Russa, e, nos anos de 1930, a Guerra Espanhola. Somaram-se a isso as políticas expansionistas que se arrastaram pelos países periféricos, regiões fornecedoras de matéria-prima e consumidoras dos produtos industrializados, com fortalecimento do imperialismo econômico, nova forma de dependência entre países. Primeira Guerra Mundial Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 24 “A Primeira Guerra Mundial em cinco minutos” é o título do vídeo que traz os elementos e acontecimentos mais significativos que ocorreram durante a Primeira Guerra Mundial. Se você deseja ter uma visão sucinta – e estimuladora de novas pesquisas – vale a pena conferir. O material está disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=jACiIe8Ly5o>. Fonte: Elaborado pela autora. Abriu-se, no pós-guerra, um período conhecido como Guerra Fria, na disputa pela zona de influência, especialmente do poder bélico que ameaçava a paz mundial, entre o bloco capitalista (com base na economia de mercado, sistema democrático e propriedade privada) e o socialista (baseado na economia planificada, igualdade social e centralização de poder do Estado). No período que se seguiu à Segunda Guerra, a economia internacional dominada pelos Estados Unidos ficou marcada por um processo contínuo de rearticulação de forças do capitalismo em crise para fomentar um mercado cada vez mais global como elemento de regulação social ampliado pela destituição do bloco da União Soviética em 1989, marcada pela queda do muro de Berlim que representava o isolamento entre o mundo capitalista e socialista até então. Esse movimento da economia a globaliza de forma crescente e desvaloriza o Estado, que deixa de ser provedor das necessidades da sociedade para se transformar em regulador de um mercado aberto que atua sob o imperativo de eficiência, eficácia e produtividade. “A Guerra Fria teve suas origens nas divergências entre EUA e URSS ainda durante a Segunda Guerra Mundial e se instalou definitivamente a partir de 1947, quando as diferenças entre os dois países, que emergiram da guerra não apenas como os grandes vencedores, mas também como duas superpotências mundiais, adquiriram o caráter de um conflito permanente. Tratava-se de um conflito de natureza principalmente estratégica e militar, mas que se revestia também de aspectos econômicos e político-ideológicos, opondo, de um lado, um bloco capitalista, cujo modelo de organização política tendia a ser a democracia, e, de outro, um bloco socialista, cuja organização político-social reproduzia, em maior ou menor medida, o socialismo autoritário vigente na URSS.” Fonte: MELLO E SILVA ([s.d.]). A globalização econômica foi aprofundada a partir do final do século XX e consolidou mudanças sociais com redefinição das relações de trabalho que gerou um momento históricode desintegração da produção tradicional; houve uma flexibilização produtiva que absorveu os avanços tecnológicos, aumentou os lucros, abriu mercados, mas vem mantendo ou ampliando a desigualdade social entre países e pessoas. É um cenário que amplia a concentração da pobreza, promove padrões imprevisíveis de imigração e marginaliza grupos. História e filosofia da educação – caminhos cruzados 25 Unidade 1 Globalização amplia a concentração da pobreza Fonte: Pixabay. A comunicação também é ampliada pelo poder tecnológico, criando novos espaços de troca, mas mantém o indivíduo aprisionado a produtos, inclusive culturais, e arriscam diminuir as possibilidades dessas novas formas avançarem rumo à emancipação, transformando-se em apenas reprodução dos valores que a sociedade impõe. No século XX derrubaram-se certezas firmadas pelo pensamento clássico e suas leis universais que ficaram inadequadas para responder aos problemas sociais, econômicos e científicos e nova organização geopolítica e epistêmica, vocacionando a filosofia para retomar o sentido ético e humano e aproximar os fundamentos filosóficos, das pessoas e seu cotidiano. O positivismo, inicialmente, foi a corrente filosófica com maior expressão sustentada na ciência testada, lógica e experimental que impulsionou o desenvolvimento econômico e técnico, no imparável processo de urbanização, automação nas fábricas e campo, desenvolvimento de novos ramos práticos e científicos. A revolução copernicana, a revolução darwiniana (origem das espécies), a evolução freudiana (psicanálise), os avanços da teoria da relatividade, da física quântica e nuclear, dos estudos de biologia, medicina genética e ciências cognitivas, técnicas artísticas, formaram um cenário enriquecedor para o surgimento e a propagação de novos fundamentos filosóficos voltados a responder às incertezas e às contradições. Paralelamente, as sociedades vão sendo cada vez mais administradas, controladas por exigências de um capitalismo global que precisa responder rapidamente às necessidades de produção e consumo e que torna os indivíduos alienados nas malhas de um funcionamento social padronizado, sem espaço para a subjetividade humana. Isso repercute na educação como dominância de uma razão instrumental que esvazia seu conteúdo, transformada em mercadoria. A escola, sob o impacto desse contexto resultante das contradições que se seguiram à Modernidade, também se volta para responder de forma mecânica às permanentes novas exigências Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 26 de produção e ao desenvolvimento técnico e instrumental, desviando-a de suas finalidades de promover formação cultural, favorecendo o resistir, combatendo os horrores bárbaros que foram sendo produzidos e transformando-a apenas em meio de manutenção da lógica de mercado, com simplificação da formação e sua subserviência ao desenvolvimento econômico, gerando um processo de semiformação. Se você deseja conhecer um pouco mais a respeito da semiformação na perspectiva de Adorno, vale a pena ler o artigo “A escola e a semiformação das massas: notas a respeito da educação em Adorno”, de autoria de Ettiane Ribeiro da Silva. O texto está disponível em: <http://www. uel.br/eventos/sepech/arqtxt/PDF/etianneribeiro.pdf>. Fonte: Elaborado pela autora. 4. A EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA E AS VÁRIAS LEITURAS FILOSÓFICAS Demandas sociais exigem a renovação da escola Fonte: Pixabay. Desde o final do século XIX e adentrando o século XX, a filosofia da educação fundamentou teorias e experiências educacionais sinalizando formas de renovação da escola em face das demandas sociais desse novo momento e com foco no espírito experimental. História e filosofia da educação – caminhos cruzados 27 Unidade 1 De maneira geral, as propostas educacionais do século anterior reafirmam no século XX a necessidade da escola pública, leiga, gratuita e obrigatória. Nas primeiras décadas do século XX, sob influência do ideário de Ferrièrre (1879-1960), na Europa, e Dewey (1859-1952), nos EUA, a educação é renovada numa concepção de conhecimento como experiência vivida na liberdade de pensamento e do fim da educação como a autonomia de resolver problemas. Porque a escola não pode ser uma preparação para vida, mas é a própria vida (ARANHA, 2006), de forma que essas finalidades educativas se ajustem às realidades sociais nas quais se embrenham. Partindo do pensamento liberal, Dewey é referência do pragmatismo ou instrumentalismo. Concebeu o conhecimento e o desenvolvimento como processos entrelaçados na interação entre sociedade e indivíduo, sendo a experiência empírica subjetiva de cada pessoa, o que produz novas ideias e, portanto, base do ensino. Desenvolveu um projeto de escola de aplicação na Universidade de Chicago, que, com financiamento autossustentado por atividades práticas e acadêmicas dos alunos, rompeu com o plano tradicional de estudos e agrupou as turmas em função de interesses e aptidões. Essa escola nova abarcou várias correntes pedagógicas que trouxeram metodologias inovadoras. Aproximando-se do interesse do estudante, propõe o fomento à autonomia, o trabalho de equipe e incorporação de recursos tecnológicos e de comunicação presentes na sociedade. Propõe que, para aprender, o indivíduo tem que partir de situações reais e concretas que permitam atingir o objeto de estudo e explorar limites e possibilidades em si próprio. Decroly (1871-1932), dentro dessa perspectiva, valorizou a iniciativa e responsabilidade pessoal e social, o respeito à singularidade, propondo aos educadores um novo sistema de ensino primário, cuja finalidade seria preparar a criança para a vida. Para isso concebeu a escola como ambiente de observação dos fenômenos da natureza pelos estudantes e propôs os centros de interesse como chaves curriculares. Na sua obra fica a ideia de liberdade, compreendida como iniciativa e responsabilidade pessoal e social, o respeito à singularidade de cada um, considerando-se a diferença. A educação na segunda metade do século XX ressurgiu como possibilidade de emancipação, tendo em vista a barbárie gerada pelos conflitos geopolíticos que marcaram, especialmente, a Segunda Guerra Mundial. Um conjunto de reflexões sobre o conhecimento que relativizam a sua sistematização, questionando o poder absoluto da ciência e reconhecendo os diferentes contextos culturais como produtores de um corpo de conhecimento próprio, vai se impondo e revendo o significado do saber. A objetividade e a aplicabilidade do conhecimento questionadas dão ao aprender um valor de processo e de interdisciplinaridade, quebrando fronteiras para restabelecer a unidade entre saber e práticas sociais, rompendo com a ideia de natureza humana universal e compreendendo os sujeitos como construídos socialmente. Então foi como se a história, a filosofia e a educação se encontrassem, a educação se confundisse com a própria filosofia, edificação de um projeto de encontrar modos novos de expressar o pensamento, embora nem sempre o produzisse em meio ao instrumental que reproduz. Caiu em desuso a noção tradicional de verdade como concordância. No início do século XX instaurou-se uma crise das Ciências Europeias que puseram as formas de conhecer em causa, carregando uma nova forma de ver a ciência, valorizando a experiência como fonte do conhecimento e trazendo reflexões educacionais e epistemológicas. A educação contemporânea aumenta o campo de reflexão sobre seu contexto histórico, ampliando, também, as leituras filosóficas possíveis que se tornam múltiplas e plurais, fazendo conviver diferentes perspectivas. Abordam-se aqui três correntes que influenciaram a educação: a fenomenologia, a teoria crítica e a teoria da complexidade. Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 28 A fenomenologia, que tem como expoentes Heidegger, Husserl e Jaspers, passa a olhar cada fenômeno comocapaz de possibilitar o conhecimento e a experiência sensível como ponto de partida da razão científica, colocando a pesquisa educacional em torno de um paradigma de estudo do que vai sendo experimentado nas escolas. Fenomenologia é o estudo de um conjunto de fenômenos e como se manifestam, seja através do tempo ou do espaço. É uma matéria que consiste em estudar a essência das coisas e como são percebidas no mundo. A palavra fenomenologia surgiu a partir do grego phainesthai, que significa “aquilo que se apresenta ou que se mostra”, e logo é um sufixo que quer dizer «explicação» ou «estudo». [...] O conceito da fenomenologia foi criado pelo filósofo Edmund Husserl (1859-1938), que também trabalhava como matemático, cientista, pesquisador e professor das faculdades de Göttingen e Freiburg im Breisgau, na Alemanha. Fonte: SIGNIFICADOS.COM ([s.d.]). Hannah Arendt (2007), na mesma perspectiva, aponta que a filosofia deve estar a serviço da vida; dessa forma, apresenta um pensamento original aplicável a várias ciências humanas, conceito de pluralismo político como fator gerador de liberdade e igualdade políticas. A autora reivindica a discussão política livre e pública, promove uma discussão sobre os limites da democracia representativa e propõe uma ação política direta dos cidadãos e a formação de conselhos que envolvam as pessoas. Portanto, suas ideias implicam os modelos de democratização escolar em curso em vários países, especialmente na segunda metade do século XX. A teoria crítica da escola de Frankfurt, em sua primeira geração esteve representada especialmente por Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamim. Significou um marco importante de reflexão sobre a sociedade e a formação cultural distanciada da autonomia, presa à indústria cultural, inserida numa sociedade administrada que limita o indivíduo, lhe subtrai a subjetividade; embora sob a promessa de valorizá-la, trouxe uma reflexão sobre a educação como central no combate à barbárie, que teve a principal expressão na Segunda Guerra Mundial. Critica a ciência positivista como sistema dedutivo que desvincula o cientista dos demais indivíduos sob aparência da neutralidade na qual o pensamento não se ocupa da gênese social dos problemas. Tal crítica a um tipo de razão subjetiva, formal e instrumental, cujo único critério de verdade é a aplicabilidade, coloca o objeto de estudo como histórico numa permanente contradição entre o objetivo e o subjetivo que somente desaparecerá com a emancipação humana, papel da educação, aquela com potencial para superar a barbárie e trabalhar a autonomia do indivíduo e sua formação cultural plena que contenha resistência ao socialmente imposto desde a modernidade que se projetou totalizante, autoritária, planejada e rígida. Esse arcabouço teórico sustenta um pensamento educacional amplo, contextualizado e emancipatório da ideologia do consumo, imposta, desde a modernidade, pela lógica social capitalista. Defende um currículo aprofundado na compreensão da realidade social, de modo a produzir um conhecimento em torno da função de produzir pessoas com consciência verdadeira e que as “[...] reformas pedagógicas isoladas, embora indispensáveis, não trazem contribuições substanciais” História e filosofia da educação – caminhos cruzados 29 Unidade 1 (ADORNO, 1995, p. 8). Também reflete sobre os verdadeiros objetivos da educação, cujo objetivo principal é combater a barbárie. O estruturalismo coloca a análise social como fixada nas estruturas sociais (profundas, inconscientes, onipresentes e determinantes) que margeiam o pensamento e as possibilidades do sujeito na sociedade, sempre em construção, entre o histórico e o atemporal, e o voluntário e o contingente. Opondo-se à compartimentação do conhecimento, apresenta uma metodologia que estuda o seu objeto como sistema de relações estruturais que geram um modelo teórico desse objeto no qual aparecem como entrelaçadas. Numa interpenetração, o estruturalismo marcou a exclusão da experiência como critério de verdade. Dentre os estruturalistas destacamos Piaget, Deleuze e Foucault. Piaget (1896-1980) desenvolveu a teoria genética do conhecimento que considera as estruturas elementos dinâmicos, organizados das mais simples às mais complexas e divididas em subestruturas, que vão sendo construídas no desenvolvimento humano. Para esse autor, as estruturas são sistemas abstratos, se encaixam umas dentro de outras, sempre em modificação. Convicto de que o desenvolvimento intelectual se dá em estágios determinados, ele aborda estruturas operatórias do pensamento e demonstra que o sujeito epistêmico tem um tendente processo de desenvolvimento em estágios sucessivos. A contribuição do estruturalismo de Piaget para a educação foi fundamental, tanto do ponto de vista da reflexão da relação entre o ensino e o desenvolvimento, especialmente o infantil, quanto na intervenção educativa, tendo em vista que a sua metodologia científica implica o reconhecimento de como o sujeito pensa, elemento fundamental para o ensino contemporâneo. Para conhecer um pouco mais da história de Jean Piaget, bem como as contribuições dele para o processo de conhecimento, vale a pena conferir o vídeo “Jean Piaget – fases do desenvolvimento”. Ele está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EnRlAQDN2go>. Fonte: Elaborado pela autora. Deleuze (1925-1995) define filosofia como criação de conceitos, cabendo ao filósofo inventá- los, saindo das fronteiras do sujeito, olhando o mundo a partir das possibilidades. Pensou “questões emergentes do século XX, buscando construir uma filosofia imanente, um pensamento do acontecimento, o campo educacional não pode ser visto como estranho.” (GALLO, 2007, p. 4). Ao destacar a filosofia no campo do desejo, ato filosófico e não histórico, o referido autor defende uma experimentação permanente que produza inspiração; essa ideia que se pode transpor para a educação, uma instância do real e do virtual que abre possibilidade de pensar, colocar problemas e criar conceitos novos, também indica a educação como possibilidade de superar modelos. Embora se autodefina como historiador crítico da modernidade, Foucault pode ser apontado como estruturalista. Sua perspectiva é que o poder circula na sociedade pela linguagem, o interesse é parte do poder, elemento capaz de explicar a articulação entre poder e saber. Suas pesquisas trazem à tona as estruturas do pensamento, a individualização dos discursos e se afasta de uma história totalizante, colocando o conhecimento e o pensamento como relação complexa de deslocamentos sucessivos que produzem sentidos como reflexos da realidade. Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 30 O autor criticou práticas disciplinares que subjugam os indivíduos, realizou suas análises de forma indutiva a partir de elementos periféricos do sistema; por isso, interessou-se por espaços de controle como hospícios, prisão, escola, os quais identificou como aparelhos de micropoder, forças reais em ação que inventam novas formas de dominação. Em seus estudos, tratou diretamente das escolas e das ideias pedagógicas na Idade Moderna, observando o poder e o saber como lados de um mesmo processo que produz o sujeito. As relações de poder, para o filósofo, se dão num campo de saber, portanto a educação deixa de ter um sujeito epistêmico, e o território educacional, como a organização escolar e o currículo, é determinado, igualmente, num regulatório, sendo a lei verdade construída de acordo com as necessidades do poder, do sistema econômico e cultural; que dá delimitação formal ao poder, justificando-o e introjetando-o no nível macrossocial, discursos de verdade dentro da norma, mas, ainda assim, contém o seu oposto, possibilidades de vida quando os sujeitos livres se relacionam sem poder, com autonomia e autogoverno e novas formas de subjetividade. Para Foucault, escolas são aparelhos do micropoder Fonte: Pixabay.A teoria da complexidade reflete como as mudanças contemporâneas tornaram a sociedade mais complexa, ampliando a cultura e as formas de manifestação dos saberes, e o quanto a ciência clássica, cimentada em princípios que efetivam uma visão simplificadora do mundo, limita a capacidade humana de pensar e refletir porque tende a isolar o mundo de objetos submetidos às experimentações dos sujeitos que constroem historicamente a sociedade. Essa corrente de pensamento defende uma reforma no pensamento científico que destaque a ambivalência entre as suas funções de elucidar e esconder o aniquilamento humano e que a complexidade (diferentes elementos constitutivos do real econômico, político, sociológico, psicológico, mitológico que se tecem de forma interdependente em torno do objeto de conhecimento) é o centro da ciência, na medida em que a ação científica transforma a sociedade e se transforma simultaneamente. Coloca, assim, que as ideias contraditórias são motores para tornar as ciências complementares entre empirismo e racionalismo, imaginação e verificação. Morin é um dos seus principais representantes. História e filosofia da educação – caminhos cruzados 31 Unidade 1 Esse autor reflete que as ciências trouxeram muitas certezas que o percurso histórico colocou em causa e se foram revelando como zonas de incertezas pelo impacto do aumento da complexidade nas sociedades contemporâneas. Coloca como princípios – associação complexa de instâncias responsáveis pelo desenvolvimento de um fenômeno organizado – para o pensar esse mundo complexo o dialógico, o recursivo e o hologramático, que permitem discutir a ordem relativizada. O quadro a seguir detalha esses princípios. Princípios dialógico, recursivo e hologramático - Morin PRINCÍPIOS DIALÓGICO A ordem e a desordem estão sempre em diálogo, ao mesmo tempo se suprimem uma à outra, colaboram para produzir organização. São lógicas com unidade que mantém a dualidade; associadas de forma complementar e antagônica, enfatizando as divergências e acentuando possibilidades de conciliações pro- visórias. RECURSIVO Os produtos e efeitos são ao mesmo tempo causas, portanto se rompe a lógica da causa/ efeito, produto/produtor, pois tudo o que é produzido volta sobre o que produziu num ciclo de constituição, produção e autoprodução num processo em espiral. HOLOGRAMÁTICO A parte está no todo e o todo na parte, das partes se regressa ao todo e vice-versa. O con- ceito de ordem carrega o determinismo da regularidade, mas também as noções de estru- tura e de singularidade. A ordem dos seres vivos singulares é determinada pelas espécies, mas não se opõe ao singular e atua na interdependência de influências externas e internas que geram estruturas organizativas. Fonte: Elaborado pela autora com base em MORIN (1996). Esses princípios permitem uma reflexão sobre a relação complexa entre ordem e desordem. Nesse cenário, a teoria da complexidade discute o rompimento com a fragmentação do saber, advogando que a complexidade exige conhecimento multidimensional, capaz de responder às várias dimensões do fenômeno estudado, num pensamento complexo que comporta incerteza e interdependência. A educação na teoria da complexidade passa a ser pensada como interdisciplinar, que consiga promover o diálogo com formas de pensar complementares, assumindo novas possibilidades na contradição permanente da realidade social, num pequeno espaço entre a ordem e a desordem. Há muitas outras leituras possíveis em torno dos vários autores que foram se projetando no pensamento filosófico a partir do século XX e no século XXI, próximo de completar duas décadas. Estas carregam os elementos contemporâneos e aprofundam os seus limites e potencialidades, numa sociedade cada vez mais globalizada, na qual tudo se transforma em mercadoria e que os Estados ao mesmo tempo se diluem e se fortalecem nos laços com as organizações que representam a lógica capitalista em suas múltiplas faces. Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 32 A tecnologia, característica marcante da globalização Fonte: Pixabay. O século XXI desponta em meio a processos históricos contemporâneos que aprofundam a globalização e permitem, cada vez mais, uma multiplicidade de análises possíveis que as várias correntes vão possibilitando. Esse pensamento contemporâneo influencia todos os países, inclusive o Brasil, e implicam pensamento e prática educacional que vão desde a formulação das políticas até a intervenção concreta da escola como instituição social, e se mantendo o mito moderno da escolarização como solução para todos os males, produz uma educação historicamente marcada por limites. Agora, as condições das sociedades conectadas geram um tempo mais curto do que o necessário para dar forma à criação de rotinas sociais, numa precarização das certezas em torno do consumo e do avanço da indústria cultural. Os meios de comunicação instantânea tendem a promover menos concentração do que previsto para a consolidação dos processos escolares, e os professores vão sendo formados de modo mais frágil e a sua ação profissional distancia-se das necessidades dos jovens, proletarizados que estão. Além disso, há uma incerta valorização da instituição escolar, na medida em que ela não responde às expectativas sociais e tampouco realiza os objetivos que os sistemas de ensino enunciam. A pobreza se expande ao lado da concentração de riqueza nas mãos de poucos, as relações com o espaço geopolítico são redefinidas para além das fronteiras geográficas, um discurso de coesão se sobrepõe, mas a discriminação de grupos se efetiva; as políticas públicas educacionais ampliam a escolarização sem garantir sua qualidade ou avanço; o uso da tecnologia na escola se impõe, nem sempre potencializando a formação cultural, e o indivíduo acaba submetido a uma semiformação que basta à reprodução da lógica social, entretanto não o realiza e diminui sua capacidade de atuar de maneira racional. História e filosofia da educação – caminhos cruzados 33 Unidade 1 “A qualificação essencial da educação emancipadora encontra-se na dissecação visceral do nexo entre dominação e racionalidade. A educação crítica só pode realizar-se como reconstrução crítica da racionalidade social, revelando a deformação que produz em face de sua reificação e conduzindo-a a uma clara exposição de suas contradições e, por essa via, apreendendo nela as possibilidades alternativas.” Fonte: SEVERINO (2002, p. 633). A sociedade do século XXI ampliou a liberdade individual de escolha, ao mesmo tempo que a limitou, dada a natureza de mudanças imprevisíveis que a compõe. O ritmo social e as problemáticas educacionais se aceleram, ao mesmo tempo que as oportunidades se ampliam há uma simplificação dos processos de aprender mediados por produtos culturais. A educação e a escola, inclusive no Brasil, caminham em permanente mudança, pressionadas pela política e por interesses econômicos, sociais e culturais que nem sempre são claros numa sociedade que vai se tornando mais virtual do que real. CONCLUSÃO A história e a filosofia são campos que se imbricam na tentativa de desvendar a sociedade. Suas problemáticas apontam caminhos para reflexão sobre a educação, como se pode ver, desde a antiguidade até o século em curso. A escola, desde seu aparecimento até o século XXI, está carregada de contradições. A sociedade construída pelos indivíduos muitas vezes resulta em modelos opostos aos previstos e acalentados, e a educação, no presente século, mantém o mito de ser solução para todos os males e, simultaneamente, espaço de competição. Houve uma democratização no acesso à escola, mas a abrangência social e econômica dessa democracia, de fato, mantém desigualdades, e o cotidiano escolar se agita sem respostas no horizonte de superação da mera adaptação. ELEMENTOS COMPLEMENTARES #LIVRO# Título: Vigiar e punir Autor: Michel Foucault Ano: 2015 Sinopse: “‘Vigiare Punir aborda o problema da institucionalização do poder de forma muito nova, o que deixou marcas profundas nas pesquisas históricas e sociológicas que se seguiram a ele. O livro traz a compreensão de que o poder não é só uma força exercida verticalmente, de cima para baixo, mas atravessa e constitui cada espaço das relações no interior das sociedades’, diz Fabiano Lemos, doutor em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pela Universidade Stanford (EUA)”. (Fonte: Guia do Estudante, 2017) Unidade 1História e filosofia da educação – caminhos cruzado s 34 Título: A condição humana Autora: Hannah Arendt Ano: 2007 Sinopse: A obra busca interpretar a modernidade como um período que pôs sob risco a pluralidade, considerada pela autora como a condição mais básica da vida humana e que se caracteriza por uma síntese entre igualdade e diferença. Hannah Arendt defende que todo ser humano é único, mas a singularidade dele só se dá mediante uma rede de relações entre seres humanos iguais. Conforme analisa, a modernidade coloca em risco a vida humana. Essa é a era da sociedade dos consumidores, em que as ferramentas, os objetos de arte e até mesmo os seres humanos são descartáveis. (Fonte: Casa do Saber, [s.d.]). REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ______. Notas de Literatura 1. São Paulo: Editora 34/Livraria Duas Cidades, 2003. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. São Paulo: Moderna, 2006. ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. BENJAMIN, Walter. Magia, Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. BITTAR, Marisa. História da educação: da antiguidade à época contemporânea. São Carlos: EdUFSCar, 2009. CAMBI, Francisco. História da pedagogia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999. DEVIR. In: Léxico.pt. [S.d.]. Disponível em: <https://www.lexico.pt/devir/>. Acesso em: 9 mar. 2018. ______. In: Dicionário Online de Português. [S.d.]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/ devir/>. Acesso em: 9 mar. 2018. FENOMENOLOGIA. In: Significados.com. [S.d.]. Disponível em: <https://www.significados.com. br/fenomenologia/>. Acesso em: 11 nov. 2017. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2015. GALLO, Silvio. Deleuze e a Educação - Parte um: Deleuze e a filosofia. Departamento de Arquitetura e Urbanismo Da Universidade Federal de Santa Catarina. 2007. Disponível em: <www.ufjf.br/grupar/ files/2014/09/deleuze_e_a_educacao_parte_um.pdf>. Acesso em: 9 out. 2017. GHIRALDELLI JR., P. O que é Filosofia da Educação? Rio de Janeiro: DP&A, 2000. História e filosofia da educação – caminhos cruzados 35 Unidade 1 KONDER, Leandro. Filosofia e educação: de Sócrates a Habermas. Rio de Janeiro: Forma e Ação, 2006. LAUAND, Jean. Tomás de Aquino: filosofia e pedagogia. Acta Scientiarum. Education (online), Maringá, v. 34, p. 11-18, jan./jun. 2012. LUCKESI, Cipriano. Filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 2011. MELLO E SILVA, Alexandra. O Brasil de JK – Guerra Fria. FGV / CPDOC, [s.d.]. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/PoliticaExterna/GuerraFria>. Acesso em: 23 nov. 2017. METAFÍSICA, conceito, o que é, significado. Conceitos.com. [S.d.]. Disponível em: <https://conceitos. com/metafisica/>. Acesso em: 9 mar. 2018. MORAES, Maria Célia Marcondes. Recuo da Teoria. In: MORAES, Maria Célia Marcondes et al. Iluminismo às Avessas: produção de conhecimento e políticas de formação docente. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 151-167. MORIN, Edgar. Epistemologia da complexidade. In: SCHNITMAN, Dora Fried. Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 274-287. PAVIANI, Jayme. Filosofia e educação, filosofia da educação: aproximações e distanciamentos. In: DALBOSCO, C. A.; CASAGRANDA, E. A.; MÜHL, E. H. Filosofia e Pedagogia: aspectos históricos e temáticos. Campinas, SP: Martins Fontes, 2006. p. 5 -21. POMBO, Olga. A Academia de Platão. [S.d.]. Disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/ opombo/hfe/momentos/escola/academia/index.htm>. Acesso em: 11 nov. 2017. SEVERINO, Antonio Joaquim. Filosofia. São Paulo: Cortez, 2002. UFCG – Universidade Federal de Campina Grande. Crítias de Atenas. [S.d.]. Disponível em: <http:// www.dec.ufcg.edu.br/biografias/Critia00.html>. Acesso em: 9 mar. 2018. Unidade 2 Objetivos de aprendizagem da unidade • Situar a educação no Brasil no contexto histórico e filosófico • Analisar o contexto do Brasil-Colônia e as concepções filosóficas presentes naquele momento histórico • Estudar o contexto político, econômico, social, cultural e religioso do Brasil-Império • Identificar as transformações técnico-científicas, econômicas e políticas do mundo contemporâneo e suas implicações para educação brasileira • Formular hipóteses sobre possibilidades, discutindo os limites da educação e da docência na contemporaneidade brasileira Professora Mestre Licia Maria Pedreira de Almeida EDUCAÇÃO NO BRASIL: ENTRE HISTÓRIA E FILOSOFIA Educação no Brasil: entre história e filosofia 37 Unidade 2 INTRODUÇÃO Nesta unidade apresentaremos um breve panorama a respeito da educação brasileira ao longo da história, abordando aspectos históricos e filosóficos desde o período colonial à contemporaneidade. O acesso à educação foi a grande transformação do sistema educacional na contemporaneidade, caracterizada pela busca da qualidade social e contextualização dos processos de ensino/aprendizagem. Assim, para possibilitar a necessária reflexão referente à unidade, os tópicos terão como objetivo tratar sobre as especificidades dos respectivos períodos. No primeiro, situaremos a educação no Brasil no contexto histórico e filosófico, de modo a analisar os vários períodos desde a colonização. Destacaremos os marcos históricos educacionais e suas consequências sobre a sociedade contemporânea brasileira. Já no segundo tópico, o objetivo é analisar o contexto do Brasil-Colônia, identificando as concepções filosóficas presentes naquele momento histórico. Estudar os contextos político, econômico, social, cultural e religioso do Brasil-Império da independência aos fins do século XIX, destacando marcos históricos e filosóficos com consequências educacionais, será o foco do terceiro tópico. Relativo ao quarto tópico, vamos identificar as transformações técnico-científicas, econômicas e políticas do mundo contemporâneo e suas implicações para a educação brasileira. Após esse percurso, no quinto trataremos da formulação de hipóteses acerca de possibilidades, discutindo os limites da educação e da docência na contemporaneidade brasileira. Ao longo da unidade, é importante relacionar as práticas do seu cotidiano às reflexões, para que a realidade vivenciada possa também influenciar a busca de transformações metodológicas à luz do futuro que se deseja construir. Boa leitura e bons estudos! 1. INFLUÊNCIAS FILOSÓFICAS DA FORMAÇÃO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA NA MODERNIDADE A imagem de Alice (de “Alice no país das maravilhas”), em parte de sua trajetória, na qual se pergunta qual caminho seguir, é bastante semelhante às indagações filosóficas tocantes à formação do conceito e práxis da educação brasileira. Se não se sabe aonde se quer chegar, não importa o caminho a escolher. Unidade 2Educação no Brasil: entre história e filosofia 38 Imagem de “Alice no país das maravilhas” Fonte: Pixabay. Metáfora do processo de descoberta e da importância do caminho na construção do destino, Alice representa a busca pela desidealização: um lugar que se coloca como permeável às mudanças, ao acontecimento do inesperado, da aventura, da descoberta e da surpresa. E não seria esse o melhor e genuíno jeito de aprender? Como aprender algo se consideramos “já sabermos tudo”? Quantos educadores se tornam desinteressantes ao demonstrar desprezo por conhecer coisas novas? Quantas vezesfi camos desanimados por não termos um desafi o ou algo novo que nos impulsione a crescer e a enxergar de um novo modo uma velha situação, algumas vezes aparentemente sem solução? Segundo Ozmon e Craver (2010), no momento em que podemos estar entrando em uma nova era pós-moderna é fácil para as pessoas abraçarem mais e mais mudanças, pensando pouco nas consequências fi nais, ou resistirem a elas, mantendo valores antigos a qualquer custo. Do mesmo modo, para os autores, uma fi losofi a da educação apenas se torna signifi cativa quando os educadores reconhecem a necessidade de pensar claramente sobre o que estão fazendo e de ver isso em um contexto maior de desenvolvimento individual e social. A observação das bases fi losófi cas explicitadas ou ocultas nas diferentes perspectivas e momentos históricos descritos nos próximos tópicos poderá descortinar, ou seja, revelar a retomada, na atualidade, de conhecidos argumentos educacionais do passado. O objetivo é o de permanência de alguns mecanismos de manutenção de diferenças sociais e do fosso entre aqueles que têm acesso às oportunidades e os que fi cam à margem da colheita da produção que auxiliam a gerar, mas da qual difi cilmente tomarão parte. Assim, a suposta neutralidade do processo educacional em nome da aquisição de certos conhecimentos e técnicas poderá ser percebida de modo crítico-analítico. O educador Anísio Teixeira (1959, p. 14) chamou a atenção para o fato de que Educação no Brasil: entre história e filosofia 39 Unidade 2 as relações entre filosofia e educação são tão intrínsecas que John Dewey pôde afirmar que as filosofias são, em essência, teorias gerais de educação. Está claro que se referia à filosofia como filosofia de vida. Sendo a educação o processo pelo qual os jovens adquirem ou formam “as atitudes e disposições fundamentais, não só intelectuais como emocionais, para com a natureza e o homem”, é evidente que a educação constitui o campo de aplicação das filosofias, e, como tal, também de sua elaboração e revisão. Muito antes, com efeito, que as filosofias viessem expressamente a ser formuladas em sistemas, já a educação, como processo de perpetuação da cultura, nada mais era do que meio de se transmitir a visão do mundo e do homem, que a respectiva sociedade honrasse e cultivasse. Ainda que a história da educação apresente inúmeras e variadas influências do ponto de vista filosófico, em todo esse percurso histórico sempre se considerou que o processo educacional interfere na formação dos sujeitos. Esse aspecto torna-se uma variante cultural nesse sentido, pois, para Teixeira (1959, p. 14), “baseadas em costumes e rotinas imemoriais, as culturas, quando a história delas nos deu conhecimento, já apenas podiam mudar por acidente ou por pressões externas, por choques e conflitos, desprovida a prática dos atos humanos de qualquer elemento intencional e mesmo de qualquer plasticidade para mudança ou progresso percebidos e ordenados”. Assim, também, o conceito de experiência é retomado como diferencial da intencionalidade em busca da criação no sentido de atribuir forma, ou seja, de materializar um conceito ou prática: Tudo leva a crer que nem sempre foi assim e que períodos houve em que a humanidade praticou e aprendeu pela experiência, com poder criador considerável. A domesticação dos animais, a produção de animais híbridos, a confecção de ferramentas e instrumentos, a organização social e religiosa, com toda a complexidade de ritos e instituições, demonstram que o homem usou amplamente a inteligência e a usou com eficácia e corretamente. (TEIXEIRA, 1959, p. 14). É também verdade que essa abordagem algumas vezes recai sobre a instrumentalização da educação para um fim específico e determinado, em detrimento de aliá-la às chamadas metodologias ativas, que consideram o estudante protagonista da construção de seu processo de aprendizagem. Desse modo, veremos que filosofia e história estão imbricadas e que esses elementos se entrecruzam na estruturação das abordagens pedagógicas, que se constituem no currículo, nas metodologias, nos espaços físicos da aprendizagem e consequentemente no tipo de formação praticada. Também os diferentes níveis de ensino receberam distintas influências, de acordo com as funções a que se destinam os processos de formação. Você pode atentar, por exemplo, nos modos pelos quais ocorre a aprendizagem em diferentes instituições que conheça. Pode ser a escola de um irmão, filho ou mesmo nos locais em que você estuda ou estudou. Implícitas ou explícitas, as visões filosóficas permeiam os ambientes e relações. Há escolas, por exemplo, como o Projeto Âncora, em Cotia, São Paulo, que propõem processos alternativos aos convencionais, com base na experiência visando ao desenvolvimento da autonomia. Saiba mais a respeito do Projeto Âncora em: <https://www.projetoancora.org.br/>. Fonte: Elaborado pela autora. Ainda no que se refere à filosofia da educação, de acordo com Cipriano Carlos Luckesi, quase todos os primeiros filósofos do Ocidente tiveram preocupações educacionais: “Os chamados filósofos Unidade 2Educação no Brasil: entre história e filosofia 40 pré-socráticos, os sofistas, Sócrates, Platão foram os intérpretes das aspirações de seus respectivos tempos e apresentaram-se sempre como educadores” (LUCKESI, 1994, p. 31). Para o autor: Por exemplo, os pré-socráticos, pelo que podemos saber por seus fragmentos, dedicavam-se a entender a origem do cosmos e a criar uma compreensão para a educação moral e espiritual dos homens. Os sofistas foram educadores. Foram, inclusive, no Ocidente os primeiros a receberem pagamento para ensinar. Sócrates foi o homem que morreu em função do seu ideal de educar os jovens e estabelecer uma moralização do ambiente grego ateniense. Platão foi o que pretendeu dar ao filósofo o posto de rei, a fim de que este tivesse a possibilidade de imprimir na juventude as idéias do bem, da justiça, da honestidade. Da mesma maneira, se percorrermos a História da Filosofia e dos filósofos, vamos verificar que todos eles tiveram uma preocupação com a definição de uma cosmovisão que deveria ser divulgada através dos processos educacionais. (LUCKESI, 1994, p. 31). Luckesi (1994) categorizou a educação, do ponto de vista filosófico, em três vertentes: como redenção, como reprodução ou como transformação. A primeira tem João Amós Comênio como um dos representantes. Segundo Luckesi (1994, p. 38): “A educação seria, assim, uma instância quase que exterior à sociedade, pois, de fora dela, contribui para o seu ordenamento e equilíbrio permanentes. A educação, nesse sentido, tem por significado e finalidade a adaptação do indivíduo à sociedade”. Para Comênio, Deus teria feito o mundo perfeito e os homens o estariam destruindo pela ação do pecado, que seria redimido por Jesus Cristo (LUCKESI, 1994). A educação reprodutora diz respeito à educação não crítica, na qual a escola funciona como um ambiente de reprodução social. Cita Luckesi (1994, p. 47) que “Em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, Althusser (1918-1990) faz, a partir de pressupostos marxistas, um estudo sobre o papel da escola como um dos aparelhos do Estado, como uma das instâncias da sociedade que veicula a sua ideologia dominante, para reproduzi-la”. Os valores da sociedade dominante, ou seja, hegemônica, se reproduzem também por meio da família, da Igreja, dos meios de comunicação. Porém, a escola o faz a partir da obrigatoriedade de sua frequência, que além do período de permanência, é acessível por sua gratuidade, no caso da escola pública (LUCKESI, 1994). Ao comparar as duas abordagens apresentadas, Luckesi (1994, p. 47, grifo do autor) apresenta o seguinte resumo: A tendência redentora é otimista em relação ao poder da educação sobre a sociedade, a tendência reprodutivista é pessimista, no sentido de que sempre será uma instância a serviço do modelo dominante de sociedade. Em termos de resultados, as duas tendênciasparecem chegar ao mesmo ponto. A tendência redentora pretende ‘curar’ a sociedade de suas mazelas, adaptando os indivíduos ao modelo ideal de sociedade (que, no fundo, não é outra senão aquela que atende aos interesses dominantes). A tendência reprodutivista afirma que a educação não é senão uma instância de reprodução do modelo de sociedade ao qual serve; que, no caso do presente, é a sociedade vigente. A escola transformadora, por sua vez, considera a instância educacional como mediadora: “Terceira tendência é a que tem por perspectiva compreender a educação como mediação de um projeto social” (LUCKESI, 1994, p. 48, grifo do autor). Essa abordagem compreende a possibilidade de transformação social, em conjunto com outras instâncias de participação. Paulo Freire (1921-1997) e todo seu legado relacionam-se a essa proposição político-filosófica. Educação no Brasil: entre história e filosofia 41 Unidade 2 2. EDUCAÇÃO NO BRASIL COLONIAL A colonização do Brasil ocorreu no século XVI atendendo a expectativas do cenário europeu de busca de territórios e recursos naturais que serviriam de matérias-primas para compor o mercado em expansão. Para compreender esse momento histórico, é necessário analisar o contexto político europeu que estava relacionado ao campo religioso. Nesse sentido, a Companhia de Jesus desempenhou um papel fundamental na ocupação de territórios e exerceu influência no pensamento e imaginário dos colonizados. Na Europa, Inácio de Loyola fundou a Ordem Jesuítica com o objetivo de levar a fé cristã, por meio de missões, aos povos colonizados. Aqui no Brasil, as missões jesuíticas chegaram em diversos pontos da Colônia e ocuparam espaços não só com a finalidade de catequizar, mas também de impedir a propagação da dissidência religiosa. Os jesuítas fundaram a primeira escola da colônia brasileira em 1549 e os missionários iniciaram a tarefa de ensinar a “ler e escrever” aos índios e filhos de colonos. Esse trabalho perdurou por 210 anos com o propósito central de controlar a fé e a moral dos colonos. Descobrimento do Brasil Fonte: Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo, 1887. É importante considerar que os jesuítas são a ordem religiosa exemplar do século XVI, marcado por uma aguda consciência da dimensão social e ativa da Igreja. Diferentemente das ordens monásticas medievais que eram receptivas, acolhedoras, passivas em relação aos novos adeptos, e com suas unidades autônomas (os mosteiros e abadias) representavam na Igreja a força dos poderes locais, os jesuítas são ativos, missionários, vão ao encontro de novos fiéis, fazem catequese e se põem a serviço do Papado, para reforçar a centralização institucional e a unidade doutrinária da Igreja Católica, que estavam sendo definidas no Concílio de Trento (1545-63). Os jesuítas atuam imbuídos de uma missão, de um projeto claramente inscrito na diacronia da Igreja: manter e propagar a fé católica em uma fase em que ela é contestada pela Reforma, pelas religiões orientais e dos povos do Novo Mundo, mas também internamente. (HILSDORF, 2003, p. 4). Unidade 2Educação no Brasil: entre história e filosofia 42 Foram os jesuítas que deram o pontapé inicial para o processo de implantação de um ensino formal, com a criação das escolas elementares e secundárias. Além da dificuldade de comunicação com os indígenas, que tinham outro tipo de linguagem e costumes, era difícil, da mesma forma, acessar os colonos, que em sua maioria não tinham instrução. Para que o projeto missionário fosse bem-sucedido, o Padre Manuel da Nóbrega organizou as estruturas para o funcionamento do projeto missionário baseado na rigorosa formação disposta no método de ensino Ratio Studiorum. Para que possamos compreender em que consistia esse método de ensino, vamos retomar o contexto histórico no qual foi concebido. Segundo Aranha (2001), até o Renascimento a educação estava submetida ao clero e não havia separação entre o mundo infantil e o adulto; ou seja, tratava-se da discussão do conhecimento sem se separarem os níveis de aprendizagem. As grandes descobertas e a revolução comercial trouxeram à tona uma nova classe burguesa, que também desejava o acesso ao conhecimento, não tão vinculado à esfera eclesiástica. Esse intento acabou por construir um novo modelo de ensino, que já exigia a separação entre os níveis de aprendizagem, destinando modelos diferenciados à criança e ao adulto. Às crianças, ele implicava severa disciplina, até mesmo com castigos corporais, formando-se a hierarquia escolar. Assim, os ensinamentos não permeavam apenas os conhecimentos, mas também a formação moral. O estudo era rigoroso e extenso. Ensinava-se o latim, em detrimento da língua vernácula, com ênfase na gramática e na retórica. Aqui, estamos falando de um momento de ruptura com o mundo medieval e suas estruturas. Isso não quer dizer que houve um rompimento com o elemento religioso, mas sim com o modelo religioso medieval, quando emergiram as reformas protestantes: um movimento iniciado pelos ideais de Lutero e Calvino que refutavam alguns dogmas da Igreja Católica, sendo um de seus preceitos a implantação da escola primária para todos. Estamos falando de um ideal completamente novo para aquele contexto: o da educação universal. Não só isso, uma educação para todos que deve ser de competência do Estado. Vamos abrir um parênteses para esclarecer que para as camadas trabalhadoras foi pensado um tipo de educação mais simples, primária; e para as camadas privilegiadas, o ensino médio e superior. A Igreja Católica respondeu fortemente a esse movimento com a Contra-Reforma, e os novos rumos foram decididos no Concílio de Trento (1545-1563), quando se criaram várias ordens religiosas. Nesse contexto abordaremos o colégio dos jesuítas e seu alcance na educação colonial brasileira. O objetivo da educação jesuítica era formar o gentil – homem, ou o homem culto e polido. Por meio da formação humanística, conciliando as obras clássicas com um viés religioso, a ordem religiosa utilizava textos aristotélicos, recusando-se a incorporar as descobertas científicas, para manter o pensamento católico. A ação pedagógica era baseada na formação do mestre e na uniformização da prática educativa. Foram instituídos colégios em Roma especializados na formação de professores e padres que iriam educar os gentis. Esses professores eram formados pelo método organizado, denominado Ratio atque Institutio Studiorum (Plano e Organização de Estudos da Companhia de Jesus). Esse método consistia em regras práticas sobre a ação pedagógica que desembocaria em um manual de normas Ratio Studiorum Fonte: Wikipedia ([s.d.]). Educação no Brasil: entre história e filosofia 43 Unidade 2 gerais e bibliografia necessária ao magistério, deixando pouca autonomia ao jovem mestre, uma vez que ele deveria seguir rigorosamente as regras estabelecidas. Os jovens mestres também deveriam se corresponder com as ordens para garantir a uniformização das práticas. Isso nem sempre era possível, pois a ordem jesuítica estava espalhada em diversas colônias, que muitas vezes não tinham o terreno favorável para a implantação do método, o que requeria adaptações, para facilitar a obra missionária. O que representava a alfabetização para os jesuítas a ponto de quererem, desde o início, alfabetizar os índios, quando nem em Portugal o povo era alfabetizado? Mais do que o resultado dessa intenção, interessante é observar a mentalidade. As letras deviam significar adesão plena à cultura portuguesa. Quem fez as letras nessa sociedade? A quem pertencem? Pertencem à corte, como eixo social. Não se trata, a meu ver, de possibilitar o acesso ao livro, ao livro sagrado: nem estamos na Alemanha, nem a leitura da Bíblia estava na linha do devocionismo então vigente. Trata-se de uma atitude cultural de profundas raízes: pelas letras se confirma a organização da sociedade. Essa mesma organização vai determinar os graus de acesso às letras,a uns mais, a outros menos. A certa altura da catequese dos índios, os próprios jesuítas vão julgá-las desnecessárias. E os colégios, estes sobretudo, se voltam para os filhos dos principais. A cultura hegemônica assim o dispunha. O que as letras fazem estudar? O Ratio studiorum, que organizava os estudos da Companhia, estabelecia em pormenores o currículo do colégio. A Gramática média; a Gramática superior; as Humanidades; a Retórica. Havia ainda a Filosofia e a Teologia para quem se preparasse para o sacerdócio. A presença greco-romana é incontestável. (PAIVA, 2000, p. 43-44). O Ratio Studiorum pode ser entendido pelas regras codificadas que compreendiam a disciplina, a didática e o conteúdo. Na disciplina encontramos a proteção e a vigilância constantes, substituindo o pai ausente e evitando o contato com a família, com a vida mundana. Quando essas regras não eram obedecidas, permitia-se a punição física, que não era exercida pelo padre, mas ficava a cargo de um “corretor”, não pertencente à Companhia de Jesus. E para equilibrar a rigorosa disciplina, os padres jesuítas procuravam aplicar atividades recreativas, buscando um ambiente mais saudável. No âmbito da didática, os alunos eram submetidos a cinco horas por dia de ensino do latim, filosofia e ciências, por meio da repetição constante a fim de memorizarem os ensinamentos. A dramaturgia clássica era um recurso utilizado, sem deixar de lado, é claro, os dramas litúrgicos. Já os conteúdos abrangiam uma educação humanística amparada na leitura dos clássicos gregos e latinos adaptados à literatura cristã. Nesse sentido, a gramática era privilegiada. Os jesuítas estavam mais preocupados com a formação de novos clérigos do que com a educação da juventude, quando proporcionavam um ensino eclesiástico e distanciavam os jovens das descobertas do mundo novo, renascentista e iluminista, isto é, do homem prático que precisava saber para transformar. Retomando a obra da catequese no Brasil-Colônia, situamos a criação do Colégio de São Paulo, em 1554. O Padre José Anchieta já havia iniciado seu trabalho no ano anterior, aprendendo a língua dos tupi-guarani e elaborando textos para serem utilizados na catequese, chegando até a organizar uma gramática tupi. Após um tempo, a língua tupi foi abandonada no ensino jesuíta, prevalecendo apenas a língua portuguesa. Com a dificuldade de atingir os adultos, os padres iniciaram o trabalho com as crianças indígenas, os curumins. A metodologia utilizada envolvia o teatro, a música e a poesia para aprender os bons costumes e a religião cristã. Unidade 2Educação no Brasil: entre história e filosofia 44 Padre José de Anchieta e a catequização dos indígenas Fonte: Pixabay. Havia certa distinção entre a educação destinada aos indígenas e aquela endereçada aos filhos dos colonos. Aos indígenas, ela podia ser caracterizada como uma catequização, e aos filhos dos colonos o que ocorria era a “instrução”. Esse tratamento diferenciado permitia que os filhos dos colonos aprendessem a ler e a escrever, ao passo que as tribos eram cristianizadas. Aos colonos era disponibilizado o acesso ao latim, à gramática, às artes e à teologia. Terminados os primeiros cursos, havia dois caminhos a serem percorridos: seguir o campo da teologia ou o das profissões liberais, com acesso à Universidade de Coimbra, podendo-se estudar direito, filosofia e medicina. Já a educação feminina limitava-se ao aprendizado das boas maneiras e dos afazeres domésticos. Os pressupostos do método pedagógico da educação jesuítica perduram até a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Prevalece como premissa no currículo da educação básica, na etapa do ensino fundamental, a formação básica do cidadão mediante “[...] o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo.”. Fonte: BRASIL (1996). Em 1759, os jesuítas foram expulsos da Colônia pelo Marquês de Pombal, que criou as aulas régias de latim, grego, retórica e filosofia, as quais não possuíam organização curricular, mas eram autônomas e isoladas. Os alunos se matriculavam naquelas que queriam, evidenciando a ausência de sequência nos estudos. As lições régias compreendiam o estudo das humanidades, sendo pertencentes ao Estado e não mais restritas à Igreja – foi a primeira forma do sistema de ensino público no Brasil. O primeiro concurso para professor foi realizado em 1760, e as primeiras aulas – de Filosofia Racional e Moral – efetivamente implantadas em 1774. Essa nova forma de ensino é analisada por Hilsdorf (2003) como um retrocesso pedagógico, devido até mesmo à própria condição do pessoal docente, muitas vezes mal pago e sem formação. Educação no Brasil: entre história e filosofia 45 Unidade 2 A entrada dos jesuítas na cultura colonial, por meio das missões, dos colégios e seminários, permitia a afirmação do poder da Igreja no contexto político e econômico europeu. Esse modelo começou a entrar em crise com o surgimento das ideias iluministas e o fortalecimento das monarquias nacionais, pois a Igreja representava uma ameaça ao novo modelo econômico que decompunha a ordem feudal para a ascensão do capitalismo. A atuação dos jesuítas no século XVI deve ser olhada também à luz do conceito de “missão”. Hoje percebemos a necessidade de considerar duas visões para o projeto da Companhia de Jesus: a da colonização, com o seu projeto invasor, e a da Igreja, com seu projeto missionário. Para saber mais sobre as missões jesuítas e sua relação com as crianças do Brasil Colonial, leia o artigo de Rafael Chambouleyron, “Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista”, publicado na obra História das crianças no Brasil, organizada por Mary Del Priore (Editora Contexto, 2000). Fonte: Elaborado pela autora. 3. EDUCAÇÃO NO BRASIL MONÁRQUICO Neste tópico, abordaremos a educação no Brasil Monárquico. Para tanto, é preciso situar esse período histórico apontando as mudanças geradas pela presença da família real na Colônia, em virtude das invasões napoleônicas que chegaram até Portugal e fizeram com que D. João VI e sua corte se mudassem para a colônia brasileira com a proteção da Inglaterra. A corte portuguesa chegou à cidade do Rio de Janeiro já percebendo a necessidade de adaptação do espaço às necessidades da nobreza. Assim, D. João VI implantou uma série de modificações na estrutura colonial, abrindo os portos para a vinda de produtos manufaturados, rompendo assim o pacto colonial e permitindo o intercâmbio com os ingleses. As mudanças econômicas afetaram a cultura local, com a implantação da imprensa, criação de museu, bibliotecas e academias. A influência dos ideais iluministas e a tensão entre os interesses da aristocracia rural e os ricos comerciantes portugueses, entre outros fatores, culminaram no processo de independência em 1822. Apesar desse processo, as estruturas da Colônia se mantiveram, como por exemplo a permanência da Monarquia e da escravidão. No entanto, a influência inglesa pôde ser notada no início da industrialização, que propiciou o estímulo do Estado para a vinda de milhares de imigrantes em busca de trabalho. Essa nova configuração exigia a formação de pessoas que pudessem corresponder a esse novo momento histórico. A educação no período monárquico enfatizava a formação das elites rurais e diferenciava o trabalho intelectual do manual, reforçando a lógica da organização capitalista. No Brasil-Império, a composição da sociedade era de escravocratas latifundiários, senhores de engenho, fazendeiros do café, que formavam as elites; do outro lado da pirâmide, estavam os colonos pobres e os escravos. A educação era classista, mais direcionada às elites e com viés religioso. No processo de abolição gradual da escravidão, a educação pública e a difusão do ensino primário eram uma preocupação. Um movimento lento e progressivo de escolarização tomou lugar Unidade 2Educaçãono Brasil: entre história e filosofia 46 Fonte: PROJETO MEMÓRIA DE LEITURA ([s.d.]). Não apenas no caráter administrativo podemos perceber similaridade com os dias de hoje, mas também na delimitação do público-alvo e faixa etária do ensino primário e secundário. Em 1854, o ministério imperial publicou o Regulamento da Instrução Primária e Secundária no Município da Corte, segundo o qual somente a população livre e vacinada podia ter acesso às escolas, indicando que os escravos eram proibidos de se matricular. Os jovens livres entre 5 e 14 anos estavam aptos e obrigados a frequentar as escolas primárias sob pena de multa aos pais; e aqueles entre 14 e 21 podiam se inserir no ensino secundário que, pelo fato de não ser obrigatório, tinha o acesso bastante reduzido. Quando percebemos essa demarcação da faixa etária, podemos dizer que se estabeleciam distinção e separação dos alunos sob a justificativa de diferentes direcionamentos às fases de desenvolvimento humano. mais propriamente nos espaços urbanos do Império, por meio de medidas em prol da instrução e da educação destinadas aos jovens. Assim, foram fundadas poucas escolas públicas e Escolas Normais para a formação de professores primários, atendendo aos dispostos da Constituição de 1824 que já previa a difusão da instrução primária. Embora o Império ditasse as normas da implementação do ensino primário e secundário, a administração das escolas ficava sob responsabilidade das províncias. O caráter descentralizado permitia alguma autonomia aos poderes locais, que variavam o estabelecimento do ensino atendendo às especificidades locais. Aqui, já é possível notar alguma semelhança com o modo pelo qual o ensino de hoje está organizado e estruturado. Exemplo de modelo estrutural da sala de aula no século XIX Educação no Brasil: entre história e filosofia 47 Unidade 2 Galeno, citado em manuais de medicina entre os séculos XVI e XVIII, era quem melhor definia o que fosse a primeira idade do homem: a “puerícia” tinha a qualidade de ser quente e úmida e durava do nascimento até os 14 anos. A segunda idade, chamada adolescência, cuja qualidade era ser “quente e seca”, perdurava dos 14 aos 25 anos. Na lógica de Galeno, o que hoje chamamos de infância corresponde aproximativamente à puerícia. Esta, por seu turno, dividia-se em três momentos que variavam de acordo com a condição social de pais e filhos. O primeiro ia até o final da amamentação, ou seja, findava por volta dos três ou quatro anos. No segundo, que ia até os sete anos, crianças cresciam à sombra dos pais, acompanhando-os nas tarefas do dia-a-dia. Daí em diante, as crianças iam trabalhar, desenvolvendo pequenas atividades, ou estudavam a domicílio ou na rede pública, por meio das escolas régias, criadas na segunda metade do século XVIII, ou ainda aprendiam algum ofício, tornando-se aprendizes. (PRIORE, 2000, p. 84). O currículo das escolas no Brasil-Império é um ponto importante a ser tratado, pois o Regulamento prescrevia uma pequena iniciação às primeiras letras aos filhos (sexo masculino) dos colonos brancos com a finalidade de garantir sua evangelização. A educação do povo não era laica nem pública e estava praticamente abandonada. Hilsdorf (2003) apresenta os dados do quadro geral do ensino em 1888: era acessível a somente 1,8% da população, e a quantidade de analfabetos chegava a 85%; dos 15% de alfabetizados, se fossem relacionados somente os que eram letrados, a porcentagem era menor. No regulamento, havia também uma preocupação na matrícula de meninos pobres menores de 12 anos que fossem encontrados nas ruas sem assistência. Eles tinham acesso ao vestuário e material escolar e só poderiam continuar estudando se demonstrassem capacidade, pois deveriam aprender para se tornar trabalhadores, sem condições para o acesso ao ensino secundário, que era direcionado às classes senhoriais. Imagine a cena: jovem professora alemã ao entrar na classe encontra as meninas na maior bagunça e falação. Na confusão de sua pouca experiência recorre ao método Bormann, de disciplina alemã, ordenando-as a levantar e a sentar repetidamente, até o número de cinco vezes. Pensando estar aplicando um castigo que em sua terra seria no mínimo vergonhoso, a jovem professora só consegue exaltar o ânimo das alunas, que ao tomarem o castigo por uma boa brincadeira, ‘pulavam perpendicularmente [...] divertindo-se regiamente.’ (MAUAD, 2000, p. 137). O interesse do Império na educação das crianças da elite pode ser notado por meio dos relatos dos imigrantes europeus que se ocupavam do cargo de ensinar os filhos da nobreza. Para essas crianças, o currículo abarcava uma literatura mais moralista, com lições de comportamento e valores pertinentes à época. As escolas ofereciam um ensino enciclopédico às crianças que desde os sete anos passavam por sabatinas e arguições. Sabatina é um tipo de revisão de matéria, feita, normalmente, sob forma de arguição oral, individual, pelo professor. Essa revisão das lições é feita através de perguntas e respostas, de caráter avaliativo. A arguição diz respeito ao ato de perguntar para investigar sustentação de argumentos. Fonte: Elaborado pela autora. Unidade 2Educação no Brasil: entre história e filosofia 48 Embora as novas teorias educacionais contestem fortemente a aplicação de castigos como método de ensino, ainda é recorrente a visão, por parte de alguns professores, de que a vigilância e a punição como instrumentos de controle e disciplina servem ao aprendizado das crianças. Infelizmente, nos sites de busca da Internet ainda é abundante o número de notícias sobre professores submetendo crianças e adolescentes a castigos físicos e morais. Casos são recorrentes e ferem a concepção da criança como sujeito e, portanto, portadora de direitos já previstos na Constituição Brasileira e na Lei Federal nº 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Condutas inadequadas de docentes na tarefa relacionada à formação escolar são mais comuns do que se imagina, apesar dos avanços na legislação. A imposição de punição e de castigo ainda persiste, como a ocorrida em uma escola pública do interior do estado de São Paulo. Confira o relato no link a seguir: <https://g1.globo.com/sp/ ribeirao-preto-franca/noticia/professora-e-estagiaria-sao-filmadas-ao-colocar-alunos- dentro-de-saco-de-lixo-em-restinga-sp-video.ghtml>. Fonte: Elaborado pela autora. O ensino das meninas, em colégios destinados exclusivamente ao público feminino, assumia um caráter diferenciado na medida em que se inseria no currículo aulas de costura, além de limitar os conteúdos das disciplinas. Fica claro que a escola já estabelecia o papel das mulheres na sociedade destinado aos serviços domésticos. As meninas pobres não são mencionadas no regulamento. Ao ensino secundário e superior foi dada maior ênfase, pois a prioridade seria formar a elite para o acesso às atividades intelectuais e políticas, que mais tarde propiciariam o privilégio de ascender aos cargos públicos. Assim, o ensino primário formava para os trabalhos manuais, e o secundário se ocupava com o trabalho intelectual. Em 1837, foi fundado, no Rio de Janeiro, o Colégio Pedro II, que deveria ser um modelo para as outras escolas. Só ele fornecia o diploma de bacharel. Foram também criados nessa época colégios religiosos e alguns de magistério em nível secundário. A disseminação das Instituições Escolares elementares e secundárias é um fato: em São Paulo, em 1862, a província tinha, funcionando, 79 escolas de primeiras letras masculinas e 64 femininas, dez aulas avulsas de latim e francês e uma de desenho e pintura, ao passo que os estabelecimentos particulares somavam 83 escolas elementares para meninos e 41 para as meninas, mais 47 aulas avulsas de latim, francês, inglês, geometria e aritmética, retórica, história, geografia e filosofia; dez anos depois, já haviam sido criadas 314 escolas públicas elementares masculinas e 197 femininas,e estavam registradas na Inspetoria da Instrução 46 escolas particulares de primeiras letras para meninos e 24 para meninas, mais 24 colégios e 10 aulas avulsas de estudos secundários, para única aula publica de latim e francês. Isso significa que a escola era, simultaneamente, uma instituição de educação procurada e oferecida à população, o que justificava que os diferentes grupos sócio-culturais disputassem o seu controle. (HILSDORF, 2003, p. 50). Educação no Brasil: entre história e filosofia 49 Unidade 2 As estatísticas enunciadas por Hilsdorf (2003) apontam a restrição do acesso ao ensino durante o Brasil-Império. Apesar da existência de algumas leis que procuravam cumprir com o ideal do acesso à educação, a maioria da população continuou analfabeta. Os ensinos secundário e superior eram restritos às camadas mais privilegiadas da população. Fonte: HILSDORF (2003). Este tópico procurou abordar o processo de escolarização ocorrido no Brasil-Império no contexto de transformação das relações de trabalho, modelando um ensino que previa a manutenção da ordem social, mesmo na transição para a República. 4. EDUCAÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO “Caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar.” Antônio Machado, poeta espanhol O texto em epígrafe, ao tratarmos da educação brasileira contemporânea, relaciona-se às transformações sociais ocorridas desde o final do século XIX. Tendo em vista que as formas educacionais desde a Revolução Industrial permanecem semelhantes em termos de estruturação física e curricular, a questão central que se coloca na contemporaneidade passa pela colocação das velhas formas em xeque. A Revolução Industrial foi um período de transformações radicais e transição do modo de produção para processos de manufatura no período aproximado entre 1760 e 1840. A revolução teve início na Inglaterra, alastrando-se para a Europa Ocidental e os Estados Unidos. Os métodos de produção artesanais foram substituídos pela produção por máquinas, com utilização da energia da água e da energia a vapor e de novos biocombustíveis como o carvão, além da fabricação de produtos químicos e de ferro. Ao impactar os modos de vida comunitários, a Revolução Industrial transformou as formas de convivência e consequentemente a educação passou a ter a função de preparar os indivíduos para o mundo do trabalho, com foco na produtividade. Sobre essa história acesse: <http://www.sohistoria.com.br/resumos/revolucaoindustrial.php>. Fonte: Elaborado pela autora. Cipriano Carlos Luckesi (1994) relaciona as vertentes político-filosóficas aos seus desdobramentos pedagógicos. Assim, ordenou algumas proposições: Unidade 2Educação no Brasil: entre história e filosofia 50 a) Pedagogia liberal Aparece como justificação da sociedade capitalista, dividida em classes, atuando na “preparação dos indivíduos para os papéis sociais”. • Tradicional – atua na escolarização conteudística e da chamada cultura geral, sem entretanto considerar as diferenças de condição social; • Renovada progressivista – centra-se no estudante, mas também não considera as condições materiais. Destaca-se nessa linha Anísio Teixeira, além da influência de Montessori, Decroly e, de certo modo, Jean Piaget. • Renovada não diretiva – volta-se para o desenvolvimento pessoal e a autorrealização, tendo como idealizador Carl Rogers. • Tecnicista – objetiva preparar mão de obra para a indústria. b) Pedagogia progressista Segundo Luckesi (1994, p. 63): “O termo ‘progressista’, emprestado de Snyders [Georges Snyders, 1917–2011], é usado aqui para designar as tendências que, partindo de uma análise crítica das realidades sociais, sustentam implicitamente as finalidades sociopolíticas da educação”. Essa pedagogia não tem como se institucionalizar numa sociedade capitalista. • Libertadora – ou pedagogia de Paulo Freire; • Libertária – a partir dela é defendida a autogestão; • Crítico-social dos conteúdos – a partir dela é defendida a primazia dos conteúdos, inseridos na prática social concreta. As pedagogias libertadora e libertária postulam as relações democráticas e autogestão pedagógica, além da valorização da experiência e vivências. Valorizam sobretudo os processos coletivos. De fato, muitas das transformações que se referem aos métodos ativos como aqueles que partem do princípio de que os sujeitos constroem sua formação em processo a partir de seus repertórios culturais afetaram apenas superficialmente os cotidianos das mais variadas instituições de ensino. Também é comum observar o acesso a certas modificações metodológicas em instituições que reiteram as discrepâncias entre os tipos de tratamento àqueles que historicamente foram beneficiados com as possibilidades de aprendizagem diversificadas, ao passo que a maioria fica relegada à preparação para a manutenção do sistema como está. Se o mundo se transformou, por que as escolas deveriam manter-se sempre as mesmas? É fundamental pensar que se há tanta resistência às mudanças, provavelmente alguns dos pressupostos que sedimentaram a educação da forma pela qual ainda se apresenta permanecem na atualidade, como por exemplo a necessidade de certos indivíduos e representantes de extratos sociais lutarem para a permanência no poder e hegemonia de seus ideais e modos de vida. Confira mais sobre essa temática em: <http://sociedadepublica. com.br/desafios-da-educacao-contemporanea/>. Fonte: Elaborado pela autora. Educação no Brasil: entre história e filosofia 51 Unidade 2 É comum por exemplo, observar estudantes, em grande parte das escolas, enfileirados em carteiras e obedecendo às sirenes que marcam os horários e as atividades a serem executadas. Nesse sentido, o processo se assemelha aos instituídos nas chamadas linhas de produção. Atualmente, ainda que estes não se verifiquem do mesmo modo como nos séculos XVIII e XIX, percebe-se certa tentativa de homogeneização com base nos conceitos atuais de empreendedorismo, capacitação e meritocracia. No Brasil, uma série de experiências alternativas ao modo hegemônico foram iniciadas. O movimento denominado Escola Nova, a partir da construção do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, buscava defender, entre outras questões, a universalização do ensino e a educação pública de qualidade. O importante educador Anísio Teixeira, um “ilustre desconhecido” de grande parte dos educadores brasileiros, foi um dos significativos participantes do movimento. Além dele, estiveram envolvidos Cecília Meireles e Lourenço Filho, entre outros. É certo que o escolanovismo buscava propiciar a popularização do acesso ao ensino de modo pragmático, traduzindo muitas das influências do educador John Dewey para o Brasil. Assim, a inserção proposta se daria também em função da preparação para a sociedade, questionada atualmente. A origem da movimentação por uma educação nova foi processual, tendo como influências a reforma de Sampaio Dória (1920), a Semana de Arte Moderna (1922) e a criação da Associação Brasileira de Educação (1924). Em 1930, o Governo Provisório de Getúlio Vargas propôs-se a reformar o ensino em todos os seus níveis. Em 1931, a Associação Brasileira de Educação promoveu um congresso em Niterói que objetivava apresentar ao governo sugestões relativas às mudanças que deveriam ser introduzidas, o que mobilizou a escritura de um documento intitulado “O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932). Ele pode ser conferido em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/22e/doc1_22e.pdf>. Fonte: Elaborado pela autora. Já a experiência das escolas vocacionais, criadas e em operação na década de 1960, trouxe prerrogativas de pensar a educação como processo de transformação cultural, ou seja, não apenas de inserção ao que estava construído socialmente, mas sobretudo transformando a realidade social a partir da reflexão crítica, como, por exemplo, ao considerar os interesses mobilizadores da aprendizagem em contato íntimo com as comunidadesem que estavam inseridas. De modo absolutamente coerente e contundente, Paulo Freire realizava o movimento de alfabetização de adultos, em Angicos, interior do Rio Grande do Norte (um dos círculos de cultura implantados no projeto-piloto do Programa Nacional de Alfabetização (PNA), criado oficialmente em janeiro de 1964). Ambas as experiências foram perseguidas e interrompidas com a instauração brutal da ditadura civil-militar em abril de 1964. Segundo Gadotti (2016, p. 155), “[...] a primeira vítima do golpe de 1964 foi a Educação Popular, estreitamente associada à Cultura Popular”. Paulo Freire inaugurou na área pedagógica chances efetivas de se considerarem as hipóteses dos estudantes com relação aos diversos temas abordados no processo de escolarização, reforçando a tese segundo a qual não há erro, mas uma hipótese em elaboração. Esta precisa ser compreendida numa perspectiva de diversidade de formas de se conceber algo ou resolver um problema, que é sempre uma dúvida, questão ou desestabilização do sujeito ou grupo diante de uma necessidade real. Em um artigo alusivo aos 50 anos da experiência de Angicos e do Plano Nacional de Alfabetização, assim se posicionou o Instituto Paulo Freire ([s.d.]): Unidade 2Educação no Brasil: entre história e filosofia 52 Cuidado, porém: Angicos não pode ser simplesmente uma alternativa ao empobrecido e desmobilizador do discurso neoliberal, criando outro discurso alternativo. Angicos é também uma metáfora de um discurso radical para que a escola pública se torne popular, um discurso que não se estacione na mera retórica, mas um discurso que convide para a ação, um discurso que transite da teoria à prática, um discurso que reconstrua as bases da gestão educacional no Brasil e no mundo todo, sobre as ruínas da tormenta neoliberal. Só assim Angicos, como metáfora, pode transformar-se em realidade. Atividade com educandos em Angicos Fonte: INSTITUTO PAULO FREIRE ([s.d.]). Também as práticas de Madalena Freire com crianças e de Paulo Freire com adultos lastrearam grande legado para se efetivar uma educação revolucionária, ou seja, com vistas à profunda transformação social. Para finalizar este tópico, fica a dica de que os elementos vistos na unidade em estudo se tornam absolutamente relevantes no momento atual, no qual se discutem os rumos da educação do século XXI, como veremos a seguir. 5. LIMITES E POSSIBILIDADES DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA Iniciamos este tópico com uma indagação bastante relevante de Gaudêncio Frigotto sobre o projeto de educação escolar e de formação técnico-profissional para os dias de hoje. Educação no Brasil: entre história e filosofia 53 Unidade 2 Que tipo de projeto de educação escolar e de formação técnico-profissional é necessário para uma sociedade que, ao mesmo tempo, moderniza o arcaico e convive com o atraso de determinados setores, a hipertrofia do trabalho informal, a precarização do trabalho formal e o analfabetismo? Esses fenômenos não foram impeditivos ao tipo de desenvolvimento protagonizado pela classe dominante. Pelo contrário, o seu projeto de desenvolvimento se ergueu a partir da desigualdade e se alimenta dela. (FRIGOTTO, 2010, p. 241). A questão colocada por Frigotto é emblemática da educação contemporânea do século XXI. Nos últimos anos, vimos uma série de mobilizações pela moralização política, algumas vezes captadas por movimentos que “demonizam” a participação social e política, que de fato representa o envolvimento dos cidadãos na determinação dos assuntos que dizem respeito a todos como coletividade social. Ou seja, em uma cidade, um estado, um país, em um bairro ou instituição da qual fazem parte, os sujeitos devem comprometer-se com as deliberações e práticas. Para tanto, os conhecidos termos “desenvolver a consciência crítica, a cidadania, a criatividade” tornam-se apenas palavras recorrentes nos mais diversos projetos político-pedagógicos, os PPPs das instituições educacionais, comumente relegados ao registro “morto” daquilo diferente do praticado no denominado “chão da escola”. Segundo Adorno (1995, p. 150), “o que caracteriza propriamente a consciência é o pensar em relação à realidade, ao conteúdo – a relação entre as formas e estruturas de pensamento do sujeito e aquilo que este não é”. Para Adorno, a consciência ou faculdade de pensar não representa apenas o desenvolvimento lógico formal, mas corresponde à capacidade de fazer experiências. “Eu diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais. Nesta medida e nos termos que procuramos expor, a educação para a experiência é idêntica à educação para a emancipação” (ADORNO, 1995, p. 150). Portanto, a concepção inicial de educação do autor se constitui na chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua idéia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. (ADORNO, 1995, p. 141-142). Ou seja, para Adorno, uma democracia não deve apenas funcionar, mas, para operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas: “Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado” (ADORNO, 1995, p. 140-141). Do mesmo modo, pessoas que defendem ideais contrários à emancipação seriam antidemocratas, apontando para “uma esfera a que deveríamos nos opor não só exteriormente pela política, mas também em outros planos muito mais profundos” (ADORNO, 1995, p. 140-141). Nesse particular, ao elencarmos temas recorrentes na atualidade como educação integral, educação inovadora, inter, multi e transdisciplinaridade, educação em valores e direitos humanos, estes necessariamente pertencem às metodologias aplicadas no dia-a-dia das escolas e âmbitos formativos, nos quais o currículo praticado revela também as concepções de educação praticadas explicitamente ou ocultas. Unidade 2Educação no Brasil: entre história e filosofia 54 Fonte: Pixabay. “[...] a questão da escola e de sua qualidade não é sobretudo um problema de currículo ou de formação dos professores, mas sim de que a sociedade coloque a educação como problema. Podemos sustentar que, definitivamente, a educação escolar básica (fundamental e média), pública, laica, universal, unitária e tecnológica que desenvolva as bases científicas da societas rerum (conhecimento científico para o domínio e a transformação racional da natureza) e da societas hominum (consciência dos direitos políticos, sociais, culturais e capacidade de organização para atingi-los) a que se refere Gramsci (1979) nunca se apresentou como problema para a classe dominante brasileira, exatamente por uma questão de classe. Mas igualmente, por sua cultura e mentalidade escravocrata, colonizadora, e por sua associação subordinada ao grande capital, nunca se apresentou de fato, e sim apenas de forma retórica e moralista, nem mesmo uma escolaridade e formação técnico-profissional para a maioria dos trabalhadores de modo a prepará-los para o trabalho complexo que os tornasse, como classe detentora do capital, em condições de concorrer com o capitalismo central.”. Fonte: FRIGOTTO (2010, p. 263). Os limites e possibilidades, ao mesmo tempo, dependem da reflexão com relação às práticas que são reprodutoras das formas ditas consagradas ou “sempre foi assim”, desnaturalizando as estruturas internalizadas em nosso comportamento, impregnadas nas práticas escolares. A organização coletiva, a gestão democrática e a gestão dos espaços de aprendizagem podem e devem ser espaços vivos de convivência, trazendo coerência com os projetos pedagógicos, que precisam ser revistos constantemente, com a participação de toda a comunidade. Temas diversos pertencem às metodologias aplicadas no dia-a-dia das escolasEducação no Brasil: entre história e filosofia 55 Unidade 2 Também é necessário que os processos educacionais sejam voltados à solução de problemas concretos, envolvendo os sujeitos da aprendizagem como protagonistas das transformações sociais, sendo, portanto, responsáveis por seu processo de aprendizagem. A avaliação deste deve, pois, levar em consideração os processos de apropriação de novos conhecimentos e mudanças, sendo o referencial as conquistas individuais e coletivas, com base nos objetivos, planos e sonhos identificados, bem como o ponto de partida e o processo trilhado para alcance das metas estabelecidas. Exemplo de sala de aula contemporânea Fonte: Unsplash. CONCLUSÃO Em tempos de “Escola sem partido”, das discussões em torno da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), das reflexões a respeito das diferenças fundamentais entre educação integral e em tempo integral, das miscelâneas pedagógicas, da defesa do empreendedorismo e mercado de trabalho e da precarização do trabalho com a reforma trabalhista, entre outras questões atuais, faz-se urgente retomar alguns elementos emancipatórios perdidos na história da educação brasileira progressista. Os pressupostos desta, comprometida não apenas com a inclusão de pessoas na escola, indicam que elas não se adaptam ao sistema, mas o questionam e o alteram. E isso diz respeito fundamentalmente ao questionamento ante as tentativas de perpetuação das diferenças e ameaças constantes aos direitos sociais e humanos, com a explicitação ou práticas veladas que incentivam a competitividade, o preconceito relativo às mais variadas diferenças culturais, étnicas, religiosas e de comportamento, entre outras. Práticas como as chamadas comunidades de aprendizagem, a busca por soluções colaborativas, o desvelamento de situações da realidade dadas até então como imutáveis permitem a contestação de um estado de coisas que, por exemplo, torna perenes as distâncias entre educadores e estudantes, como se aos últimos restasse soterrar suas experiências de vida e seu repertório de conhecimentos prévios, Unidade 2Educação no Brasil: entre história e filosofia 56 suas expectativas de qualidade de vida para tão simplesmente adaptar-se ao sistema educacional e social. Embora atrelado à engrenagem maior do sistema e representando também uma de suas bases estruturantes, o sistema educacional fornece inúmeras possibilidades de experimentação de práticas criativas, alternativas e coletivas, como já vem ocorrendo por todo o país, às quais pode ser conferida visibilidade e oportunidades de partilha. A partir do conhecimento de que é possível, muitas pessoas e comunidades são inspiradas a fazer algo diferente, a fazer algo melhor do que o já conhecido, trilhando novos caminhos que se constituam em processo. Processos nos quais se reconheça a beleza de não estar pronto, mas descobrir beleza e prazer, como disse Paulo Freire, necessários à verdadeira aprendizagem e transformação. ELEMENTOS COMPLEMENTARES #FILME# Título: A Missão Direção: Roland Joffé Ano: 1986 Sinopse: No final do século XVIII, Rodrigo Mendoza, um mercador de escravos espanhol que faz da violência seu modo de vida, mata o próprio irmão na disputa pela mulher que ama. Porém, o remorso leva-o a juntar-se aos jesuítas, nas florestas brasileiras. Lá, ele fará de tudo para defender os índios que antes escravizara. #FILME# Título: Carlota Joaquina, a princesa do Brasil Direção: Carla Camurati Ano: 1995 Sinopse: A morte do rei de Portugal D. José I, em 1777, e a declaração de insanidade de D. Maria I, em 1792, levam seu filho D. João e sua mulher, a espanhola Carlota Joaquina, ao trono português. Em 1807, para escapar das tropas napoleônicas, o casal se transfere às pressas para o Rio de Janeiro, onde a família real vive seu exílio de 13 anos. Na Colônia aumentam os desentendimentos entre Carlota e D. João VI. Educação no Brasil: entre história e filosofia 57 Unidade 2 #LIVRO# Título: A paixão de conhecer o mundo Autora: Madalena Freire Ano: 1983 Editora: Paz e Terra Sinopse: Num relato envolvente e apaixonado, a educadora Madalena Freire conta do relacionamento entre professores e alunos e de como o conhecimento é fruto dessa relação. Nessa experiência, a pedagogia assume uma dimensão criativa e pulsante, a ser vivenciada coletivamente, num intercâmbio constante. Mesmo que você não trabalhe com crianças, essa leitura é essencial para a reconfiguração das práticas escolares. A obra é referência fundamental para as pessoas que desejam se transformar enquanto atuam para ressignificar as relações no mundo. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. A EXPERIÊNCIA. 50 anos da Revolução Freiriana na Educação. Instituto Paulo Freire, [s.d.]. Disponível em: <http://angicos50anos.paulofreire.org/a-experiencia/>. Acesso em: 6 dez. 2017. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. São Paulo: Moderna, 2001. BRASIL. Lei. n. 9.394/1996, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, 23 dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 6 dez. 2017. CHAMBOULEYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In: PRIORE, Mary Del. História das Crianças no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2000. p. 55-83. FRIGOTTO, Gaudêncio. Fundamentos científicos e técnicos da relação trabalho e educação no Brasil de hoje. In: LIMA, Júlio César França. Fundamentos da Educação Escolar do Brasil contemporâneo. São Paulo: Fiocruz, 2010. p. 241-260. GADOTTI, Moacir. A escola cidadã frente à “Escola sem Partido”. In: Ação Educativa (Org.). A ideologia do movimento escola sem partido: 20 autores desmontam o discurso. São Paulo: Ação Educativa, 2016. p.149-160. HILSDORF, Maria Lúcia Spedo. História da educação brasileira: leituras. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2003. LITERATURA Infantil (1880-1910). Projeto Memória de Leitura. Unicamp, [s.d.]. Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/LiteraturaInfantil/contedu.htm>. Acesso em: 28 nov. 2017. LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da Educação. São Paulo: Cortez, 1994. Unidade 2Educação no Brasil: entre história e filosofia 58 MACHADO, Antonio. Cantares. In: _______. Proverbios y Cantares. Madrid: El Pais, 2003. MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o Império. In: PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2000. p. 137-176. O MANIFESTO dos Pioneiros da Educação Nova. Revista HISTEDBR, Campinas, n. especial, p. 188- 204, ago. 2006. Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/22e/doc1_22e. pdf>. Acesso em: 6 dez. 2017. OZMON, Howard A.; CRAVER, Samuel M. Fundamentos filosóficos da Educação. São Paulo: Artmed, 2010. PAIVA, José Maria. A educação no Brasil Colonial. In: LOPES, Eliana Marta Teixeira, FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive (Org.). 500 anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 43-59. PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2000. PROFESSORA e estagiária são filmadas ao colocar alunos dentro de saco de lixo em Restinga, SP; vídeo. G1, 15 nov. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/ professora-e-estagiaria-sao-filmadas-ao-colocar-alunos-dentro-de-saco-de-lixo-em-restinga-sp- video.ghtml>. Acesso em: 28 nov. 2017. TEIXEIRA, Anísio. Filosofia e educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 32, n. 75, p.14-27, jul./set. 1959. Unidade 3 Objetivos de aprendizagem da unidade • Destacar as concepções filosóficas que influenciam a educação no Brasil contemporâneo • Reconhecer as principais reformas educacionais contemporâneas no início do século XX, analisando o contexto histórico e fundamentos filosóficos subjacentes • Reconhecer as principais reformas educacionais do Estado Novoe o processo de democratização do ensino • Apontar as mudanças no sistema de ensino pós-golpe de 1964, destacando as influências de organismos internacionais na política educacional • Elencar possibilidades, discutindo os limites da educação na contemporaneidade brasileira Professora Mestre Licia Maria Pedreira de Almeida EDUCAÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: FATORES HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS COMO LIMITES E POSSIBILIDADES Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 60 INTRODUÇÃO Olá! Continuando com o percurso que estamos fazendo desde a primeira unidade, dessa vez o foco na história da educação será mais detalhado. Você lembra que comentamos a respeito das relações entre história e filosofia? E também dialogamos sobre como os dois aspectos se entrecruzam e influenciam decisivamente as metodologias e práticas, bem como os currículos educacionais e formativos? Pois bem! Chegou a hora de analisarmos também as reformas e as decisões governamentais que determinam em grande parte o que acontece nas escolas. Já havia pensado nisso? Portanto, nesta unidade, depois de, no primeiro tópico, destacar as concepções filosóficas que influenciam a educação no Brasil contemporâneo, identificaremos no segundo o percurso histórico das reformas educacionais do início do século XX, influenciadas pelos ideais escolanovistas. Chegando ao terceiro tópico, você será capaz de reconhecer ou tomar contato com as principais reformas educacionais a partir do Estado Novo, indicando avanços e retrocessos na construção de políticas públicas contemporâneas no Brasil. Também analisaremos seu contexto histórico e fundamentos filosóficos subjacentes, pois, como vimos, eles estão sempre presentes, ainda que não seja de modo explícito. Fique sempre atento ou atenta! No quarto tópico, serão elencados aspectos da educação durante o golpe de 1964 e no processo de redemocratização que se seguiu, relacionando-os à influência de organismos internacionais e à política neoliberal. Não se preocupe, pois no quinto tópico estabeleceremos possibilidades, discutindo os limites da educação na contemporaneidade brasileira. Iremos perceber que, mesmo diante de uma realidade difícil, existem experiências no Brasil e no mundo que merecem ser compartilhadas e – por que não – servir de inspiração para a nossa prática. Fique tranquilo(a), porque terá muitos motivos para se animar com sua prática educacional. Afinal de contas, como diz o ditado popular, “uma andorinha não faz verão”. E aqui, estamos juntos, assim como você deve encontrar parcerias no curso e no seu trabalho! Como a célebre frase de Os Saltimbancos, “juntos somos fortes”. Vamos em frente e que você tenha um excelente aproveitamento da unidade. 1. INFLUÊNCIAS FILOSÓFICAS NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA O grande destaque filosófico do século XX perante as significativas mudanças previstas para o século XXI é o conceito de transformação. Uma das influências contemporâneas é a que concebe a educação como potencial transformador da realidade. Para tanto, a concepção de sujeito é fundamental, ou seja, a visão segundo a qual o estudante é protagonista de seu processo de ensino/aprendizagem, o qual, como defendeu Paulo Freire em diversos escritos, diz respeito a algo que não se encerra, portanto é inacabado, já que existe a chamada “provisoriedade do conhecimento”: Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 61 Unidade 3 A consciência do mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca. Na verdade, seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano não se inserisse em tal movimento. É nesse sentido que, para mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros. Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem “tratar” sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação, sem politizar não é possível. (FREIRE, 2010, p. 57-58). Você deve estar se perguntando o motivo pelo qual aparece na citação de Paulo Freire o termo político, se estamos falando de processo de ensino/aprendizagem. Aqui ele significa aquilo que diz respeito a todos, na pólis, que quer dizer cidade. Etimologia é a ciência que estuda a origem das palavras. E, de acordo com essa ciência, o termo político deriva do grego politikós, no sentido de “relativo a cidadão”, público; popular; capaz de viver em sociedade. Então, atenção para não confundir político com partidário. Os partidos fazem parte da organização de um sistema democrático e o objetivo dessas instituições seria defender projetos de sociedade. Fonte: Elaborado pela autora. Mas, voltando aos processos de ensino/aprendizagem como inacabados, como citado no trecho acima, isso acontece por um tipo especialíssimo de visão social e de ensino/aprendizagem. Já sabe qual é? Aquela que compreende o mundo em processo de transformação. As coisas não são do modo como são por acaso e podem ser modificadas pela ação humana – pela minha ação, por exemplo, ao escrever este conteúdo e buscar interlocução com você, e na sua ação também, no modo como interage aqui e na vida. Não é interessante quando pensamos assim? Do mesmo modo, o parâmetro de crescimento e aprendizagem somos nós mesmos, e não nosso professor, pois a avaliação processual leva em conta o ponto de onde partimos e ao qual chegamos. É importante frisar que essa concepção tem também base no chamado construtivismo, sobre o qual provavelmente você já ouviu falar. De acordo com o Referencial Curricular Para a Educação Infantil: A concepção de construção de conhecimentos pelas crianças em situações de interação social foi pesquisada, com diferentes enfoques e abordagens, por vários autores, dentre eles: Jean Piaget, Lev Semionovitch Vygotsky e Henry Wallon. Nas últimas décadas, esses conhecimentos que apresentam tanto convergências como divergências, têm influenciado marcadamente o campo da educação. Sob o nome de construtivismo reúnem-se as ideias que preconizam tanto a ação do sujeito, como o papel significativo da interação social no processo de aprendizagem e desenvolvimento da criança. (BRASIL, 1998, p. 22). Assim, os aspectos da aprendizagem compreendidos como processo contemplam as teorias que consideram o desenvolvimento complexo a partir de inúmeros fatores. A elaboração do conhecimento é decorrência de processos de interação e também individualizado. Ao tratar da aplicação prática das teorias construtivistas à educação, privilegia-se a formação integral das crianças, respeitando as características pessoais e os aspectos psicológicos, físicos e cognitivos delas, a partir da valorização de sua cultura pessoal e dos seus conhecimentos prévios, com base nos quais desenvolve-se a educação de qualidade, contextualizada. Isso se dá também a partir de premissas pedagogicamente viáveis Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 62 envolvendo a ludicidade, a aprendizagem contextualizada e o aprimoramento signifi cativo das potencialidades e, sobretudo, favorecendo a socialização e o estímulo à participação ativa e consciente na sociedade, construindo coletivamente propostas para o mundo sustentável. Engrenagem Fonte: Pixabay. Preocupar-se com a educação, no sentido de que esta não forneça apenas conteúdos mais e mais elaborados a cada dia ou época que passamos, é algo necessário e oportuno. Isso porque é preciso pensar na criança ou em um ser adulto como um indivíduocompleto, que necessita de vários estímulos e oportunidades para que tenha um desenvolvimento global. Nesse sentido, a aprendizagem deve estar direcionada aos aspectos físicos, mentais, emocionais e socioculturais, promovendo o equilíbrio entre estes, possibilitando o ajustamento do indivíduo ao meio e, ao mesmo tempo, contribuindo para a preparação dele no que se refere à interação saudável e produtiva entre ambos. Se você ainda não teve contato com o material do Referencial Curricular para a Educação Infantil, acesse os exemplares dele nesses links. É um material interessantíssimo e fundamental ao trabalho com crianças. São três volumes: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume2.pdf http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume3.pdf Fonte: Elaborado pela autora. Ora, se educarmos conscientemente as crianças para a vida em grupo, formando cidadãos para o presente – na medida que devem, desde cedo, apresentar comportamentos e atitudes de respeito ao próximo e participação ativa em seu meio –, estaremos, sem dúvida, contribuindo com o desenvolvimento futuro, no sentido mais específi co que isso representa, incluindo qualidade nas relações humanas e de sobrevivência. Se, por um lado, existem meios próprios e naturais que asseguram a perpetuação de valores e sentimentos, por outro, a escola deve se ocupar da incrementação desse Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 63 Unidade 3 processo, visto que representa uma das principais engrenagens, fundamentais para o funcionamento da sociedade como um todo, já que transmite conceitos sociais, detendo o poder de controle e, sobretudo, transformação. Infelizmente, a construção democrática da educação vem sendo alvo de muitas reações, já que existem movimentos para torná-la novamente algo bastante voltado ao chamado mercado de trabalho. O novo nome para antigos pressupostos de formação utilitária é empreendedorismo, que vem sendo discutido em conjunto com Reforma Trabalhista e da Previdência. Fique ligado nesses temas, pois eles estão totalmente relacionados à educação. E você, atuante na área, precisa saber de tudo o que acontece e influencia os espaços de ensino/aprendizagem. Essa consiste, portanto, na materialização de influências filosóficas de correntes diferentes da proposição citada até aqui. Fonte: Elaborado pela autora. 2. REFORMAS DA EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a escola pública.” Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932) Neste tópico vamos conhecer um pouco da trajetória educacional do Brasil pós-Proclamação da República. Ao analisarmos o contexto do país na época, podemos perceber que 60% da população era rural. A abolição dos escravos era recente, e as taxas de analfabetismo chegavam à marca de 75%. Dava- se início à aceleração urbana, e o investimento no ensino ainda era precário. Qualificar a população para o trabalho industrial e urbano era uma das demandas, e não só isso, preparar aqueles que iriam trabalhar na lavoura, com a substituição do trabalho escravo para o trabalho livre. Havia um intenso processo de imigração europeia para mão de obra. Escola brasileira nos anos 20 do século passado Fonte: Centro de Referência em Educação Mário Covas ([s.d.]). Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 64 Os ideais republicanos foram amplamente discutidos, e intelectuais se articularam em torno da propaganda da educação e de iniciativas de reformas educacionais nos estados. Essa bandeira influenciava propostas de disseminação da instrução popular. Assim, diversas reformas ocorreram no século XX em busca de ampliar o sistema de ensino público: Reforma Benjamin Constant (1890), Reforma Epitácio Pessoa (1901), Reforma Rivadávia Correia (1911), Reforma Carlos Maximiliano (1915). Para efeitos deste estudo, enfatizaremos as características de algumas reformas do ensino público, procurando destacar permanências nos caminhos das políticas educacionais. Desse modo, abordaremos as reformas ocorridas em São Paulo: Reforma Caetano de Campos e Reforma Sampaio Dória; e, visando a ressaltar os ideais escolanovistas – aquele movimento marcado pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932) que abordamos na unidade anterior – pontuaremos as reformas pensadas pelos intelectuais que participaram desse processo. Destacaremos, portanto, as Reformas de Lourenço Filho (Ceará), Anísio Teixeira (Bahia) e Fernando de Azevedo (Rio de Janeiro, então Distrito Federal). 2.1. Reforma Caetano de Campos Caetano de Campos encabeçou o movimento de institucionalização de um modelo de educação baseado nos métodos norte-americanos e, juntamente com outros intelectuais, organizou a primeira Escola Normal de São Paulo. A finalidade era preparar educadores que multiplicassem o exemplo dos mestres formados no estrangeiro, por meio também de material escolar importado. Aliadas a essa estratégia, as escolas tinham prédio apropriado e criavam um método de ensino baseado na observação, pois anexa à Escola Normal existia a Escola Modelo onde: [...] os futuros mestres podiam “ver como as crianças eram manejadas e instruídas”. Desse modo de aprender centrado na visibilidade e na imitabilidade das práticas pedagógicas esperava-se a propagação dos métodos de ensino e das práticas de organização da vida escolar. Procedimentos de vigilância e orientação acionados nos dispositivos de Inspeção Escolar produziam a uniformização necessária à institucionalização do sistema de ensino que a propagação do modelo pretendia assegurar. (CARVALHO, 2000, p. 225). A forma de ensinar era baseada no “método intuitivo” e dispunha das seguintes características: ensino seriado, classes homogêneas e reunidas em um mesmo prédio, sob uma única direção, métodos pedagógicos modernos seguidores da Escola Modelo. Assim, o ensino paulista serviria de modelo para os outros estados do Brasil. “Valorizando a intuição como elemento essencial do conhecimento, o método se divide em três graus, detalhados por Buisson (1897): a intuição sensível, a intuição intelectual e a intuição moral. A intuição sensível é considerada como a primeira etapa do método, conhecida no ensino primário e nos jardins de infância sob a denominação de lições de coisas, consiste em ensinar as crianças a observar: ver, sentir, tocar, distinguir, medir, comparar, nomear, para depois conhecer, ou seja, educar os sentidos para depois exercê-los. A segunda forma de intuição – a intelectual – consiste no desenvolvimento da inteligência por meio do raciocínio, da abstração e reflexão, ultrapassando a intuição sensível. A intuição moral ocupa o terceiro grau no desenvolvimento do ensino intuitivo e consiste em educar a criança quanto aos aspectos morais e sociais.”. Fonte: SCHELBAUER ([s.d.]). Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 65 Unidade 3 Estudantes italianos em Campinas Fonte: WIKIPEDIA ([s.d.]). 2.2. Reforma Sampaio Dória Em 1920, era alarmante o número de analfabetos no país, e a instrução das camadas populares, sobretudo a operária, tornou-se uma preocupação prioritária no âmbito do ensino. Com esses dados, começaram os questionamentos sobre a forma de ensinar prescrita pela Reforma Caetano de Campos, dando início ao processo de pensar novos métodos que dessem conta de sanar a problemática. Sampaio Dória foi o intelectual que se debruçou sobre a implantação de um novo modelo de ensino e nova estrutura para as escolas em São Paulo. Inspirado pelo método de intuição analítica, o educador, com vistas a permitir acesso a maior camada da população pobre, rural e urbana e diminuira taxa de analfabetismo, reduziu a escolaridade primária obrigatória de quatro para dois anos. Invertia-se, assim, o programa de Caetano de Campos, pois pensava-se que a redução da carga horária possibilitaria o acesso a maior número de estudantes, especialmente os das camadas mais pobres. O conceito pedagógico que legitimava a iniciativa era o método de intuição analítica, o qual partia da premissa de que um tempo menor seria suficiente para que o aluno desenvolvesse a capacidade de conhecer. Influenciado pelas teorias da chamada Escola Nova, Sampaio Dória procurava o equilíbrio na relação pedagógica. Não considerava o aluno um ser passivo, por isso o professor não deveria centralizar o ensino. Para o educador, a aprendizagem só acontecia quando o conhecimento racional e as informações dos sentidos trabalhavam juntos. A Reforma Sampaio Dória defendia os seguintes princípios: controle e padronização dos procedimentos, com a unificação e centralização das diversas instituições de formação de professores; reforço da inspeção escolar e criação das Delegacias Regionais de Ensino; redução da carga horária de quatro horas, para duas horas e meia diárias, por cinco dias por semana; e extensão da instrução primária às camadas pobres da população. Fonte: Elaborado pela autora. Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 66 A redução da carga horária gerou uma polêmica amplamente debatida na época: ensino primário incompleto para todos ou ensino integral para alguns? Como veremos mais a frente, alguns educadores se posicionaram veementemente contra a solução da diminuição do tempo escolar para permitir maior acesso da população. O fato é que foi com Sampaio Dória que se inaugurou no Brasil a prática, muitas vezes reproduzida, da redução do tempo/qualidade escolar a que cada criança teria direito (CAVALIERI, 2003). Marta Chagas Carvalho (2000) aponta esse debate como uma tentativa política para frear o projeto de levar a leitura e a escrita às camadas populares. É importante considerar que o contexto histórico vivenciado remete à crise oligárquica, na qual a aristocracia rural perdia espaço para a expansão urbana e a movimentação cívica. Por outro lado, havia também a intenção de controle das camadas trabalhadoras; por isso, no decorrer dos anos de 1920, o projeto modernizador se transforma: [...] sob o impacto desse interesse de estruturar mecanismos de controle do quotidiano das populações pobres nos grandes centros urbanos. O aceleramento dos processos de industrialização e urbanização atraía para as grandes cidades populações que, provenientes de outras culturas (como era o caso dos imigrantes), ou de regiões muito pobres do país, não partilhavam os códigos comportamentais que regiam o quotidiano da convivência interclasses no espaço urbano. (CARVALHO, 2000, p. 233). “Hoje, o aumento do tempo de escola com vistas à melhor qualidade pode, da mesma forma, obter, como resultado principal, a cristalização da prática educativa de baixa qualidade. Se a ampliação do tempo for entendida como algo passível de uniformização e essencialmente ou necessariamente positivo, o resultado poderá ser o inverso do pretendido. A ampliação do tempo de escola só será parte da busca pela qualidade se trouxer à pauta a discussão das formas de utilização do tempo, dos objetivos e possibilidades reais de um uso efetivamente enriquecedor desse tempo escolar. O aumento do tempo de escola sem o respectivo aumento da qualidade pode prestar um serviço às visões assistencialistas e/ou repressivas, que apenas incrementam o controle social sem garantir a formação da cidadania e a ampliação de horizontes culturais. Na presente realidade educacional brasileira, a fórmula da escola mínima parece completamente esgotada. A expansão não pode mais justificá-la. Além da definição dos 200 dias letivos com carga horária mínima de 4 horas, a atual LDB, como já vimos, trouxe a indicação de aumento progressivo da jornada escolar no ensino fundamental, bem como de implantação do tempo integral. Estados e municípios já implementam políticas nessa direção”. Fonte: CAVALIERE (2003, p. 43). 2.3. Reforma Lourenço Filho - Ceará Lourenço Filho foi autor de estudos que embasavam a metodologia utilizada na Escola Normal. Nessas pesquisas, estava preocupado não apenas em educar todas as crianças, mas em como fazer isso. No Ceará, a convite de Sampaio Dória, empreendeu esforços para reformar o ensino, que se encontrava em situação extremamente difícil: professores semianalfabetos, falta de escolas e uma taxa de analfabetismo de 80%. Para aplicar a reforma, selecionou cem escolas rurais e aplicou nelas o método das escolas das Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 67 Unidade 3 cidades. Reformou o currículo do Curso Normal para formação de professores e adotou a inspeção escolar, o recenseamento escolar e a aplicação de métodos de avaliação com testes de inteligência. A escola deveria estar organizada, em sua estrutura e conteúdo, para oferecer à criança uma educação adequada e eficiente. A proposta lourenciana estava na contramão das propostas que foram estabelecidas pelo governo, que era a de assistir, disciplinar e abrigar as crianças, utilizando a escola como argumento para viabilização de tais políticas. Quando em 1922 realizou a Reforma da Instrução Pública do Ceará, Lourenço Filho tomou inúmeras medidas para colocar todas as crianças na escola e para oferecer para elas uma estrutura educacional organizada. Determinou obrigatoriedade escolar dos 7 aos 12 anos, sob pena de prisão aos responsáveis, implantou um sistema educacional desde suas bases, o que significava que para ele a criança deveria permanecer na escola desde o ensino primário até o superior. Foi precursor na implantação dos métodos e técnicas da Escola Nova no Brasil. Nesta Reforma, criticou o ensino destinado apenas à alfabetização e defendeu para as crianças uma escola com estrutura física, materiais, livros, uniformes, merenda e assistência médico-odontológica. A Escola Normal foi reestruturada para a formação de professores primários, assunto este que defendeu em momentos posteriores de sua carreira. Lourenço Filho atuou no Ceará, devido às diversas medidas administrativas, como executor de políticas educacionais, principalmente ao instituir a Lei de Regulamento da Instrução e remodelar a estrutura do ensino cearense, que se estendeu às instituições privadas de ensino. Nestas medidas, privilegiou a educação primária. (RAFAEL; LARA, 2011, p. 232). A proposta lourenciana se efetivou apenas de forma localizada, no Ceará, não se expandindo a outros estados. Mas aqui podemos perceber o intento do educador em manter a coerência com os preceitos escolanovistas e a realidade social vivenciada. 2.4. Reforma Anísio Teixeira – Bahia Em 1924, Anísio Teixeira, inspirado em sua experiência como aluno de John Dewey, idealizador do movimento Escola Nova, nos Estados Unidos, implantou uma série de projetos visando à reforma da instrução pública na Bahia. Entre as medidas adotadas, destacamos a Escola Normal de Caetité/ BA, fundada em 1926. Anísio Teixeira ocupou-se na formação do professor primário, objetivando melhor aparelhamento e qualificação para o corpo docente que pudesse exercer uma prática que fosse ao encontro das transformações da sociedade brasileira. Com esse intento, o diretor-geral da Instrução Pública pôde atender aos anseios das oligarquias locais, interiorizando o ensino elementar, mas também trazendo seu lado intelectual ao idealizar o progresso e a modernização do estado, procurando urbanizar, educar e civilizar o espaço rural nordestino. O educador Anísio Teixeira (ao centro, de óculos ) Fonte: FGV ([s.d.]). Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limitese possibilidades 68 Anísio Teixeira se contrapôs às iniciativas das reformas de instrução pública dos anos de 1920, mais precisamente à reforma de Sampaio Dória, procurando superar a solução paulista para o problema da educação popular. Para o educador, tal solução não se aplicava à realidade baiana, pois pensava a Reforma Sampaio Dória como a “instrução incompleta”. Ancorado nas concepções norte-americanas, entendia a educação como processo de contínua transformação, reconstrução e reajustamento do homem ao seu ambiente social móvel e progressivo. Era a ideia escolanovista de “educar para a vida” que respaldava a necessidade de adaptação da escola ao meio, articulada nas críticas à escola meramente alfabetizadora. Mas o educador assumia uma postura política que também recusava pensar o meio social como algo fixo; assim, não caberia à escola somente promover o processo de adaptação do aluno, mas contribuir para que o estudante se tornasse um agente de transformação daquele meio. 2.5. Reforma Fernando de Azevedo Em 1927, o paulista Fernando de Azevedo, um dos redatores do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, assumiu o cargo de diretor-geral da Instrução Pública e foi o responsável pela reforma educacional realizada no Rio de Janeiro, que na época era o Distrito Federal do país. Para tanto, buscou maior reconhecimento do quadro escolar na capital, organizando um recenseamento escolar que dividia os alunos por idade, sexo e, principalmente, distritos escolares. A apresentação do texto da reforma encontrou divergências, principalmente no tocante à contratação de funcionários para diferentes cargos, por meio da realização de concursos públicos. Todavia, ainda segundo o projeto, com respeito à direção das escolas e grupos, permaneceria o critério de “cargos de confiança”, cabendo à administração escolher dentre os professores que tivessem mais de 12 anos de serviço para exercer essa função. Ao longo do século XX, o cargo de direção, que era de “confiança”, passou a fazer parte dos concursos públicos. Nas últimas décadas do século XX, iniciou-se um movimento visando a democratizar as relações da escola, por meio, até, da promoção de eleição dos diretores. Com o objetivo de fortalecer a gestão democrática, alguns sistemas de ensino atualmente pretendem implantar (ou já implantaram) a eleição de diretores de escola. Sobre isso, analisa Paro (1996, p. 378): Um dos principais argumentos para a implantação das eleições de diretores fundamenta-se na crença na capacidade do sistema eletivo de neutralizar as práticas tradicionalistas calcadas no clientelismo e no favorecimento pessoal, que inibem as posturas universalistas, reforçadoras da cidadania. A esse respeito, parece que as eleições tiveram um importante papel na diminuição ou eliminação, nos sistemas em que foram adotadas, da sistemática influência dos agentes políticos (vereadores, deputados, prefeitos, cabos eleitorais) etc. na nomeação do diretor. Mas, isso não significa que o clientelismo tenha deixado de exercer suas influências na escola. Por um lado, em alguns sistemas, continuaram a existir brechas para a penetração da influência do agente político na nomeação do diretor; por outro, as práticas clientelistas passaram a fazer parte também do interior da própria escola, quer no processo de eleição do diretor, quer durante o exercício de seu mandato. Acreditando-se nos ideais escolanovistas como inspiração para o modelo de ensino que seria prescrito, foram promovidos congressos e conferências com a intenção de divulgar a reforma e instruir o professorado em assuntos como Escola Nova, ensino profissional e trabalhos manuais e estendendo- se sobre a escola do trabalho e a aplicação de testes mentais na escola. Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 69 Unidade 3 Ainda em 1927, foi aberto o concurso e aprovado o anteprojeto para construção do novo edifício para a Escola Normal. O programa da Escola Normal foi reformulado, estendendo-se para cinco anos, divididos entre curso propedêutico e profissional, e adaptando-se aos ditames da pedagogia científica e experimental. A concepção educacional afirmava a centralidade da criança no processo educativo e enfatizava os interesses dos alunos. Tratava-se aqui da educação ativa, que pretendia a observação e, sobretudo, a experimentação como forma de aquisição dos saberes escolarizados. Propunham-se práticas escolares que se apropriavam de novos objetos ou ressignificavam materiais existentes nas escolas; além disso, procurava-se estabelecer uma relação mais próxima entre a instituição escolar e a comunidade. Entre os recursos pedagógicos incentivados estavam a introdução do cinema no plano de ensino, a utilização de laboratórios e a revalorização do livro para a construção do conhecimento escolar. Neste tópico, percorremos os esforços de intelectuais brasileiros comprometidos com os ideais escolanovistas explícitos no Manifesto de 1932. Ao tentar colocar em prática os conceitos abordados no debate filosófico, percebemos a dificuldade encontrada em conciliar os interesses econômicos e de setores sociais. No entanto, os textos revelam a concepção democrática do acesso à educação e a valorização do estudante como agente de seu aprendizado. Esses preceitos poderão sofrer algumas resistências nos anos seguintes, considerando o aumento da industrialização e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. As reformas inspiradas pelas concepções escolanovistas procuraram ampliar o atendimento escolar às camadas mais pobres da população. Propunham um currículo mais humanista, que entendia o educando como centro do processo de aprendizagem e preocupou-se com a formação docente, instituindo “Escolas Normais.” Fonte: Elaborado pela autora. 3. EDUCAÇÃO NO ESTADO NOVO E DEMOCRATIZAÇÃO “O objetivo da educação totalitária nunca foi incutir convicções, mas destruir a capacidade de formar alguma.” Hannah Arendt (2004, p. 520) Neste tópico vamos discutir a expansão do ensino no Estado Novo e o debate em torno das políticas públicas de educação, passando pelos textos legais até o processo de implementação da Lei de Diretrizes e Bases de 1961. Ao final seremos capazes de conhecer as principais tramas e disputas de setores mais conservadores e progressistas da sociedade que ditaram os rumos das escolas e universidades do país. Vamos iniciar com uma breve análise do contexto educacional ante regimes ditatoriais, partindo da percepção da educação como forma de controle e, por isso, indicando avanços e retrocessos nas concepções pedagógicas. Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 70 Se nas reformas dos anos de 1920 temos contato com os ideais escolanovistas que valorizavam o aluno como centro do aprendizado, que respeitavam o contexto familiar e que desejavam levar às camadas menos privilegiadas o acesso à leitura e à escrita, nesse momento de regime de estado de exceção a educação sofreu algumas interferências. Romanelli (1986) trabalha com a perspectiva de que o governo de Getúlio Vargas representou no âmbito educacional um intervalo nas lutas ideológicas em torno dos problemas educacionais. A educação era sentida como fator importante para o desenvolvimento, mas isso de forma ainda inconsistente. A economia do Brasil pós-anos de 1930 foi marcada pela implantação da indústria pesada, e a política, para acompanhar esse processo, estabeleceu condições de infraestrutura administrativa, como a instalação de Ministérios. Francisco Campos, ministro da Educação e da Saúde Pública durante o governo provisório de Vargas, efetivou uma série de decretos, desde a criação do Conselho Nacional de Educação até, mais efetivamente, a organização do ensino secundário. A existência do Sistema Nacional de Educação apresentou-se como uma novidade, pois até então os sistemas educacionais eram estaduais, ou seja, descentralizados.Nesse momento, também, apareceram universidades no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Porto Alegre. A Reforma Francisco Campos foi marcada pelo estabelecimento do ensino secundário com um currículo seriado, a frequência obrigatória, dois ciclos (um fundamental e outro complementar) e a exigência de habilitação para o ingresso no ensino superior. Não é preciso dizer que, numa sociedade cuja maioria da população vivia em áreas rurais e era analfabeta e mesmo a população urbana não tinha acesso à educação primária, o ensino secundário já estava destinado às elites. “Pela reforma, o curso secundário ficou dividido em dois ciclos: um fundamental, de 5 anos e outro complementar, de 2 anos. O primeiro tornou-se obrigatório para o ingresso em qualquer escola superior e o segundo, em determinadas escolas” (ROMANELLI, 1986, p. 135). Nessa reforma era grande o peso da avaliação, que consistia em uma arguição mensal, uma prova parcial a cada dois meses e um exame final, o que equivaleria, para o ano todo, 80 provas mensais, 40 provas parciais e 10 provas finais. Segundo Romanelli (1986, p. 137), portanto, “não se tratava de um sistema de ensino, mas de um sistema de provas e exames”. Apesar de os recentes estudos pedagógicos e textos legais indicarem que a avaliação da aprendizagem deve ser processual e contínua, de modo a diagnosticar o processo ensino/aprendizagem para planejar novos rumos, ainda persiste a lógica da avaliação classificatória e excludente. Sobre isso, o professor Celso Vasconcellos (2004, p. 5) oferece a seguinte análise: “O grande nó da avaliação escolar está, pois, nesta lógica classificatória e excludente. É claro que existem outros problemas na avaliação, seja em termos de conteúdo, forma, relações. Só que de muito pouco adianta mexer nestes outros aspectos se sua intencionalidade não for alterada. Queremos deixar muito claro, logo de partida, o nosso enfoque: estamos a combater a classificação excludente, e não só a reprovação, uma vez que a mera aprovação do aluno pode ser tão excludente quanto a reprovação, já que também não está levando à efetiva apropriação do conhecimento. Precisaria ficar muito patente que o nosso problema não é (não deve ser) aprovar ou reprovar, mas favorecer a aprendizagem e desenvolvimento humano de todos”. Fonte: Elaborado pela autora. Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 71 Unidade 3 Assim como no governo provisório de Vargas procurou-se repensar o ensino secundarista, no atual governo Temer uma das Medidas Provisórias foi justamente a proposição da Reforma do Ensino Médio, a qual consiste em um conjunto de novas diretrizes para alteração da atual estrutura. Sancionada pelo presidente da República em fevereiro de 2017, foi criada em setembro do ano anterior e surgiu como uma Medida Provisória. Por isso, tinha força de lei desde a sua publicação no Diário Oficial da União. Os principais pontos da Reforma – ou Novo Ensino Médio, como é chamado pelo governo federal – são a flexibilização do currículo, que permite ao aluno direcionar seus estudos à área de maior interesse, e a aproximação com o mercado de trabalho. Novas mudanças nas escolas devem começar já em 2018 e serão implantadas pelos estados, que são responsáveis por essa etapa de ensino. Não há ainda um prazo para finalização do processo, que deve ser realizado de forma gradual (BRASIL, [s.d.]). Alguns analistas educacionais, entre eles Derick Casagrande Santiago, docente da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), se posicionam contra a efetividade da reforma. Além da imprecisão do conteúdo curricular, as limitações dos eixos que a fundamentam demonstram a insuficiência do modelo adotado. O aumento do investimento é uma questão estrutural negligenciada pela proposta; além disso, a infraestrutura das escolas, o número de estudantes por turma e a valorização docente também parecem distantes de ser abordadas, mas contribuiriam para a melhoria do ensino médio (SANTIAGO, 2017). Em 2016, estudantes secundaristas em todo o Brasil ocuparam escolas se manifestando contra a Medida Provisória que reformula o Ensino Médio. A ocupação representou um marco recente na história da educação brasileira, tendo como um dos destaques o discurso da estudante secundarista Ana Júlia Pires proferido na Assembleia Legislativa do Paraná, em 26 de outubro de 2016. Confira um trecho do pronunciamento dela e veja a íntegra no link: <https://www.youtube.com/ watch?v=aNo8BjBObXY>. “Nós não estamos lá de brincadeira. Nós sabemos pelo que estamos lutando. A nossa bandeira é a educação. [...] A gente sabe que precisa de uma reforma no ensino médio, no sistema educacional como um todo. Mas a gente precisa de uma reforma que tenha sido debatida, uma reforma que tenha sido conversada. [...] Uma escola sem partido é falar para os jovens, é falar para a sociedade que querem formar um exército de não pensantes. Um exército que ouve e abaixa a cabeça. E nós não somos isso. Nós temos uma história”. Fonte: Elaborado pela autora. Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 72 Gustavo Capanema foi ministro da Educação e Saúde Pública entre 1934 e 1945 Fonte: WIKIPÉDIA ([s.d.]). Para Saviani (2008), a organização do ensino no Brasil está fadada a ser regulada por regimes autoritários. Com efeito, a estrutura que vigorou até a década de 1960 foi instituída pelo Estado Novo. No caso da educação básica, decorreu das leis orgânicas constitutivas das chamadas “reformas Capanema”, baixadas pelo ministro da Educação do Estado Novo, Gustavo Capanema. Daí decorreu um ensino primário de quatro anos, seguido pelo ensino médio dividido em dois ciclos: o ginasial, com a duração de quatro anos, e o colegial, com a duração de três anos. Gustavo Capanema foi ministro da Educação e Saúde Pública (1934-1945) e considerado por historiadores do período como uma figura central na definição ideológica e nas políticas públicas implementadas. Estava incumbido de formular um projeto cívico-pedagógico para engendrar um “novo homem brasileiro”. A reforma do Estado, da sociedade e do homem eram projetos que deveriam caminhar juntos. Educação, saúde e cultura eram pilares para a execução desse ideário, acentuadamente nacionalista. Essa estrutura geral do ensino primário, médio e superior se manteve mesmo depois de aprovada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 20 de dezembro de 1961. Uma nova estrutura organizacional só veio a ser estabelecida exatamente pelo regime militar. Essa nova estrutura permanece em vigor atualmente, não tendo sido modificada pela nova LDB (1996). Somente em 2010, com a publicação das Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental, o percurso escolar se ampliou para nove anos, nessa etapa. Agora que vimos as circunstâncias que promoveram a disposição da estrutura do ensino primário e secundário, vamos analisar quantitativamente quantos eram os jovens que conseguiram adentrar no espaço escolar ao longo do tempo das reformas educacionais abordadas nesse curso. Confira os dados do quadro a seguir. Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 73 Unidade 3 Evolução do crescimento populacional e escolarização no Brasil da população de 5 a 19 anos, de 1920 a 1970 Anos População de 5 a 19 anos Matrículas Primário Matrículas Ensino Médio Total de Matrículas 1920 12.703.077 1.033.421 109.281 1.142.702 1940 15.530.819 3.068.269 260.202 3.328.471 1950 18.826.409 4.366.792 477.434 4.924.226 1960 25.877.611 7.458.002 1.177.427 8.635.429 1970 35.170.643 13.906.484 4.989.776 18.896.260 Fonte: ROMANELLI (1986, p. 64). Analisando esses dados, percebemos um expressivo crescimento do total de matrículas nas escolas do Brasil, que entre 1950 e 1960 quaseduplicaram. É prudente pontuar que o total de alunos matriculados é proporcional ao crescimento populacional das pessoas na faixa etária de 5 a 19 anos. Com o término do Estado Novo e a promulgação da Constituição de 1946, o país assistia ao retorno à democracia e partiu-se então para o início das lutas ideológicas visando à organização do sistema educacional e à elaboração de um projeto das diretrizes e bases do ensino. Lourenço Filho presidiu a comissão encarregada de realizar estudo para propor um anteprojeto. Os debates entre os setores conservadores e mais progressistas da sociedade acabaram por atrasar a promulgação da lei por 13 anos, quando finalmente em 1961 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 4.024, foi publicada. O novo texto apresentou alguns retrocessos em relação às reformas anteriores. Apesar de dispor da obrigatoriedade do ensino público (artigo 27), no artigo 30 estabeleceu que mediante a comprovação de estado de pobreza do pai ou responsável, ou ainda, diante da insuficiência de escolas, estava prevista a isenção da obrigatoriedade. A lei também não prescreveu um currículo fixo e rígido para todo o território nacional, o que permitiu a adequação da forma escolar às especificidades locais. Permaneceram como fundamentos da lei os “direitos da família” e a igualdade de direitos para a escola privada, quando no artigo 95 dispôs-se que a união dispensaria cooperação financeira aos estabelecimentos mantidos pelos Estados, municípios e particulares. 4. INFLUÊNCIAS INTERNACIONAIS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS ENTRE O GOLPE MILITAR DE 1964 E O PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.” Darcy Ribeiro (1986, p. 10) Neste tópico vamos refletir sobre como a ditadura militar de fato potencializou a educação como elemento de integração nacional, gerenciando a estrutura política e econômica para conseguir dar Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 74 acesso à instrução a maior parte da população. Mas isso não ocorreu por tratar-se de uma ditadura; ocorreu porque implantou políticas públicas desenhadas junto com as elites e com setores empresariais, inclusive internacionais. Assim, gratuidade e obrigatoriedade seguem juntas e continuam como tais quando, em 1967, a Constituição Federal as estende para oito anos. Curioso aspecto: aumenta-se o tempo da escolaridade e retira-se a vinculação constitucional de recursos com a justificativa de maior flexibilidade orçamentária. Mas alguém teria de pagar a conta, pois a intensa urbanização do país pedia pelo crescimento da rede física escolar. O corpo docente pagou a conta com duplo ônus: financiou a expansão com o rebaixamento de seus salários e a duplicação ou triplicação da jornada de trabalho. Tendo que haver mais professores para fazer frente à demanda, os sistemas reduziram os concursos e impuseram como norma os contratos precários. Os profissionais ‘veteranos’ não puderam requalificar-se e muitos ‘novatos’ não estavam preparados para enfrentar o novo perfil de aluno provindo das classes populares. (CURY, 2000, p. 574). Lendo a análise de Cury sobre o ônus deixado aos docentes para que ocorresse a universalização do ensino do 1º grau nos anos de 1970, percebemos o quanto não se estava disposto em investir no princípio do acesso à educação para todos. A ditadura militar, aliada aos setores empresariais nacionais e internacionais, exigia que o sistema de ensino acompanhasse o desenvolvimento do capitalismo monopolista, por meio da qualificação técnica da mão de obra barata, ainda que em patamares mínimos. De fato, a rede de escolas expandiu-se significativamente no período com essa intenção. Para efetivar esse projeto educacional, o regime militar se utilizou da violência, mas também promulgou leis e decretos buscando criar uma aparência de legitimidade para suas imposições. Nesse contexto, três leis foram fundamentais: a Lei nº 5.379/67, que criou o Movimento Brasileiro pela Alfabetização – Mobral; o Decreto-lei nº 869/69, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de disciplinas da área de Educação Moral e Cívica nas escolas; e por fim a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – no 5.692/71, que normatizou a reforma do ensino de 1º e 2º graus. Hilsdorf (2007) aponta que as marcas da política educacional no período militar estavam em conformidade com uma mentalidade empresarial e desenvolvimentista divulgada pelos norte- americanos. Foram exatamente essas as diretrizes das reformas educacionais promovidas após o golpe de 1964. A Lei de Diretrizes e Bases (nº 5.692/71) reformava o ensino secundário dotada de uma linha mais tecnicista, sobretudo quando comparada à LDB nº 4.024/61, que tinha um caráter mais liberal. O tecnicismo presente na Lei no 5.692/71 era deflagrado nos objetivos de “adaptação à sociedade” e “cultura profissional”, entre outros. A consequência dessa reforma para o currículo foi a retirada das disciplinas consideradas obsoletas, tais como Filosofia, Latim, Educação Política, além do corte da carga horária de várias matérias e da inserção de outras como Educação Moral e Cívica. Com o objetivo de reordenar a educação nacional para atender à ideologia condizente com os interesses do capitalismo, o Estado procurou a Aliança para o Progresso – a USAID – Agência Norte- Americana para o Desenvolvimento Internacional – que por meio de acordos cobriam todo “espectro da educação nacional, isto é, o ensino primário, secundário e superior, a articulação entre os diversos níveis, o treinamento de professores, e a produção de veiculação de livros didáticos para obter um maior controle do sistema educacional” (CUNHA; GÓES, 1985, p. 33). Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 75 Unidade 3 Dentre os defensores do acordo MEC/USAID, a opinião era a de que os técnicos brasileiros não seriam capazes de realizar a contento tal tarefa, que se tornara imperiosa, fazendo-se necessária a assessoria de técnicos familiarizados com a organização das universidades norte-americanas, tidas como modelo para as brasileiras. Já os críticos do acordo atacavam a cópia dos modelos norte-americanos, antevendo a privatização do ensino superior, a subordinação do ensino aos interesses imediatos da produção, a ênfase na técnica em detrimento das humanidades e a eliminação da gratuidade nas universidades oficiais. Fonte: FGV ([s.d.]). Considerando o histórico percorrido nas reformas educacionais ao longo do século XX e a assimilação de ideais humanistas para a educação, esse projeto sofreria resistência de setores mais progressistas da sociedade. Por isso, o regime militar adotou uma visão tecnicista e uma formação docente que pudessem exercer, até coercivamente, o novo currículo. Enquanto Paulo Freire falava em protagonismo popular e estudantil, a ditadura estimulava a autoridade inconteste do professor, uma figura que muitas vezes inspirava medo em seus alunos. Além disso, as direções escolares eram nomeadas pelos políticos locais, reforçando o controle ideológico sobre currículos e a vigilância contra professores. No cotidiano das escolas, persistiam as práticas de violência física contra os alunos e uma série de outras arbitrariedades, como notas por “comportamento”, avaliações a partir de questionários decorados, “pontos extras” para alunos que participassem de atividades como o desfile cívico de 7 de setembro, além do estímulo à competição e à fiscalização entre os próprios alunos. A entoação do hino e o hasteamento da bandeira tornaram-se obrigatórios. Nas escolas públicas e particulares, reproduzia-se uma ritualística militar desprovida de sentido para muitos jovens. Pelo menos uma vez por semana, crianças e adolescentes eram obrigados a marchar como soldados, bater continência e louvar um símbolo pátrio.Muitas dessas práticas tornaram-se tão difundidase naturalizadas que permanecem até os dias atuais. Não é raro encontrarmos escolas que “incentivam” a participação estudantil nos desfiles de 7 de setembro por meio de aumentos nas notas. Da mesma forma, a distribuição de “pontos positivos” ou “negativos” por comportamento dos alunos ocupa parte quase inquestionável da cultura escolar brasileira. Sem sombra de dúvida, toda a estrutura escolar redesenhada pelo regime ditatorial contribuiu para desestimular o senso crítico e inculcar valores como obediência, respeito à hierarquia e uma brutal domesticação dos corpos. Ao iniciarem os estudos, aos sete anos, as crianças eram obrigadas a conter a energia e a curiosidade próprias da infância. Deviam aprender a ficar quietas, caladas e sentadas. Paralelamente, os ideólogos do regime militar desenvolveram conteúdos legitimadores do regime, tais como as disciplinas de Educação Moral e Cívica (EMC) e de Organização Social e Política do Brasil (OSPB). Fonte: MEMÓRIAS DA DITADURA ([s.d.]). Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 76 A repressão foi uma das marcas da ditadura militar Fonte: Memórias da Ditadura ([s.d.]). Poerner (1978), em seu estudo intitulado “O poder jovem”, analisa que a partir da década de 1960 o movimento estudantil passou a relacionar as reivindicações de caráter pedagógico à luta política. Logo no início da implantação do regime militar, o governo procurou intervir e modificar o caráter do movimento estudantil, reduzindo os espaços de articulação política e intensificando as formas de punição. Criada por meio do Decreto nº 62.024/67, a Comissão Meira Matos tinha por finalidade conter os protestos e a “subversão” do movimento estudantil. As universidades permaneceram como os poucos locais disponíveis para a manifestação de críticas ao regime, apesar da dura repressão e censura. Entretanto, ainda eram lugares de efervescência política e cultural. Os movimentos sociais e a crise econômica instaurada foram fatores que pressionaram o país ao processo de abertura política. A transição lenta e gradual para o regime democrático culminou com as “Diretas Já” e os debates para a Constituinte, promulgada em 1988. No entanto, a influência internacional na política educacional brasileira não se esgotou aí, afinal o Banco Mundial estava presente financiando projetos, em caráter estratégico, para uma reestruturação neoliberal não só aqui no Brasil, mas também nos países em desenvolvimento. Entre 1991 e 1994, 29% dos investimentos na área da educação foram oriundos do Banco Mundial (SOARES, 1996). O Banco Mundial está fortemente comprometido em sustentar o apoio à Educação. Entretanto, embora financie na atualidade aproximadamente uma quarta parte da ajuda para a educação, seus esforços representam somente cerca de meio por cento do total das despesas com educação nos países em desenvolvimento. Por isso, a contribuição mais importante do Banco Mundial deve ser seu trabalho de assessoria, concebido para ajudar os governos a desenvolver políticas educativas adequadas às especificidades de seus países. (BANCO MUNDIAL, 1995, apud CORAGGIO, 1996, p. 75). No período de redemocratização, os debates em torno de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tiveram início, com a esperança de que o sistema de ensino procurasse ter alguma consonância com os ideais democráticos amplamente divulgados com o movimento constituinte. Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 77 Unidade 3 Assim como na elaboração texto de 1961, as forças conservadoras e progressistas se colocaram em choque para que o documento atendesse às respectivas expectativas. Os pontos mais polêmicos referiam-se à organização geral do sistema nacional de educação e à posição das entidades mantenedoras privadas. Em 20 de dezembro de 1996, o texto da Lei de Diretrizes e Bases – Lei nº 9.394, conhecida como Lei Darcy Ribeiro – foi sancionado. A argumentação do governo foi que a LDB deveria ser uma lei do possível, passível de cumprimento a partir dos recursos financeiros disponíveis nos esquemas orçamentários convencionais. Além disso, deveria ter flexibilidade suficiente para se adequar às diferentes situações da educação nacional. A nova LDB, como mostra Cury (2002), estruturou-se em torno da flexibilidade e da avaliação. Assim, os sistemas de avaliação da educação passaram a estar associados aos processos de descentralização e melhoria da qualidade de ensino. A partir de 1990 foram implementados no Brasil sistemas de avaliação com o objetivo de gerar e organizar informações sobre a qualidade de ensino, possibilitando o monitoramento das políticas públicas e a melhoria da qualidade de ensino no país, inclusive pelo próprio Banco Mundial. O órgão internacional visava a monitorar a equidade e a eficiência dos sistemas escolares. Assim, lhe interessava financiar as avaliações, pois era uma forma de obter taxas de retorno e estabelecer critérios de investimentos. É importante, portanto, compreender os critérios que determinaram os conteúdos a serem avaliados, uma vez que a escolha sobre o que avaliar tinha repercussões sobre os currículos e o cotidiano escolar. A ênfase deveria ser dada às habilidades cognitivas: linguagem, ciências, matemática e, adicionalmente, habilidades na área de comunicação, pois o Banco Mundial defende explicitamente a vinculação entre educação e produtividade, a partir de uma visão economicista (ALTMANN, 2002). Rosa Torres (1996) também destaca que a educação passou a ser analisada com critérios próprios do mercado, e a escola a ser comparada a uma empresa. As propostas do Banco Mundial para a educação são feitas, de acordo com a autora, basicamente por economistas, dentro da lógica e da análise econômica. A relação custo-benefício e a taxa de retorno constituem as categorias centrais, com base nas quais se definem a tarefa educativa, as prioridades de investimento, os rendimentos e a própria qualidade. Notícias recentes – como a do Banco Mundial, que sugere o fim do ensino superior gratuito no Brasil e a que informa que o Ensino Médio será financiado por Bird e Banco Mundial – exemplificam a forte penetração da agência internacional no contorno das políticas educacionais brasileiras. A visão neoliberal do ensino, que isenta cada vez mais o Estado da responsabilidade de garantir o acesso de todas e todos ao conhecimento e à leitura do mundo, faz com que cada vez mais avancemos para uma realidade dura em que o estudante não será capaz de recriar o que aprendeu, ou seja, dificultando sua capacidade de transformar. Por isso, é muito importante que nós educadores tenhamos essa visão crítica e reflexiva das normatizações do ensino que chegam às escolas. Essas normatizações atendem a quais concepções pedagógicas? A quais interesses? Essa é uma pergunta que todos os agentes da escola, inclusive estudantes e comunidade, devem se fazer. A partir desses questionamentos e de um olhar lúcido para os contextos educacional, social e político, podemos unir forças com vista a desenhar um projeto de educação capaz de transformar a sociedade, diminuindo as desigualdades sociais. Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 78 5. LIMITES E POSSIBILIDADES DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA “Não temo dizer que inexiste validade no ensino em que não resulta um aprendizado em que o aprendiz não se tornou capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado que não foi apreendido não pode ser realmente aprendido pelo aprendiz.” Paulo Freire (2010, p. 26) Qual educador nunca se sentiu sozinho ou em dúvida se de fato pode fazer algo para contribuir com as mudanças necessárias ao mundo? Você já? É importante encontrar parceiros, condições diferentes de trabalhar de modo alternativo, para manter o ânimono cotidiano da docência, tão conturbado e repleto de afetos e conflitos. Como exemplo, temos os projetos, que são excelentes veículos para a organização de conteúdos, motivos da aprendizagem, oferecendo oportunidades infinitas de inter-relação de assuntos. Por meio deles, o professor pode abordar temas aparentemente muito distintos, além de possibilitar ao aluno que desenvolva uma mentalidade prática, podendo perceber as ligações entre informações e a relevância delas para o “assunto central” estudado. Segundo McLuhan (apud LIMA, 1984, p. 161), “[...] E mesmo na educação, o sistema tem que ser modificado, porque vai se percebendo mais e mais que a divisão do currículo em matérias está superada e que qualquer matéria examinada, em profundidade, logo se relaciona a outras”. “As crianças que sabem ensinam as crianças que não sabem. Isso não é exceção. É a rotina do dia a dia. A aprendizagem e o ensino são um empreendimento comunitário, uma expressão de solidariedade. Mais que aprender saberes, as crianças estão a aprender valores. A ética perpassa silenciosamente, sem explicações, as relações naquela sala imensa.” Foi assim que o educador Rubem Alves resumiu uma de suas muitas surpresas com a Escola da Ponte, uma instituição pública de Portugal que, desde 1976, compreende que o percurso educativo de cada estudante supõe um conhecimento cada vez mais aprofundado de si próprio e um relacionamento solidário com os outros. Inserida no sistema público de educação e localizada no município de Santo Tirso (próximo da cidade do Porto), a Escola da Ponte não adota um modelo de séries ou ciclos. Lá, os estudantes de diferentes idades se organizam a partir de interesses comuns para desenvolver projetos de pesquisa. Os grupos se formam e se desfazem de acordo com os temas e a partir das relações afetivas que os estudantes estabelecem entre si. Fonte: CENTRO DE REFERÊNCIAS EM EDUCAÇÃO INTEGRAL (2014). Esse tipo de plano de trabalho tem muito a ver com tendências interdisciplinares da modernidade e com a necessidade de se estabelecerem relações entre assuntos, tornando o objeto de informação e aprendizagem algo mais completo e “vivo”, na medida que propicia experiências concretas. Quer dizer que cálculos e textos são feitos com finalidades reais, como construção de objetos ou elaboração de receitas, por exemplo. Os projetos desenvolvidos de modo geral nas escolas, de acordo com a orientação pedagógica recebida, não apresentam essa preocupação, o que, ao meu ver, é prejudicial, já que colocam à disposição das crianças uma quantidade de informações muito grande Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 79 Unidade 3 que, obviamente, perde em aprofundamento e delimita oportunidades de vivência. Para facilitar e tornar a aprendizagem mais prazerosa, é importante relacionar assuntos dos projetos ou torná-los lúdicos. Para isso, pode-se contar com o auxílio da cultura popular tradicional e as linguagens que fazem parte desse teatro, brincadeiras, jogos e danças, entre outros. Atualmente, as crianças passam a maior parte do tempo na escola. Esta, então, deve adaptar-se a tal realidade, oferecendo oportunidade de a criança brincar, sobretudo na idade pré-escolar (4 a 5 anos). Dadas as condições habitacionais de médias e grandes cidades, onde a falta dos antigos quintais se junta à escassez de áreas verdes para o lazer, a recreação tradicional, se não desapareceu de todo, teve sua intensidade sensivelmente reduzida... Mas é indispensável que retorne a escola esse período de entretenimento imprescindível a formação integral da criança. (RIBEIRO, 1976, p. 14). Isso porque brinquedos e brincadeiras tradicionais estão repletos de significados que, além dos benefícios que trazem naturalmente, desenvolvendo habilidades e potencialidades, além do caráter psicológico e emocional, podem ser utilizados com fins educativos específicos como contagem, aprendizagem de numerais, aprimoramento da linguagem oral, elaboração de versos etc. Muitas são as brincadeiras e as oportunidades de aproveitamento delas, seja com um fim em si mesmas, seja como meio de apresentar ou exercitar conteúdos. Existem algumas iniciativas, no Brasil e no exterior, voltadas a transformar a educação. Na Finlândia, uma das apostas é o chamado ensino baseado em projetos, em que a divisão tradicional de matérias é substituída por temas multidisciplinares nos quais os alunos são protagonistas do processo de aprendizado. Confira mais detalhes no link: <http://www.bbc.com/portuguese/ internacional-41422377>. No Brasil, o Ministério de Educação reconheceu 178 instituições educacionais brasileiras, entre ONGs, escolas públicas e particulares, como exemplos de inovação e criatividade na educação básica. Veja mais detalhes no link: <http://criatividade.mec.gov.br/noticias/61-mec-reconhece-178-organizacoes-como- inovadoras-e-criativas-2>. Fonte: Elaborado pela autora. As concepções construtivistas, libertárias e democráticas, como as propostas por Paulo Freire, nada apresentam de nocivo ao processo educacional consequente. Retomam aspectos mais livres no que diz respeito ao processo de ensino/aprendizagem, que não pode ser confundido com espaço para a indisciplina, pelo contrário, deve fornecer condições para que a disciplina não seja imposta, mas sim construída, assim como as noções e conteúdos adquiridos nesse processo. Essa proposta prevê o aproveitamento do conhecimento prévio do aluno, como ponto de partida para o estudo dos diversos assuntos, ou como estímulo para a utilização de temas aproveitáveis no currículo. Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 80 Imagem de sala de aula Fonte: Pixabay. Além disso, o professor deve deixar sempre um espaço para que o aluno elabore hipóteses sobre os mais diversos assuntos, aceitando suas respostas como algo resultante de etapas de construção do raciocínio, passível de desenvolvimento, dependendo principalmente da intervenção do professor – nesse caso, exercendo o verdadeiro papel de mediador da aprendizagem. Deve este então questionar, elaborar conjecturas, hipóteses, experimentações, propondo atividades que diversifiquem as maneiras de aprender, como elemento que proporcione mais possibilidades, tendo uma preocupação com a qualidade da vivência educativa, atendendo também às necessidades físicas, emocionais e psicológicas da criança. CONCLUSÃO Chegamos ao fim de mais uma unidade. Sabemos que muitas vezes os ideais educacionais não caminharam juntos com a implementação das políticas públicas de ensino no Brasil. Muitos intelectuais, ao longo do século XX, lutaram para que esses ideais fossem estabelecidos. Algumas tentativas foram fracassadas e outras precisaram se adaptar para conciliar outros interesses. Lemos sobre o entusiasmo educacional no início do século XX e na crença do poder da escolarização como via de democratização dos ideais republicanos. Por volta dos anos de 1930, assistimos a uma intensa discussão e planejamento das reformas da instrução pública. Durante o Estado Novo, notamos o quanto os interesses de setores mais conservadores da sociedade foram incorporados aos textos legais. O mesmo ocorreu durante o período que sucedeu o golpe de 1964 e a estruturação do ensino tal como conhecemos hoje. Percebemos também que as forças que teceram a história do Brasil no século XX e início do século XXI tiveram (e têm) influências fortíssimas da agenda neoliberal financiada pelo Banco Mundial. Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 81 Unidade 3 Portanto, não é possível analisar o contexto educacional dissociado do contexto internacional. No Brasil, a “cooperação técnica e financeira” do Banco Mundial ao setor educacional data da primeira metade dos anos de 1970. Mais recentes são a naturezae a dimensão da influência, tanto pelo volume de recursos aplicados quanto, principalmente, pelo impacto das suas orientações nas reformas educacionais. No contexto dessas orientações gerais, inscrevem-se as reformas educativas, de modo que produzam um ordenamento no campo educacional necessário a: 1) adequar as políticas educacionais ao movimento de esvaziamento das políticas de bem-estar social; 2) estabelecer prioridades, cortar custos, racionalizar o sistema, enfim, embeber o campo educativo da lógica e do apoio do campo econômico; e 3) subjugar os estudos, diagnósticos e projetos educacionais a essa mesma lógica (TOMMASI, 1996). Por fim, pensamos em possibilidades de experiências que retomam os ideais daqueles intelectuais dos anos e 1920, para que possamos resistir realizando projetos políticos pedagógicos nas escolas que possibilitem aos estudantes, comunidades e equipe escolar lerem o mundo em que vivem para, quem sabe, mudá-lo. ELEMENTOS COMPLEMENTARES #LIVRO# Título: História da Educação Brasileira - Leituras Autor: Maria Lucia Spedo Hilsdorf Ano: 2007 Sinopse: A área de estudos historiográficos da educação pode ser avaliada como um dos mais fecundos campos de produção de conhecimento na atualidade. Simultaneamente, a disciplina história da educação brasileira vem se firmando como importante componente curricular dos cursos de formação de professores e outros profissionais do campo da Educação. Este livro traz os pontos mais relevantes da análise para uma leitura da relação escola-sociedade brasileira, dos jesuítas aos nossos dias, sem propor uma história evolutiva, mas enunciando uma visão macroscópica da organização escolar. #LIVRO# Título: Coleção Ditadura Autor: Élio Gaspari Ano: 2016 Sinopse: Durante os últimos trinta anos, o jornalista Elio Gaspari reuniu documentos até então inéditos e fez uma exaustiva pesquisa sobre o governo militar no Brasil. O resultado desse meticuloso trabalho gerou um conjunto de quatro volumes que compõe a obra mais importante sobre a história recente do país. Nos primeiros anos após o golpe de 1964, o governo militar ainda relutava em se assumir como uma ditadura, daí o título “A ditadura envergonhada”. Mas com a edição do AI-5, no final de 1968, que suspendeu direitos constitucionais, ela se revela. Em “A ditadura escancarada”, são reconstituídos os momentos mais tenebrosos do regime. Os personagens centrais de O sacerdote e o feiticeiro são respectivamente os generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. “A ditadura derrotada” detalha os antecedentes desses dois importantes personagens, concentrando-se na articulação que os levou ao poder e Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 82 também na vitória do partido de oposição nas eleições de 1974. “A ditadura encurralada”, quarto volume, culmina com a exoneração do general Sylvio Frota do cargo de ministro do Exército. Naquele momento, o presidente Ernesto Geisel punha um ponto final na anarquia militar que tomava conta do país. Desse relato fazem parte episódios como o assassinato do jornalista paulista Vladimir Herzog em outubro de 1975, nas dependências de uma unidade do Exército, fato que contribuiu para azedar a relação entre a Presidência e setores das Forças Armadas. O quinto livro da série aborda o final da gestão do general Geisel, o governo do presidente João Baptista Figueiredo, em que se sobressaem o atentado do Riocentro, a bancarrota de 1982 e a campanha por eleições direitas. #FILME# Título: O que é isso, companheiro? Ano: 1997 Direção: Bruno Barreto Sinopse: Baseado no livro homônimo escrito em 1979 por Fernando Gabeira, jornalista, escritor e político brasileiro, após seu retorno ao Brasil do exílio. Conta sua experiência na luta armada contra a ditadura militar brasileira nos anos 1960, o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, sua prisão e posterior exílio na Europa durante os anos 1970. #WEB# O site “Memórias da Ditadura” traz uma série de informações que podem servir de apoio ao educador que pretende compreender, refletir e discutir com os estudantes este momento tão conturbado da história do país. O link é: <http://memoriasdaditadura.org.br>. REFERÊNCIAS A ESCOLA pública e o saber. Centro de Referência em Educação Mário Covas. [S.d.]. Disponível em: <http://www.crmariocovas.sp.gov.br/exp_a.php?t=002e>. Acesso em: 9 out. 2017. ALTMANN, Helena. Influências do Banco Mundial no projeto educacional brasileiro. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, n. 1, p. 77-89, jan./jun. 2002. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo; Trad. de Roberto Raposo, 5ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. BRASIL. Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília, Poder Executivo, Diário Oficial da União, 23 dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 9 out. 2017. ______. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: 1997. Disponível em: <http:// portal.mec.gov.br/pet/195-secretarias-112877938/seb-educacao-basica-2007048997/12640- parametros- curriculares-nacionais>. Acesso em: 9 out. 2017. Educação no Brasil contemporâneo: fatores históricos e filosóficos como limites e possibilidades 83 Unidade 3 ______. Ministério da Educação. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília, 1998. Volume 1. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf>. Acesso em: 9 out. 2017. ______. Ministério da Educação. Texto base da proposta de Base Nacional Comum Curricular. [S.d.]. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_publicacao.pdf>. Acesso em: 1 out. 2017. ______. Ministério da Educação. Novo Ensino Médio – Dúvidas. [S.d.]. Disponível em: <http:// portal.mec.gov.br/component/content/article?id=40361#nem_01>. Acesso em: 9 out. 2017. CARVALHO, Marta Maria Chagas. Reformas da instrução pública. In: LOPES, Eliana Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (Org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 225-251. CAVALIERI, Ana Maria. Entre o pioneirismo e o impasse: a reforma paulista de 1920. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 27-44, jan./jun. 2003. CORAGGIO, José Luís. Propostas do Banco Mundial para a educação: sentido oculto ou problemas de concepção? In: TOMMASI, Lívia de; WARDE, Mirian Jorge; HADDAD, Sérgio (Org.). O Banco Mundial e as políticas educacionais. 6. ed. São Paulo, Cortez Editora, 1996. p. 75-123. CUNHA, Luiz A.; GÓES, Moacyr de. O golpe na educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. CURY, Carlos Roberto Jamil. Educação como desafio na ordem jurídica. In: LOPES, Eliana Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (Org.). 500 anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 567-595. ______. A Educação Básica no Brasil: espaços de uma polêmica. Educação e Sociedade. v. 23, n. 80, p. 168-200, set. 2002. ESCOLA DA Ponte radicaliza ideia de autonomia dos estudantes. Centro de Referências em Educação Integral, 7 mar. 2014. Disponível em: <http://educacaointegral.org.br/experiencias/escola-da-ponte-radicaliza-ideia-de-autonomia-dos- estudantes/>. Acesso em: 20 nov. 2017. ESTUDANTES ITALIANOS. Wikipedia, [s.d.]. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/ wiki/File:Escola_italianos.jpg>. Acesso em: 9 out. 2017. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática. Rio de Janeiro: Editora Paz & Terra, 2010. FGV – Fundação Getúlio Vargas. Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil. Acordo MEC-USAID. [S.d.]. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/ verbete-tematico/acordo-mec-usaid>. Acesso em: 9 out. 2017. GASPARI, Élio. Coleção Ditadura. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2016. HILSDORF, Maria Lucia Spedo. História da Educação Brasileira: leituras.São Paulo: Thompson Learning, 2007. Unidade 3Educação no Brasil contemporâneo: fatores histórico s e filosóficos como limites e possibilidades 84 LIMA, Lauro de Oliveira. Mutações em educação segundo McLuhan. Petrópolis: Vozes, 1984. MEMÓRIAS DA DITADURA. [S.d.]. Disponível em: <http://memoriasdaditadura.org.br/>. Acesso em: 20 nov. 2017. O MANIFESTO dos Pioneiros da Educação Nova. Revista HISTEDBR, Campinas, n. especial, p. 188- 204, ago. 2006. Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/22e/doc1_22e. pdf>. Acesso em: 6 dez. 2017. PARO, Vitor Henrique. Eleição de Diretores de Escolas Públicas: Avanços e Limites da Prática. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 77, n. 186, p. 376-395, maio/ago. 1996. POERNER, Arthur José. O poder jovem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. RAFAEL, Mara Cecília; LARA, Ângela Mara de Barros. A proposta de Lourenço Filho para a educação de crianças de 0 a 6 anos. Revista HISTEDBR, Campinas, n. 44, p. 229-247, dez./2011. RIBEIRO, Darcy. Sobre o óbvio. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986. RIBEIRO, Maria de Lourdes Borges. O folclore na escola. Cadernos de Folclore, vol. 5. Rio de Janeiro: MEC-CDFB, 1976. ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil: 1930/1973. Petrópolis: Vozes, 1986. SANTIAGO, Derick Casagrande. Reforma do ensino médio: que escola? que formação? GGN, 23 out. 2017. Disponível em: <https://jornalggn.com.br/noticia/reforma-do-ensino-medio-que-escola-que- formacao-por-derick-casagrande-santiago>. Acesso em: 11 nov. 2017. SAVIANI, Demerval. O legado educacional do regime militar. Cad. Cedes, Campinas, v. 28, n. 76, p. 291-312, set./dez. 2008. SCHELBAUER, Analete Regina. Método de ensino intuitivo. [S.d.]. Campinas: Unicamp/Histdbr. Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_metodo_de_ ensino_intuitivo2.htm>. Acesso em: 9 out. 2017. SOARES, Maria Clara Couto. Banco Mundial: políticas e reformas. In: TOMMASI, Lívia de; WARDE, Mirian Jorge; HADDAD, Sérgio. (Org.) O Banco Mundial e as políticas educacionais. 6. ed. São Paulo: Cortez Editora, 1996. p. 15-40. TOMMASI, Livia de. Financiamentos do Banco Mundial no setor educacional brasileiro: os projetos em fase de implementação. In: TOMMASI, Lívia de; WARDE, Mirian Jorge; HADDAD, Sérgio (Org.) O Banco Mundial e as políticas educacionais. 6. ed. São Paulo, Cortez Editora, 1996. p. 195-226. TORRES, Rosa María. Melhorar a qualidade da educação básica? As estratégias do Banco Mundial. In: TOMMASI, Lívia de; WARDE, Mirian Jorge; HADDAD, Sérgio (Org.) O Banco Mundial e as políticas educacionais. 6. ed. São Paulo: Cortez Editora, 1996. p. 125-186. VASCONCELLOS, Celso. Superação da Lógica Classificatória e Excludente: a Avaliação como Processo de Inclusão. Texto para III Seminário de Educação de Arcos/MG. 2004. Unidade 4 Objetivos de aprendizagem da unidade • Conhecer definições, exemplos e reflexões a respeito do currículo e como este se manifesta em inúmeras situações - não apenas no programa dos cursos • Identificar relações entre as práticas pedagógicas e os fundamentos filosóficos educacionais • Detalhar o papel da história e da filosofia na identidade docente, visando a discutir suas influências na identidade docente na educação contemporânea Professora Mestre Licia Maria Pedreira de Almeida EDUCAÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: TEMAS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS Unidade 4Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 86 INTRODUÇÃO Bem-vindo(a) aos estudos desta unidade, caro(a) aluno(a)! Trataremos, nessa parte de nosso percurso, sobre as implicações curriculares da história e da filosofia. Atrelados um ao outro e entre si, os tópicos da unidade “Educação no Brasil, temas históricos e filosóficos” são apresentados para finalmente selar as relações entre história, filosofia e cotidiano das instituições. Comprometidas com seu tempo, ainda que não posicionadas claramente, as instituições praticam nos mínimos detalhes de seu funcionamento a visão de mundo que compartilham. O tópico 1, especificamente a respeito de currículo, trará definições, exemplos práticos e reflexões com vistas à tomada de consciência de como ele se manifesta em inúmeras situações e não apenas no programa dos cursos. Já no tópico 2 o objetivo é identificar relações entre as práticas pedagógicas e os fundamentos filosóficos educacionais. Basicamente, trata-se de valorizar o repertório prévio dos estudantes, propiciando aos educadores vivências que sejam internalizadas, ressignificando o papel da escola para essas crianças, ao mesmo tempo que prepara para a atuação em ensino/ aprendizagem a partir de outros tipos de vivência. Finalizando a unidade, o tópico 3 detalhará o papel da história e da filosofia na identidade docente, visando a discutir suas influências na identidade docente na educação contemporânea, reconhecendo os principais desafios no campo filosófico da educação inseridos no contexto histórico contemporâneo no Brasil. Boa leitura e bons estudos! 1. CURRÍCULO Neste tópico, vamos dialogar a respeito de currículo. Esse importante elemento educacional é estruturante. Mais do que o aspecto mais utilizado do termo, segundo o qual consiste em um conjunto de conteúdos programáticos, ou seja, aqueles que determinam os conceitos que constarão do programa de ensino, currículo é representado por tudo o que se aprende e se ensina em um ambiente de ensino/ aprendizagem: não apenas os conceitos, mas como eles são apresentados, por exemplo. Você deve lembrar de já ter ouvido o seguinte ditado: “um exemplo vale mais que mil palavras”. Então, do mesmo modo, a forma como as relações se estabelecem também faz parte do currículo. Para Sacristán (2000, p. 16), essa perspectiva: [...] é básica para entender a missão da instituição escolar em seus diferentes níveis e modalidades. As funções que o currículo cumpre como expressão do projeto de cultura e socialização são realizadas através de seus conteúdos, de seu formato e das práticas que cria em torno de si. Os conteúdos culturais e sociais são produzidos simultaneamente. A expressão dos objetivos e tópicos de trabalho, bem como as metodologias aplicadas aos conteúdos, estruturam o currículo. Esses elementos podem ou não ser explícitos, ou seja, podem ou não ser assumidos ou conscientes nas instituições escolares. Mas o fato é que os diferentes currículos colocam em prática visões de mundo e concepções de educação. De acordo com Sacristán (2000, p. 17): Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 87 Unidade 4 A assepsia científica não cabe neste tema, pois no mundo educativo, o projeto cultural e de socialização que a escola tem para seus alunos não é neutro. De alguma forma, o currículo repete o conflito entre interesses dentro de uma sociedade e os valores dominantes que regem os processos educativos. Isso explica o interesse da sociologia moderna e dos estudos sobre educação por um tema que é o campo de operações de diferentes forças sociais, grupos profissionais, filosofias, perspectivas pretensamente científicas etc. Daí também que este tema não admita o reducionismo de nenhuma das disciplinas que tradicionalmente agrupam o conhecimento sobre os fatos educativos. É comum presenciarmos educadores dizendo-se neutros ou imparciais. Se você já se viu nessa situação, não se preocupe. É também cultural aprendermos que certa neutralidade é possível. Mas, de fato, sabemos ter, mesmo que lá no fundo, nossas convicções, preferências, e, muitas vezes, até para sermos aceitos e não decepcionarmos as expectativas de alguém, acabamos concordando com coisas que sentimos não estarem exatamente corretas. Pense sobre isso! Fonte: Elaborado pela autora. Esses argumentos levam-nos a admitir que os ambientes pedagógicos, “[...] ou um determinado nível educativo ou tipo de instituição, sob qualquer modelo de educação, adota[m] uma posição e uma orientação seletiva frente àcultura, que se concretiza, precisamente, no currículo que transmite” (SACRISTÁN, 2000, p. 17). Da mesma forma, todas as finalidades que se atribuem e são destinadas implícita ou explicitamente à instituição escolar, de socialização, de formação, de segregação ou de integração social etc., acabam necessariamente tendo um reflexo nos objetivos que orientam todo o currículo, na seleção de componentes dele, desembocam numa divisão especialmente ponderada entre diferentes parcelas curriculares e nas próprias atividades metodológicas presentes no cotidiano da instituição. Então, o interesse pelos problemas relativos ao currículo é consequência da consciência de que é por meio dele que se realizam basicamente as funções da escola como instituição (SACRISTÁN, 2000). Nessa mesma linha, Sacristán (2000) considera que o currículo se configura em núcleo de referência, que torna possível a análise de como as instituições de fato se apresentam como instituições culturais. Assim, por meio do currículo praticado, são definidos os tipos de conhecimentos válidos, as formas e metodologias de criação e pedagógicas também válidas, o que finalmente se reafirma no momento de avaliação, determinados igualmente pela validade que se atribui aos tipos e modos de se vivenciar o currículo previamente definido. Considerando uma perspectiva humanista, que esteja, portanto, atenta às necessidades e interesses dos estudantes, o currículo é visto como o conjunto de experiências e cursos planejados dos quais fazem parte as intenções e atividades elaboradas com a finalidade de possibilitar a aprendizagem (SACRISTÁN, 2000). Resumindo, ele diz respeito à práxis, para a qual e a partir da qual se dão as diferentes experiências e avaliação permanente. Com base também em Grundy, Sacristán (2000, p. 48-49) define os seguintes itens: a) a prática deve ser sustentada pela reflexão enquanto práxis, construída pela interação entre refletir e atuar (planejamento, ação e avaliação) integrado por espiral de pesquisa-ação; b) o processo de construção do currículo deve estar ligado ao mundo real pressuposto pela práxis, relacionado ao seu processo de realização nas condições concretas em que se desenvolve; Unidade 4Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 88 c) a práxis trata-se de um ato social, operando num mundo de interações sociais e culturais do qual faz parte a interação entre ensino e aprendizagem, dentro de determinadas condições; d) o mundo da práxis é o mundo construído e não natural, e o currículo é, portanto, uma construção social. Pela aprendizagem do currículo os estudantes ou aprendizes participam ativamente da elaboração do próprio saber, refletindo sobre o conhecimento, o que inclui o do professor; e) assim, a práxis assume o processo de criação de significado como construção social, então também conflituosa, já que o controle do currículo também envolve relações de poder. As relações de poder podem não ser aquelas de luta por cargos ou mesmo disputas pessoais. Elas também existem e significam disputas mais amplas. Mas, no caso do currículo, revelam, por exemplo, em qual lugar social os estudantes de determinada instituição devem alcançar ou permanecer. Por isso, certos currículos podem ser considerados mais exigentes e outros nem tanto. Fonte: Elaborado pela autora. Além desses fatores, a mudança das formas por meio das quais se desenvolve a aprendizagem passa pelas metodologias. Estas se fazem presentes de modo concreto nos territórios abarcados pelas instituições e seus entornos, imediatos ou amplos, pois, de acordo com Sacristán (2000), a significação última do currículo, ao se converter em experiência aos estudantes, está mediatizada pelo ambiente e as relações interpessoais. O currículo, como projeto prévio a sua realização, incorpora, inclusive, muitos pressupostos organizativos [...] através dos códigos de seu formato. É um objeto social e histórico não apenas porque é a expressão de necessidades sociais, mas também porque se desenvolve através de mediatizações sociais, e as condições escolares são parte importante delas. (SACRISTÁN, 2000, p. 92). Em um vídeo bastante didático, o professor André Azevedo da Fonseca explica a função do currículo e o conceito de currículo oculto. Vale a pena assistir! O material está disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=6vApsF-U8FU>. Fonte: Elaborado pela autora. Sacristán (2000, p. 93-94, grifo do autor) também utiliza o estudo de Apple (1986) para classificar os itens que somam ao currículo: 1) Conjunto arquitetônico, que como configuração espacial regula sistemas de vida, de relações e conexão com o meio exterior; 2) Aspectos materiais e tecnológicos, como fornecimento de possibilidades de estimulação pela dotação de materiais, aparelhos, bem como as formas de acesso e da organização social dos mesmos; Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 89 Unidade 4 3) Sistemas simbólicos e de informação, reconhecidos como currículo explícito; 4) Habilidades dos professores referentes à formação cultural e pedagógica, além de criador das condições imediatas da experiência formativa; 5) Estudantes, como influência entre iguais, considerada como um dos âmbitos mais importantes da educação; 6) Componentes organizativos e de poder, relativos às pautas de organização do tempo, espaço, do pessoal, rotinas e forma de estruturar as relações entre os diversos componentes humanos, são fontes de aprendizagens muito importantes, como ritos de entrada e saída. Formação cultural e pedagógica do professor – fator importante no contexto do currículo Fonte: Pixabay. Os espaços determinam relações sociais e humanas (ou desumanas!). Pode observar que a estratificação ocorre desde a separação na utilização de sanitários (professores não utilizam os mesmos que os estudantes, e assim por diante), de espaços restritos apenas para gestores, entre outros. Você também pode verificar nas escolas da atualidade a conservação de ambientes de fila de pessoas e carteiras. Mas também existem ambientes inovadores e até divertidos. Fonte: Elaborado pela autora. Unidade 4Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 90 2. PRÁTICA PEDAGÓGICA Continuamos, neste tópico, com as considerações do tópico anterior, quando vimos que o currículo não é neutro, nem poderia ser, já que ou atuamos para manter as coisas como estão ou para transformá- las. É simples se pensarmos, por exemplo, em nossa alimentação: se estamos contentes com nossa saúde, forma, peso corporal, aparência, entre outros, mantemos a alimentação como está; agora, se estamos sentindo algum desconforto se ou algo nos desagrada, o que fazemos? Buscamos imediatamente formas de mudar, ou seja, de transformar as coisas com as quais não estamos satisfeitos, certo? Pois é, mas quando se trata de educação, por mais que tenhamos de nos conscientizar e fazer o melhor que está ao nosso alcance, isso não é suficiente. Como assim? Exato, é importante, é imprescindível, mas, além disso, as ações devem ser conjuntas, coletivas. Mas isso é assunto para outras unidades. O importante a destacar aqui é que a prática pedagógica é fundamental para a estruturação do currículo na prática. É comum verificar na maior parte das escolas um Projeto Político Pedagógico, o PPP, que diz em seus objetivos: “formar cidadãos autônomos, críticos e conscientes”, etc. Mas, na prática, o que acontece é reproduzir conteúdos e práticas que nada favorecem a conquista desses objetivos. É preciso observar muito atentamente a isso e investigar constantemente se as práticas são coerentes com os objetivos. E isso começa com a nossa prática. Você sabe como fazer com que o Projeto Político Pedagógico funcione na prática? Vale a pena conferir o artigo “O que é o projeto político-pedagógico (PPP)”, de autoria de Noêmia Lopes, disponível no site Gestão Escolar. O link é:<https://gestaoescolar.org.br/conteudo/560/o- que-e-o-projeto-politico-pedagogico-ppp>. Fonte: Elaborado pela autora. De acordo com Tomaz Tadeu da Silva (2011), podemos ver o conhecimento e o currículo como campos culturais. O currículo é um artefato cultural em pelo menos dois sentidos: 1) a instituição do currículo é uma invenção social como qualquer outra; 2) o “conteúdo” do currículo é uma construção social. Como toda construção social, o currículo não pode ser compreendido sem uma análise das relações de poder que zeram e fazem com que tenhamos essa definição determinada de currículo e não outra, que zeram e fazem com que o currículo inclua um tipo de conhecimento e não outro (SILVA, 2011). Não é sem propósito que estão sendo discutidas e remodeladas as propostas curriculares nacionais. Podemos perceber, por exemplo, que a educação física é considerada menos relevante que outras disciplinas e que há uma relutância em reconhecer a importância da inter e trans e multidisciplinaridade na busca de uma sociedade mais equilibrada e solidária, tornando-se sustentável ao planeta. Na imagem a seguir, vemos um dos espaços propícios à convivência saudável. Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 91 Unidade 4 Espaços de integração social Fonte: Pixabay. Ainda tratando da ação pedagógica e do processo de reflexão para verificar se a prática está coerente com os objetivos, é fundamental dialogarmos a respeito do processo de conscientização de nosso papel no mundo, quer dizer, a nossa função social. Segundo Adorno (1995, p. 150): [...] aquilo que caracteriza propriamente a consciência é o pensar em relação à realidade, ao conteúdo – a relação entre as formas e estruturas de pensamento do sujeito e aquilo que este não é. Este sentido mais profundo de consciência ou faculdade de pensar não é apenas o desenvolvimento lógico formal, mas ele corresponde literalmente à capacidade de fazer experiências. Eu diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais. Nesta medida e nos termos que procuramos expor, a educação para a experiência é idêntica à educação para a emancipação. Já esse aspecto da experiência, conforme comentado na unidade anterior, é importante na prática pedagógica. Apenas conseguimos materializar as inovações, praticando-as, não é mesmo? É como uma receita que sempre refazemos, cada vez mais ela se torna orgânica, e passamos a criar variações sobre ela. Essa abordagem também se relaciona diretamente com as possibilidades de experiência que proporcionamos para as crianças. Além de emancipatória, a experiência é o que traz prazer para o processo de aprendizagem – e de ensino também. Unidade 4Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 92 Experiências oferecem prazer às crianças no processo de aprendizagem Fonte: Pixabay. Faça um diário de bordo, anotando os momentos, no seu trabalho ou estudos, quando você se sente experienciando algo e o prazer que isso traz. Observe que, quando você está envolvido, o tempo passa rápido, você se percebe motivado e feliz. E, no momento em que precisa de algo estudado ou vivenciado, está lá, acessível pela memória, pois o prazer em aprender te auxilia também a fixar conhecimento, coisa que a prática acelera bastante também. Pode comprovar! Fonte: Elaborado pela autora. Também para Adorno (1995, p. 131), é importante que a educação seja compreendida como um posicionamento diante da realidade, como algo que pode e deve ser transformado: [...] Pois um dos momentos do estado de consciência e de inconsciência daninhos está em que seu ser-assim – que se é de um determinado modo e não de outro – é apreendido equivocadamente como natureza, como um dado imutável e não como resultado de uma formação. Mencionei o conceito de consciência coisificada. Esta é sobretudo uma consciência que se defende em relação a qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado modo. Acredito que o rompimento desse mecanismo impositivo seria recompensador. Então, no processo de conscientização das coerências e inconsistências de nossa ação pedagógica somos capazes de identificar mecanismos até então ocultos e que passam a ser transformados em nossa prática, de modo dinâmico, ao nos propormos a atuar de modo crítico e transformador, com relação a nós mesmos, aos outros e com a realidade. Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 93 Unidade 4 Segundo Faria Filho (2002, p. 141), nos últimos 30 anos, as discussões em torno da crise dos sistemas educacionais têm colocado como desafio ao campo educacional brasileiro: […] não apenas a reflexão sobre as reformas educativas (em geral tomadas na dimensão do seu fracasso), como também a busca de novos referenciais teóricos para interpretar o universo da escola. Nesse sentido, uma renovação de métodos vem alterando as práticas de pesquisa na área, como, por exemplo, o recurso à investigação etnográfica e aos estudos de caso na tentativa de se aproximarem aos fazeres ordinários da escola; bem como os vários sujeitos da educação vêm sendo valorizados em suas ações cotidianas, o que se explicita no aumento de interesse pelas trajetórias de vida e profissão e no engajamento que observa em análises organizadas em torno de questões de gênero, raça e geração. 3. PAPEL DA HISTÓRIA E DA FILOSOFIA NA IDENTIDADE DOCENTE Segundo Frigotto (1996), vivemos, neste início de século e de milênio, um tempo de profundas contradições e, sobretudo, de uma inaceitável situação em que o avanço científico e tecnológico é ordenado e apropriado pelos detentores do capital em detrimento das mínimas condições de vida de mais de dois terços dos seres humanos. Para o autor, as reformas neoliberais, cuja finalidade é liberar o capital à sua natureza violenta e destrutiva, sem dar conta das imensas possibilidades do avanço científico de qualificar a vida humana em todas as suas dimensões, vêm “inclusive diminuindo exponencialmente o tempo de trabalho necessário à reprodução da vida biológica e social e dilatando o tempo livre – tempo de liberdade, fruição, gozo” (FRIGOTTO, 1996, p. 72). Dentro desse contexto, as concepções filosóficas marcam presença, reiterando ou contrapondo esses pressupostos do sistema capitalista. Por isso, para Lopes e Macedo (2002), inicialmente, o ensino para competência esteve associado à formação de professores, mas logo foi tomando outras áreas do ensino. Os objetivos comportamentais da tradição tecnicista foram substituídos pelos de competências. Assim como os objetivos comportamentais, as competências são entendidas como comportamentos mensuráveis e, portanto, cientificamente controláveis (LOPES; MACEDO, 2002). As competências nada mais são que versões mais “humanizadas” do tecnicismo, na busca de legitimação de um discurso capaz de associar concepções contraditórias – por isso a aproximação aos discursos construtivistas, como vimos na unidade anterior, cuja abordagem foca a construção ativa do conhecimento pelos estudantes. Já o desenvolvimento das habilidades, ou “saber-fazer”, são os conteúdos práticos propriamente ditos, necessários, no fim, ao mundo do trabalho. As ligações entre essas concepções apresentam discursos híbridos, mesclando o discurso de competência com o discurso do mundo do trabalho. Você sabia que a escola como instituição pode impedir a criatividade? O vídeo, em forma de animação, que apresentamos aqui traz um bom exemplo dessa situação. Vale a pena conferir. O material está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pE4O7bkFGEA>. Fonte: Elaborado pela autora. Unidade 4Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 94 De acordo com Lopes e Macedo (2002, p. 124), a associação entre princípios construtivistas e comportamentais é tornada possível na medida em que as competências, enquantomodalidades estruturais da inteligência, são realizadas por habilidades instrumentais que lhes são próprias, essas expressas na forma de descritores de desempenho. Por esse motivo, na visão das autoras, na reforma do ensino médio, a competência é um princípio hegemônico e apresenta‐se, em geral, associado às ideias de transversalidade e de interdisciplinaridade, assim como de situações contextuais em que as competências estariam sendo construídas na prática social concreta. (LOPES; MACEDO, 2002, p. 125). Mesmo que diferentes documentos curriculares para a educação básica evidenciem, por exemplo, “a transdisciplinaridade de algumas competências, isso é colocado a partir da articulação das competências com as disciplinas clássicas do currículo escolar” (LOPES; MACEDO, 2002, p. 125). Ou seja, como o próprio nome diz, essas reformas buscam ajustar apenas nomenclaturas, pois, na prática, legitima-se o arcabouço anteriormente chancelado pelo sistema. Já para Pucci e Oliveira (2007), a maior parte dos escritos sobre a ciência moderna e a tecnologia contemporânea tende a enfatizar os inegáveis benefícios do progresso para a humanidade: a elevação geral do nível de vida com o desenvolvimento das forças produtivas materiais. Mas existe também o lado sombrio das novas tecnologias, que pesa de maneira assustadora sobre nós. E esse lado obscuro precisa também ser iluminado, para que apareça em toda a sua crueza. Ao mesmo tempo, o acelerado e inovador processo tecnológico está invadindo todos os ambientes, desde o mundo on line financeiro — sua moradia por excelência — até as anacrônicas salas de aula. E, por onde avança, carrega consigo sua ambiguidade. (PUCCI; OLIVEIRA, 2007, p. 42, grifo do autor). Por esses motivos, é importante refletir sobre as consequências da aplicação das novas tecnologias na educação escolar, explorando uma das dimensões que constitui a humanidade do homem: a experiência (PUCCI; OLIVEIRA, 2007). E é justamente essa dimensão que é retirada do cotidiano escolar, assim como do mundo do trabalho, perdendo o sentido de uso para o trabalhador. Nesse sentido, Frigotto (1996) considera que para Marx, o trabalho assume duas dimensões distintas e sempre articuladas: trabalho como mundo da necessidade e trabalho como mundo da liberdade. O primeiro está subordinado à resposta das necessidades imperativas do ser humano enquanto um ser histórico natural. É a partir da resposta a essas necessidades imperativas que o ser humano pode fruir do trabalho propriamente humano - criativo e livre. (FRIGOTTO, 1996, p. 74). Segundo Frigotto: Foi a partir da primeira Guerra Mundial, dentro daquilo que a literatura denomina fordismo e, mais tarde, as políticas Keynesianas de planificação que se estatui a preocupação da constituição de uma sociedade que integra os trabalhadores, como estratégia até de controlá- los, mas também como resultado das lutas dos trabalhadores organizados em sindicatos e partidos. Resulta disso a desmercantilização da reprodução da força de trabalho e a constituição de uma esfera pública burguesa. Com efeito, mesmo com profundas desigualdades e níveis diversos entre as nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, a educação, a saúde, o transporte, o lazer e cultura, a previdência social e o salário desemprego (em algumas poucas nações) passaram a se constituir em direitos sociais dos trabalhadores. Mediante as lutas dos próprios trabalhadores, o direito ao trabalho e à estabilidade no mesmo também foram se ampliando. (FRIGOTTO, 1996, p. 76). Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 95 Unidade 4 Frigotto (1996) nos lança um importante e decisivo desafio, o de termos a capacidade coletiva de distinguir o projeto de Educação Profissional patrocinado pelos organismos internacionais – Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento –, que vem sendo aceito de forma subordinada pelo atual governo federal, do projeto que se busca construir, em diferentes espaços de nossa sociedade, numa perspectiva de emancipação da classe trabalhadora. Fonte: Elaborado pela autora. De acordo com Antônio Nóvoa, por sua vez, nos últimos anos, os professores voltam ao foco do protagonismo educacional, depois de quase 40 anos de relativa invisibilidade: A sua importância nunca esteve em causa, mas os olhares viraram-se para outros problemas: nos anos 70, foi o tempo da racionalização do ensino, da pedagogia por objectivos, do esforço para prever, planificar, controlar; depois, nos anos 80, vieram as grandes reformas educativas, centradas na estrutura dos sistemas escolares e, muito particularmente, na engenharia do currículo; nos anos 90, dedicou-se uma atenção especial às organizações escolares, ao seu funcionamento, administração e gestão. Já perto do final do século XX, importantes estudos internacionais, comparados, alertaram para o problema das aprendizagens. Learning matters. E quando se fala de aprendizagens, fala-se, inevitavelmente, de professores. Um relatório publicado pela OCDE em 2005 – Teachers matter – inscreve “as questões relacionadas com a profissão docente como uma das grandes prioridades das políticas nacionais”. (NÓVOA, 2014, p. 4). Em conjunto com esses estudos, duas outras realidades constituem temas obrigatórios. Por um lado, as questões da diversidade, nas suas múltiplas facetas, que abrem caminho para uma redefinição das práticas de inclusão social e de integração escolar. A construção de novas pedagogias e métodos de trabalho põe definitivamente em causa a ideia de um modelo escolar único e unificado. Por outro lado, os desafios colocados pelas novas tecnologias que têm vindo a revolucionar o dia-a-dia das sociedades e das escolas. Por esse motivo, os professores reaparecem, neste início do século XXI, como elementos insubstituíveis não só na promoção das aprendizagens, mas também na construção de processos de inclusão que respondam aos desafios da diversidade e no desenvolvimento de métodos apropriados de utilização das novas tecnologias (NÓVOA, 2014). Unidade 4Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 96 Nóvoa (2014, p. 6-7) defende alguns elementos fundamentais para a formação de professores: 1 - estudo aprofundado de cada caso, sobretudo dos casos de insucesso escolar; 2 - análise coletiva das práticas pedagógicas; 3 - obstinação e persistência profissional para responder às necessidades e anseios dos alunos; 4 - compromisso social e vontade de mudança. Ao mesmo tempo que se fala da autonomia dos professores, ”[...] mais a sua ação surge controlada, por instâncias diversas, conduzindo a uma diminuição das suas margens de liberdade e de independência. O aumento exponencial de dispositivos burocráticos no exercício da profissão não deve ser visto como uma mera questão técnica ou administrativa, mas antes como a emergência de novas formas de governo e de controle da profissão” (NÓVOA, 2014, p. 7). É possível imaginar que você sente essas amarras, na profissão ou estudos. Fonte: Elaborado pela autora. O compromisso social com a profissão fará com que você se posicione criticamente, encontre parceiros e persista na qualidade do trabalho, para contribuir decisivamente para a transformação. Esta, alcançando as raízes dos problemas sociais, pode alterar por completo a função e formas de operação da educação em um futuro não muito distante. Professores são elementos insubstituíveis Fonte: Pixabay. Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 97 Unidade 4 CONCLUSÃO O currículo é uma construção social permanentemente elaborada dentro de um caráter relacional e práxico, em que as experiências e formas pelas quais se materializam o cotidiano escolar implicam os sujeitos inseridos nas suas redes de relações e aprendizados, não como meros espectadores, mas como atores nesse processo. Professores são autores ou no mínimo coautores dos currículos que trabalham, ao instituírem práticas e produziremsentidos a partir das ações. Estas, por sua vez, deflagram e instauram visões de mundo de acordo ou em contraponto à hegemonia do sistema. Os professores, a partir de suas concepções de mundo e de educação, com base na sociedade que desejam construir, organizam os conteúdos e escolhem as metodologias de ensino, levando em consideração o que é definido como aceitável pelas comunidades nas quais se inserem. Daí a importância, também, da gestão democrática, o que inclui o olhar comprometido socialmente, sobretudo na educação pública. A metodologia de projetos, apesar de sua maior flexibilidade na escolha de conteúdos e métodos, muitas vezes é praticada sem o olhar integrador e da experiência, características fundantes de um verdadeiro projeto educacional ou pedagógico. Já o projeto político pedagógico da escola, o PPP, quando elaborado a partir de ampla participação da comunidade escolar, pode ressignificar o trabalho do professor. Quanto à formação do profissional professor, como disse Antônio Nóvoa, é preciso ser passada para dentro da profissão. A postura investigativa e pesquisadora do professor deve ser permanente, e apenas essas características podem torná-lo afinado ao seu tempo criativamente. Para Nóvoa (2014), o bom professor deve abarcar cinco facetas: conhecimento, cultura profissional, tato pedagógico, trabalho em equipe e compromisso social. Desejamos que você persiga sempre esse perfil, que, constantemente em construção e inacabamento, como postulou Paulo Freire, conduza a felizes e prazerosamente desafiadores momentos de transformação social. Estamos juntos nesse objetivo. Conte sempre conosco! ELEMENTOS COMPLEMENTARES #FILME# Título: Amanhã: um novo mundo a caminho (Título original: Demain) Direção: Mélanie Laurent e Cyril Dion Ano: 2015 Sinopse: Vencedor na categoria de Melhor Documentário nos Prémios César, esse documentário, de valor pedagógico inegável, prova que cada um de nós pode realmente contribuir para criar o futuro. Disponível em: <https://www.rtp.pt/ programa/tv/p33810>. Unidade 4Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 98 #FILME# Título: Sociedade dos Poetas Mortos Direção: Peter Weir Ano: 1990 Sinopse: Em 1959 na Welton Academy, uma tradicional escola preparatória, um ex-aluno (Robin Williams) se torna o novo professor de literatura, mas logo seus métodos de incentivar os alunos a pensarem por si mesmos cria um choque com a ortodoxa direção do colégio, principalmente quando ele fala aos seus alunos sobre a “Sociedade dos Poetas Mortos” (Fonte: http://www.adorocinema. com/filmes/filme-5280/). #LIVRO# Título: Educação e emancipação Autor: Theodor W. Adorno Ano: 1995 Sinopse: Trata-se de textos de intervenção viva, densos mas fluentes e brilhantes, contrariando a imagem de um pensador de difícil acesso. A influência de Adorno é crescente, como acontece em maior ou menor medida ao conjunto chamado Escola de Frankfurt. Nem poderia ser diferente: um pensador comprometido com os problemas do trabalho social e da sociedade de classes (ao contrário de Habermas), que não se encontra praticamente tolhido por uma forma social concreta de sujeito histórico (partido etc.) não poderia ser mais atual em tempos de “queda do muro”. Ainda mais quando provém da “cultura burguesa” e argumenta de modo intelectualmente inconteste para os seus adversários, apologetas da inevitabilidade da formação social burguesa existente. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. FARIA FILHO, Luciano. Escolarização, culturas e práticas escolares no Brasil: elementos teórico- metodológicos de um programa de pesquisa. In: LOPES, Alice C.; MACEDO, Elisabeth (Org.). Disciplinas e integração curricular: história e políticas. Rio de Janeiro: DP& A, 2002. p. 13-36. FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século. Petrópolis: Vozes, 1996. LOPES, Alice C.; MACEDO, Elisabeth (Org.). Disciplinas e integração curricular: história e políticas. Rio de Janeiro: DP& A, 2002. Educação no Brasil contemporâneo: temas históricos e filosóficos 99 Unidade 4 LOPES, Noêmia. O que é o projeto político-pedagógico (PPP). Gestão Escolar, 1 dez. 2010. Disponível em: <https://gestaoescolar.org.br/conteudo/560/o-que-e-o-projeto-politico-pedagogico-ppp>. Acesso em: 11 jan. 2018. NÓVOA, António. Professores. Imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2014. PUCCI, Bruno; OLIVEIRA, Newton Ramos de. O enfraquecimento da experiência na sala de aula. Revista Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52), p. 41-50, jan./abr. 2007. Disponível em: <https://periodicos.sbu. unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643572/11093>. Acesso em: 11 jan. 2018. SACRISTÁN, José Gimeno. O Currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artmed, 2000. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.