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Surdez - O doador de memórias e A construção multicultural da igualdade e da diferença (Boaventura); Travessia do silêncio; Ouvinte: O outro do ser surdo.

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O doador de memórias e A construção multicultural da igualdade e da diferença
(Boaventura)
O filme “O doador de memórias”, aborda um futuro no qual a humanidade se
desfez de todas as memórias passadas — desde guerras, conflitos, músicas, datas
comemorativas e até mesmo emoções — em prol da construção de uma sociedade
perfeita. A obra cinematográfica retrata um corpo social distópico no qual os indivíduos
estão sob uma grande rigidez de controle que os faz agir de forma mecânica ao terem
suas diferenças minimizadas para enquadrarem-se ao padrão de cidadãos perfeitos. Além
disso, as profissões e núcleos familiares dos integrantes dessa comunidade eram
impostas pelos anciãos do governo vigente, e não feitas por uma escolha própria, o que
demonstra evidentemente um controle de uma classe sobre a outra e corrobora com a
visão de Sousa Santos (1999, p.3) sobre os sistemas de pertença hierarquizada nos
quais, os elementos da desigualdade e da exclusão estão presentes. Também gostaria de
destacar que, ao analisarmos, ainda na perspectiva de Boaventura, esse modelo de
convívio social desprovido da experiência compartilhada em comunidade, podemos
observar a contribuição para a dessubjetivação do sujeito, ou seja, ao apagar as
diferenças para impor a homogeneidade, as subjetividades de cada indivíduo são
negadas, assim como a sua existência, levando não a uma situação de igualdade, como
os governantes do filme acreditam, mas sim a um modelo de desigualdade social.
Outrossim, também é possível correlacionar o filme e o texto com as questões abordadas
nesta disciplina visto que, ao invés do surdo ser visto como um membro de uma
comunidade que possui sua própria cultura; identidade e língua, — como ocorre na
representação sócio-antropológica da surdez na qual a educação visa uma abordagem
bilíngue (SKLIAR,1999) — a surdez muitas vezes acaba sendo vista como uma diferença
que inferioriza o sujeito e que precisa de uma intervenção terapêutica — com base no
modelo clínico-terapêutico — para que o surdo iguala-se aos ouvintes através de uma
educação oralista (RAMPELOTTO, 1993), o que reforça “[...] a necessidade de uma
igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou
reproduza as desigualdades” (SANTOS, 2003, p.56).
Travessia do silêncio
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O documentário “Travessia do silêncio" é um compilado de depoimentos de surdos
e ouvintes, abordando diferentes perspectivas em relação à surdez. Mesmo sendo um
documentário relativamente antigo, ele ainda retrata uma realidade muito próxima visto
que, mesmo que as tecnologias — como o implante coclear e elaboração de aparelhos
auditivos mais modernos que fornecem uma melhor qualidade auditiva — e as ofertas
educacionais — como o decreto da Lei de Cotas, a regulamentação da Lei de Libras e a
implementação de cursos Letras-Libras em algumas universidades — tenham avançado
ao longo dos anos, a realidade das pessoas surdas não sofreu muitas alterações. Assim
como relatado na “Travessia do silêncio”, muitas famílias enfrentam inúmeras
adversidades — como o medo, o preconceito, a aceitação e a dúvida sobre optar pela
Libras ou pela Língua Portuguesa como primeira língua — relacionadas à formação da
identidade social da criança surda. No documentário, o relato de Marcelo e Evilyn — pais
ouvintes de duas crianças surdas — chama a atenção para a aceitação da surdez devido
a visão da mesma como uma deficiência imposta pelo senso comum da sociedade. Esse
casal mencionou que após o nascimento do primeiro filho, nem eles e nem os pediatras
haviam notado que o menino era surdo. Tal fato enfatiza a importância da Lei Federal nº
12.303/2010 que garante ao recém-nascido a realização da triagem auditiva neonatal e
consequentemente contribui para um diagnóstico precoce possibilitando oferecer
caminhos à família para que essa criança se desenvolva da melhor forma possível, seja
através da aquisição da linguagem oral ou através do acesso à língua de sinais uma vez
que, a linguagem engloba a socialização, o desenvolvimento emocional e cognitivo. Além
disso, também acho necessário frisar que mesmo os pais tendo optado pelo implante
coclear por terem condições financeiras para arcarem com o melhor tratamento — na
visão do modelo clínico-terapêutico — da época, eles se queixam da falta de acesso a
todas as possibilidades devido não terem tido a oportunidade de conhecer um pouco mais
sobre a comunidade surda, o que demonstra a falta de uma orientação profissional
completa. O documentário mostra também as perspectivas de alunos e professores do
Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), salientando a importância das escolas
especializadas para surdos e as dificuldades enfrentadas por essa comunidade devido ao
despreparo de alguns profissionais — tanto nos colégios especializados quanto em
escolas regulares — em decorrência da não obrigatoriedade do ensino da língua de sinais
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na grade curricular de grande parte dos cursos das universidades brasileiras. Por último,
gostaria de comentar sobre dois relatos que podemos considerar como extremamente
opostos nesse documentário. O primeiro aborda o caso de uma menina ouvinte que teve
a libras como sua primeira língua — seu acesso a linguagem oral se deu apenas quando
começou a frequentar a escola — devido ao fato de seus pais e avós serem surdos. Já o
segundo relato, é o caso de uma mãe ouvinte que acredita que o melhor para o seu filho é
a imposição de uma educação oralista na tentativa de que ele se enquadre ao mundo dos
ouvintes (RAMPELOTTO, 1993) o que reforça o fato de que, mesmo na
contemporaneidade, a surdez continua sendo vista por muitas pessoas por uma
representação clínica-terapêutica, na qual o surdo é o sujeito que deve ter a sua
subjetividade apagada para se “igualar” ao outro.
Ouvinte: O outro do ser surdo
O capítulo “Ouvinte: o outro do ser surdo” do livro “Estudos surdos I”, aborda a
perspectiva da pessoa surda em relação aos ouvintes. O texto retrata alguns assuntos
discutidos anteriormente como por exemplo, a constante inferiorização, por parte da
maioria dos ouvintes, do sujeito surdo através da imposição de sua adequação ao mundo
de quem ouve, vinculando a surdez à uma deficiência, enxergando a língua de sinais com
discriminação — criando barreiras ou até mesmo impedindo a aquisição dessa língua,
exemplificado no capítulo como a descrição de Said (1978) sobre o ouvicentrismo, “[...]
ele existe na medida em que o ouvinte seja centro de toda metodologia da normalidade”
(PERLIN; QUADROS, 2003) — e não respeitando o contato e a inserção desse sujeito na
sua própria comunidade social e linguística, o que influencia diretamente na formação da
identidade social desse indivíduo, como foi abordado ao decorrer da disciplina. Em meu
entendimento, esse capítulo busca frisar a importância de contemplar e respeitar a
alteridade, ou seja, “a condição daquilo que é diferente de mim; a condição de ser o outro”
(SILVA, 2000, p.16) ao invés de impor a minha identidade a outra pessoa, o que reforça
os ideais de que “[...] temos o direito de ser iguais quando nossa diferença nos inferioriza;
e temos o direito a ser diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza” (SANTOS,
2003, p.56). Além disso, Gladis Perlin e Ronice Muller destacam também a importância da
ocupação da comunidade surda nos espaços visto que, ela possui sua própria língua,
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cultura e identidade. O que despertou a minha atenção para ressaltar outra questão
relevante que está relacionada a importância de refletirmos sobre a relevância das
representações familiares e sociais para a comunidade surda uma vez que, elas auxiliam
na identificação de um sujeito na comunidade em que ele está inserido fazendo com que
o mesmo não sofra uma dessubjetivação perante ao outro o que levaria a mais um
modelo de desigualdade social.
REFERÊNCIAS
DORNELES, Marciele Vieira. Família ouvinte: diferentes olhares sobre surdez e
educação de surdos. (X Congresso Nacionalde Educação - EDUCERE). UFSM, 2011.
GNT. Travessia do silêncio. Direção: Dorrit Harazim. Brasil, 2004.
O doador de memórias. Direção: Phillip Noyce. Estados Unidos, 2014.
QUADROS, Ronice Müller de (org.). Estudos surdos I. Petrópolis, RJ: Arara Azul, 2006.
RAMPELOTTO, Elisane Maria. O Processo e o Produto na Educação de Surdos.
(Dissertação de Mestrado). Santa Maria, Curso de Pós-Graduação, UFSM, 1993.
SANTOS, Boaventura. A construção multicultural da igualdade e da diferença. 1999.
SANTOS, Boaventura. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo
multicultural. 2003.
SILVA, Tomaz Tadeu. Teoria cultural e educação – um vocabulário crítico. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
SKLIAR, Carlos (org). Atualidade da educação bilíngue para surdos. Porto Alegre:
Mediação, 1999.
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