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Projetos Sociais Planejamento de Elaboração e // Samira Kauchakje2008 Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br © 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE Brasil S.A. Crédito da imagem: IESDE Brasil S.A. IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. K21 Kauchakje, Samira. / Elaboração e Planejamento de Projetos Sociais. / Samira Kauchakje. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2008. 220 p. ISBN: 978-85-387-0137-8 1. Pesquisa de avaliação (Programas de ação social). 2. Ação social. 3. Projeto social. I. Título. CDD 330.015195 Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Pós-Doutora pela Universidade Federal do Rio de Ja- neiro (UFRJ), Mestre em Ciências Sociais aplicadas à Edu- cação e Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Especialista em Ecologia Humana pela Unicamp, em Supervisão em Serviço Social e em Me- todologia do Serviço Social pela PUC-Campinas. Graduada em Serviço Social pela PUC-Campinas. Samira Kauchakje Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Sumário Planejamento: aspectos teóricos e históricos...............................................9 Aspectos teóricos ....................................................................................................................................... 9 Aspectos históricos ..................................................................................................................................14 Questão social: expressões históricas e atuais ...........................................25 Questão social ...........................................................................................................................................25 Questão social e planejamento no Brasil .........................................................................................31 Direitos humanos, econômicos, sociais e culturais e o desenvolvimento......................................................................39 Direitos humanos, econômicos, sociais e culturais ......................................................................39 Desenvolvimento humano ...................................................................................................................43 Atores sociais e o planejamento de políticas e projetos sociais ...........................................................................57 Atores sociais .............................................................................................................................................57 Os direitos sociais e a responsabilidade dos atores sociais .......................................................61 Políticas públicas ...................................................................................................71 Políticas públicas: noções gerais .........................................................................................................71 Áreas e setores das políticas públicas ...............................................................................................77 Ciclo das políticas públicas ...................................................................................................................78 Políticas sociais ......................................................................................................85 Políticas sociais: noções gerais ............................................................................................................85 Objetivos e população destinatária e políticas sociais no Brasil .............................................87 Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Sistema Brasileiro de Proteção Social ............................................................97 Proteção social: uma prática social e política .................................................................................97 Sistema Brasileiro de Proteção Social .............................................................................................101 Políticas sociais e princípios constitucionais ................................................................................106 Projetos sociais: aspectos teóricos e metodológicos ............................115 Projetos sociais ........................................................................................................................................115 Etapas e processos .................................................................................................................................122 Rede de parceiros e o planejamento de projetos sociais ....................129 Identificação dos responsáveis pelo projeto e a articulação de parceiros em rede ..............................................................................................130 Rede de parcerias: Estado e organizações da sociedade civil local e internacional ..........................................................................................136 Análise da situação social e objetivos ........................................................145 Análises da situação social: localidade e população-alvo .......................................................145 Definição dos objetivos e metas .......................................................................................................150 Recursos e gestão de projetos sociais ........................................................161 Recursos de projetos sociais...............................................................................................................161 Modos de gestão de projetos sociais ..............................................................................................165 Avaliação e o processo de planejamento..................................................177 Avaliação de projetos sociais .............................................................................................................177 Cronograma de atividades..................................................................................................................183 Roteiro de projeto social ......................................................................................................................185 Gabarito .................................................................................................................191 Referências ...........................................................................................................209 Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Apresentação Nos acostumamos a ouvir a palavra “projeto” nas mais variadas utilizações: seja no que se refere a um “projeto de vida”, um “projeto empresarial”, um “projeto de pesquisa” ou mesmo um “projeto social”. A ampla utilização da pala- vra “projeto” no nosso cotidiano, muitas vezes equivocada ou leviana, por si só justificaria a importância da presente disciplina se esta se limitasse a tratar da gestão de ações planejadas. Porém, Elaboração e Planejamento de Projetos So- ciais adota um viés muito mais promissor. Em vez de se constituir em um roteiro de procedimentos para o bom andamento dos projetos sociais,busca trazer à tona uma discussão de princípios e temas fundamentais àquilo que se considerou “questão social”. Ao tomar como ponto de partida a constatação das desigualdades e injustiças sociais (mesmo nas variadas so- ciedades de democracia representativa), o presente livro parte do princípio de que as leis, regras e acordos não são muitas vezes efetivados por obstáculos históricos, polí- ticos, econômicos, gerenciais ou socioculturais, visando contribuir para a sua superação. Por isso, a disciplina busca articular toda a dimensão das políticas sociais para construir seus temas, tratando de direitos humanos, da discussão das implicações das políti- cas públicas, e portanto, envolvendo-se em uma discussão acerca da democracia e cidadania, sempre tendo como pano de fundo exemplos derivados de contextos históricos, leis, emendas ou declarações internacionais acerca do tema. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br A autora, através da utilização de uma ampla e atual bibliografia, trata do processo de elaboração de um proje- to (englobando as metas, objetivos, planejamento e avalia- ção); das relações entre os diversos atores sociais (Estado, empresas, sociedade civil organizada, movimentos sociais e ONGs); das políticas sociais e suas conexões com os pro- gramas e projetos específicos, sem deixar de dar atenção às implicações dos diferentes modos de gestão das ações específicas. Desta forma, o presente livro se constitui como uma importante referência não apenas para os estudantes de- dicados às questões sociais, mas também para os cidadãos comprometidos em reivindicar seus direitos e tomar parte ativa na direção da sociedade em que vivem, contribuindo para consolidação e ampliação da democracia. Boa leitura! Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 9 Planejamento: aspectos teóricos e históricos Samira Kauchakje Aspectos teóricos Planejamento é um processo político e técnico que envolve ética, uma vez que significa realizar um empreendimento que antecipa um cenário desejável e traça obje- tivos diante de situações consideradas como negativas em termos sociais, econômicos, culturais e políticos. Quer dizer, situações que são vistas por atores sociais significati- vos (gestores públicos, movimentos sociais, mídia, entre outros) como necessitando e sendo passíveis de intervenção para a obtenção de mudanças. O escopo da interven- ção, a direção e o alcance da mudança dependem tanto de capacidade técnica, recur- sos humanos, materiais e financeiros disponíveis, como de aspectos legais, culturais e, sobretudo, da correlação de forças políticas que estão em jogo. Portanto, o planejamento específico de políticas e projetos sociais supõe, por um lado, domínio teórico sobre o tema das políticas, legislação e projetos concernentes, e, também, dos processos de tomada de decisão e implementação de políticas num contexto social; por outro lado, supõe domínio de métodos e técnicas de elaboração e gestão de planos, bem como, de implementação, execução e avaliação dos mesmos. Quando se trata de sociedades partícipes e herdeiras dos movimentos e das lutas históricas pelos direitos humanos e pela estruturação de Estados que tenham como princípio constitucional as garantias de cidadania, o planejamento aborda: a) situações sociais que envolvem grupos sociais e coletividades cujo atributo político é serem su- jeitos de direitos e, b) utiliza, em algum grau, recursos públicos. Desta forma, o proces- so de planejamento está inserido no campo da ética – uma ética cívica “com o apego difundido aos mecanismos e valores democráticos” (REIS, 2001, p. 6), vinculada à noção de res pública1. A referência aqui é o Estado de Direito e, também, sua reformulação como Estado Social nas sociedades advindas do período moderno. A autora Di Pietro (1998, p. 1-2) esclarece: 1 “A essência do regime republicano, como a etimologia indica, é o fato de que o poder político não pertence, como um ativo patrimonial, aos governantes ou agentes estatais, mas é um bem comum do povo. [...] É só neste preciso sentido que se pode falar em poder público.” (COMPARATO, 2004, p. 8) Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 10 No primeiro período do Estado de Direito, iniciado na segunda etapa do Estado Moderno, instaurou- se o chamado Estado de Direito Liberal, estruturado sobre os princípios da legalidade, igualdade e separação de poderes, todos objetivando assegurar a proteção dos direitos individuais, nas relações entre particulares e entre estes e o Estado; o papel do Direito era o de garantir as liberdades individuais, já que se proclamava, com base no direito natural, serem os cidadãos dotados de direitos fundamentais, universais, inalienáveis. O Estado de Direito Liberal, embora idealizado para proteger as liberdades individuais, acabou por gerar profundas desigualdades sociais, provocando reações em busca da defesa dos direitos sociais do cidadão. [...] No segundo período do Estado de Direito, iniciado em meados do século XIX, atribui-se ao Estado a missão de buscar a igualdade entre os cidadãos; para atingir essa finalidade, o Estado deve intervir na ordem econômica e social para ajudar os menos favorecidos; a preocupação maior desloca-se da liberdade para a igualdade. O individualismo, imperante no período do Estado Liberal, foi substituído pela ideia de socialização, no sentido de preocupação com o bem comum, com o interesse público. Isto não significa que os direitos individuais deixassem de ser reconhecidos e protegidos; pelo contrário, estenderam o seu campo, de modo a abranger direitos sociais e econômicos. A partir de meados dos anos 1970, a crise fiscal e reestruturação produtiva nas sociedades imprimiram uma reformatação dos diferentes tipos de Estado social co- nhecidos. Esta conjuntura trouxe o ressurgimento de inseguridades sociais, riscos de privatização dos recursos públicos e de destituição do caráter político da questão social que poderia passar a ser objeto privilegiado da filantropia ou de solidariedades particulares e não de sólidas políticas sociais (KAUCHAKJE, 2005). Porém, acarretou, também, “a ideia de participação popular no processo político, nas decisões de Gover- no, no controle da Administração Pública. Com isto, é possível falar-se em Estado de Direito Social e Democrático” (DI PIETRO, 1998, p. 2). Existem variadas abordagens teóricas sobre planejamento de políticas públicas, programas e projetos sociais que podem ser agrupadas em: a) discussões teóricas sobre as etapas do planejamento; b) estudos que se referem aos atores envolvidos no proces- so de planejamento; e c) correntes teóricas diferenciadas pelos valores e propostas de sociedade que explicitam. Estas abordagens podem ser apresentadas como se segue: discussões teóricas que priorizam as etapas do processo do planejamento, ou seja, elaboração de plano, processos decisórios e de análise, implementa- ção, execução, monitoramento e avaliação. Segundo Oliveira (2006), existem três diferenças internas neste tipo de abordagem teórica, de acordo com qual etapa os autores considerariam primordial: 1. no processo de planejamento o principal seria o processo de elaboração de planos, composto pelas etapas de decisão política, análise de situações e de indicadores socioeconômicos, legis- lação, formação de equipe e avaliação dos resultados; 2. a maior importância está, de fato, nas etapas do processo de elaboração de planos, porém seria necessário prestar especial atenção aos momentos de implementação e exe- cução, pois são eles que, a despeito do que foi planejado, podem determinar o seu sucesso ou não; 3. a centralidade estariana etapa de monitoramento da implementação e execução de tudo que foi planejado anteriormente; El ab or aç ão e P la ne ja m en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 11 Planejam ento: aspectos teóricos e históricos estudos que se referem aos atores envolvidos no processo de planejamento (OLIVEIRA, 2006). Estes estudos podem ser separados em três grupos: 1. estu- dos que consideram que as decisões na elaboração e implementação de políti- cas e projetos são de cima para baixo, isto é, são de maior responsabilidade dos planejadores e gestores públicos (autoridades); 2. estudos que salientam que as decisões na elaboração e implementação de políticas e projetos são de baixo para cima, sendo que a população destinatária das políticas (público-alvo) e os implementadores/executores (educadores, assistentes sociais, professores, agentes de saúde, entre outros) são atores fundamentais; 3. estudos que con- sideram um duplo fluxo de decisões no planejamento das políticas e projetos, isto é, as decisões partem dos planejadores/gestores públicos e, também, dos implementadores/executores juntamente com a população/público-alvo; correntes teóricas diferenciadas pelos valores e propostas de sociedade que explicitam (BAUMGARTEN, 2002; OLIVEIRA, 2006), podendo ser organizadas em duas perspectivas: 1. correntes que entendem o planejamento como fun- damentado no mercado – instrumento para maximizar resultados com recur- sos escassos e como forma de controle sobre as iniciativas e demandas sociais; e 2. correntes alinhadas ao planejamento participativo, embora possuam com- preensões diversas sobre participação, sejam estas entendidas como: parceria da sociedade civil (movimentos sociais, Terceiro Setor e setor empresarial); no âmbito da abertura e fortalecimento de canais e instrumentos institucionais (como Conselhos Gestores e Conselhos Populares); no envolvimento efetivo do público-alvo, isto é, das próprias pessoas e grupos sociais a quem se des- tinam as políticas (partícipes da elaboração, controle e inclusive, por vezes da execução de projetos)2; e por fim, na democratização de recursos e decisões que favorece o protagonismo e a autonomia de setores e grupos sociais envol- vidos no sentido do planejamento emancipatório. Como exemplo, observa-se que, entre estas abordagens teóricas mencionadas, os planos e as legislações das políticas sociais de saúde, educação e assistência social no Bra- sil3 apontam para as características do planejamento participativo (com Conselhos Ges- tores paritários com representantes da sociedade civil), nos moldes do chamado duplo fluxo e no sentido do planejamento emancipatório. Entretanto, a inscrição destes ele- mentos em planos e legislação nem sempre se traduzem nas ações de implementação. De toda forma, nas diferentes correntes interpretativas e em diferentes socieda- des, o planejamento de políticas e projetos sociais faz parte de uma tradição de plane- jamento social, isto é, da intenção de direcionar a vida social de acordo com determi- nados objetivos (por exemplo, objetivo de desenvolvimento econômico ou social, de 2 Sobre tipos de conselhos ver Gohn (2001) e Tatagiba (2002). Sobre exemplos de políticas e programas sociais participativos ver Pochmann (2003). 3 Ver Lei Orgânica da Saúde (LOS), Lei de Diretrizes e Bases para a política de educação (LDB); e Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 12 diminuição de empobrecimento populacional etc.). A experiência histórica do plane- jamento social ocorreu tanto em sociedades democráticas como em autoritárias (de direita ou de esquerda em termos das ideologias políticas). A tradição do planejamento social (entendido também como planificação social) fundamenta-se na racionalidade própria da ciência moderna aliada à tecnologia que coloca como objetivo da produção de conhecimento o domínio sobre o objeto pesqui- sado e o direcionamento de resultados segundo utilidade socioeconômica.4 O século XX é, também, o marco histórico da planificação que, tal como a ciência, origina-se em necessidades e interesses humanos, articulando-se a determinadas práticas, atitudes e concepções de mundo. Em sua forma moderna, o planejamento é, de modo geral, orientado pela noção de recursos escassos, pela busca de racionalização desses recursos e pela vontade de alcançar maior eficiência nos campos da produção e da distribuição de bens. (BAUMGARTEN, 2002) Um dos pensadores clássicos que analisa e propõe o planejamento social é Man- nheim, autor do início do século XX representante da corrente historicista5. Para ele a “essência da planificação democrática deve tomar como tema a vida social em sua to- talidade: novas instituições, homens novos, valores novos” (MANNHEIM, 1972, p. 18). “Para que a sociedade seja controlada, devemos indagar-nos como poderemos melhorar nossa técnica de intervenção nos assuntos humanos, e onde deve começar essa intervenção. O problema desse ‘onde’, o ponto de ataque exato, leva-nos ao con- ceito de controle social.” (MANNHEIM, 1962 apud FORACCHI e MARTINS, 2002, p. 277) Portanto, o conceito e a prática de planificação social estão associados às de con- trole social compreendido como controle das agências do Estado sobre a sociedade. Esta concepção teve rebatimentos históricos no século XX, sendo que no campo dos regimes democráticos esta concepção influenciou a estruturação do Estado Social ou de Bem-Estar Social (Welfare State) e, no campo autoritário, fez parte da ascensão de ditaduras de direita (como dos Estados latino-americanos dos anos 1960 até 1980) ou das diversas vertentes da esquerda (como da antiga União Soviética ou atual China)6. 4 Em meados do século XIX há entre conservadores e socialistas, ainda que com antagônicas motivações, uma crença inabalável no progresso, e que o mundo estaria ou poderia transformar-se em melhor para todos. Um dos fatores para isto era “o controle do homem sobre as forças da natureza” possibilitado pela ciência e o desenvolvido tecnológico-industrial (HOBSBAWM, 2005, p. 411). A crença nas possibilidades transformadoras da ação intencional do homem, correspondente às condições materiais e forças produtivas, é expressa, por exemplo, por Marx em 1845: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, dife- rentemente, cabe transformá-lo” (MARX, 1978, p. 53). 5 Segundo Löwy (1999, p. 69) o historicismo “parte de três hipóteses fundamentais: 1. qualquer fenômeno social, cultural ou político é histórico e só pode ser compreendido dentro da história, através da história, em relação ao processo histórico; 2. existe uma diferença fundamental entre os fatos históricos ou sociais e os fatos naturais. Em consequência, as ciências que estudam estes dois tipos de fatos, o fato natural e o fato social, são ciências de tipos qualitativamente distintos; não só o objeto da pesquisa é histórico, está imergido no fluxo da história, como também o sujeito da pesquisa, o investigador, o pesquisador, está, ele próprio, imerso no curso da história, no processo histórico”. 6 Para aprofundar estudos sobre Estado Social ver Draibe (1989, 1991). Para um panorama histórico sobre planificação e regimes políticos ver Tavares dos Santos (2001).El ab or aç ão e P la ne ja m en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 13 Planejam ento: aspectos teóricos e históricos No Brasil, em especial, os movimentos sociais pela democratização das décadas de 1970 e 1980 e a Constituição Federal de 1988 impuseram um novo significadopara controle social no âmbito das políticas públicas, que passa a ser o controle da popu- lação sobre as ações e recursos do Estado e, sobretudo, por meio dos instrumentos e canais de participação social tais como: conselho, fórum, orçamento com participa- ção popular, audiência pública, iniciativa popular, referendo, plebiscito, entre outros (AVRITZER e NAVARRO, 2003; KAUCHAKJE, 2002). Seja nas variantes antagônicas dos regimes políticos citados, seja num ou noutro sentido de controle social, planejamento social articula-se a um projeto societário e a uma visão de mundo que os envolvidos no processo imprimem e expressam em seus planos de políticas e projetos sociais, conforme pôde ser observado nas correntes teó- ricas sobre planejamento. O planejamento é expressão da convicção de que é possível participar do direcionamento da experiência pessoal e social. De acordo com Mannheim seria a possibilidade do “domínio racional do irracio- nal”. Embora ele lembre de que é impossível e indesejável o controle de formas es- pontâneas, pois a planificação “não suprime a genuína dinâmica da vida” (MANNHEIM, 1962 apud FORACCHI e MARTINS, 2002, p. 277). Um dos expoentes brasileiros do planejamento econômico interroga-se sobre a influência do pensamento mannheimiano no qual o planejamento seria [...] capaz de elevar o nível de racionalidade das decisões que comandam complexos processos sociais, evitando-se que surjam processos cumulativos e não reversíveis em direções indesejáveis. Fixou-se, assim, no meu espírito a ideia de que o homem pode atuar racionalmente sobre a história. Hoje me pergunto se não existe uma grande arrogância nessa atitude: imaginar que estamos preparados para dar um sentido à História. (FURTADO, 1997b, p.18 apud REZENDE, 2004, p. 244) Entretanto, Furtado (1999, p. 77-80) admite a importância do planejamento para a construção da realidade social, especialmente no que se refere a debelar injustiças sociais nas esferas local e global, pois o planejamento seria [...] uma técnica fundamental para a ação racional. Significa ter referências com respeito ao futuro, portanto, usar a imaginação para abrir espaço. [...] Creio que, hoje, o que se perdeu – e isso é o mais grave – é a ideia de apelar para o planejamento. O homem sempre age a partir de hipóteses. Qualquer um de nós formula hipóteses com relação ao futuro de sua vida. Uma empresa precisa mais ainda formular essas hipóteses, e quanto mais complexa é a situação, maiores os riscos. No caso de um país, a coisa se agrava. [...] abandonar a ideia de planejamento é renunciar à ideia de ter governo efetivo. Em várias partes do mundo desde pelo menos o final do século XIX, ao longo do século XX e primeiros anos do novo milênio estes preceitos e características do plane- jamento de políticas públicas e projetos sustentaram as garantias de direitos (especial- mente saúde, educação, moradia, culturais e econômicos e relacionados ao mundo do trabalho), mas, também, possibilitaram trágicos exemplos de centralização autoritária e violação de direitos (em regimes autoritários com supressão das liberdades civis). Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 14 Aspectos históricos Na passagem dos séculos XIX para o XX, o crescimento das cidades europeias e a pauperizaçao dos trabalhadores são fenômenos relacionados ao modo de industrialização no capitalismo. A questão urbana manifesta-se como questão social nos fenômenos da segregação espacial, pobreza, pre- cário saneamento, insuficiência de serviços de saúde e mo- radia e nos movimentos dos trabalhadores, por exemplo. A emergência da questão social e urbana com as reivindi- cações por direitos exigiram do poder político o planejamen- to espacial e o planejamento de políticas sociais para atender as demandas tanto de grupos conservadores que almejavam a manutenção da ordem social e econômica (como medida para prevenir a desestruturação da coesão e moralidade vi- gentes, isto é, da integração e adesão da população aos va- lores e normas imperantes) como, também, de movimentos populares e socialistas pela conquista de direitos sociais. Neste período, as próprias empresas desenvolvem planos que as favoreçam nas disputas concorrenciais e na formação de estratégias corporativas frente às demandas dos trabalhadores e das imposições da legislação social e trabalhista no que diz respei- to a salários, jornada de trabalho, salubridade, férias, entre outros. Ao mesmo tempo, a Revolução de 1917, que cria a União Soviética, consolida o planejamento econômico (nas escalas da produção e do consumo) centralizado na burocracia de Estado. Após a Segunda Guerra Mundial, para a reconstrução da economia e do tecido social, o Estado da maioria dos países capitalistas europeus e do continente americano assumirá a intervenção na economia e na sociedade, seja atuando diretamente como empresário, investidor econômico e implementador de ações sociais; seja como princi- pal ator no planejamento de políticas sociais e econômicas. Neste período entre 1940 a 1970, todavia, a intervenção estatal foi diferente em cada sociedade, a depender das forças e agentes políticos, econômicos e culturais que configuraram as variações con- textuais do Estado Social7. Independente da forma do Estado de Bem-Estar mantinha- se o núcleo central que aliava consumo de massa e produtividade, por um lado, e con- quista de direitos (civis, políticos e sociais) por outro. 7 O termo Estado Social está sendo utilizado como sinônimo de Estado de Bem-Estar Social. D om ín io p úb lic o. H ul to n A rc hi ve . El ab or aç ão e P la ne ja m en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 15 Planejam ento: aspectos teóricos e históricos Na América Latina as ingerências internacionais dos países capitalistas centrais e a conjuntura local (lutas de teor socialista e capitalismo periférico dos anos 1950-1970) fizeram com que a ênfase estivesse no planejamento de políticas de desenvolvimento, sendo que esta vertente do planejamento econômico e social caracterizaria as déca- das das ditaduras na América do Sul. A partir da década de 1970, a mundialização financeira e a precarização ou falta de postos de tra- balho8 conjugadas com o desequilíbrio na compo- sição do orçamento dos Estados – crise fiscal – colo- caram em cheque (no bloco capitalista e socialista) a capacidade do Estado em planejar e implementar políticas9. Os movimentos locais reivindicaram au- tonomia e maior controle em relação ao Estado e as organizações financeiras e financiadoras internacionais exigiram planejamento e execução de políticas e projetos sociais partilhados com a sociedade civil e organizações sociais. Nos anos 1980–2000 dois fatores principais acarretam o enfraquecimento do pa- radigma da planificação que vicejou no período da modernidade clássica (TAVARES DOS SANTOS, 2001): a) políticas neoliberais de fortalecimento e abertura do mercado e de reforma do Estado nesta direção; b) internacionalização da economia e ampliação da sociedade em rede global (CASTELLS, 1999) que impossibilita a gestão pública e o planejamento econômico e social nos parâmetros estritamente locais e nacionais. Com isso emerge uma nova modalidade de planejamento na qual estão presen- tes arranjos de gestão em parceria com empresas e com o Terceiro Setor10; a gestão pú- blica democrática permeada pelos mecanismos de participação social; e a articulação de redes locais e globais. Nessa modalidade, o Estado figura como um dos componen- tes entre outros atores sociais, ainda que um componente privilegiado em termos dos recursos e competências no âmbitoda legislação e planejamento de políticas. O Brasil participa deste movimento histórico geral com peculiaridades. Por exem- plo, Oliveira (2006, p. 15) considera que na sociedade brasileira há “uma cultura de planos, com a ideia de antever e organizar o futuro [...] nós, brasileiros, geralmente temos uma visão positiva do planejamento”; e Schwartzman (1987) aponta esta carac- terística da seguinte forma: 8 Castel (2001) analisou a queda da oferta de empregos formais e seus efeitos sociais e políticos. Para o autor, a partir de 1980 estaria iniciando a era do fim da sociedade salarial, isto é, assentada no trabalho assalariado e protegido pela legislação trabalhista. 9 Isto não significa que o Estado tenha perdido esta capacidade ou mesmo que tenha deixado de implementar formas de planejamento de políticas, significa apenas que o ambiente ideológico denominado de neoliberal que foi hegemônico, especialmente entre 1970 e 1990, aliado à reestruturação produtiva e à globalização da economia e do setor financeiro, levou à deslegitimação ou descrédito no papel e na responsabilidade do Estado no planejamento econômico e social. Cabe ainda observar que neoliberalismo é uma ideologia e um prática que se baseia na liberdade econômica de livre mercado e na redução de políticas e projetos sociais governamentais. Sobre a discussão conceitual sobre neoliberalismo no campo das políticas sociais recomenda-se a leitura de Draibe (1991). 10 As organizações da sociedade podem ser divididas em: Primeiro Setor – organizações principalmente de direito público, restritas ao Estado; Segundo Setor – organizações de direito privado, especialmente ligadas ao mercado como empresas privadas de comércio, indústria e financeiras; Terceiro Setor – organizações de direito privado, sem fins lucrativos, que realizam ações de interesse público, tais como as ONGs (organizações não governamentais). D iv ul ga çã o: P re fe itu ra d e Vi tó ria . Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 16 concepção vigente desde 1930, e fortalecida nas décadas de 1950 até 1970, de que a economia deveria e era passível de ser planejada. Com destaque para os intelectuais brasileiros na Comissão Econômica para a América Latina das Nações Unidas – CEPAL – que consideravam relevante a intervenção do Estado para a promoção do desenvolvimento econômico; entre 1930 até 1980, retórica liberal11 e prática intervencionista e protecionista do Estado; planejamento de políticas setoriais, sem conceber um sistema de planejamen- to social; após os anos 1990 os governos empreenderam planos econômicos e estrutu- ração de políticas sociais. No Brasil e em outras sociedades é possível observar o rompimento do paradig- ma tradicional da planificação social, o que é diferente de afirmar o desaparecimen- to ou menor importância dos processos de planejamento, em especial de políticas e projetos sociais. Isto pode ser verificado em programas como Comunidade Solidária (governo Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2002) e Bolsa Família (governo Lula, iniciado em 2003) e na Lei do Plano Diretor que impõe aos municípios habilitados o planejamento da Política Municipal de Desenvolvimento Social (que agrega um con- junto de políticas sociais como assistência social, saúde, educação, segurança alimen- tar, entre outras).12 A relevância do planejamento e implementação destas políticas foi atestada por seus impactos sociais, pois a partir dos primeiros anos de 2000, as políticas sociais, junto com estabilidade econômica e períodos de crescimento têm promovido a di- minuição da desigualdade de renda, especialmente com referência aos patamares inferiores dos estratos sociais (NERI, 2007; ARBIX, 2007). A queda da desigualdade ob- servada entre 2001 e 2005 foi garantida pelos programas sociais e ocorreu tanto em períodos de perda de renda quanto de seu aumento: “No período mais recente (2003 a 2005) o crescimento anual total de 4,8% também se distribuiu de forma diferenciada entre os segmentos populacionais. Os mais pobres foram os que mais ganharam, com acréscimos anuais de 8,4% na renda (contra 3,7% do décimo mais rico e 4,9% do grupo intermediário)” (NERI, 2007, p. 58-9). 11 O liberalismo enquanto ideologia e campo teórico da política e da economia, especialmente, prima por valores ligados às liberdades. Isto é, liberdade eco- nômica, liberdade de expressão, liberdade de religião, liberdade para expressar posições políticas, entre outras. Teóricos liberais clássicos, desde o século XVII, como Locke, Tocqueville e Stuart Mill, influenciaram a concepção dos direitos civis (direito à vida e às liberdades) sendo que este ideário permeou a Revolução Americana (EUA) de 1774-1787 e a Revolução Francesa de 1789, bem como está contido na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 e da Declaração dos Direitos Humanos de 1948. Atualmente, partidos políticos, Estados e posições políticas democráticas (seja da democracia de esquerda ou de direita) têm no liberalismo um de seus fundamentos. Os movimentos liberais como visto, foram revolucionários e ainda podem ser em alguns contextos, porém, hoje existe, também, o reducionismo dos valores e práticas liberais, entendidos apenas como liberdade de mercado/sociedade de mercado, o que seria uma concepção conservadora da ordem social. 12 Sobre o Plano Diretor e Estatuto da Cidade ver o site <www.cidades.gov.br>.El ab or aç ão e P la ne ja m en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 17 Planejam ento: aspectos teóricos e históricos Políticas sociais e econômicas se condicionam mutuamente. Segundo Neri (2007, p. 67), por exemplo, o plano econômico Real implantado nos anos 1990 não tinha o objetivo da redistribuição, mas a estabilidade “viabilizou a ação de políticas sociais”. Para Arbix (2007, p. 137) não é por acaso que “no período declinante da desigualdade (1993-2006), o Brasil conseguiu manter uma inflação baixa, potencializando o impacto de um conjunto de políticas sociais...”. A diminuição da desigualdade é favorecida pela articulação entre políticas sociais de caráter redistribuitivo13 e da política econômica que promove estabilidade e cres- cimento, no entanto, a importância da política social de redução da desigualdade é destacada por Arbix (2007, p. 132 e 137): O período de 2001-2005 foi marcado pela redução da pobreza. A novidade é que, ao contrário de outros momentos na história, a principal força propulsora dessa redução foi a queda na desigualdade e não o crescimento econômico. [...] se a desigualdade entre 2001 e 2005 no Brasil não tivesse se reduzido, a pobreza teria caído apenas 1,2 ponto percentual ao invés dos 4,5 pontos percentuais realmente registrados no mesmo período. Ou seja, 73% da queda na pobreza e 85% da queda na extrema pobreza devem-se à redução na desigualdade. Portanto, apesar do Brasil continuar sendo um monumento da desigualdade e injusti- ça social como adjetivou Hobsbawm (1995), a diminuição da desigualdade de renda deu-se pelo impacto do planejamento e da implementação de políticas e programas sociais. O planejamento é um processo político e uma técnica social. Aliar esta dupla ca- racterística com o horizonte de construção de uma sociedade justa requer tanto uma metodologia como uma cultura política a favor do planejamento democrático. TEXTO COMPLEMENTAR A racionalidade do planejamento (BAPTISTA, 2000) O termo “planejamento”, na perspectiva lógico-racional, refere-se ao processo permanente e metódico de abordagem racional e científica de questões que se co- locam no mundo social. Enquanto processo permanente supõe ação contínua sobre um conjunto dinâmico de situaçõesem um determinado momento histórico. Como processo metódico de abordagem racional e científica, supõe uma sequência de atos decisórios, ordenados em momentos definidos e baseados em conhecimentos teóricos, científicos e técnicos. 13 Políticas de caráter redistributivo são aquelas que transferem recursos de um setor ou segmento da sociedade para outro, como os programas de transfe- rência de renda aos moldes do Programa Bolsa Família (Brasil) ou de tipo Renda Mínima (França). Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 18 Nessa perspectiva, o planejamento refere-se, ao mesmo tempo, à seleção das atividades necessárias para atender questões determinadas e à otimização de seu inter-relacionamento, levando em conta os condicionantes impostos a cada caso (recursos, prazos e outros); diz respeito, também, à decisão sobre caminhos a serem percorridos pela ação e às providências necessárias à sua adoção, ao acompanha- mento da execução, ao controle, à avaliação e à redefinição da ação. [...] O planejamento como processo político A dimensão política do planejamento decorre do fato de que ele é um processo contínuo de tomadas de decisões, inscritas nas relações de poder, o que caracteriza ou envolve uma função política. No entanto, tradicionalmente, ao se tratar de planejamento, a ênfase era dada aos seus aspectos técnico-operativos, desconhecendo, no seu processamento, as tensões e pressões embutidas nas relações dos diferentes sujeitos políticos em pre- sença. Hoje, tem-se clareza de que, para que o planejado se efetive na direção dese- jada, é fundamental que, além do conteúdo tradicional de leitura da realidade para o planejamento da ação, sejam aliados à apreensão das condições objetivas o co- nhecimento e a captura das condições subjetivas do ambiente em que ela ocorre: o jogo das vontades políticas dos diferentes grupos envolvidos, a correlação de forças, a articulação desses grupos, as alianças ou incompatibilidades entre os diversos seg- mentos. Esse conhecimento irá possibilitar, além da visualização de propostas com índices mais altos de viabilidade, a percepção e o manejo das dificuldades e das potencialidades para o estabelecimento de parcerias, de acordos, de compromissos, de responsabilidades compartilhadas. Esta apreensão levou a assumir a importância do caráter político do planeja- mento e a necessidade de operá-lo de uma perspectiva estratégica, que trabalhe sobre este contexto de relações apreendendo sua complexidade, enfatizando os ganhos do processo. Desta forma, o domínio e a orientação do fluxo dos aconte- cimentos se pautaram por um novo sentido de competência: além da competên- cia teórico-prática e técnico-operativa, há que ser desenvolvida uma competência ético-política. [...] El ab or aç ão e P la ne ja m en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 19 Planejam ento: aspectos teóricos e históricos O planejamento como processo técnico-político O planejamento se realiza a partir de um processo de aproximações, que tem como centro de interesse a situação delimitada como objeto de intervenção. Essas aproximações consubstanciam o método e ocorrem em todos os tipos e níveis de planejamento. Ainda que submetidas ao movimento mais amplo da sociedade, o seu conteúdo específico irá depender da estrutura e das circunstâncias particulares da cada situação. O desencadeamento desse processo particular de planejamento se faz a partir do reconhecimento da necessidade de uma ação sistemática perante questões li- gadas a pressões ou estímulos determinados por situações que, em um momento histórico, colocam desafios por respostas mais complexas que aquelas construídas no imediato da prática. [...] Portanto, a decisão de planejar, [...] é uma decisão política que pressupõe aloca- ção de recursos para sua realização. Assumida a decisão de planejar, o movimento de reflexão–decisão–ação–refle- xão que o caracteriza vai realizando concomitantemente as seguintes aproximações: construção/reconstrução do objeto; estudo da situação; definição de objetivos para a ação; formulação e escolha de alternativas; montagem de planos, programas e/ou projetos; implementação; implantação; controle da execução; avaliação do processo e da ação executada; retomada do processo em um novo patamar. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 20 [...] na prática, esse processo nem sempre se mostra nitidamente ordenado. Metodologicamente, o planejador desenvolve atividades, simultaneamente, em di- ferentes aproximações, uma vez que elas interagem de maneira dinâmica. [...] O quadro 1, apresentado a seguir, mostra uma síntese dessa dinâmica. Quadro 1– Síntese da dinâmica do processo de planejamento Processo racional Fases metodológicas Documentação decorrente Reflexão (Re) construção do objeto Proposta preliminar Estudo de situação Estabelecimento de prioridades Diagnóstico Propostas alternativas Estudo de viabilidade Anteprojetos Decisão Escolha de prioridade Escolha de alternativas Definição de objetivos e metas Planos Programas Projetos Ação Implementação Implantação Execução Controle Roteiros Rotinas Normas/Manuais Relatórios Retorno da reflexão Avaliação Retomada do processo Relatórios avaliativos Novos planos, programas e projetos ATIVIDADES Por que planejamento de políticas e projetos sociais é considerado um proces-1. so político e técnico que envolve ética? (resposta em até 20 linhas) El ab or aç ão e P la ne ja m en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 21 Planejam ento: aspectos teóricos e históricos Quais são os marcos históricos gerais do planejamento de políticas e projetos 2. sociais? Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 22 Pesquise em equipe (de três a seis pessoas) os projetos sociais que estão sendo 3. implementados em seu município. Escolha dois projetos e entregue um traba- lho de até duas páginas contendo: nome de cada projeto; a. objetivos de cada um dos projetos; b. população-alvo de cada um dos projetos; c. resultados esperados em cada um dos projetos; a opinião da equipe de alu-d. nos sobre a relevância de cada um dos projetos (por que o projeto é impor- tante?). Lembre-se: não copie textos de sites da internet ou dos documentos dos e. projetos sociais, escreva as informações com suas próprias palavras. El ab or aç ão e P la ne ja m en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 23 Planejam ento: aspectos teóricos e históricos Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 25 Questão social: expressões históricas e atuais Questão social Pobreza, desigualdade social, agravos sociais para a saúde, desemprego, condi- ções de moradia abaixo do patamar do que seria digno num contexto social, infância e velhice desassistidas, exploração do trabalho e expropriação do produto do trabalho; precário acesso ao patrimônio cultural; dificuldade de aquisição de alimentos que ga- rantam a nutrição, são condiçõese situações sociais conhecidas e experienciadas de formas diversas ao longo da história. São fenômenos que em si mesmos não se configuram como questão social, pois para isto há a necessidade de uma conjunção de fatores culturais, políticos e econô- micos que façam com que a própria sociedade indague sobre as razões e os meios de debelar, controlar ou minimizar tais situações. Em outras palavras, para que seja reco- nhecido como questão social, e uma de suas expressões, um fenômeno social precisa ser desnaturalizado, quer dizer, seus fatores, geradores e possíveis soluções buscados nas próprias relações sociais e não em justificativas exteriores a elas. Exemplos de concepções e visões de mundo que não questionam as situações sociais são: a desigualdade de renda e de aquisições materiais e culturais entendida como própria à ordem do mundo social (e não sendo gerada por processos político- econômicos); a pobreza compreendida como o lugar em que forças divinas colocam algumas pessoas seja para sua redenção ou por falta de mérito e castigo; a doença (ainda quando causada por condições de trabalho e moradia) vista como fatalidade ou vontade de Deus; educação e escolarização como privilégio; o trabalho e parte do seu produto como doação; assistência na velhice e infância dependente de laços de pertencimento familiar e comunitário; e a falta de alimento de qualidade, vista como parte da escassez natural generalizada, ou naturalmente concentrada em determina- dos grupos sociais de castas, etnias, camadas e classes consideradas inferiores. Diante de tais concepções as atitudes poderiam ser de lamento, repulsa, caridade, indiferença, resignação perante o que não pode ser mudado, ou ainda de revolta diante da sorte pessoal ou grupal ou do abuso de poderes e poderosos, porém, dificilmente poderiam mobilizar movimentos sociais e implementação de legislação e políticas de caráter uni- versal sob responsabilidade do Estado. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 26 Esta visão predominou durante a maior parte dos períodos históricos, sendo que tais fenômenos e as suas possíveis situações geradoras ou agravantes não eram inter- rogados e questionados nos termos das estruturas sociais e responsabilidades da ação e das relações sociais. A partir do século XIX esta indagação sobre a própria realidade e a ordem social promove a passagem do que seria um fato imutável e um proble- ma social para a concepção de questão social. “[...] o conceito questão social sempre expressou a relação dialética entre estrutura e ação, na qual sujeitos estrategicamente situados assumiram papéis políticos fundamentais na transformação de necessidades sociais em questões – com vista a incorporá-las na agenda pública e nas arenas decisó- rias...” (PEREIRA, 2001, p. 51) O marco no século XIX explica-se pela consolidação da industrialização aos moldes capitalistas e pela urbanização acelerada e desordenada que rompem com as condições e modos de vida cuja referência seria a proteção próxima ou horizontal (isto é, de familiares, paróquias, vizinhança, de fidelidade entre senhor–servo ou mestre– aprendiz de tempos anteriores). Mas também, este é um marco da emergência dos movimentos trabalhistas e das lutas sociais sob a inspiração dos direitos e do socia- lismo que convulsionaram especialmente as sociedades europeias, e possibilitaram o questionamento das necessidades vivenciadas como carências, demandando mudan- ças ou transformações sociais para enfrentá-las. A tríade – necessidades, carências e demandas1 – são inseparáveis para a apreen- são da questão social como modo de interpretar e interpelar a realidade. Necessidades humanas são, todas, em alguma medida, necessidades sociais e cul- turais2. Homens e mulheres igualmente têm necessidade de alimento, de abrigo, de condições reprodutivas e satisfação sexual, e também têm as necessidades de caráter intangível como autonomia e criação (trabalho), entre outras. Quais são as necessida- des humanas e quais as maneiras do seu cumprimento variam historicamente a de- pender de fatores socioambientais, culturais e econômicos (tais como o que é conside- rado alimento, os requisitos dignos para a habitação, o que seria aceito em termos da sexualidade, as qualidades humanas do trabalho). Portanto, em certo grau, todas as necessidades são também produções huma- nas, sendo que algumas delas decorrem diretamente de outros artefatos: a educação digital é uma necessidade relativa às tecnologias da informação e da comunicação; o saneamento e o mínimo de habitabilidade vêm do próprio modo de vida nas urbes, por exemplo. Por isso é um equívoco escalonar necessidades como básicas (também denominadas biológicas/primárias/naturais) e complexas, pois as necessidades sejam 1 De forma resumida: “entende-se por necessidade tanto o que é requisitado no patamar fisiológico na vida individual, como as necessidades criadas socio- culturalmente. Carência liga-se ao processo social que leva a que pessoas ou coletividades não tenham atendidas as necessidades. Demanda é a vocalização das carências, seja por meio de manifestações e reivindicações participativas, seja pelo próprio reconhecimento público da existência da carência; em outras palavras: demandas são vocalizadas em movimentos sociais, fóruns, conselhos, audiências e/ou identificadas por igrejas, mídia, legisladores, gestores públicos, partidos políticos etc.)” (KAUCHAKJE, 2008, p. 1). 2 Para uma discussão detalhada sobre o tema é indicado Pereira (2000).El ab or aç ão e P la ne ja m en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 27 Q uestão social: expressões históricas e atuais quais forem têm dimensões culturais, e passam a ter na vida pessoal e social importân- cia equivalente. Assim como as demais, são necessidades humanas iguais e prementes o alimento e a autonomia. Carências, por sua vez, são produtos de relações sociais nas quais processos de estratificação social (por sexo, etnia, casta, classe, entre outros) privam ou dificultam o acesso de alguns grupos sociais e coletividades aos recursos e meios para satisfa- zer as necessidades colocadas por seu tempo e sociedade. Os exemplos a seguir são ilustrativos: todos têm necessidade de alimento com qualidade nutricional, mas como fruto das relações sociais locais e glo- bais grupos sociais estão em situação de carecimento, isto é, no mundo exis- tem cerca de 863 milhões de pessoas (FAO, 2008) subnutridas; todos os seres humanos igualmente têm necessidade de autonomia. Uma das manifestações que reconhecem a satisfação desta necessidade como direito é a Declaração dos Direitos Humanos de 19483. Por princípio as sociedades que aderem a esta declaração cumprem ou zelam nas relações internacionais pelo cumprimento de artigos como os art. 18 e 19: Art. 18 Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular. Art. 19 Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. Todavia, foram registrados 45 países que mantêm prisioneiros de consciência (isto é, pes- soas presas por expressarem pensamento, credo religioso e posição política contrários aos oficiais no Estado) e 77 países que restringem a liberda- de de expressão e de imprensa, conforme Anis- tia Internacional – Informe2008. 3 Ver íntegra da Declaração dos Direitos Humanos no site da ONU: <www.onu-brasil.org.br>. Ca rla S oz za ni . Jü rg en S ch ad eb er g. Nelson Mandela. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 28 Demandas sociais são formas de vocalização, quer dizer, de manifestações (por movimentos sociais, participação política, revoluções etc.) que reivindicam garantias de condições sociais para que as necessidades possam ser satisfeitas, portanto, para que carecimentos sejam debelados ou minimizados. A construção da diferença entre necessidades e carências (necessidades humanas partilhadas por todos sendo diferente das carências sociais que por razões calcadas na própria sociedade – razões não naturais ou de ordem sobrenatural – seriam encargo de grupos sociais específicos), portanto, faz parte de um processo social que se intensificou a partir das lutas igualitárias e por direitos do século XIX que ex- pressavam demandas sociais. Ao mesmo tempo, os próprios movimentos sociais foram questionando e formando a diferenciação entre necessidade e carência, mediada pela noção dos direitos. Trata-se aqui do processo de construção dos direitos a partir das chamadas re- voluções gêmeas (HOBSBAWM, 2005), isto é, a revolução política (Revolução France- sa, no século XVIII) e a revolução econômica (cuja emergência remonta ao século XVII especialmente na Inglaterra) que esteve conjugada aos ideais liberais4 de liberdade e cidadania civil. Tais direitos são problematizados pelas lutas sociais que criticam a contradição entre as péssimas condições de vida e trabalho num período de crescimento econômico e rei- vindicam legislação trabalhista e direitos sociais (como habitação, educação, saúde) jun- tamente com as liberdade civis e a participação política. Engels (1987 apud Hobsbawm, 2005, p. 255) ilustra o que seria o ambiente da Inglaterra do século XIX: Um dia andei por Manchester com um destes cavalheiros da classe média. Falei-lhe das desgraçadas favelas insalubres e chamei-lhe a atenção para a repulsiva condição daquela parte da cidade em que moravam os trabalhadores fabris. Declarei nunca ter visto uma cidade tão mal construída em minha vida. Ele ouviu-me pacientemente e na esquina da rua onde nos separamos comentou: E ainda assim, ganham-se fortunas aqui. Bom dia, senhor! Neste sentido, a concepção de direitos forneceu as bases para que as condições de vida e trabalho do período fossem percebidas como produto das relações sociais injustas nas sociedades capitalistas. A questão social significa justamente o desvendamento das contradições sociais, portanto, trata-se menos da existência da pobreza, da desigualdade e de privações (que já faziam parte da experiência de diversas sociedades desde tempos imemoriáveis) e mais da nova forma que estes fenômenos estavam sendo gerados e interpretados. 4 Ver autores no campo da teoria liberal clássica: Locke, Tocqueville, Stuart Mill, por exemplo. D om ín io p úb lic o. Revolução Francesa. El ab or aç ão e P la ne ja m en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 29 Q uestão social: expressões históricas e atuais Com efeito, se não era inédita a desigualdade entre as várias camadas sociais, se vinha de muito longe a polarização entre ricos e pobres, se era antiquíssima a diferente apropriação e fruição dos bens sociais, era radicalmente nova a dinâmica da pobreza que então se generalizava. Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas. (NETTO, 2001, p. 42) Por um lado, a questão social era objeto das lutas sociais, e por outro, as elites po- líticas e econômicas viam nestas lutas um perigo à ordem social, e como tais deveriam ser combatidas (seja de forma repressiva ou pelo atendimento de parte de suas reivin- dicações por meio de legislação e políticas sociais) – isto é, os próprios movimentos sociais eram tidos como uma das expressões da questão social. Em síntese, Originalmente, a chamada questão social constitui-se em torno das grandes transformações econômicas, sociais, políticas, ocorridas na Europa do século XIX e desencadeadas pelo processo de industrialização. Essa questão assentou-se basicamente, na tomada de consciência [...] de um conjunto de novos problemas, vinculados às modernas condições de trabalho urbano, e do pauperismo como um fenômeno socialmente produzido. Assim, se a pobreza, nas sociedades pré- industriais, era considerada um fato natural e necessário para tornar os pobres laboriosos e úteis à acumulação de riquezas [...], agora ela deveria ser enfrentada e resolvida para benefício, inclusive, do progresso material em ascensão. Tal tomada de consciência foi despertada pela constatação do divórcio existente entre o crescimento econômico e o aumento da pobreza, de um lado, e entre [...] reconhecimento dos direitos do cidadão e uma ordem econômica negadora destes direitos, por outro lado. (PEREIRA, 1999, p. 51) Atualmente, a questão social é entendida como o conjunto das diversas expressões da desigualdade social reconhecidas nas sociedades a partir do século XIX, cujo funda- mento são as contradições do capitalismo como forma de produção e de organização social, bem como os modos de resistência a elas (IAMAMOTO, 1982; NETTO, 2001). As expressões atuais da questão social conjugam as já tradicionais, como a pobreza e a desigualdade (que se tornaram mais vinculadas ao contexto interna- cional e global), às recentes manifestações, tais como: retomada da precarização do trabalho; desemprego de longa duração; conflitos ligados às diferenças étnicas e culturais; disputas em torno das identidades de gênero; riscos ambientais; e fluxos migratórios motivados pela busca de refúgio diante de conflitos políticos e da extrema pobreza que beira ao exter- mínio (às vezes com o agravante de ocorrências de catástrofes ambientais). No decorrer do tempo, hoje como no passado, são basicamente duas as respostas à questão social: implementação de um aparato repressivo: tradicionalmente para a contenção dos movimentos operários e populares e para a punição daqueles que não tinham ou se negavam ao trabalho; e recentemente, além da permanência destes aspectos, este aparato é montado para o fechamento de fronteiras e expulsão de imigrantes de territórios nacionais; Sp en sy P im en ta l / A Br . Cruz Vermelha. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 30 composição de legislação e políticas sociais: tradicionalmente vinculadas ao mundo do trabalho e financiadas nas relações de trabalho5; e atualmente com relativo afastamento do mundo do trabalho e das contribuições diretas por conta das taxas de desemprego e de trabalho informal precário6 (como no caso dos programas de transferência de renda e do auxílio-desemprego) (TELLES, 1996). De toda forma, tais legislações e políticas significaram e signi- ficam conquista de direitos e, também, condições de manutenção da ordem socioeconômica. De toda forma, a emergência da questão social fez com que o planejamento de polí- ticas sociais ocupasse um lugar central na dinâmica das relações entre Estado e sociedade. Embora pudesse haver maior concordância sobre a importância do planejamento, houve e há posições diversas e divergentes sobre políticas e serviços públicos, tais como: os que concebem que políticas e serviços sociais públicos podem contribuir para a tessitura de relações pautadas na justiça social nas sociedades capitalis- tas (concepçãoque animou a formulação, em algumas sociedades, do Estado de Bem-Estar Social, entre os anos 1940 e 19707); os que admitem sua importância para a manutenção da ordem social, seja porque podem restringir os movimentos sociais, seja porque favorecem a acu- mulação do capital8; e os atores sociais que veem as políticas e projetos sociais como uma forma de assegurar direitos como estratégia de acúmulo de forças e de condições para a constituição de um futuro projeto alternativo de sociedade9. No Brasil, estas posições sobre o planejamento de políticas estão presentes atu- almente, nos conselhos, nas secretarias de Estado, nas ONGs (organizações não go- vernamentais) e na sociedade em geral, onde os atores sociais dialogam e disputam para direcionar o sentido e a implementação das políticas. Por isto, as legislações que regulamentam as políticas sociais resultam de negociações e jogos de força entre estes atores, e o texto das leis sociais expressam este debate10. 5 Cabe lembrar que uma legislação social relativa a regular o mundo do trabalho é formatada, especialmente na Inglaterra, desde o final do século XV e no século XVI. Estas leis obrigam ao trabalho, reprimem os “vagabundos e esmoleiros” e favoreceram o avanço do capitalismo e a própria Revolução Industrial (MARX, 1983; CASTEL, 2001). No Brasil, após os anos 1930 até ao menos a década de 1980, para se mostrar digno dos direitos de cidadania e de tratamento respeitoso era preciso apresentar a carteira de trabalho antes que a “carteira de identidade”. A isto Santos (1979) chamou de cidadania regulada. 6 Ver Indicadores sociais do IBGE – Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. 7 O Estado de Bem-Estar Social é caracterizado pelo planejamento e financiamento de políticas e oferta de serviços públicos e, ao mesmo tempo, de um alto nível de consumo que mantém aquecida a economia. Ver Draibe (1989). 8 Uma das interpretações sobre políticas e projetos sociais é que ele permite que a reprodução do trabalhador tenha um custo baixo para o empregador, au- mentando as condições de sua acumulação, pois a educação pública, a saúde pública e a moradia popular, por exemplo, são financiadas pela sociedade como um todo, via tributação, enquanto que a acumulação de capital e seu usufruto são privados. No Brasil, aliás, há demandas pela reforma tributária para diminuir a evasão e a injustiça fiscal. Segundo Brami-Celentano e Carvalho (2007, p.10) os objetivos da justiça fiscal/social seriam “o aumento da tributação sobre as rendas mais altas e sobre o patrimônio, a redução da tributação incidente sobre o consumo da maioria da população e a desoneração da folha de salários”. 9 Esta é a posição de partidos e setores de esquerda que optam pelo jogo democrático e participação no Estado em cargos legislativos e executivos. 10 Interessante conhecer a legislação social como: Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB); Lei Orgânica da Saúde (LOS); Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), entre outras disponíveis nos sites oficiais dos Ministérios da Educação, da Saúde e da Assistência Social. El ab or aç ão e P la ne ja m en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 31 Q uestão social: expressões históricas e atuais Questão social e planejamento no Brasil Na Constituição Federal de 1988 são destacados o planejamento econômico, o primado do trabalho, da dignidade humana e do bem-estar social, conforme os se- guintes artigos11 Art. 1.º A República Federativa do Brasil (...), tem como fundamentos: [...] II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; [...] Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei [...] Os artigos constitucionais são base para o planejamento de políticas sociais en- quanto que a questão social provoca sua elaboração. Em outras palavras, a questão social e suas expressões na realidade social são nucleares para o planejamento e elaboração de políticas e projetos sociais. Políticas e projetos são demandados pelo próprio reconheci- mento da questão social e se configuram como uma forma de resposta social a ela. Dentre as expressões da questão social, a pobreza parece ser um eixo catalisador e, também irradiador: potencializa e gera insegurança alimentar e doenças, e também é agravada por desemprego de longa duração12 e formação profissional e educacional reduzida, por exemplo. No caso brasileiro a pobreza está associada à acentuada desigualdade de renda. Estudos baseados no PNAD de 1997 – Pesquisas Nacional por Amostra de Domicílio / IBGE – demonstravam que [...] pessoas com renda acima de R$1.500 estavam entre os 5% mais ricos da população brasileira em 1997. Vários indicadores mostram a grande desigualdade da distribuição. Os 10% mais ricos ficam com quase 48% da renda total. A participação do 1% mais rico na renda total (13,8%) supera a participação da metade mais pobre da população (11,8%). Pode-se verificar que a renda média do1% 11 Agradeço a Fabiane Bessa pela sugestão dos artigos. 12 Para Pochmann (2002), desemprego de longa duração seria o desemprego por oito meses ou mais. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 32 mais rico é quase 59 vezes maior do que a renda média dos 50% mais pobres. A renda média dos 10% mais ricos é 25,7 vezes maior do que a renda média dos 40% mais pobres. (HOFFMANN, 2000, p. 83) A tabela 1 resume estas informações. Tabela 1 – Distribuição do rendimento familiar per capita no Brasil, conforme a situação do domicílio – 1997 40% mais pobres 7,4 (H O FF M A N N , 2 00 0) 50% mais pobres 11,8 20% mais ricos 64,4 10% mais ricos 47,8 5% mais ricos 34,1 1% mais rico 13,8 Dados recentes do Pnad apontam que [...] em 2006, havia no país 36 153 687 pessoas classificadas como miseráveis, o que equivale a 5,87 milhões a menos que em 2005, quando foram registradas 42 033 587 com renda per capita abaixo de R$125 mensais. Nos últimos três anos (2004, 2005 e 2006), a redução acumulada da pobreza foi de cerca de 36%. [...] Em 2006, os 50% mais pobres aumentaram a sua participação nas riquezas do país em 12%. Já os mais ricos, aumentaram sua participação em 7,8%. Além disso, o índice de Gini, que mede o grau de desigualdade segundo a renda domiciliar per capita, também caiu em 2006, chegando a 15%. [...] A proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza, [...] atingiu uma marca histórica no ano passado, ao chegar a 19,31%. Em 2005, essa proporção era de 22,77%. Em 1993, chegou a ser de 35%. (CARTA CAPITAL, 2007) Estes dados fornecem subsídios para o debate sobre programas e projetos que prio- rizam segmentos populacionais e situações sociais (tais como os programas Bolsa–Esco- la, Bolsa Família, e Programa de Erradicação do Trabalho Infantil13) e os riscos que trazem para a universalização dos direitos sociais. Isto porque o princípio da universalização significa que uma política não se destina a grupos sociais específicos, mas independentede qualquer fator de classe, etnia, religião, sexo, idade, renda etc., ela se destina e afeta a todos os cidadãos. No Brasil são políticas sociais universais as de educação (fundamen- tal), saúde e assistência social (em termos de que todos que dela necessitarem). Draibe, todavia, afirma que programas e projetos que privilegiam determina- dos grupos e segmentos sociais vulneráveis ou em risco social14 podem ter efeito redistributivo15 desde que realizados de forma conjugada e no interior de programas 13 Para uma discussão sobre estes programas é recomendável ler GIOVANNI; YAZBER; SILVA. A Política Social Brasileira no Século XXI – a prevalência dos programas de transferência de renda. São Paulo: Cortez, 2004. 14 São consideradas situações de vulnerabilidade e risco social: perda ou fragilidade de vínculos de afetivos, de pertencimento e sociais; ciclos de vida (criança, adolescente idoso); identidades estigmatizadas em termos étnico (no Brasil: negros, índios, por exemplo), cultural, sexual ou de gênero; desvantagem pessoal resultante de deficiências; pobreza; frágil ou insuficiente acesso às políticas e aos serviços públicos; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de vio- lência; inserção precarizada ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social, entre outros. (ver texto da Política Nacional da Assistência Social. Disponível em: <www.mds.gov.br>). 15 Políticas e programas redistributivos são os que propiciam renda, bens, assim como oferta de serviços e equipamentos públicos por meio da transferência de recur- sos de um setor ou segmento da sociedade para outro. Um estudo interessante desta modalidade de política no Brasil encontra-se em Giovanni; Yazbek; Silva (2004). E la bo ra çã o e Pl an ej am en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 33 Q uestão social: expressões históricas e atuais universais. Isto porque estes programas podem “reduzir as chances da reprodução da desigualdade sob o manto de programas universais, frequentes, sobretudo em sociedades muito desiguais” (DRAIBE, 2003, p. 11). Os dados sobre os primeiros anos de 2000 confirmam que as políticas sociais e programas destinados aos grupos mais empobrecidos promoveram uma diminuição da desigualdade de renda no Brasil (NERI, 2007; ARBIX, 2007). Porém, a despeito da redução da desigualdade e do número de pessoas destitu- ídas de direitos de cidadania pela pobreza, estas persistem como graves expressões brasileiras da questão social. Disto decorre a importância das políticas e projetos sociais (portanto, políticas e projetos de educação, saúde, assistência social, trabalho, habitação e segurança alimentar, principalmente) contemplarem em seu planejamento ações destinadas a combater a pobreza e a desigualdade, o que quer dizer ações que conjuguem esforços para a democratização dos bens e recursos sociais. TEXTO COMPLEMENTAR Questão social e cidadania (TELLES, 1999, p. 84-130) [...] a sociedade brasileira sempre teve, para o bem ou para o mal, a questão social no seu horizonte político. É uma sociedade na qual sempre existiu uma cons- ciência pública de uma pobreza persistente – a pobreza sempre apareceu no dis- curso oficial, mas também nas falas públicas de representantes políticos e de lide- ranças empresariais, como sinal de desigualdades sociais indefensáveis [...]. Tema do debate público e alvo privilegiado do discurso político, a pobreza é e sempre foi notada, registrada, documentada. Poder-se-ia mesmo dizer que, tal como uma sombra, a pobreza acompanha a história brasileira, compondo o elenco dos pro- blemas e dilemas de um país que fez e ainda faz do progresso um projeto nacional. É isso propriamente que especifica o enigma da pobreza brasileira. [...] essa é uma sociedade que não sofreu a revolução igualitária [...] em que as leis, ao contrário dos modelos clássicos, não foram feitas para dissolver, mas para cimentar os privilégios dos “donos do poder”; e em que, por isso mesmo, a modernidade anunciada pela universalidade das regras formais não chegou a ter o efeito racionalizador [...], con- vivendo com éticas particularistas do mundo privado das relações pessoais que, ao serem projetadas na esfera pública, repõem a hierarquia entre pessoas no lugar em Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 34 que deveria existir a igualdade entre indivíduos. E essa é a matriz da incivilidade que atravessa de ponta a ponta a vida social brasileira, de que são exemplos conhecidos a prepotência e o autoritarismo nas relações de mando, para não falar do reitera- do desrespeito aos direitos civis das populações trabalhadoras. Incivilidade que se ancora num imaginário persistente que fixa a pobreza como marca da inferiorida- de, modo de ser que descredencia indivíduos para o exercício de seus direitos, já que percebidos numa diferença incomensurável, aquém das regras da equivalência que a formalidade da lei supõe e o exercício dos direitos deveria concretizar [...]. O enigma da pobreza está inteiramente implicado no modo como direitos são nega- dos na trama das relações sociais. Não é por acaso, portanto, que tal como figurada no horizonte da sociedade brasileira, a pobreza apareça despojada de dimensão ética e o debate sobre ela seja dissociado da questão da igualdade e da justiça. Pois essa é uma figuração que corresponde a uma sociedade em que direitos não fazem parte das regras que organizam a vida social. [...] Seria um equívoco creditar tudo isso à persistência de tradicionalismos de tempos passados, resíduos de um Brasil arcaico. [...] É certo que a sociedade brasi- leira carrega todo o peso da tradição de um país com passado escravagista e que fez sua entrada na modernidade capitalista no interior de uma concepção patriarcal de mando e autoridade, concepção esta que traduz diferenças e desigualdades no registro de hierarquias que criam a figura do inferior que tem o dever da obediência, que merece favor e proteção, mas jamais os direitos. Tradição esta que se desdobra na prepotência e na violência presentes na vida social, que desfazem, na prática, o princípio formal da igualdade perante a lei, repondo no Brasil moderno a matriz histórica de uma cidadania definida como privilégio de classe. [...] Pois o que chama a atenção é a constituição de um lugar em que a igualda- de prometida pela lei reproduz e legitima desigualdades, um lugar que constrói os signos do pertencimento cívico, mas que contém dentro dele próprio o princípio que exclui as maiorias, um lugar que proclama a realização da justiça social, mas bloqueia os efeitos igualitários dos direitos na trama das relações sociais. [...] É o lugar no qual a pobreza vira “carência”, a justiça se transforma em caridade e os direitos em ajuda [...] Se é verdade que muita coisa mudou no Brasil contemporâneo, se direitos, parti- cipação, representação e negociação já fazem parte do vocabulário político ao menos nos principais centros urbanos do país, a questão da pobreza permanece e persiste desvinculada de um debate público sobre critérios de igualdade e de justiça. [...] El ab or aç ão e P la ne ja m en to d e Pr oj et os S oc ia is Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 35 Q uestão social: expressões históricas e atuais [...] a “descoberta da sociedade” se fez na experiência dos movimentos sociais, das lutas operárias, dos embates políticos que afirmavam, frente ao Estado, a iden- tidade de sujeitos que reclamavam
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