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Impresso no Brasil, agosto de 2013 Copyright© 2013 Antonio Fernando Borges Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal 45321 - Cep 04010-970 - São Paulo - SP Telefax (5511) 5572-5363 e@erealizacoes.com.br / www.erealizacoes.com.br Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Sonnini Ruiz Produção editorial Liliana Cruz Preparação Mareia Benjamim Revisão Bel Ribeiro Capa e projeto grqfico :;fli.n!i'a :fm;pa.fpávef :/!Jílifíoteca Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É DiaJtramação André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impressão e impressão Gráfica Mundial Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor. EM BUSCA DA PROSA PERDIDA FUNDAMENTOS E POSSIBILIDADES DA ARTE DA ESCRITA ANTONIO FERNANDO BORCiES Á memória de minha avó materna, Maria Elisa D. Siqueira, que me iniciou na paixão de ler e escrever A José Enrique Barreiro, que me convenceu a escrever este livro. Prosa é arquitetura. Não é decoração de interiores. Ernest Hemingway Mas a linguagem também é o poder de cantar em coro, de encenar uma tragédia, de promulgar leis, de compor versos, de rezar em agradecimento . . . Eugen Rosenstock-Huessy SUMÁRIO Introdução Escrever, essa aventura humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1 ARRUMANDO A BAGAGEM . . . As três dimensões da linguagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 SINTAXE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 As palavras combinadas SEMÂNTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 O sentido de realidade HARMONIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 Uma agradável sensa�·ão de beleza Os processos de composição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 NARRAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . �9 A vida cm movimento DISSERTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Por falar cm ideias DESCRIÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 A aparência das coisas e pessoas DIÁLOGO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 Conversando por escrito Ferramentas essenciais FRASE, PERÍODO E PARÁGRAFO . . . . . . . . . . . . . . . ...lO Unidades mínimas, possibilidades máximas ESTRUTURA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 As ideias e as formas Instrumentos complementares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 VOZ E TOM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 Uma questão de identidade e de atitude TEMPERATURA .............................. 61 ESTILO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . <d Espalhar borboletas ou ac1..·rtar na mosca UMA PAUSA PARA REFLEXÃO . . . Os "idiomas" da linguagem humana . . . . . . . . . . . . . . . 69 FORMAL x INf-ORMAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7() Um.1 origem mais nobre ORAL x ESCRITO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72 A palavra com e sem defesa ESCOLHENDO O PERCURSO .. . Gêneros e Formatos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 NÃO FICÇÃO: ENSAIO. ARTIG<) . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 Em nome da verdade (e da lógica) rlCÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 História, tempo e personagens COMEÇANDO A VIAGEM ... Traduzir ideias em palavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 TÉCNICAS E MÉTODOS - 1 .................... 1 10 Vencendo o medo: do oral ao escrito TÉCNICAS E MÉTODOS - 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 () processo das perguntas Grandes exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114 Sugestões de leitura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120 Palavras finais Escrever, um verbo transitivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121 Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 INTRODUÇÃO ESCREVER, ESSA AVENTURA HUMA NA Escrever é traduzir ideias em palavras . Escrever bem é conseguir traduzir essas ideias nas palavras mais exatas, verda deiras e belas possíveis . Eis aí uma boa definição da chamada Arte da Escrita. Talvez, até seja breve demais - mas ninguém poderá acusá-la de ser simples. Afinal, ela postula um vínculo entre ideias e palavras, duas das entidades mais complexas do mundo - sem falar que atributos como exatidão, verdade e beleza também nos conduziriam, desde já, por caminhos de complexidade sem-fim, que escapam aos limites deste livro. Fiquemos, então, com a definição inicial da boa escrita: a melhor tradução de ideias em palavras. Ainda assim, a comple xidade persiste - decorrente, desta vez, da natureza diferente das duas linguagens: enquanto o pensamento (a matriz das ideias) é múltiplo, circular, simultâneo - como, por exemplo, a pintura, a música e a matemática -, a escrita é necessa riamente linear e sucessiva. Nessa diferença essencial reside talvez a maior dificuldade da Arte da Escrita. Nem todos pensam assim. O chamado determinismo linguístico (a ideia de que o pensamento está sempre limita do às categorias e estruturas permitidas pela língua) encon tra defensores teóricos em várias partes do mundo, como os linguistas norte-americanos Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, o filósofo alemão Ludwig Wittgenstein e o psicana lista francês Jacques Lacan. Todos eles acreditam que as dife renças entre as línguas se refletem nas ideias de seus falantes. Esquecem-se de explicar que, se fosse assim, só os russos compreenderiam e admirariam Dostoiévski, e que a grande za de Shakespeare estaria para sempre vetada a leitores que desconhecessem o idioma inglês. Mais até: além de negarem as virtudes da tradução (uma prática eficiente e consagrada) , todos esses pensadores parecem ignorar o gênio não verbal do homem, e sua grandeza expressa através de outras linguagens - como a pintura, a música e a matemática. A discussão é fértil, mas este livro tem objetivos bem mais práticos. Sem ser exclusivamente prescritivo, pretende tratar sobretudo de como traduzir a simultaneidade e multi plicidade do pensamento na linearidade sucessiva da escrita. Esta vai ser aqui a nossa grande aventura. Diferente de um manual, este livro quer ser, antes de tudo, um convite à aventura da escrita. Diferente também da maioria dos guias práticos de redação, não concentra sua visão da linguagem na função exclusiva de "informar algo a alguém" - a chamada comunicação. Por entender que a - 12 - E M B U S C A DA P R O S A P E R D I D A aventura humana constitui muito mais do que meramen te comunicar-se, este livro vai abordar sobretudo o potencial criador da linguagem, seu compromisso com a expressão da exatidão, da verdade e da beleza, como postularam tantos grandes filósofos, de Platão a Leibniz, ou, ainda, como defi niu o filósofo contemporâneo alemão Eugen Rosenstock -Huessy, infelizmente pouco lido entre nós: A linguagem também é o poder de cantar em coro, de encenar uma tragédia, de promulgar leis, de compor versos, de rezar em agradecimento, de fazer um juramento, de confessar pecados, de fazer uma reclamação, de escrever uma biografia, de redigir um relatório, de resolver um problema algébrico, de batizar uma criança, de assinar um contrato de casamento, de encomendar a Deus a alma do pai de alguém. 1 Acima de tudo, é essa capacidade que nos diferencia, por exemplo, das formigas, rouxinóis, chimpanzés e de tantosou tros animais que também têm seus códigos de comunicação. Na verdade, o compromisso humano com a palavra é bem mais elevado - o que só aumenta nossa responsabilidade na hora de escrever. Deus o livre, leitor, de conversas-fiadas e introduções sem-fim. Vale acrescentar apenas que, numa época de tantas 1 Eugen Rosenstock-Huessy, A Origem da Linguagem. Rio de Janeiro, Editora Record, 2002. - IJ - I NT R O D U ÇÃ O investidas na irracionalidade, no desprezo pelas normas e nos coletivismos, este livro aposta na inteligência, no uso culto da língua e no esforço individual de aprender - uma tarefa que pressupõe disciplina, paciência e uma boa dose de humildade. Esta é a aventura (humana e individual) a que este livro convida. Bem-vindo a bordo! - 1 4 - E M B U S C A DA P RO S A P E R D I D A � - AS TRES DIMENSOES DA LINGUAGEM Um texto - salvo os piores - não é um aglomerado de palavras, frases e parágrafos, mas uma unidade no sentido aris totélico, ou seja, um corpo integrado, com começo, meio e fim. Essa unidade formal e de propósitos - que dá a quem lê uma profunda impressão de integridade, acabamento e per feição - deriva de sua obediência a três princípios intrínsecos e inseparáveis, que representam para o texto o que as três dimensões representam para qualquer corpo: • a sintaxe, ou a maneira como as palavras se relacionam entre si, dentro do texto; • a semântica, ou o significado (a mensagem ou o conteú do) que essas palavras ajudam a formar; e • a harmonia, ou o modo equilibrado, elegante e atraente com que se faz tudo isso. Como um texto também é um corpo (no sentido aristo télico) , essas dimensões são igualmente inseparáveis - cada - 1 7 - A R R U M A N D O A B A G A G E M . . . uma delas corresponde a um dos três aspectos que os filó sofos consideram indispensáveis a tudo que existe: exatidão (sintaxe) , verdade (semântica) e beleza (harmonia) . A separação a seguir é, portanto, didática - apenas para que você, leitor, possa voltar a reuni-los de maneira cons ciente e com pleno domínio de seu uso. SINTAXE As palavras combinadas Sintaxe é a dimensão do texto que determina as relações estruturais entre os elementos de uma frase, período ou pa rágrafo. Trocando em miúdos: ela constitui o conjunto de princípios e regras que comandam a disposição e as combi nações das palavras entre si dentro de um texto. Esses prin cípios são regidos pela gramática de cada idioma, e podem ser de três tipos (não vire a página, as definições são bastante simples) : colocação, regência e concordância. Sintaxe da colocação, como o próprio nome sugere, é aquela que regula a distribuição das palavras em cada período ou frase. Essa ordem pode ser direta ou indireta. Direta é, por exemplo, a sequência formada por Sujeito + Verbo+ Predicado (e seus complementos) . Eis um exemplo: O mais grave de todos os equívocos do Iluminismo foi o de esconder a nudez da mais antiga violência contra o - 18 - E M B U S C A DA P R OSA P E R D I D A indivíduo (a transformação da sociedade) sob o manto transparente de sua novidade. Veja agora o mesmo período escrito em ordem indireta: De todos os equívocos do Iluminismo, o mais grave foi o de esconder sob o manto transparente de sua novidade a nudez da mais antiga violência contra o indivíduo: a transformação da sociedade. Já a chamada sintaxe da regência é aquela que governa a estrutura interna de uma frase ou período, estabelecendo a hierarquia (ou grau de importância e destaque) entre seus termos. Se você, leitor, não está lembrado, permita-me re passar rapidamente que toda frase, período ou parágrafo se organiza segundo dois processos universais: a coordenação (ou justaposição de termos ou orações) e a subordinação (ou cor relação entre termos ou orações) . Na coordenação, escreve-se por paralelismo; na subordi nação, por hierarquia (com uma oração principal e outras su bordinadas a ela) . Veja um exemplo de período organizado por coordenação: Não fui ao cinema, preferi ficar em casa. As duas orações são independentes e poderiam vir sepa radas por ponto. - 19 - A R RU M A N D O A B A G A G E M . . . Compare com esse exemplo semelhante, mas estrutura do por subordinação : Não fui ao cinema porque estava chovendo muito. Veja como a oração subordinada causal ("porque estava chovendo") explica e delimita o sentido da oração principal ("Não fui ao cinema") . Da combinação dos dois tipos, nascem a clareza e a exa tidão de cada período e, por decorrência, de todo o texto. Por fim, a sintaxe da concordância é aquela que estabelece que alguns termos da frase ou período devem se adaptar a (concordar com) os princípios gramaticais de outros, mais fortes ou determinantes. A concordância pode ser nominal (gênero e número) ou verbal (número e pessoa) . Trocando em miúdos: masculino/feminino, singular/plural, etc. Tudo isso quer dizer apenas que o praticante da Arte da Escrita deve saber, a cada período ou parágrafo do texto, como distribuir, hierarquizar e concordar as palavras de acor do com a norma gramatical. Este é o melhor caminho para garantir a clareza e a exatidão do texto. Mantido o eixo es sencial do texto, nem a complexidade de sua construção sin tática nem a densidade de suas ideias serão empecilhos para sua plena compreensão. Para entender melhor, observe os seguintes exemplos negativos (adaptados, acredite, de textos reais) : - 20 - E M B U S C A D A P R O S A P E R D I D A Nascido durante a Segunda Guerra Mundial, os romances do escritor francês X refletem a angústia e incertez a daquele período. (O período começa falando do romancista como sujeito, mas logo o eixo do sujeito se desloca para os romances - talvez não fique confuso, mas é errado e deselegante.) Ficou prejudicada a confiança na biografia escrita pelo professor Y, baseada num testemunho anônimo, amigo aliás do romântico Bernardo Guimarães. (A confiança no texto também .fica prejudicada: a sintaxe confusa não deixa claro quem é qfinal o amigo do romântico: o professor ou o testemunho anônimo?) O s responsáveis pela crise administrativa, há quem diga que dois estão no próprio Governo. (Alguém localizou o sujeito da frase?) Estas são apenas as linhas gerais. O resto - ou melhor, o essencial - o leitor vai encontrar em uma boa gramática, que a esta altura do aprendizado deverá se tornar um de seus livros de cabeceira. SEMÂNTICA O sentido de realidade O significado das palavras, e por extensão o de uma fra se, período ou parágrafo, é o objeto da dimensão semântica de um texto. Trata-se, em suma, das conexões entre as ideias, as palavras e a realidade - em miúdos, do compromisso com a verdade, indispensável a quem escreve. - 2 1 - A R R U M A N D O A BA G A G E M . . . À primeira vista, pode parecer o aspecto mais simples da questão: todo mundo, ao menos em princípio, julgando -se no "pleno exercício de suas faculdades mentais", imagina que sabe exatamente o sentido daquilo que lê ou escreve. Infelizmente, nem sempre isso acontece: a toda hora, esbar ramos com tautologias, contradições e erros elementares de informação. Observe mais uma vez os exemplos negativos (adapta dos, também, de textos reais) : O eixo do livro gira em torno da história .. . (Nem dá vontade de ler o restante do período: um eixo, por defi.nição não gira em torno de nada. Muito pelo contrário.0 Às vezes, um acontecimento imprevisto pode nos surpreender . . . (O autor do texto, de um anúncio de seguros, talvez não tenha reparado que só as coisas previsíveis não surpreendem nunca ... ) Em sua adaptação de Hamlet, o diretor introduziu alguns textos de Dante Alighieri, contemporâneo de Shakespeare . . . (Contemporâneo é, por defi.nição, quem vive na mesma época de outra pessoa, enquanto quase 300 anos separam Dante de Shakespeare.)Além de um indiscutível compromisso moral de todo indivíduo, a busca pela verdade dos fatos é indispensável a qualquer texto - de uma simples notícia jornalística ao mais complexo ensaio demonstrativo de alguma tese. Mesmo na - 22 - E M BU S C A D A P RO S A P E R D I D A ficção, na qual muitos acham (erroneamente) que "tudo é permitido", a coerência e a verossimilhança são decisivas: um personagem não pode ser ao mesmo tempo gordo e esguio, nem obstinado e preguiçoso - e, salvo nas piores histórias sobrenaturais , não pode aparecer em cena depois de ter sido assassinado páginas antes (a não ser, claro, em flashback) , nem sofrer as consequências de um ato ainda não praticado por outrem. Livros de cabeceira recomendáveis, no caso: bons dicio nários e um manual elementar de Lógica. HARMONIA Uma agradável sensação de beleza Escrever bem não se limita a uma estrutura clara e corre ta (sintaxe) e a um sentido definido e verdadeiro (semântica) . Elegância e beleza também são fundamentais. Quem cuida dessas qualidades extras é a harmonia - a terceira dimensão do texto. No dicionário, harmonia significa a combinação de ele mentos diferentes e individualizados que se interligam para produzir uma agradável sensação de beleza. Mas o outro sen tido do vocábulo - ausência de conflitos, paz, concórdia - também não é alheio ao nosso interesse. Afinal, não é isso também o que se espera de um texto: que seus elementos (palavras, frases, ideias) convivam sem conflitos? - 23 - ARRU M A N D O A BA G A G E M . . . Os cuidados com a harmonia do texto ajudam a evitar alguns vícios terríveis: as indesejáveis rimas internas (lembre -se: prosa não é poesia) , o ritmo canhestro e os abomináveis cacófatos.Veja estes exemplos (negativos) : Escrever não é uma tarefa fácil. (Afrase, exata e verdadeira, perde-se pela repetição inesperada de sílabas ... ) Ah, o alto heroísmo, com fagulhas ainda nas unhas e o corpo ainda meio úmido. (Mesmo abstraindo o mau gosto da imagem, tente ler em voz alta: é difícil ... ) A flutuação da inflação impede a estabilização da moeda. (A rima impede que se leia a frase com prazer. .. ) A harmonia determina como se devem combinar os elemen tos sonoros de uma língua (fonemas, aliterações, rimas e ritmo, por exemplo) para que o texto soe agradável e desperte em quem lê a desejada impressão de beleza. Ela constitui, em suma, o chamado ajuste fino da frase - e talvez seja, das três, a dimensão textual que exige mais atenção e empenho do praticante da Arte da Escrita. Para isso, é recomendável que se tenha, não um, mas diversos "li vros de cabeceira". 1 1 Há uma lista com boas sugestões de leitura no final deste livro. - 24 - E M BU S C A D A P R O S A P E R D I D A EXERCÍCIO: Na real idade "impura" dos textos, todas as dimensões (sintaxe, semântica e harmonia) estão sempre presentes, mas em diferentes graus. Quase sempre, a ênfase recai sobre uma delas. Anal ise os trechos abaixo e n umere de acordo com o caso exemplar: 1. Ênfase na riqueza e sofisticação estruturais (d imensão sin tática). 2. Ênfase na exatidão da mensagem e do sentido (dimensão semântica). 3. Ênfase na musical idade e na beleza (dimensão harmônica). 4. Busca de equi líbrio entre as três dimensões. Textos exemplares ( ) Rubem Braga, Fim de Semana na Fazenda Onde vivia a andorinha, no tempo em que não havia casas? Ela é amiga da casa do homem. Arquiteto, meu amigo a rquiteto, nenhu ma casa é funcional se não tiver lugar para a andorinha fazer seu ninho. Mas é na casa da fazenda que a andorinha está à vontade. Melhor do que nessas casas imensas dos coronéis e dos velhos ba rões, elas só se dão mesmo nas grandes casas de Deus, as velhas igrejas escuras e úmidas que elas povoam de vida e de inquietação. Nenhuma outra ave do céu é mais catól ica. ( ) Joaquim Nabuco, Minha Formação Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da criatura ( ... ); e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimento - 25 - ARRUMAND O A BAGAGEM . . . uma singular nostalgia ( ... ): a saudade do escravo. ( . .. ) A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Bra sil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágri mas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte ... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte. Quanto a mim, ( ... ) ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância; aspirei-a da dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro pre suntivo do pequeno domínio de que faziam parte. ( ) Machado de Assis, O Ideal do Crítico Exercer a crítica afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa , como a outros parece igualmente fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter a lguma coisa mais que um simples desejo de falar à multidão. Infel izmente é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos i ncompetentes. São óbvias as consequências de uma tal situação. As musas, privadas de um farol seguro, correm o risco de naufragar nos ma res sempre desconhecidos da publ icidade. O erro produzirá o erro; amortecidos os nobres estímulos, abatidas as legítimas ambições, só um tribunal será acatado, e esse, se é o mais numeroso, é tam bém o menos decisivo. ( ) Olavo de Carvalho, A Natureza Invisível Para a tradição cristã, reforçada na Idade Média pelo enxerto a ristotél ico, a posição que um homem ocu pe na sociedade é um - 26 - E M BU S C A D A P RO S A P E R D I D A acidente que em nada afeta a sua essência universal humana, igual à de todos os outros membros da espécie. Rico ou pobre, leigo ou clérigo, senhor ou escravo, o animal racional tem os dons, os limites e as responsabi l idades do humano. A igualdade dos ci dadãos perante a lei não é senão a formulação moderna e jurídica dessa evidência que a Igreja só a duras penas conseguiu impor a culturas xenófobas, profundamente imbuídas da fa lsa impressão de uma d iferença natural , essencia l , i rredutível entre seus mem bros e os das comunidades em torno, impressão que, em muitas delas, se traduzia na inexistência de um termo comum para desig nar a uns e outros. - 27 - ARRUMANDO A BAGAGEM . .. OS PROCESSOS DE COMPOSIÇÃO O primeiro passo para escrever textos que expressem a verdade com clareza, exatidão e elegância é submeter as palavras (ou, como se verá mais adiante, as frases, períodos e parágrafos) às condições de existência incontornáveis do mundo real (onde acontece a experiência humana) . Esses parâmetros, ou delimitadores, são : o tempo, o espaço e o número - nome genérico para qualidades como extensão e quantidade. 2 No mundo real, este em que os homens vivem, tudo está submetido à circunstância de existir dentro de um es paço determinado, durante um período definido de tempo, com uma extensão ou quantidade específica. Traduzir ideias em palavras - em suma, escrever - é também se submeter a esses parâmetros. E as ferramentas adequadas para isso são os quatro processos de composição: narração, dissertação, des crição e diálogo. 2 Cf. Olavo de Carvalho em Os Gêneros Literários. Rio de Janeiro, Stella Caymmi Edi tora, 1992. - 28 - E M B USC A D A P ROSA P E R D I D A Trata-se dos quatro pilares fundamentais que sustentam quase todo o resto dessa tecnologia de ponta chamada escrita. E, como bons pilares, só podem existir e atuar em conjun to orgânico e inseparável. Do contrário, o texto pode acabar ficando "capenga". NARRAÇÃO A vida em movimento A apresentação verbal de um fato, incidente ou aconte cimento atende pelo nome de narração. É um processo que pressupõe movimento e transformação : uma viagem, uma batalha ou um encontro amoroso são exemplos de fatos di nâmicos cujo registro em palavras é feito pela narração. Isso equivale a dizer que o processo narrativo expressa a dimen são temporal do mundo sensível - ou seja, o tempo é seu fator estrutural mais importante. Daí o papel fundamental (e a presença marcante) dos verbos nas narrações. Veja o exemplo (por sinal, bastante movimentado) , ex traído de uma crônica de Rubem Braga: A terra tremeu com força e em vários pontos o mar arremeteu contra ela, avançando duzentos, trezentos metros, espatifando barcos contra o cais e bramindo com estrondo. O povo saiu para as praças e passou a noite ao relento; algumas construções desabaram, mas o único homem que morreu foi de susto. (Terremoto) - 29 - A R R U M A N D O A B A G A G E M . . . E ainda este outro, saltando das páginas dos jornais: Foi numa festa recente em casa de amigos: discutia-se a escalada da pornografia na Internet, e a urgência de se estabelecer "políticas públicas de controle". Quando, por questão de princípio, manifestei-me totalmente contrário a uma absurda interferência do Estado em assunto de âmbito particular, impacientaram-se comigo. "A liberdade'', alguém comentou a meu lado, "também necessita de regulamentação e vigilância". E então, pior ainda, quando ousei argumentar que não é justo que todas as pessoas de bem sejam vigiadas por conta de "um punhado de tarados", não foram poucos os que me perguntaram, com vago desdém: "Mas o que você quer dizer com pessoas de bem? Por favor, seja mais . . . científico!" (Antonio Fernando Borges, em O Globo) Cabe lembrar, mais uma vez, que na realidade "impura" dos textos dificilmente um processo aparece sozinho, isolado dos demais. A narração pura pode acontecer em alguns pará grafos específicos, que até funcionam muito bem para ilus trar sua definição. Mas, no corpo de um texto, quase todos os processos costumam aparecer misturados, em diferentes graus de combinação. Veja, por exemplo, o trecho inicial do romance Vidas Secas: Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia - 30 - E M BU S C A DA P R O S A P E R D I D A inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente, andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala. Repare como a narração do deslocamento dos retirantes, em busca de melhores condições de vida, acontece simul taneamente à descrição da paisagem árida do sertão. E não se trata de um recurso excepcional, ou uma ousadia, de um mestre das letras como Graciliano: todo texto será mais rico e dinâmico na medida em que sua composição articule dois ou mais dos processos de composição. A narração é o principal processo utilizado pela ficção (seja romance, novela ou conto) , e de seu bom uso dependerá o interesse de quem lê. Constitui também o elemento-chave das reportagens jornalísticas e dos relatórios de viagem. (Pois o que é a essência do jornalismo, se não a reconstituição verbal de fatos ocorridos?) DISSERTAÇÃO Por falar em ideias Se escrever é traduzir ideias em palavras, a dissertação constitui a escrita por excelência - talvez seu processo mais nobre. Ela é, mais do que tudo, a exposição verbal de ideias, - 3 1 - A R RU M A N D O A BA G AGE M . . . conceitos, opiniões ou argumentos. De uma nova descoberta científica até a opinião sobre um espetáculo, filme ou simples jogo de futebol, tudo é matéria para um texto dissertativo - ou expositivo, como também é chamado. Diferentemente da narração (na qual predomina a ordem cronológica) , o processo dissertativo ou expositivo é de natu reza espacial, na medida em que pressupõe a simultaneidade de uma hierarquia lógica. Moldada segundo a ordem lógica, a dis sertação constitui uma espécie de suspensão da ordem crono lógica no texto. Daí se poder dizer, sem problemas, numa frase: "De Sócrates aos filósofos modernos . .. ". Num texto narrativo, a passagem representaria um salto de cerca de 2.500 anos! Veja o seguinte trecho, de Joaquim Nabuco : A abolição teria sido uma obra de outro alcance moral, se tivesse sido feita do altar, pregada do púlpito, prosseguida de geração em geração pelo clero e pelos educadores da consciência. Infelizmente, o espírito revolucionário teve que executar em poucos anos uma tarefa que havia sido desprezada durante um século. Uma grande reforma social, para ser agradável a Deus, exige que a alma do próprio operário seja purificada em primeiro lugar. São essas as primícias que Ele disputa e que lhe pertencem. (Em Minha Formação) E, não custa nada repetir: a dissertação também costuma aparecer, em muitos textos, combinada à narração e/ ou à descrição - e, algumas vezes, ao diálogo. - 32 - E M BU S C A DA P R O S A P E R D IDA O longo trecho a seguir é um ótimo exemplo disso : Um dos costumes temíveis que a cultura norte americana transmitiu ao mundo é a crença literal em certas metáforas científicas que, entrando na linguagem corrente, acabam por deformar a percepção da realidade e perverter todas as relações humanas. Arrastadas pela credibilidade aparente dos termos, as pessoas adquirem novos padrões de julgamento que, reputados capazes de lhes dar a correta medida do mundo, na verdade as instalam num reino de fantasias e de puro nonsense. Comecei a pensar nisso quando, em Bloomington, Indiana, vendo que eu tomava minha segunda xícara de café sucessiva na intenção de adoçar o paladar para um charuto, um cidadão local observou que meu organismo se afeiçoara a determinada quantidade de cafeína,já não podendo viver sem ela. - Um momento, respondi . - Quem toma cafeína é americano. Eu tomo é café. - E que diferença faz? - A diferença é que, se a cafeína como tal servisse de antepasto ao charuto, eu poderia tomar chá, que às vezes a tem em quantidades maiores. No entanto abomino chá. - Isso é subjetivo, protestou o meu interlocutor. - Bioquimicamente, café e chá são a mesma coisa. (Olavo de Carvalho, Chá, Café e Abstrações) Menos comum na ficção como processo principal (a não ser, por exemplo, nos romances naturalistas do século XIX - 3 3 - A R R U M A N D O A B AGA G E M . . . ou no realismo socialista do século XX - mas isso é outra história . . . ) , a dissertação predomina na ensaística filosófica, nos editoriais e artigos jornalísticos, em monografias e teses uni versitárias, nas cartas em geral, nas crônicas literárias e espor tivas e, enfim, nas petições jurídicas . DESCRIÇÃO A aparência das coisas e pessoas Chamamos de descrição, num texto, à enumeração ou apresentação verbal das características essenciais ou contin gentes dos seres e coisas - sejam pessoas, objetos ou lugares. Segundo uma definição clássica do crítico francês Gérard Genette, a descrição pressupõe a imobilidade (quer dizer, a ausência de movimentos) daquilo que é descrito, "em sua ex clusiva existência espacial, fora de qualquer acontecimento e até de qualquer dimensão temporal" .3 De fato, na descrição predomina a dimensão ontológica do número - na medida em que ela dá conta da extensão e da quantidade dos seres e coisas. As palavras (ou classes gramaticais) mais usadas são os substan.:.. tivas e adjetivos - além dos verbos, sobretudo os de ligação. Veja, por exemplo, a descrição de uma casa camponesa que GracilianoRamos faz em uma reportagem de seu livro Viventes das Alagoas: 3 Gérard Genette, "Fronteiras da Narrativa". ln: Análise Estrutural da Narrativa. Petró polis, Editora Vozes, 1974. - 34 - EM BUSCA DA PROSA PERDIDA Baixa, de taipa, cheia de esconderijos, lúgubre. O teto, chato, acaçapado, quase sem declive, é negro; é negro o chão sem ladrilho, de terra batida, esburacado e sujo; negras as paredes sem reboco, com o barro que as reveste a rachar-se, deixando ver aqui e ali o frágil madeiramento que serve de carcaça. Eis como Machado descreve a Capitu adolescente em Dom Casmurro: Catorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas . Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. Mas é importante não levar a definição muito ao pé da letra, pois a descrição dificilmente será usada assim, em estado puro, dentro de um texto - a não ser num trecho específico. Veja, uma vez mais, o início de Vidas Secas: Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente, andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala. - 35 - A R R U M A N D O A B AGAGE M . . . Aqui, descrição e narração convivem no mesmo parágrafo - e, em alguns casos, no mesmo período. Hoje, o uso mais corrente da descrição é em reporta gens, relatórios e em outros textos não ficcionais em que seja imprescindível registrar, para a finalidade do texto, os aspectos mais marcantes de alguma coisa ou de alguém. Mas o processo também já foi muito usado na ficção, para marcar um determinado cenário, ou a entrada em cena de algum personagem relevante - principalmente em épocas anterio res à difusão da fotografia, do cinema e das artes visuais. DIÁLOGO Conversando por escrito A fala é inerente ao ser humano, e a primeira forma de comunicação entre os homens é a comunicação oral, quer dizer, a conversa. Como você verá mais adiante, na história, e mes mo na vida de cada pessoa, a forma oral antecede a escrita. Ao registro desta prática tão essencial dá-se o nome de diálogo. Transcrição das palavras de uma ou mais pessoas ou per sonagens (que podemos chamar aqui de falantes) , o diálogo está presente tanto na ficção quanto na reportagem, nas en trevistas de jornais e revistas - enfim, é a própria conversa reproduzida por escrito, sempre que isso se fizer necessário. São três os tipos de diálogos possíveis: direto, indireto e monólogo interior. - 36 - E M B U S C A D A P R O S A P E R D IDA O diálogo direto registra da maneira mais literal possível a fala (real ou fictícia, conforme a natureza do texto) de um ou mais falantes, reproduzindo ou criando suas palavras supos tamente fiéis. Em geral, o diálogo direto é representado por sinais gráficos que os diferenciem dos outros parágrafos do texto - predominantemente, aspas e travessões. Veja o exemplo, extraído do trecho inicial do romance A Mão e a Luva, de Machado de Assis: - Mas que pretendes fazer agora? - Morrer. - Morrer? Que ideia! Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tão pouco ... - Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar. ( ... ) O diálogo indireto acontece quando o autor apresenta as palavras do falante (personagem ou pessoa real) de uma for ma resumida, incorporando-as ao corpo do texto. O exemplo também é de Machado de Assis (do conto "Missa do Galo") : Depois, referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. Finalmente, o monólogo interior apresenta a fala de um personagem como se ela estivesse ocorrendo dentro da - 37 - A R R U M A N D O A IJA G AGE M . . . cabeça do falante - que, de certa forma, estaria conversando consigo mesmo. Veja o exemplo abaixo, para entender melhor (de Clari ce Lispector, em Perto do Coração Selvagem): Deus meu, eu vos espero, Deus vinde a mim, Deus brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas e eu continuo a sofrer, afinal o fio sobre a parede escura, Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas ( ... ). Presente em muitos textos em prosa (ficcionais ou não) , combinado aos outros processos de composição, o diálogo encontra sua utilização mais plena e completa nas peças de teatro e nos roteiros para o cinema. - 38 - EM llU S C A DA PRO S A PERDI D A EXERCÍCIO: Escreva pequenos textos (de uma a duas páginas) a partir das seguintes sugestões: Narração: • Narre dois acontecimentos ou incidentes diferentes que pos sam ser concluídos com a seguinte frase: "O povo sa iu para as praças e passou a noite ao relento". Dissertação: • Escolha um tema que você considere polêmico e escreva um texto dissertativo desenvolvendo uma opin ião formada sobre ele (favorável ou contrária). • Em seguida, desenvolva o mesmo tema com a argumentação contrária à do exercício acima (se criticou, defenda, e vice-versa). Descrição: • Descreva um objeto cotidiano, sem dizer seu nome nem anunciar para que serve. • Descreva um jardim (públ ico ou particu lar) como se estives se sendo visto por um homem que acaba de ficar viúvo. Em momento algum comente expl icitamente a viuvez: a penas transmita este sentimento. Diálogo: • Escreva em l inguagem simples o diálogo direto ocorrido du rante o encontro de dois amigos que não se veem há muitos anos. Um deles vai revelar um segredo inesperado ao outro. Imagine as justificativas do primeiro e a surpresa do outro. • Em seguida, transforme o texto produzido acima num diálo go indireto. - 39 - A R RU M A N D O A BA GA G E M . . . FERRAMENTAS ESSENCIAIS Submeter as palavras aos parâmetros de tempo e espaço (e número) mediante as técnicas da narração, da dissertação, da descrição e do diálogo requer o suporte concreto de al gumas ferramentas essenciais: a frase e o período, que são as unidades mínimas da Arte da Escrita. A combinação de frases e períodos constitui o parágrcifo - um elemento-chave do texto -, e um conjunto bem arti culado de parágrafos constitui a estrutura, quer dizer, a orde nação dinâmica de seus componentes . FRASE, PERÍODO E PARÁGRAFO Unidades mínimas, possibilidades máximas Pode-se dizer que a frase é o elemento mínimo de um tex to, no sentido que interessa aos limites deste livro. Há outros elementos ainda menores (a palavra, os radicais e os fonemas) , mas que são matéria de estudos de outras disciplinas, como a linguística e a gramática. - 40 - E M B USCA DA P R O S A P E R D I D A Dá-se o nome de frase a todo enunciado que disponha de conteúdo suficiente para formar um sentido completo, por ínfimo e simples que seja. Nesse sentido, pode-se chamar de frase desde conjuntos complexos de palavras, como a cé lebre frase do dr. Samuel Johnson, famoso dicionarista inglês do século XVIII: O patriotismo é o último refúgio dos velhacos. Até informações mais banais e cotidianas : O carteiro chegou. ou: Chove. ou, ainda: Fogo! Muitas vezes, a frase se confunde com o período - que é o segundo elemento mínimo do texto. Isso acontece no caso do período simples, que contém uma única oração, limitada pelo ponto. Mas o período também pode ser formado por duas ou mais orações (integradas por coordenação ou subor dinação, como já se viu) , sendo então chamado de composto. A combinação de frases e períodos constitui o parágra fo - o elementoou subunidade mais importante da Arte da Escrita. De extensão variável, o parágrafo se caracteriza por desenvolver uma mesma ideia ou núcleo (ou ideia-núcleo, - 41 - ARRU M A N D O A BA GAGE M . . . como também a chamam), em torno da qual se aglutinam outras ideias, secundárias, ligadas a ela pela estrutura do texto. Como toda definição, esta peca por ser breve ou simplificada demais. Portanto, para mais detalhes, leitor, aconselho mais uma vez o recurso a uma boa gramática, apetrecho indispen sável nesta aventura da Arte da Escrita. Em geral, o parágrafo vem visualmente delimitado no corpo de um texto por um pequeno afastamento da margem esquerda, logo na primeira linha. Mas sua principal caracte rística é de natureza lógica: o que efetivamente distingue um parágrafo dos outros, dentro de uma mesma obra, é o fato de desenvolver uma ideia unitária. Nesse sentido, a divisão em parágrafos não existe apenas para tornar um texto visual mente mais leve (ou "arejado", como também se diz) . Acima de tudo, serve para separar e ao mesmo tempo articular as ideias principais e secundárias da maneira mais conveniente - ou seja, com o máximo de exatidão, clareza e elegância. Por isso seu tamanho não é fixo, na medida em que está necessa riamente ligado à complexidade e profundidade das ideias ali desenvolvidas. Veja os exemplos : Penumbra. Escritório. Homem, com as mãos à cabeça, fuma e pensa na vida. Alto-falante. (Carlos Drummond de Andrade, em A Bolsa & a Vida) Mais do que qualquer texto-monumento, Monteiro Lobato (1882-1948) nos legou um tipo intelectual. No - 42 - E M B USCA D A P R O S A PE R D I D A homem de ação audaz e imaginoso, mas invariavelmente fracassado, no homem de letras antibeletrístico, o que hoje mais admiramos não se esgota no contista eficiente, porém menor de Urupês a Negrinha, que narrava à Maupassant escrevendo num estilo entre Camilo e Eça; nem mesmo no editor pioneiro, ou no diretor da Revista do Brasil na fase em que ela foi, na judiciosa apreciação de Alexandre Eulálio, a mais importante das nossas revistas de cultura. Na forma, Lobato ficou sobretudo como articulista e narrador para crianças; no fundo, como um dos nossos maiores publicistas. Segundo o Aurélio, "publicista" é o escritor político, mas também "a pessoa que escreve para o público sobre assuntos vários". É exatamente nesse último sentido que Lobato se avantaja nas nossas letras; e a conceituação compreende, em última análise, a sua notabilíssima literatura infantil, cuja maior originalidade está em ser quase toda permeada do ânimo de debate sobre temas públicos, contemporâneos ou históricos. Qosé Guilherme Merquior, em O Elixir do Apocalipse) Tamanho, como se vê, é adequação - não uma simples questão de quantidade. O mais importante, no caso de elementos-chave como a frase, o período e o parágrafo, é compreender que neles começam o sentido, a ordem e a beleza de um texto. Uma frase, um período ou um parágrafo confusos, ou fora de lugar, acabam comprometendo todo o corpo do texto. Mas isso não significa que eles sejam entraves ou obstáculos a serem superados por quem se aventura na Arte da Escrita. - 43 - A R RU M A N D O A B AGAGE M . . . Ao contrário: é apenas para você saber por onde começar a caprichar. Do bom uso desses elementos mínimos, nascem as possibilidades máximas do texto. ESTRUTURA As ideias e as formas A unidade de um texto - esse conjunto articulado de parágrafos - é demarcada por sua extensão, mas sobretudo por sua estrutura, quer dizer, a ordenação dinâmica de seus componentes . Segundo Aristóteles (um mestre a quem se deve as de finições mais essenciais da arte da escrita) , essa estrutura é a mesma de todos os corpos que ocupam o universo: um conjunto formado por começo, meio e fim. Para garantir a plena clareza e o entendimento total deste ponto, nada melhor do que recorrer às definições do próprio filósofo grego, em sua Poética: começo é aquilo que necessariamente não é antecedido por nada, mas que pede ou produz, por natureza, um desdobramento; fim, ao contrário, é aquilo que, por natureza, é antecedido por alguma coisa (da qual decorre) , mas que necessariamente não é seguido por mais nada; meio, por sua vez, é aquilo que necessariamente segue e é seguido de outras coisas . 4 4 Aristóteles, Poética Clássica. São Paulo, Editora Cultrix, 1990. - 44 - EM BU S C A DA PRO S A PERDIDA Um texto bem escrito - quer dizer, bem estruturado - não deve então começar ou terminar num ponto qual quer do assunto que aborda. Necessariamente, ele tem que dispor de começo, meio e fim - ou, numa terminologia mais contemporânea, precisa estar organizado em termos de introdução, desenvolvimento e conclusão. Para transmitirem a indispensável impressão de verdade, clareza e elegância, a introdução, o desenvolvimento e a conclusão de um bom texto devem se expressar através de parágrafos bem defini dos e, sobretudo, logicamente bem encadeados. Mais até : como unidade elementar (ou subunidade) , dentro da uni dade maior do texto, também é necessário que o próprio parágrafo se organize nesses termos. Um bom texto deve começar por uma introdução bem delineada, desdobrar-se num desenvolvimento rico em in formações e argumentos e desembocar numa conclusão sa tisfatória, ou seja, que não frustre as expectativas, deixando uma sensação de vaguidão ou incompletude. No caso do parágrafo, sua introdução é a própria ideia-núcleo - e, se ele for o parágrafo introdutório, esta deve corresponder neces sariamente à ideia principal do texto. Ela pode ter as mais variadas formas e tamanhos, mas alguns estudiosos do assun to (entre eles, o professor Othon Moacyr Garcia5) destacam uma série de modelos constantes, a que a maioria dos autores 5 Othon Moacyr Garcia, Comunicação em Prosa Moderna. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2002. - 45 - A R RU M A N D O A B AGAGE M . . . costuma recorrer para dar forma a suas ideias - agindo assim por hábito adquirido ou pelas necessidades lógicas da escrita. Eis os padrões mais recorrentes de parágrafos, que po dem servir de modelo, sobretudo para iniciar um texto : • Declaração: o mais comum de todos, é aquele em que o autor afirma (ou nega) alguma coisa, para depois apresentar seus fundamentos. Veja o exemplo : A literatura americana teve o púlpito por berço. Durante mais de um século a civilização a nascer nos Estados Unidos externou-se pela voz dos pregadores à sombra dos modestos campanários construídos nos primeiros tempos. Os pilgrim fathers, que se refugiaram na Nova Inglaterra fugindo da perseguição religiosa, foram na maioria homens de valor. Na terra que seria da liberdade mostraram, porém, intolerância igual à dos seus inimigos no Velho Mundo. As regras de conduta e doutrina por eles impostas a seus rebanhos-colônias foram de inflexível rigidez. (Carolina Nabuco, em Retrato dos Estados Unidos à Luz da sua Literatura) • Definição: semelhante ao anterior, é apenas mais ex plicitamente didático - muito comum nos textos em que a dissertação seja o processo de composição do minante. Exemplo : De todas as formas várias, as mais cultivadas atuahnente no Brasil são o romance e a poesia lírica; a mais apreciada - 46 - E M B U S C A D A PRO S A P E R D I D A é o romance, como, aliás, acontece em toda a parte, creio eu. São fáceis de perceber as causas desta preferência da opinião, e por isso não me demoro em apontá-las. Não se fazem aqui (falo sempre genericamente) livros de filosofia, de linguística, de crítica histórica, de alta política, e outros assim, que em países alheios acham fácil acolhimento e boa extração; raras são aqui essas obras e escasso o mercado delas. O romance pode-se dizer que domina quase exclusivamente. (Machado de Assis, em Crítica literária) • Alusão histórica:é o início que traz a narração de um fato histórico, lenda ou simples episódio (fictício ou real) de que o autor lança mão para desencadear a ex posição de determinada ideia . Veja: Era uma vez dois caçadores perdidos numa floresta.já sem munição, quando surgiu um leão. Enquanto um deles começava a correr, o outro tirou da mochila um par de tênis especial e começou a calçá-lo, cahnamente. O que corria parou, espantado, e alertou: "Não adianta, o leão corre mais que você". Ao que o outro respondeu: "Não preciso correr mais que o leão. Só preciso correr mais que você". (Merval Pereira, em artigo para O Globo) • Interrogação: aquele em que o autor começa aberta mente por uma pergunta, cujas respostas em geral constituem o desenvolvimento e a conclusão, do pa rágrafo ou de todo o texto. Como abaixo : - 47 - A R R U M A N D O A B AGA GE M . . . Qual é o romance mais representativo do Brasil? Para responder adequadamente a essa pergunta é preciso, antes de tudo, descobrir qual é a região ou grupo humano mais representativo de meu país, e não creio que se possa chegar a uma escolha definida sem injustiça. Tem-se dito que o verdadeiro romance brasileiro seria o que fosse capaz de abranger toda a paisagem geográfica e humana nacional, da costa atlântica aos sertões de Mato Grosso e das coxilhas do Rio Grande do Sul à selva amazônica. Ainda não temos um romance tão ambicioso; e se o tivéssemos não penso que pudesse ser muito bom, pois a enorme extensão prejudicaria sua profundidade, e um livro assim seria decerto mais geográfico e pitoresco do que humano e sociologicamente significativo. (Erico Verissimo, em Breve História da Literatura Brasileira) • Protelação (ou Suspense): é uma técnica bastante efi ciente que procura aguçar a curiosidade do leitor mediante a omissão (na verdade, um adiamento ou protelação) de informações importantes que só serão apresentadas no desenvolvimento do parágrafo ou do texto. Veja este exemplo: No fragor dos anos 1930, enquanto a bel/e époque brasileira entrava em agonia, houve um escritor que fez da crônica uma forma amena, porém nada superficial, de ensaio crítico. Naquele curto espaço de prosa leve, fundado por Machado de Assis, reanimado por João do Rio e trazido ao modernismo por Menotti dei Picchia, Genolino Amado praticava uma crítica da cultura tanto - 48 - E M BU S C A DA P RO S A P E R D I D A mais penetrante quanto menos pretensiosa. Os títulos de alguns dos volumes que enfeixaram essas páginas - Vozes do Mundo, um Olhar sobre a Vida - dizem tudo: trata-se de ensaios quase conversados, singularmente descontraídos, sem nenhum cacoete coloquial. (José Guilherme Merquior, em O Elixir do Apocalipse) Esses modelos (e outros que existam) não devem ser en carados como uma camisa de força para a Arte da Escrita. Ao contrário: trata-se de possibilidades a que a maioria das pessoas recorre, por razões ontológicas, na hora de escrever. Mas a experiência e a criatividade também contam, e sempre abrem novas opções. Nesse sentido, não são poucas as "ex ceções" que você vai encontrar pela frente, na leitura (e na criação) de textos concretos. Tudo isso vale também para o desenvolvimento e a con clusão, que não podem fugir a uma série de parâmetros de ordem sintática, semântica e harmônica - mas que tam bém deixam muitas margens para o talento e a personali dade de cada um. Eis, no essencial, alguns modelos mais comuns de estru turação do desenvolvimento de um parágrafo ou texto: • Enumeração (com ou sem descrição de detalhes) : trata -se; sem dúvida, do tipo mais comum de desenvolvi mento, muito usado no jornalismo e nas modalidades mais simples de texto dissertativo, consistindo na - 49 - A R R U M A N D O A BAGA G E M . . . apresentação encadeada de informações factuais, sem maiores raciocínios. • Exemplificação: também enumerativo, como o anterior, diferencia-se daquele por não recorrer a informações genéricas, mas a casos concretos e explícitos que ilus trem a proposição inicial. • Confronto: consiste em estabelecer contrastes, oposições, paralelos ou analogias entre ideias ou pontos de vista. • Argumentação lógica: o mais complexo de todos os mo delos, consiste no recurso àquilo que Aristóteles cha mou, em sua famosa Retórica, de "processo artístico" (que não se refere ao que hoje se entende como arte ou ficção) : trata-se das chamadas provas por persuasão, ou convencimento, isto é, uma demonstração baseada não em fatos, mas em argumentos que obedeçam ao usual método dedutivo de raciocínio, partindo do ge neralizante para o específico. 6 E a conclusão? Também chamada às vezes de epílogo, ela representa o encerramento (com uma espécie de "chave de ouro") do parágrafo ou do texto. Deve ser suficiente mente clara e completa para não surpreender negativa mente, com uma interrupção brusca ou inesperada - se 6 Cf. Aristóteles, Retórica. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1998. - 50 - E M B USCA D A P R OSA P E R D I D A bem que deixar um assunto em suspenso também pode ser uma forma de concluir. Existem também alguns modelos recorrentes para se es truturar a conclusão - desde que sejam vistos apenas como referência, e não como uma camisa de força ou receita de bolo: • Retomada da tese: faz-se um resumo (uma visão geral) do assunto tratado ao longo do texto, acrescentando -se em seguida elementos novos e, aí sim, estrutural mente conclusivos. • Perspectiva: apresentam-se cautelosamente possíveis so luções para as questões expostas no desenvolvimento, buscando prováveis resultados ("É preciso . . . "; "É im- , . d' 1 " "E ' . ") presem 1ve . . . ; necessano. . . . • Oração coordenada conclusiva: Pode-se, enfim, iniciar a con clusão com uma conjunção coordenativa conclusiva (logo, portanto, por isso, por conseguinte, então . . . ) , apresen tando, em seguida, soluções para as questões expostas no desenvolvimento. À primeira vista, tudo isso pode parecer um tanto me cânico ou simplista. Mas nunca é demais ressaltar que só a prática regular (com a capacitação criativa daí decor rente) irá tornando invisíveis e, no fim das contas, incons cientes ou quase automáticos todos esses procedimentos. Aos poucos, o aspirante à arte da boa escrita começará a - 5 1 - A R RU M A N D O A BAG A G E M . . . assumi-los como naturais, já sem prestar uma atenção tão explícita a cada passo. Desde já, é bom lembrar que, para a arte da boa escrita, as melhores estruturas adotadas são sempre aquelas que me nos apareçam, tornando-se praticamente invisíveis à leitura. Por isso, talvez fosse preferível definir estrutura não como esqueleto (que está apenas oculto, por baixo da carne e da aparência) , mas como alma: uma coisa que existe e se faz presente sem ser vista. - 5 2 - E M B U S C A DA PRO S A P ER D I D A EXERCÍCIO: Escolha um tema livre (de preferência, algum que você domine bem) e, depois de del imitar a ideia-núcleo, escreva cinco introdu ções para um pequeno artigo, a partir dos modelos de parágrafos abaixo: • Declaração. • Definição. • Alusão histórica. • Interrogação. • Protelação, ou suspense. Escreva o desenvolvimento do texto proposto acima, a partir dos modelos abaixo: • Enumeração. • Exemplificação. • Confronto. • Argumentação lógica. Escreva, por fim, a conclusão do texto. - 53 - A R R UMAN D O A B A G A GEM . . . INSTRUMENTOS COMPLEMENTARES A coesão e a harmonia dos parágrafos, dentro da estru tura do texto, dependem do bom uso dos seguintes instru mentos: a voz, que define quem está escrevendo; o tom, que estabelece uma postura ou atitude; e a temperatura, que de termina o grau de discrição ou veemência da voz e do tom. Juntos, estes três elementos constroem o que se costuma chamar de ponto de vista - que não é apenas uma opção estratégica para o melhor rendimento de um texto, mas, sobretudo, a assinatura individual de seu autor. Tudo isso vai constituir o chamado estilo, que é a soma ou combinação desses elementos -chave, mas que significa principalmente a adequação dos re cursos do escritor às suas necessidades intelectuais e expressivas. VOZ E TOM Uma questão de identidade e de atitude Numa época que tende para a massificação e o anoni mato, como a nossa, a Arte da Escrita continua sendo uma - 54 - E M B U S C A D A P R O S A P ER D I D A espécie de santuário ou reserva intelectual onde o indivíduo ainda pode exercer seus traços distintivos pessoais e intrans feríveis . E uma das maneiras de que dispõe para isso é deter minar a voz de seu texto, ou seja, a pessoa verbal em que ele pretende se expressar. As vozes (ou pessoas verbais) mais utilizadas na escrita são a primeira e a terceira, flexionadas no singular ou no plural segundo as preferências ou necessidades de quem escreve. Em geral, essa escolha é determinada pelo gênero do texto: na ficção narrativa, por exemplo, é comum o uso da primeira pessoa do singular, que dá à obra uma dicção mais pessoal e intimista; já nos artigos ensaísticos ou acadêmicos, o cha mado "plural majestático" (nós) costuma ser empregado em nome de uma atitude mais discreta do método dissertativo; e assim por diante. Como sempre, nada disso representa uma regra fixa, mas apenas um leque de possibilidades. A primeira pessoa do singular é a mais adequada para a narração de um testemunho ou experiência pessoal , mas também para a exposição de ideias claras e consolidadas. Às vezes, denota certa vaidade ou senso de autorreferência, mas quase sempre é uma demonstração de honestidade e coragem de quem escreve. Em seu mais amplo espectro, pode ser usada tanto num romance intimista quanto num artigo polêmico. Veja, por exemplo, no gênero narrativo, este trecho de Dom Casmurro, o clássico de Machado de Assis: - 55 - A R R U M A N D O A B AGAGE M . . . Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles . E este outro, no gênero dissertativo, de Gustavo Corção, em A Descoberta do Outro: Não quero fazer aqui, mais uma vez, o processo já volumoso da técnica, nem mostrar o conflito entre o homem e a máquina. Pretendo mostrar um aspecto da mentalidade técnica e tentar um inventário de seus riscos. Repare como nos dois textos, para além de todas as suas diferenças, predomina uma mesma dicção subjetiva, marcada mente autoral. Ao ser flexionada no plural, a voz na primeira pessoa se pretende um pouco mais objetiva - embora isso possa ser uma impressão enganosa, na medida em que a objetividade não é uma simples questão numérica. O próprio pronome (nós) não pressupõe necessariamente a presença de mais de um autor: muitas vezes, expressa no máximo uma postura acanhada, ou então um convite à inclusão do leitor no assunto em questão. - 56 - EM B U S C A DA P R O S A P E R D I DA No trecho a seguir, fica evidente o esforço de sustenta ção de uma dicção objetiva (o autor, apesar de único, oculta -se sob uma voz plural) : Primeiramente, afirmaríamos que existem as mais diferenciadas percepções do pluralismo, dentro do horizonte apresentado pela prática e pela filosofia políticas. (Augusto Zimmermann, Os Princípios do Pluralismo Federativo) Nos editoriais jornalísticos ou em manifestos estéticos e políticos, a opção pela primeira pessoa do plural parece aten der a outro objetivo explícito : falar, efetivamente, em nome de uma coletividade - daí a natureza geralmente anônima desses escritos. Veja o exemplo, extraído do manifesto mo dernista Nhengaçu Verde Amarelo, de 1 929: Aceitamos todas as instituições conversadoras, pois é dentro delas mesmas que faremos a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através de quatro séculos, a alma de nossa gente, através de todas as expressões históricas. Já a terceira pessoa (singular ou plural) está presente nos textos que se empenham em transmitir uma dicção priorita riamente objetiva, seja em textos narrativos ou dissertativos, em ficção ou não ficção. Na ficção, pode-se destacar como exemplo a literatura realista (e naturalista) contemporânea, bastante influenciada - 57 - ARRU M A N D O A B AGAGE M . . . pela "objetividade" das ciências e das linguagens v1sua1s, como o cinema e a fotografia. Veja este trecho, extraído mais uma vez de Vidas Secas, de Graciliano Ramos: A família estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão caído, sinhá Vitória de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros aos filhos. A cachorra Baleia, com o traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as brasas que se cobriam de cinzas Estava um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora, o vento sacudia os ramos das catingueiras, e o barulho do rio era como um trovão distante. No campo da não ficção, servem de exemplo as reporta gens jornalísticas (muitas vezes não assinadas) e as notícias do jornalismo diário ou semanal. Como este trecho, tirado do jornal Folha de S. Paulo: Apesar de manter o discurso segundo o qual a reforma da Previdência é intocável, o governo abriu negociações sobre aspectos essenciais na proposta que enviou ao Congresso e já aceita incluir, por exemplo, a paridade e a manutenção da aposentadoria integral para os atuais servidores públicos no texto do projeto. Com a decisão, o Governo espera neutralizar a resistência dos servidores públicos, especialmente a do Judiciário, maior e mais organizada do que esperava o Planalto. Além disso, dá discurso aos aliados, no Congresso e no meio sindical, para defesa da proposta. - 58 - E M B U S C A D A P R O S A P E R D I D A Cabe acrescentar apenas que toda essa decantada objetivi dade vai depender, para ser plenamente atingida, de uma série de outros elementos sintáticos, semânticos e harmônicos, ca pazes de produzir (quando bem combinados) a impressão de verdade, clareza e elegância própria dos bons textos objetivos. Um elemento que pode contribuir para este esforço é o tom do texto, fator determinante para a atitude que o autor deseja transmitir. Tributário do variado naipe de emoções e intenções humanas, o tom dependerá sempre dos propósitos e mesmo do humor de quem escreve (sem nenhuma obri gação, é claro, de ser elegante ou gentil) . Veja, abaixo, uma pequena amostra aleatória e ligeira dessas possibilidades de atitude de um texto ou autor: agressivo - furioso - indignado - autoritário - meigo - gentil - suave - sério - irônico - sarcástico - didático - imparcial Implicações morais à parte, pode-se dizer que o tom de um texto resultará sempre de uma decisão, assumida ou não, mas que será tanto mais acertada na medida em que estiver em plena adequação com os objetivos do texto.Veja a seguir alguns exemplos . Primeiro, um tom indignado (e eventualmente exagerado) : Amigos, eis 80 milhões de brasileiros numa humilhação feroz. Eu diria que a vergonha de 50 foi mais amena, - 59 - ARRU M A NDO A B A G A G E M . . . mais cordial. Naquela ocasião, não tínhamos o bicampeonato. Ainda não se instalara em nosso futebol o mito Pelé. Ah, o brasileiro de 50 era um humilde de babar na gravata. (Nelson Rodrigues, em À Sombra das Chuteiras Imortais) Veja como difere deste trecho suave (apesar do tema for te) de Carolina N abuco : O Brasil ficou alheio ao cataclismo europeu, esperando, porém, avidamente as notíciasque de lá chegavam. Não vinham, como viriam na Segunda Guerra, a toda hora, graças ao rádio. Só a imprensa, com seus telegramas, dava nos as linhas gerais dos combates. (Em Oito Décadas) É outro também (mais leve, mais irônico) o tom desta passagem de Carlos Heitor Cony: Resumindo a ópera: pode-se concluir que não há jornalismo literário. Há jornalismo e há literatura. Funcionam por meio de sinais ou símbolos, que são as palavras compostas por letras, mas nem todas as letras formam necessariamente aquilo que se compreende como literatura. Há jornalistas que dominam a técnica e a composição do texto. Mas são eles, exatamente, que se tornam cada vez melhores à medida que deixam de ser literários. (De uma palestra para estudantes) Longe de representar apenas um detalhe, ou um ingre diente secundário, o tom é um elemento fundamental para os - 60 - E M B U S C A DA P R O S A P E R D I D A bons resultados da Arte da Escrita. Nesse sentido, correspon deria, por exemplo, a certos temperos em culinária, que tanto podem realçar quanto estragar as qualidades de um bom prato. Das variadas combinações de voz e tom dependerão também as diferentes temperaturas dos textos, como você vai ver a segmr. TEMPERATURA Da sutileza à ênfase As teorias da comunicação que estiveram muito em moda nas décadas de 1 960 e 1 970 deram um sentido curioso à pa lavra temperatura. Para o autor canadense Marshall McLuhan, por exemplo, uma mensagem (ou meio) seria quente ou fria de acordo com o teor de informação nela contido. Dentro desse raciocínio, um romance clássico, um poema " dificil" ou um texto de filosofia seriam "quentes", ao passo que o noti ciário de jornal ou TV (e a própria televisão) seriam exem plos de textos "frios" . Tratava-se, enfim, de mera questão de conteúdo - ou de "repertório", como então se chamava. Para a Arte da Escrita, no entanto, temperatura pode signi ficar também (ou principalmente) o maior ou menor grau de ênfase ou de sutileza implícita num texto, a partir das opções feitas pelo autor nos quesitos voz e tom. Nesse novo sentido, um texto do quase sempre enfático Nelson Rodrigues costuma ser mais quente (mesmo abordando matéria trivial) do que um - 61 - ARRU M A N D O A BA G A G E M . . . ensaio literário do denso, mas em geral elegante e sereno, Otto Maria Carpeaux, um autor mais frio (ou às vezes morno - sem as conotações negativas que a palavra teria em outro contexto). Veja as diferenças entre este trecho hiperbólico de Nelson: Amigos, vocês se lembram da vergonha de 50! Foi uma humilhação pior que a de Canudos. O uruguaio Odbulio ganhou do nosso escrete no grito e no dedo na cara. Não me venham dizer que o escrete é apenas um time. Não. Se uma equipe entra em campo com o nome do Brasil e tendo por fundo musical o hino pátrio, é como se fosse a pátria em calções e chuteiras, a dar botinadas e a receber botinadas. (Em À Sombra das Chuteiras Imortais) e a suavidade do comentário de Carpeaux sobre Shakespeare: Macbeth é a mais rigorosamente construída das tragédias de Shakespeare, a que mais se aproxima do esquema da tragédia clássica. A unidade de tempo e lugar é substituída pela unidade da atmosfera - a Escócia nebulosa, noturna - e é impecável a unidade da ação dos primeiros impulsos de ambição criminosa de Macbeth até a sua morte heroica em desespero. Tudo de coerência absoluta, de efeito irresistível no palco. (Em As Bruxas e o Porteiro) Repare como o primeiro texto convida a uma partici pação mais emocionada, enquanto o outro se limita a sugerir uma reflexão lúcida e ponderada. Diferenças à parte, cada um - 62 - EM B U S C A DA PRO S A P E R D I D A a seu modo trata de atingir objetivos específicos, em textos bastante diferenciados. Tudo (ou pelo menos o essencial) reside certamente nes sa adequação às intenções do autor e aos propósitos de cada texto. Um artigo de cunho político ou ideológico vai reque rer sempre um mínimo de calor (no tom e no vocabulário) para surtir seu efeito persuasivo. Da mesma forma, um ensaio filosófico ou uma oração pressupõem uma serenidade de es pírito, sem a qual poderão ser supérfluos ou ineficazes. Outro aspecto importante a ressaltar: em nenhum texto, a temperatura será suficiente, per se, para compensar falhas e defi ciências evidentes - sejam elas decorrentes de problemas de sin taxe, semântica ou (falta de) harmonia. Nada menos adequado, por exemplo, do que um ensaio ou artigo em que a veemência vocabular se esforça (em vão) para substituir a ausência de uma argumentação convincente; e nada mais medíocre do que um conto ou romance que recorra a emoções baratas e soluções fáceis, procurando a "empatia imediata", em vez de convidar à elevação e ao sublime, típicos da verdadeira arte. Mais uma vez, o bom senso e o equilíbrio é que vão constituir o melhor "termômetro". ESTILO Espalhar borboletas ou acertar na mosca O ex-presidente Juscelino Kubitschek, famoso pela sua oratória, costumava pedir aos redatores de seus discursos, lá - 63 - A R RU M A N D O A B A C ; A G EM . . . pelos idos da década de 1 950: "Espalhe aí umas borboletas entre os parágrafos". Este gosto antigo (e tão brasileiro) pelo fraseado colorido e esvoaçante está na base da ideia de que escrever bem é lançar mão de construções sintáticas empola das e de um vocabulário esdrúxulo - e que essa capacidade de acrescentar adornos a um texto constituiria o que se cos tuma chamar de estilo. Em geral, os dicionários costumam dar o nome de estilo à forma característica e pessoal de expressão de cada autor, capaz de diferenciá-lo de todos os outros. Parecem, no en tanto, esquecer o "detalhe" de que dificilmente existiriam es tilos suficientes para atender numericamente a todos os que praticam a Arte da Escrita. Muito já se escreveu sobre esse assunto no passado quase sempre, para incluí-lo entre as principais ferra mentas da arte da escrita. O romancista francês Anatole France, por exemplo, costumava repetir que "o estilo tem três virtudes : clareza, clareza , clareza" . E o inglês Jonathan Swift definia estilo como a capacidade de colocar "as pa lavras certas no lugar exato"- o que vem reforçado pelo corolário de Voltaire : "Uma palavra fora de lugar estraga o pensamento mais bonito" . Já Machado de Assis (notável pela simplicidade do seu) , preferia dizer que estilo é ape nas o casamento entre palavras que se afinam. Em meio a esse mar de definições, que se estende a perder de vista, o comentário do escritor e professor de criação literária - 64 - E M B U S C A DA P RO S A P E R D I D A John Gardner1 é um exemplo de bom senso e equilíbrio: " Sobre o estilo, quanto menos se disser, melhor". Nas últimas décadas, a importância exagerada atribuída à palavra estilo levou a maioria das empresas jornalísticas e edi toras de livros e revistas do país a estabelecer para seu pessoal uma série de regras intransponíveis, quase sempre reunidas sob o título geral de "Manual de estilo". Por ironia, repre sentam um condicionamento do texto a padrões de escrita anônimos e pré-moldados - justamente o oposto do que a palavra estilo tradicionalmente sugere. Enfim: quanto menos se disser, melhor. Tudo isso soma do, caberia acrescentar que, para a Arte da Escrita, o estilo deve significar tão somente a capacidade de adequar a lin guagem às necessidades de expressão do autor ou às caracte rísticas do assunto abordado. O tom, a voz e a temperatura, combinados a uma es trutura bem construída, é que vão constituir o que se cha ma de estilo de um texto (ou de um autor) . Isso equivale a dizer que ele é apenas o resultado bem ou mal articulado das palavras que você escolher para produzir um texto que expresse a verdade com exatidão, clareza e elegância - e "acertar na mosca". 1 Cf. A Arte da Ficção. Rio d e Janeiro,Editora Civil ização Brasileira, 1997. - 65 - A R RU M A N D O A BA G A G E M . . . EXERCÍCIO: Escolha um episódio marcante de sua vida e o narre duas vezes: • De forma subjetiva, na primeira pessoa do singular. • De forma objetiva, na terceira pessoa do singular. Ainda a partir do mesmo episódio (para facilitar o aprendizado por comparação), narre-o agora em dois tons diametralmente opos tos. (Por exemplo: suave e agressivo; ou sério e engraçado, etc.) Agora, dê asas à imaginação e conte de novo a mesma h istória como se estivesse sendo escrita por dois a utores com estilos bem d iferentes (à sua l ivre escolha). - 66 - E M BU S C A D A P R O S A P E R D I DA OS "IDIOMAS" DA LINGUAGEM HUMANA A variedade praticamente infinita que rema entre os homens - com suas formas diferenciadas de agir, pensar e (portanto) escrever - conduz muitas vezes à conclusão apres sada, e errônea, de que a informalidade e a ausência de regras constituem a única regra válida para a linguagem. Historicamente, o registro oral da linguagem precedeu seu equivalente escrito - e continua a preceder, dentro da tra jetória pessoal de cada um, que aprende a falar antes de saber escrever. Mas é preciso fazer a ressalva importante de que, em termos lógicos, o modelo formal precede suas variantes infor mais. A informalidade da linguagem representa, em certo sen tido, uma reação posterior à sua formalidade. Ser informal, no fim das contas, é contrariar (e "deformar") formas previamen te existentes. Afinal, por razões de natureza lógica, aquilo que não existe não pode ser deformado ou transgredido. Para as finalidades práticas da Arte da Escrita, tudo isso representa um convite ao rigor e à busca da excelência. Pois, ao contrário dos padrões informais exaustivamente - 69 - U M A PA U S A P A R A R E F L E X Ã O . . . defendidos por certos gramáticos e estudiosos afins, escre ver é tarefa que inclui uma elevada responsabilidade - na medida em que nos conduz na direção oposta à do espon taneísmo e da coloquialidade cotidiana. FORMAL x INFORMAL Uma origem mais nobre Para emergir do caos originário, numa época em que ação e pensamento não iam muito além da satisfação de suas necessidades mais imediatas, os homens foram aos pou cos formalizando sua linguagem. A certa altura de sua tra jetória, a simples comunicação já não lhes era suficiente; para se diferenciarem dos cachorros e abelhas, por exemplo, desenvolveram uma linguagem nominal, ou formal, capaz de nomear os objetos, as pessoas, os lugares e as situações - e, sobretudo, oferecendo-lhe recursos para formalizar o rela cionamento entre os próprios homens, nos termos de um compromisso moral . Mais do que simples evolução, tratou -se de um verdadeiro salto civilizatório : o pensamento se tornou formal e explicitamente gramatical. É uma pena que os estudiosos do assunto não ressaltem ou valorizem essa origem mais nobre da linguagem humana, preferindo a versão vulgar de que a palavra foi, a princípio, coloquial, para só depois (e aos poucos) ir-se constituin do em forma convencional. Uma exceção especial nesse - 70 - E M B U S C A DA P R O S A P E R D I D A universo teórico bem pouco animador é justamente o fi lósofo alemão Eugen Rosenstock-Huessy, citado no início deste livro. 1 Para ele, o problema principal desses estudos reside na indistinção teórica entre a linguagem meramente informativa e fática (que é, de certa forma, comum a muitas outras espécies animais) e aquela que tem a força "das tra gédias e dos grandes juramentos" . Observando as crianças para tentar explicar a origem da linguagem dos adultos , diz Huessy, eles parecem ignorar a verdade óbvia de que a criança não explica o homem - mas, pelo contrário, o adulto tem chances de explicar a criança . Esse equívoco, ou ilusão, está na raiz da crença moder na de que, no campo da linguagem, o uso precede a nor ma, esta última sendo apenas uma cristalização (para alguns, uma "castração") do potencial criativo e comunicativo da linguagem oral . Mas a linguagem humana (tal como este li vro a entende e defende) é muito mais do que um meio de comunicação : constitui, desde a origem, uma ferramenta for mal, que nada tem de "natural" ou "espontânea" . Nesse sen tido, pode-se afirmar, sem exagero, que a escrita depende de normas, assim como a língua é constituída, no essencial, por sua norma culta . Por isso, a Arte da Escrita depende da aceitação (e do bom uso) dessa realidade : de que a lingua gem humana (articulada e formalizada numa gramática e 1 Eugen Rosen stock- H uessy, A Origem da Linguagem. Rio de Janeiro, Editora Record, 2002. - 7 1 - U M A PA U SA PA R A R E F L E X Ã O . . . amparada num conjunto de regras morais) é a coisa menos natural do mundo. Certamente, do ponto de vista pragmático da Arte da Escrita, não existe pecado algum em combinar aspectos for mais e informais da linguagem, tirando deles os efeitos mais criativos, ou, pelo menos, mais adequados a cada situação. Mas nunca será demais repetir que acreditar e apostar numa origem mais nobre para a linguagem (do formal para o in formal, e não ao contrário) pode fazer toda a diferença: sig nifica, para a escrita, um investimento em conteúdos mais consistentes, em estruturas mais ricas e mais consolidadas, num fraseado mais bonito e sublime. Retornando a essas ori gens, a Arte da Escrita não regride, avança. ORAL x ESCRITO A palavra com e sem defesa Em termos históricos, a linguagem oral antecedeu a es crita, que surgiu por volta de 5000 a.C. , entre os povos da antiga região do Egito e da Mesopotâmia. Desde então, a linguagem humana tem sido ao mesmo tempo palavra oral e palavra "impressa"- ou seja, Verbo e Texto, Espírito e Letra -, com limites e potencialidades em cada uma dessas vertentes. Muitos estudiosos concordam num ponto: a incorpo ração do registro escrito representou uma sofisticação in telectual e moral, sobretudo após a passagem da pictografia - 72 - E M B U S C A DA P R O S A P E R D I D A (egípcios) e da ideografia (chineses) para a escrita alfabética e fonética. Graças à escrita, as ciências e as artes tiveram gran de desenvolvimento - o que leva muita gente a considerar, apressadamente, a história da escrita como a própria história do pensamento humano. Nem todos, porém, viram neste "salto de qualidade" um fator efetivamente positivo. Já no Antigo Testamento, alguém lamenta que "a Letra mata", enquanto só "o Espírito vivifi ca". E em seu diálogo Fedro, dedicado não por acaso à justeza dos discursos, Platão põe na boca de Sócrates uma severa advertência quanto às limitações que a palavra escrita impôs à exposição e divulgação da Verdade. Para Sócrates/Platão, a escrita é um discurso restrito, limitado, porque silencioso : necessitaria da ajuda do autor, sendo incapaz de se defender sozinho. "A escrita", diz Sócrates, "é o mesmo que ler na areia e escrever no mar". 2 Pelo menos na língua portuguesa praticada corrente mente no Brasil, a relação oral x escrito parece se confundir com (e se sobrepor a) o par de opostos informal x formal. Diferenças geográficas à parte, tem-se por aqui o (mau) cos tume de atribuir uma informalidade obrigatória à fala, numa simplificação de usos que muitas vezes se aproxima do vul gar. Nesse sentido, é mais comum que se fale, por exemplo, "Me dá um dinheiro !" , enquanto se reserva a forma "Dê-me 2 Platão, "Fedro", in: Diálogos. São Paulo, Hemus Livraria Editora, 1981. - 73 - U M A P A U S A PA R A R E F L E X Ã O . . . um dinheiro !" para o registro escrito da frase. Construções simplificadas e concordâncias extravagantes (de pessoa ou de número) costumam frequentar sem susto e sem problemas nossa linguagem falada. O problema, no entanto, começa quando essas estruturas coloquiais passam a ser vistas
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