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PSICOTERAPIA ARQUETÍPICA 2 - PDF

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PSICOLOGIA ARQUETÍPICA
O legado clínico de James Hillman
Jason A. Butler
 
Aos meus três pais:
Gary – pai de sangue
Bruce – pai da carne
James – pai do pensamento
 
Sumário
Agradecimentos
1 Introdução
2 Prática imaginal
3 Psicodinâmica arquetípica
4 Palavra e imagem
5 Sensibilidade estética
6 Reflexões e anulação (“undoing”)
Índice
 
 
Agradecimentos
 
Esse livro seria comparativamente parco se não fosse pelas muitas
conversas com meus queridos amigos. Dr. Evan Miller foi indispensável
para acender o fogo, acrescentar combustível e provocar a chama,
sempre me incitando a enfrentar “tópicos de duas pontas”. Bryce Way me
ensinou o que significa sentir uma ideia e assumir o risco de viver esse
sentimento.
Vida Violeta, por todas as longas caminhadas errantes por cemitérios,
florestas e jardins, pelo amor que mostrou pelos meus sonhos, e por seu
espírito feérico, obrigado. Ao meu irmão e minha irmã, Shanna Butler e
Chase Desso, seu apoio me ensinou o que significa ser uma família, um
dom de valor inimaginável.
Tenho uma dívida especial de gratidão com dois mentores muito
importantes, Dr. Robert Romanyshyn e Dr. Michael Sipiora. Vocês me
deram o dom da iniciação na tradição, me apresentando a um elenco de
personagens e ideias que foram generosos e provocantes. Por último,
gostaria de agradecer o Dr. Safron Rossi e os arquivos OPUS pelo
grande esforço realizado para preservar e elaborar a obra de James
Hillman. O tempo gasto pesquisando no material arquivado foi uma
aventura cheia de tesouros.
Capítulo 1
Introdução
 
Uma das metas principais da psicologia arquetípica tem sido “desfazer a
mochila” da psicologia – fazendo uso intenso de uma postura
metodológica da via negativa, ou descrição pela negação, e
desconstrução. Essa posição resultou em ampla coleção de críticas que,
embora fossem controversas ou mesmo heréticas, causaram um impacto
significativo no campo da psicologia. Contudo, é importante notar que
essa abordagem desconstrutiva é uma fantasia entre muitas. Um
movimento que busque ver o que está por trás dessa metodologia invoca
um encontro imediato com a influência desmembradora de Dioniso, um
deus intimamente associado com a revitalização pela desordem. É a
presença dionisíaca que facilita a re-visão (re-visioning) e
despedaçamento da teoria e prática estagnadas, violentamente fixadas e
dogmáticas. Através do trabalho da psicologia arquetípica, Dioniso foi
apresentado como um parceiro dialético para a abominável
unilateralidade da psicologia como ciência natural apolínea. Por mais
necessária que essa desconstrução tenha sido, o próprio James Hillman
(2005) observou que toda imagem arquetípica tem seu próprio excesso e
intensidade. Sem um elemento explicitamente construtivo, as implicações
clínicas da psicologia arquetípica permanecerão subaproveitadas.
Os vários teóricos que contribuíram para o campo da psicologia
arquetípica ainda não produziram uma obra que sintetize de modo eficaz
uma abordagem arquetípica à psicoterapia (Hillman, 2004). Fiel ao seu
formato dionisíaco, pedaços desmembrados do método terapêutico estão
espalhados por toda a literatura (Berry, 1982, 1984. 2008; Guggenbühl-
Craig, 1971; Hartman, 1980; Hillman, 1972, 1975a, 1977a, 1978, 1979a,
1979b, 1980; Newman, 1980; Schenk, 2001; Watkins, 1981, 1984). Este
estudo é uma tentativa de coletar as peças distintas do método
arquetípico e entretecê-las com sonhos, imagens de fantasia e vinhetas
clínicas no esforço de representar o estilo específico usado pela
psicoterapia arquetípica.
Ainda que respeitemos a importância da desconstrução e da via
negativa, o objetivo desse texto é re-construir e descrever claramente a
contribuição exclusiva da psicologia arquetípica para a prática
terapêutica. Através da coleta cuidadosa das notas individuais sobre o
método terapêutico e a mobilização de uma imaginação ativa a partir dos
textos de Hillman, ou, mais precisamente, Hillman como uma imagem,
esse estudo não só pretende delinear uma abordagem arquetípica à
psicoterapia como também amplificar abordagens existentes para obter
uma compreensão mais lúcida da relevância terapêutica da psicologia
arquetípica. No texto dou muito pouca atenção às veementes falácias de
espantalho de Hillman contra a psicoterapia que, como foi apontado por
David Tacey (1998), são contaminadas por suas projeções. Em vez
disso, minha atenção concentra-se na importância terapêutica integrada
na obra de Hillman, particularmente do seu trabalho com a imagem.
Embora meu envolvimento com a obra de Hillman tenha sido central
para esse estudo, é essencial reconhecer os estilos polimorfos da
psicoterapia arquetípica que foram desenvolvidos por Lopez-Pedraza
(1977), Berry (1982, 1984), Watkins (1981, 1984, 1986), Hartman
(1980), Newman (1980), Schenk (1989), Coppin (1996), Bleakley
(1995) e Giegerich (1998), entre outros.
A psicoterapia arquetípica será definida de modo geral como uma teoria
e práxis da psicologia profunda cujo objetivo é: “a) uma representação
precisa da imagem; b) ficar com a imagem enquanto ela é ouvida
metaforicamente; c) descobrir a necessidade dentro da imagem; d)
vivenciar a insondável riqueza analógica da imagem” (Hillman, 1977a,
p. 82). Seguindo a compreensão de C. G. Jung (1929/1968) da imagem
como psique, Hillman (2004) definiu essa característica básica da
psicologia arquetípica como “a própria psique na sua visibilidade
imaginativa; como um datum primário, a imagem é irredutível” (p. 18)
Edward Casey (1974) qualificou ainda mais a noção da imagem na sua
bem recebida declaração de que uma imagem não é definida por um tipo
particular de conteúdo, isto é, uma forma pictórica, mas sim pela
maneira como o indivíduo vê, ou seja, uma perspectiva imaginal. A
ênfase central permitida para a imagem dentro da psicologia arquetípica
qualifica a tradição como uma psicologia imaginal, o que significa “um
estudo da psique... desenvolvido a partir da natureza e realidade da sua
experiência, que é compreendida aqui como sendo imagens” (Watkins,
1984, p. 102).
 
Introdução à psicologia arquetípica
James Hillman (12 de abril de 1926 – 27 de outubro, 2011), força
iniciadora e voz sustentadora da psicologia arquetípica, era um autor
prolífico e talentoso, assim como provavelmente o mais influente teorista
junguiano desde Jung. Suas ideias eram provocantes e desde o início da
sua carreira constelaram reações altamente polarizadas na comunidade
psicológica. Enquanto seu trabalho, desenvolvido durante mais de 50
anos, cobre uma ampla variedade de tópicos e contém uma série de
movimentos diferentes e até contraditórios (ver Tacey, 1998), a obra de
Hillman nunca se afasta do seu foco primário: a vivificação e elucidação
de uma psicologia enraizada na imaginação arquetípica.
Depois de obter seu diploma de Literatura Inglesa na Sorbonne em Paris
e um segundo diploma de Ciência Mental e Moral no Trinity College em
Dublin, Hillman seguiu para Zurique, onde foi treinado no Instituto Jung,
fundado há apenas cinco anos. Em março de 1953, Hillman iniciou sua
análise de formação com Carl Alfred Meier, uma das figuras mais
centrais dos primeiros dias do instituto e um analisando de Jung. Durante
sua formação no Instituto Jung, não levou muito tempo para que a
natureza provocadora de Hillman se tornasse conhecida.
Hillman rapidamente deu início ao seu confronto com ideias junguianas
ortodoxas, algumas das quais ele desenvolveria durante toda a sua
carreira, e outras que ele rejeitaria veementemente. Como o primeiro
diretor de Estudos no Instituto Jung de Zurique, dedicado a iniciar um
“processo de regeneração e renovação” (como citado em Russell, 2013,
p. 455), Hillman também começou a confrontar uma geração mais velha
de analistas e suas ideias previamente estabelecidas na direção do
instituto. Hillman foi tomado pelo espírito do novo, pego na tensa
dialética entre o velho e o jovem, senex e puer – um pareamento
arquetípico que investigou e viveu durante boa parte da sua carreira.
Enquanto completava a porção clínica da sua formaçãoanalítica,
Hillman reuniu-se regularmente com um grupo de estudantes e um
supervisor experimente para apresentar e criticar material de caso.
Como descreveu na sua biografia, ele achava o processo inteiro
desagradável, notando que “todos estão falando sobre alguém que não
está lá, é tudo fantasia” (Russell, 2013, p. 421). Ele decidiu confiar no
seu instinto, perguntando a um dos seus pacientes, assim como ao
supervisor liderando o grupo, se o paciente podia sentar-se na reunião e
falar por si mesmo sobre seu próprio processo psicológico. Embora o
paciente tenha concordado, o supervisou negou o pedido de Hillman,
considerando-o “radical demais” (p. 421), uma condenação que seria
frequentemente usada em resposta à obra de Hillman.
Fiel ao seu signo astrológico de Áries, Hillman apresentava uma
natureza marcial, confiando na sua raiva como “seu demônio favorito”
(Hillman, 1991, p. 147), a obra de Hillman era incitada “quando alguma
coisa sentia-se ofendida”. Essas áreas de insulto, que nos primeiros dias
da sua carreira estavam principalmente relacionados às interpretações
vigentes do fenômeno do puer, eram sementes para a longa carreira de
Hillman de diferenciar seu pensamento daqueles da escola junguiana
clássica. Ao contrário de muitos estudantes em Zurique que caíram em
um relacionamento sem questionamentos com a teoria junguiana, Hillman
manteve um senso de pensamento crítico que lhe permitiu usar um ângulo
diferente. Hillman resistiu à transformação em um devoto zeloso de Jung,
chamando a influência de Jung de síndrome, “um tipo de projeção
mágica” (p. 426). Hillman observou: “eu estava tão dentro do mundo
junguiano, mas ao mesmo tempo algo em mim se protegia dele”. (p. 426).
Ele se agarrou ao que considerava valioso no fenômeno do puer,
protegendo sua própria experiência vivenciada desse arquétipo das
interpretações redutivas que estava encontrando no Instituto. Naquela
época Marie-Louise Von Franz estava oferecendo uma série de palestras
sobre a patologia do puer. Seguindo Jung, ela enfatizou a relação entre o
puer e a mãe e colocou uma grande ênfase na descida, uma cura terrena
para o puer, e ocasionalmente enviava seus jovens pacientes para
fazendas onde poderiam sujar seus sapatos, um aterramento desse
espírito jovem. Hillman considerava esse movimento terrivelmente
literal e em vez disso trabalhou para desliteralizar a terra, “para ver
através dela, voltando-se para a psique, em vez de ter a psique
transformada em terra” (como citado em Russell, 2013, p. 429).
No início dos anos 60, Hillman tornara-se amigo íntimo de Adolf
Guggenbühl-Craig, que, como Hillman, apreciava paradoxos e virar
ideias consagradas de ponta-cabeça. Uma das suas contribuições mais
notáveis nesse sentido veio de um texto que apresentou durante um
circuito de palestras nos Estados Unidos com Hillman. O texto, chamado
“Juventude e Individualidade”, desafiava a noção junguiana clássica de
que o processo de individuação começa apenas depois que a pessoa
chegou à meia-idade, argumentando que a adolescência introduz muitas
características importantes da individuação psicológica (Russell, 2013).
Recordando esse importante período, Hillman comentou, “a ideia era
que estávamos tentando derrubar a geração mais velha” (p. 495).
Apesar dos muitos movimentos feitos por Hillman para diferenciar esse
pensamento da velha guarda, ou “junguianos de segunda geração”
(Goldenberg, 1975), ele se apegou à noção de fidelidade à tradição. Ele
descreve sua posição claramente em uma carta de 1965:
Faço parte de muitas coisas: minha árvore familiar, os locais onde
fui ensinado, a escola de psicologia da qual sou membro, o país
onde nasci. A doutrina faz parte da minha medula. Eu trabalho
dentro de uma doutrina, me esforço diariamente para sair, para
combatê-la, para alterá-la, para quebrá-la. Mas pelo lado de
dentro.
(como citado em Russell, 2013)
Foi durante esse acalorado debate com a ortodoxia junguiana que
Hillman iniciou sua exploração formal da tensão puer-senex a convite da
conferência Eranos de 1967. Respondendo à sua percepção de que a
psicologia junguiana era dominada pelo senex negativo e o “culto do
antigo” (Russell, 2013, p. 590), Hillman procurou redimir o puer da sua
associação tradicional com a mãe, enfatizando em vez disso o papel
arquetípico na relativização do senex negativo – a força opressiva do
velho sábio. Além disso, Hillman desejava demonstrar o modo como o
senex e o puer são necessários um para o outro, permanecendo como
dois extremos de uma polaridade que é paradoxalmente uma “união de
iguais” (Hillman, 2005, p. 58). Seus esforços para proteger a “úmida
faísca” (Hillman, 2005, p. 54) do puer, para contrabalançar a velha
guarda dentro da sua tradição psicológica, logo o levariam a anunciar
uma diferenciação distinta da psicologia junguiana ortodoxa, iniciando
um novo movimento que ele chamou de psicologia arquetípica.
O primeiro uso do título psicologia arquetípica por Hillman ocorreu em
um ensaio intitulado “Por que Psicologia Arquetípica?”, publicado pela
primeira vez em 1970. Ali ele traçou um número de motivos para adotar
um título que não “junguiano”, “analítico” ou “psicologia complexa”.
Hillman notou a necessidade de diferenciar-se de Carl Jung, o homem,
deixando a posse do nome para a família Jung. Ele também enfatizou o
modo como o adjetivo “arquetípico” “fornece à psique uma chance de
sair do consultório” e “fornece uma perspectiva arquetípica para o
próprio consultório” (Hillman, 1975b, p. 142). Enquanto a psicologia
analítica e complexa constela associações com uma psicologia do
indivíduo, a psicologia arquetípica amplia o escopo para abarcar a
dimensão da cultura, história e a “pluralidade das formas arquetípicas”
(p. 143), uma psicologia politeísta. Por toda a sua carreira, Hillman usou
a distinção da psicologia arquetípica para revisar, questionar, criticar e
descartar muitas das principais características da psicologia de Jung e
da psicanálise em geral.
A posição de Hillman em relação a Jung e Sigmund Freud foi pegar as
suas obras e abordá-las de tal modo a torná-las suas. Ele deu um passo
para trás do trabalho literal como substantivo e psicologizou ou viu
através até o verbo subjacente, como observou “o modo como o solo é
semeado” (1999). Ao fazê-lo, ele assumiu o que compreendeu ser o
modo de trabalho de Jung, em vez de uma aderência literal à sua obra.
Especificamente, é o amor de Jung pelo incomum e idiossincrásico e seu
talento para vincular esses fenômenos com sua raiz subjacente que o
torna radical[1], e seguindo esse espírito, a “herança daimônica de
Jung”, Hillman (1999) declarou-se um “autêntico junguiano”.
Percorrendo com o olhar a obra de Hillman, torna-se claro que suas
teorias nascem de uma aderência similar ao incomum e idiossincrásico.
Hillman tomou a noção de Jung da individuação como diferenciação e
expandiu-a em um modo de teorização assim como um modo de praticar
psicologia. Essa agenda de diferença está disseminada pela obra da
psicologia arquetípica. É importante observar que esse movimento
também é essencial para a prática da psicoterapia arquetípica, onde o
trabalho é prosseguir até a diferença, o incomum, e aprimorá-lo,
seguindo o evento idiossincrásico até sua raiz arquetípica. Como
Hillman (1971) observou, “pois o que é a individuação senão uma
particularização da alma?” (p. 133).
Descrever como a psicoterapia arquetípica é diferente da psicoterapia
junguiana é uma tarefa inevitavelmente sujeita a generalizações
excessivas. O processo psicoterápico está intimamente relacionado às
idiossincrasias do terapeuta e do paciente, fazendo com que declarações
gerais sobre as características de uma terapia “junguiana” ou
“arquetípica” sejam algo intrinsecamente limitado. Contudo, diferenças
nítidas podem ser descritas tomando como base as ênfases teóricas
distintas dessas duas tradições altamente relacionadas.
 
Diferenciando a psicologia junguiana e a arquetípica
Hillman tem sido justificadamente criticado, principalmente por Tacey
(1998), pelo seu extremismona tentativa de diferenciar-se de Jung,
desqualificando o mestre enquanto exagerava implicitamente a
originalidade do próprio trabalho. Um exemplo primário pode ser
encontrado no trabalho posterior de Hillman (1992) enfatizando a noção
neoplatônica de anima mundi. Não é preciso forçar a imaginação para
perceber os paralelos entre a anima mundi de Hillman e a descrição de
Jung do unus mundus (1970) e do arquétipo psicoide (1947/1970). Além
disso, como foi apontado por Tacey (1998), “quarenta anos antes de
Hillman, com muito menos fanfarra e bravatas, Jung há havia (re)
descoberto a ideia neoplatônica da anima mundi” (p. 225).
Tanto Jung quanto Hillman estavam tentando reconciliar a profunda
ruptura entre o espírito e a matéria – espiritualizar a matéria e
materializar o espírito, discutindo que a alma é o espaço intermediário
dentro do qual essa conexão ocorre. Contudo, apesar do caráter comum
de suas buscas, Hillman falsamente posiciona Jung como alguém
interessado apenas na psique como interior, declarando em uma palestra
não-publicada, “já para a nossa escola pós-junguiana arquetípica, a
psique está mais externalizada, presente no mundo” (como citado em
Tacey, 1998, p. 225).
Todavia, Tacey demonstrou uma indulgência similar na retórica
exagerada, acusando Hillman de uma perigosamente “incompleta
compreensão de Jung”, “como se Hillman lesse Jung com um olho aberto
e outro fechado” (Tacey, 2001, p. 116). Embora Tacey tenha realçado
várias críticas importantes da obra de Hillman, incluindo a “apropriação
conservadora e simplista da teoria junguiana” (Tacey, 1997, p. ix) no
movimento mitopoético masculino de Bly, Hillman e Meade, uma
pequena nota de pé de página na obra de Hillman, a generalização de
Tacey (201) para toda a “vida e obra” (p. 116) de Hillman amplia a
crítica muito além da razão.
Por exemplo, Tacey deixa de levar em conta o modo como a obra de
Hillman com a imagem forneceu profundos avanços para a noção de Jung
da psique como imagem. Hillman segue as implicações dessa afirmação
de modo muito mais fiel do que Jung, que oscila entre uma orientação
fenomenológica e um essencialismo metafísico. Segundo o aspecto
metafísico da obra de Jung, praticantes junguianos clássicos,
representados por Von Franz (1996), Edinger (1992) e Neumann
(1954/1995), tendem a abandonar os fenômenos psíquicos únicos em
favor da abstração pela amplificação. Já a abordagem arquetípica busca
manter a tensão entre os fenômenos e sua natureza essencial ou
arquetípica de modo muito mais delicado. O fenômeno único recebe
muito mais ênfase clínica e autoridade do que categorias teóricas e
míticas.
A aderência a diferença qualitativa e à particularidade estimulou os
seguintes movimentos críticos importantes, que distinguem a abordagem
arquetípica da teoria e prática junguianas clássicas: do arquétipo ao
arquetípico, do símbolo à imagem, do inconsciente à imaginação, da
compensação à complexidade de conjunções e do um aos muitos. Foi
com essas torções que Hillman distanciou-se da psicologia junguiana
tradicional e formou uma abordagem distinta chamada psicologia
arquetípica. Assim, é importante dar atenção a cada uma dessas
diferenças individualmente.
 
Arquétipo a arquetípico
A noção psicológica de arquétipo é talvez a mais importante
contribuição de Jung para a psicologia e a cultura. Na obra de Jung
(1964), arquétipo foi definido como tipos primordiais, imagens
universais, “uma tendência a formar tais representações de um tema”, e
“uma tendência instintiva” (p. 58). Baseando-se em Kant, Jung
(1950/1969) observou que o próprio arquétipo é incognoscível; só a
imagem arquetípica cai dentro da experiência humana. Em resposta a
essa distinção, Hillman (2004) descartou o estudo do arquétipo como
noumenon, ou coisa-em-si, e em vez disso concentrou sua atenção
exclusivamente na experiência fenomênica. Seu argumento: “a psicologia
arquetípica, diferente da junguiana, considera o arquetípico sempre
fenomênico, evitando assim o idealismo kantiano implícito em Jung”
(Hillman, 2004, p. 14). Como Robert Avens (1980) observou, “em vez
de perguntar como o arquétipo e a imagem estão relacionados (como
dois eventos distintos), começamos com a “imagem arquetípica” (p. 43).
Esse movimento pode ser descrito como um deslocamento dos
arquétipos como estruturas transcendentes para arquétipos como pessoas
imanentes – um movimento para longe do metafísico e abstrato e rumo ao
imaginal e concreto, do arquétipo como substantivo ao arquetípico como
adjetivo. Ao fazê-lo, os psicólogos arquetípicos tentaram descartar a
metafísica desnecessária difundida na psicologia junguiana para, em vez
disso, se concentrarem em desenvolver a rica exposição da
fenomenologia psicológica iniciada por Jung.
Em um esforço para permanecer dentro dos parâmetros da
fenomenologia psíquica – a experiência vivida da psique, Hillman
(1933) apresentou o importante argumento de que os arquétipos são a
priori não na sua gênese, porque isso envolveria uma crença metafísica
além do alcance da experiência psicológica, mas a priori no seu valor.
O valor arquetípico de uma imagem é anterior e dá forma à experiência
pessoal. Ao invocar a perspectiva arquetípica, o indivíduo coloca uma
experiência individual vívida dentro de uma cosmologia universal,
encontrando seu lugar em relação aos Deuses. No seu uso do termo
Deuses, Hillman (1975a) foi cuidadoso em distinguir a referência
religiosa aos Deuses e seu uso psicológico. Especificamente, ele disse
“a teologia considera os Deuses de modo literal, e nós, não” (p. 169).
Ele acrescentou:
Na psicologia arquetípica os Deuses são imaginados. Eles são
abordados pelos métodos psicológicos da personificação,
patologização e psicologização. São formulados de modo
ambíguo, como metáforas para modos de experiência e como
pessoas na fronteira do numinoso. São perspectivas cósmicas nas
quais a alma participa.
(p. 169)
Ao transformar eventos em experiências através da imaginação, esse
aspecto do numinoso integrado nas experiências cotidianas é revelado.
Diferentemente da psicologia junguiana clássica, a psicologia
arquetípica sugere que qualquer imagem pode ser justificada como
arquetípica; é o modo como a imagem é tratada que facilita sua
qualificação como arquetípica. Como Hillman (1977a) observou:
“a imagem cresce no seu valor, torna-se mais profunda e
envolvente, isso é, torna-se mais arquetípica à medida que seu
modelo é elaborado” (p. 75). Imaginar uma imagem como
arquetípica faz com que ela se torne mais arquetípica (Avens,
1980):
Então, se concordamos que o caráter arquetípico das imagens
consiste na sua polissemia (múltiplos significados) e polivalência,
o adjetivo “arquetípico” deve ser tomado para apontar não a
numinosidade das imagens, mas sim o valor de uma imagem,
dotando-a com a mais ampla, rica e profunda significância
possível.
(p. 45)
Por sua vez, quando qualquer fenômeno psíquico é abordado como
arquetípico, ele também começa a transbordar de valor, excitando a
imaginação, conjurando outras imagens do mito, evocando emoção,
ganhando complexidade e profundidade poética.
O seguinte exemplo pode ajudar a exemplificar essa importante distinção
entre a teria junguiana e a arquetípica. Muitos analistas junguianos de
formação clássica são ensinados a distinguir entre sonhos pessoais,
expressando elementos do inconsciente pessoal, e grandes sonhos ou
sonhos arquetípicos, expressando elementos do inconsciente coletivo.
Esse privilégio hierárquico de um tipo de sonho em relação a outro e a
noção de que é possível classificar um sonho como um grande sonho
independente da experiência do sonhador do sonho coloca o analista em
uma posição inflacionada como árbitro do significado arquetípico.
Segundo a perspectiva da psicologia arquetípica, qualquer sonho pode
ser um grande sonho. De fato, talvez não haja pequenos sonhos, só
pequenas interpretações.
 
Símbolo a imagem
A noção de símbolo sugere uma ordem superior, um arquétipo ou númeno
metafísico, fora ou além dos fenômenos apresentados – uma coisa
representa algumaoutra coisa. Com uma representação simbólica o
conteúdo manifesto aponta para o conteúdo latente apenas parcialmente
cognoscível, como o dedo apontando para a Lua. Como disse Jung
(1912/1967), símbolos funcionam como “um meio de expressão, como
pontes e apontadores” (p. 330).
Enquanto Jung (1912/1967) expressou um desejo de “evitar todas as
asserções metafísicas” (p. 231), Hillman (1975a, 1977a) foi muito mais
enfático em relação a permanecer com a experiência vivida, descartando
qualquer interesse na abstração simbólica além dos fenômenos e se
concentrando apenas no que pode ser vivenciado: a realidade psíquica.
Na sua aderência à realidade psíquica, Hillman seguiu de perto a
afirmação de Jung (1939/1954) de que a psique é imagem. Jung
(1933/1960) insistia que “o que aparece para nós como realidade
imediata consiste em imagens cuidadosamente processadas e... vivemos
imediatamente apenas em um mundo de imagens” (p. 353). Hillman
(1992) ecoa essa mesma sensibilidade na sua designação do “próprio
evento como imagem” (p. 34). Além disso, Jung (1933/1960) notou:
“Imagem e significado são idênticos e, à medida que a primeira toma
forma, o segundo torna-se claro. Na verdade o padrão não precisa de
interpretação: ele exibe seu próprio significado” (p. 201). Hillman
alinhou-se com esse aspecto focado na imagem, ou fenomenológico, da
obra de Jung e usou-o contra a tendência à abstração simbólica
encontrada em outras partes dos escritos de Jung, e com ainda mais
frequência na literatura secundária da psicologia junguiana.
Embora Samuels (1985) junte a prática da psicoterapia arquetípica com
a escola clássica da análise junguiana, notando que as duas escolas
utilizam um método clássico-simbólico-sintético na análise, a citação
que ele usa de Jung para descrever essa abordagem faz mais para
mostrar a diferença entre o método clássico e arquetípico do que para
criar uma ponte entre as duas escolas. Jung escreveu:
É absolutamente necessário fornecer essas imagens fantásticas que
emergem tão estranhas e ameaçadoras diante do olhar da mente
com algum tipo de contexto para torná-las mais inteligentes. A
experiência mostrou que a melhor maneira de fazer isso é por meio
de material mitológico comparativo.
(Jung, 193/1968, p. 33)
Enquanto os praticantes junguianos clássicos enfatizam a necessidade de
contextualizar a imagem fazendo conexões com “material mitológico
comparativo”, a psicoterapia arquetípica demonstrou a maneira como
esse tipo de ligação frequentemente serve como uma defesa
intelectualizada contra a apresentação poderosamente evocativa da
imagem particular (Hillman, 1977b). A natureza defensiva da
amplificação é aparente no comentário de Jung. Ele notou as qualidades
“estranhas” e “ameaçadoras” das imagens, dando a entender que a
amplificação doma a imagem ao generalizar sua particularidade,
embotando a aguda especificidade da imagem. Como Berry (1982)
argumentou de modo tão convincente, a imagem já vem embutida no
contexto da sua apresentação – inteligível na sua demonstração estética.
A amplificação é sempre secundária em relação a atravessar a clareira e
adentrar no mundo revelado pela imagem.
Desse modo, a imagem e não o símbolo recebeu um papel central na
psicologia arquetípica. Hillman (1977a) argumentou que,
fenomenologicamente, símbolos nunca são vivenciados: “símbolos
aparecem, só podem aparecer, em imagens e como imagens” (p. 650.
Enquanto símbolos são sempre abstrações, imagens são sempre
“particularizadas por um contexto, clima e cena específicos... elas são
sempre qualificadas de modo preciso” (p. 62).
O movimento do símbolo para a imagem eliminou o foco na
interpretação de conteúdo latente. Com a imagem, a interpretação, no
sentido de explicar o significado encontrado além dos fenômenos
apresentados, não é necessária porque não é pressuposto que há algum
outro material além daquele que se mostra. A imagem, como disse
Hillman (1979b), não é um símbolo apontando para alguma outra coisa;
em vez disso, o valor metafórico da imagem é intrínseco à apresentação
da própria imagem como uma configuração precisa da psique.
“[Imagens] são a própria psique na sua visibilidade imaginativa; como
datum primário, a imagem é irredutível” (Hillman, 2004, p. 18).
Ao trabalhar com uma imagem, o indivíduo entra no seu significado
latente ao aprofundar a sua apresentação em si. A configuração dos
particulares é a revelação do significado. Como Avens (1980) observou:
“Imagens, no seu modo liberado, são elas mesmas personificações de
significado; que elas significam o que são e são o que significam” (p.
40).
O trabalho focado em imagem é, pela sua própria natureza, perturbador,
porque traz consigo o desconhecido. Ler um evento pelo seu conteúdo
simbólico tende a trocar essa qualidade perturbadora por uma abstração
reificada. Um paciente traz um sonho de uma grande cobra negra e deixa
a sessão com noções conceituais de instinto livre ou do inconsciente, a
lua crescente torna-se a regeneração ou O Feminino, águas reflexivas
tornam-se a função sentimento ou o afeto maternal. Como Hillman
(1977b) declarou em um documento não publicado, “tratar uma imagem
como um símbolo é fugir dela... Com demasiada frequência a
amplificação torna-se uma medida contrafóbica contra o poder da
imagem”.
 
Do inconsciente à imaginação
Hillman (1991) observou que uma das expansões mais significativa da
psicologia de Jung é a maneira como utilizou o termo imaginação em vez
de inconsciente. A noção de Hillman do imaginal originou-se na obra
Psicologia e Alquimia de Jung (1937/1968) onde Jung define
imaginação como a meta da obra alquímica. “Imaginatio”, escreve Jung,
“é a evocação ativa de imagens (interiores) secundum naturam, um feito
autêntico de pensamento ou ideação que... tenta capturar os fatos internos
e retratá-los em imagens fiéis à sua natureza. Essa atividade é um opus,
uma obra” (p. 167). De fato, Hillman faz disso o opus primário da
psicologia arquetípica.
Em um comentário com o intuito de explicar sua posição em relação ao
uso da noção de “inconsciente”, Hillman (1991) declarou, “não que não
exista inconsciência em nós o tempo todo... mas não vou usar a palavra
como um substantivo abstrato para cobrir as implicações culturais que
existem na [no termo] imaginação” (p. 32). Ele acrescentou:
 
Além disso, a palavra “inconsciente” vem carregada com
subjetividade e tornou-se um psicologismo. “Imaginação” conecta
você imediatamente a uma tradição e a uma atividade estética.
Com a linguagem. Ela se refere diretamente a imagens, que o
próprio Jung dizia que eram o conteúdo principal do inconsciente.
(p. 32)
Com o movimento do inconsciente para a imaginação, Hillman
novamente firmou sua posição sobre a diferenciação. Ao chamar o
inconsciente de psicologismo, ele está apontando para a maneira como a
palavra murchou até tornar-se um conceito seco, desprovido de qualquer
especificidade – uma palavra morta. Como a noção tornou-se
indissoluvelmente reificada, aqueles que usam o termo se esquecem de
que é uma perspectiva, usando o termo como se “o inconsciente” fosse
um lugar real. Seguindo a definição de Jung (1937/1968) de imaginação
como o ato criativo de formação de imagens, Hillman passou de uma
noção reificada para um ato operante – um ato que é indelevelmente
fundamental para a realidade psíquica.
Além disso, Hillman (1979a) argumentou que referências ao
inconsciente trazem elementos importantes demais juntadas em uma
massa indiferenciada, “coletando em um reservatório nebuloso todas as
fantasias da profundidade, do mais baixo, do mais básico, do mais
pesado (deprimido), e do mais sombrio” (p. 42). Em um esforço para
descompactar o termo e revelar seus inúmeros conteúdos diferentes,
Hillman argumentou:
 
Enterramos no mesmo túmulo monolítico, chamado de “O
Inconsciente”, o corpo vermelho e terreno do Adão primordial, o
homem e a mulher comuns coletivos, e as sombras, os fantasmas e
os ancestrais. Não podemos distinguir uma compulsão de uma
chamada, um instinto de uma imagem, uma demanda desejosa de
ummovimento da imaginação.
(p. 42)
 
Inerente ao termo inconsciente existe um viés de perspectiva voltado
para a consciência egoica. As imagens apresentadas em sonhos, fantasias
e complexos não fornecem indicação alguma de serem inconscientes. É
só o ego da vigília que é inconsciente. Enquanto os métodos
psicológicos voltados para elucidar a perspectiva do ego precisam da
fantasia de uma coisa reificada chamada de inconsciente, a psicologia
arquetípica, assim como a psicologia da imagem, volta-se para a história
para avançar a noção de imaginação, onde “o ego” é simplesmente um
entre muitos.
Hillman trabalhou para enriquecer as noções psicológicas
contemporâneas com conceitualizações históricas do que é chamado de
inconsciente. Por exemplo, ele em várias ocasiões descreveu a prática
clássica da memoria – uma técnica retórica usada para ordenar a mente
onde as memórias são imaginadas como pessoas (Hillman, 1972, 1975a,
1983). Onde agora existe o inconsciente, antes tivemos as pessoas de
imaginação, e memoria era a arte imaginal de diferenciar e relacionar-se
com essas figuras. A obra de Aristóteles e dos neoplatônicos fala da
memoria como o eco da divindade reverberando na alma da pessoa ​–
imagem e ideia como herança divina (Hillman, 1972). Hillman observou,
“como resultado, as imagens [da alma] tinham que ser consideradas
realidades plenas, não meras fantasias, meras alucinações, meras
projeções – nada que fosse “meramente” alguma coisa” (Hillman, 1972,
p. 172).
A intenção de Hillman ao reclamar a arte da memoria das criptas da
história e atribuir-lhe importância como uma prática psicológica é uma
parte do seu movimento de longa data para evitar as práticas e palavras
mortas da psicologia contemporânea, e por sua vez, alinhar a psicologia
arquetípica com uma linhagem de tradições centradas na imagem como o
neoplatonismo, gnosticismo, cabalismo e alquimia. Localizar a
psicologia arquetípica dentro dessas tradições permitiu acesso a uma
rica variedade de ideias psicológicas que são muito mais precisas e
diferenciadas fenomenologicamente do que aquelas disponíveis na
psicologia contemporânea. Os psicólogos arquetípicos tentaram usar a
recuperação de tradições centradas na imagem para curar a psicologia
da sua dependência de conceitos reificados e excessivamente abstratos
como o inconsciente.
 
Da compensação à complexidade de conjunções
A psicologia junguiana está cheia de noções de oposição: ego/sombra,
anima/animus, inconsciente/consciente, introversão/extroversão,
pensamento/sentimento e uma variedade de outros pares de opostos. O
relacionamento entre esses polos dialéticos tem, de acordo com Jung,
uma natureza compensatória: quando um aspecto se manifesta de modo
intenso à mente consciente, o outro se apresenta como algum conteúdo
inconsciente. Jung (1934/1966) argumentou que a compensação era
particularmente relevante para a dinâmica dos sonhos. Ele escreveu:
 
Cada processo que vai longe demais imediata e inevitavelmente
evoca compensações, e sem estas não haveria um metabolismo
normal ou uma psique normal. Nesse sentido podemos considerar
a teoria da compensação uma lei básica do comportamento
psíquico. Muito pouco de um lado resulta em demais do outro. Do
mesmo modo, a relação entre consciente e inconsciente é
compensatória... Quando nos preparamos para interpretar um
sonho, é sempre útil perguntar: qual atitude consciente ele
compensa?
(p. 153)
 
Para Hillman (1979a), a lei da compensação proposta por Jung não
corresponde à fenomenologia da psique. O texto principal de Hillman
sobre sonhos, Dream and the Underworld, apresenta o argumento de que
a fantasia da compensação inicia um movimento para longe da imagem
apresentada. A fantasia compensatória sugere que a imagem de sonho é
incompleta em si mesma e precisa de uma interpretação que localiza o
elemento de oposição presente nas identificações conscientes do
sonhador. Esse movimento efetivamente traz o sonho para fora do
submundo, um espaço imaginal que Hillman usou para descrever o
terreno nativo do sonho, um reino mítico qualificado pela profundidade,
ambiguidade metafórica, sombra, ocultamento e semelhança.
Além disso, segundo Hillman, o posicionamento da imagem apresentada
como compensação para uma atitude inconsciente inevitavelmente
constela a necessidade do ego heroico de ação para retificar o
desequilíbrio, e sob a influência desse dominante arquetípico, a noção
de Jung (1934/1966) de enantiodromia, “a função reguladora dos
opostos” (p. 72), torna-se “uma conversão literal e uma autorregulação
literal” (Hillman, 1979a, p. 79).
É importante notar que Hillman não se opõe à oposição em si;
antes, é na localização do oposto fora da imagem apresentada. Ele
argumenta:
todo evento psíquico é uma identidade de pelo menos duas
posições e é assim simbólica, metafórica e nunca unilateral. Ele só
permanece assim se for tomado por um único lado; quando
tentamos equilibrá-lo, quebramos sua harmonia oculta.
(1979a, p. 80)
O oposicionalismo é uma perspectiva que passa a ser necessária apenas
quando o indivíduo deseja tomar parte sobre um território fora do
espaço do sonho. Quando o ego desperto cruza a ponta para o mundo
inferior, a percepção da oposição unilateral do sonho dissolve-se em
uma complexidade de conjunções – “uma mistura ou união de
“elementos” ou “substâncias” (Conjunction, 2008), a coincidentia
oppositorum da alquimia.
Hillman (1979a) procurou deslocar a noção de oposição de uma
dialética de consciente/inconsciente para uma oposição mais absoluta:
vida/morte, onde a morte é desliteralizada para significar “a
autorregulação de qualquer posição pela psique, por uma percepção não
literal, metafórica. Nesse sentido... conjunção e... a identidade de
opostos significam a percepção simultânea pelas perspectivas da vida e
morte, do natural e do psíquico” (p. 79).
Não há indicação melhor da natureza relativizada do ego e das suas
profundas limitações do que a experiência vivida de um sonho ou
fantasia. Essas experiências psíquicas concentradas oferecem uma
compreensão clara sobre a posição subordinada e marginal do ego em
relação ao séquito de outros personagens psíquicos. A imaginação, como
o modo central da expressão psíquica, rapidamente demonstra que o
modo heroico de consciência, um estilo de consciência egoica ligado à
literalidade, controle e busca da vitória, é falho e limitado em um padrão
sisífico, dirigindo um esforço enorme com pouca consciência dada às
repetições impotentes do indivíduo. Enquanto o ego conta com a luz
brilhante da racionalidade, a imaginação escurece a luz, iniciando uma
perda da certeza da qual a perspectiva egoica depende (Schenk, 2011,
comunicação pessoal). À medida que a consciência egoica começa a
cuidar das muitas mortes chegando incessantemente pelo processo
imaginal, o modo heroico do ser cede a um ego imaginal caracterizado
por uma sensibilidade metafórica interna onde a morte recebe um lugar
em meio à vida e dentro dela.
Hillman (1979a) sugeriu que o sonho é apresentado como um fenômeno
homeopático, “onde a cura é a doença, a convalescência é uma ferida
mais profunda, e o recém-nascido é morte” (p. 82). A imagem tem tudo
que é necessário; abstrações simbólicas ou compensações do mundo
desperto não são necessárias. Cada sonho apresenta a narrativa inteira:
tensão, telos, e tratamento dentro dos dados sensoriais da imagem. Essa
noção dá origem a uma posição metodológica que conduz o ego desperto
para o território do submundo onde nasceu o sonho, e onde ele mantém
sua vitalidade e riquezas.
 
Do um para os muitos
Um dos principais pontos de discórdia de Hillman em relação à obra de
Jung é o que ele interpretou como um colapso da diversidade politeísta
da psique em uma doutrina monoteísta. No seu ensaio Psicologia:
Monoteísta ou Politeísta, Hillman (1971) abordou uma afirmação de
Jung em Aion: “o estágio da anima/animus está relacionado com o
politeísmo, o Si-mesmo com o monoteísmo” (como citado em Hillman,
1971. [/ 193). Além dessa declaração, Jung (1951/1968) observouque o
trabalho com a anima/animus é um estágio que deve ser atravessado para
chegar ao trabalho mais importante envolvendo o relacionamento do
indivíduo com a totalidade. Jung escreveu:
Qualquer um que deseje realizar a difícil tarefa de compreender
algo não apenas intelectualmente, mas também de acordo com seu
valor-sentimento, deve, para o que der e vier, defrontar-se com o
problema da anima/animus para abrir um caminho para uma união
superior, uma conjunctio oppositorum. Esse é o pré-requisito
indispensável para a totalidade.
(p. 31)
 
Aqui a totalidade é usada como sinônimo do arquétipo que Jung chamou
de Self (Si-mesmo). A descrição de Jung claramente estabelece uma
hierarquia psíquica. Seu trabalho em Aion estabelece um esquema ou
sistema, frequentemente usado na literatura secundária da psicologia
junguiana, onde o Si-mesmo subordina e aglutina todas as outras todas as
outras tendências arquetípicas. Como resultado, a teoria junguiana
prioriza um relacionamento com o Si-mesmo, ou eixo ego-Si-mesmo
(Edinger, 1992), mais do que a dinâmica relacional com as figuras
multivalentes da psique. Essas figuras tornam-se “problemas” a servem
vencidos no caminho rumo ao Si-mesmo como uma imagem de deus e
arquétipo da totalidade e do equilíbrio. Hillman (1971) observou que a
ordenação hierárquica da psique feita por Jung reflete uma fantasia
evolucionária de progresso linear, popular na academia do século
dezenove e do início do século vinte: assim como “anima/animus é um
pré-estágio do Si-mesmo, do mesmo modo o politeísmo é um pré-estágio
do monoteísmo” (p. 193). Essa é uma fantasia que surge de uma cultura
imperialista dominante, onde o politeísmo e o animismo são
considerados sistemas de crença primitivos e até mesmo infantis, muito
menos desenvolvidos do que o monoteísmo transcendental, isto é, as
religiões abraâmicas. Ao imaginar a psique através do monoteísmo do
Si-mesmo, a psicologia junguiana alinha-se com culturalmente frequente
privilégio da transcendência sobre a imanência, do um sobre os muitos, e
do espírito sobre a alma.
Hillman (1971) argumentou que o fator dominante arquetípico presente,
mas oculto, na noção do Si-mesmo é o velho sábio ou senex. Com o Si-
mesmo como peça central, a psicologia junguiana torna-se psicologia do
senex e assim cai em fantasias de ordem e abstração. O senex como
Kronos consome o panteão dos deuses, devorando seus filhos para
manter seu poder superior.
O status executivo fornecido ao Si-mesmo é antitético à psicologia
arquetípica por vários motivos. Como Hillman (1971) observou, “uma
primazia do Si-mesmo implica que a compreensão dos complexos no
nível diferenciado, anteriormente formulada como um panteão
politeísta... é menos significativa para o homem moderno do que esse Si-
mesmo do monoteísmo.” (p. 193). Quando os complexos nos seus
respectivos núcleos arquetípicos são considerados como secundários em
relação ao princípio da totalidade e integração, os personagens diversos
e dinâmicos da psique, os Deuses, com suas qualidades diferenciadas,
afetos, bênçãos e maldições tornam-se menos acessíveis à imaginação –
ocultos sob o tacão do Si-mesmo monoteísta. De tal modo, a psique é
efetivamente reduzida ao ego e Si-mesmo, os Deuses são efetivamente
reduzidos a doenças e, dentro da maioria das linhas psicológicas, as
doenças são efetivamente reduzidas a algo a ser retificado pela
modificação de comportamento ou análise. Os Deuses desaparecem e
levam consigo suas bênçãos de insight, a prolificidade das imagens e a
oportunidade para relacionamentos formadores de alma (soul-making).
Hillman (1971) argumentou: “Até que sigamos Jung no exame da
diferenciação da totalidade com o mesmo cuidado que ele aplicou à
integração da totalidade, nossa psicologia não satisfaz a necessidade da
psique de compreensão arquetípica dos seus problemas” (p. 207). A
tarefa central da abordagem arquetípica à psicoterapia é revigorar o
relacionamento com as múltiplas figuras da psique como seres
independentes que exigem ser abordados “de acordo com seu próprio
princípio, dando a cada Deus o que lhe é devido naquela porção da
consciência, aquele sintoma, complexo, fantasia que pede um fundo
arquetípico” (Hillman, 1971, p. 197). Isso exige que o terapeuta tenha
uma aguda compreensão da constelação de qualidades contida por cada
dominante arquetípico. Tal compreensão envolve primariamente uma
relativa fluência em mitologia – um tópico que abordaremos
detalhadamente no Capítulo 3.
Ao suspender a noção amorfa de Si-mesmo, o indivíduo é levado a uma
relação direta com a multiplicidade inerente da psique. Cada propensão
arquetípica contém sua própria ordem, equilíbrio, excesso, intensidade e
sombra. E ao relacionar as qualidades particulares apresentadas na
especificidade da imagem, o praticante segue de perto os movimentos da
psique e trabalha para aprimorar a “especificação das qualidades
descritivas [da imagem] e [suas] metáforas implícitas” (Vannoy-Adams,
2008, p. 111).
Em vez de um eixo ego-Si-mesmo, um psicólogo arquetípico pode
imaginar uma multiplicidades de eixos, ou uma ““relativização” do ego
pela imaginação” (Vannoy-Adams, 2008, p. 113). Esse movimento
envolve uma perspectiva policêntrica. O ego é formado por uma
variedade de diferentes propensões arquetípicas, e a organização dos
fenômenos psicológicos correspondentes é imaginada não como uma
mediação pelo Si-mesmo, de acordo com Hillman (1997), mas pelo
“código da alma” – uma noção que explora o conceito platônico que
imagina um daimon, ou ser intermediário, que está inextricavelmente
envolvido com o destino do indivíduo e o desenvolvimento do seu
caráter total.
Clinicamente, esse afastamento das estruturas amorfas e reificadas da
psique permitem um elemento de surpresa, espontaneidade e preservação
do que é único no consultório. Contudo, essa recusa a reificar, estruturar
e sistematizar a anatomia da psique pode deixar os praticantes com um
sentimento de falta de chão. Conceitos e estruturas aliviam a ansiedade
inerente ao misterioso processo de confrontar a psique. No lugar da
abstração conceitual, a psicoterapia arquetípica oferece uma
metodologia que facilita descobrir a base única de cada particularidade
concreta, que cada imagem fornece, limitando assim o efeito
entorpecente causado pelas formulações teóricas. Berry (2008)
descreveu seu método da seguinte maneira:
 
É melhor trabalhar a partir do evento até a ideia, e não o contrário:
1) comece com o evento vivo, isto é, a imagem; 2) concentre-se na
imagem/evento, sentindo-o; 3) preste atenção nos elementos de
ressonância que começarem a se formar a partir do evento...
Eventualmente, as ideias vão brotar desses elementos.
(p. 329)
 
Alma e espírito
A batalha assumida pela psicologia arquetípica em defesa dos muitos
contra o domínio pelo um é reiniciada na distinção de alma/espírito de
Hillman. Embora a psicologia junguiana seja uma expressão da alma, há
uma forte propensão de perder de vista a alma em favor ao espírito,
confundindo a psicoterapia com disciplina espiritual e permitindo que a
agenda do espírito domine as necessidades da alma.
Hillman (2005) descreveu o espírito como pertencendo a experiências
de pico, transcendência, ar e alturas montanhosas – a partir das quais
tudo parece unificado. O espírito tem uma natureza próxima com Apolo,
“de visão aguçada”, o deus da luz e da previsão racional, um deus da
pureza, deliberação e disciplina, gêmeo de Ártemis, a caçadora virgem.
O espírito, na sua fantasia de voo, transcendência e experiência de pico,
é também intimamente conectado às dinâmicas do puer aeternus, o
jovem eterno encarnado nas nossas mitologias como os voadores Ícaro,
Faetonte e Peter Pan. Hillman descreveu o puer como “narcisista,
inspirado, efeminado, fálico, inquisitivo, inventivo, pensativo, passivo,
fogoso e caprichoso” (p. 50). O puer é o fogo consumidor do espírito –
alimentando o Pothos, ou anseio insaciável, inerente a qualquer
disciplina espiritual.
A distinção de alma/espírito de Hillman coloca a alma no profundo valeabaixo da alta montanha do espírito (Hillman, 1975a). No vale há
multiplicidade, diversidade, relacionamento, particularidade,
obscuridade, neblina e nevoeiro – muitas coisas são ocultadas,
bloqueadas da visão. Há imediatez, umidade; é onde as coisas ficam
confusas; onde moram as ninfas, fadas, duendes, ancestrais e gnomos, os
inúmeros personagens da imaginação – um cortejo de vozes e opiniões
(Hillman, 2005). Aqui encontramos a fertilidade, pluralidade e umidade
– exemplificados na amarga umidade das lágrimas. No vale da alma há
espaço para conter as muitas experiências repudiadas pelo espírito.
A alma é fenomenologia, a realidade da experiência. Ao caminharmos
por esse vale, encontrando eventos que podem ser digeridos em
experiências corporificadas (Hillman, 1975a), caindo no lodo e lama,
convivendo com a multidão de personagens, desafios e bênçãos
consteladas nesses relacionamentos, temos a oportunidade de fazer alma.
Aqui a psicologia arquetípica segue a declaração de John Keats
(18992001), “Se preferir, chame o mundo de “o Vale da Formação da
Alma” [the vale of Soul-making]. Então descobrirá para que serve o
mundo” (p. 369). A alma não é um item estático, mas uma maneira de
ver, um modo de estar no mundo e com o mundo. Fazer alma é modelar
criativamente os encontros com a vida.
O ideal espiritual estimula e exagera a identificação com os anseios do
espírito permeado pelo puer. Quando as propensões do puer são
literalizadas, quando a função reflexiva está ausente, a dinâmica do
indivíduo seca por falta de água psíquica – o efeito lubrificante do
como-se, o nem-apertado-demais-nem-solto-demais, como o ajuste de
uma roda de bicicleta, sem o qual ela não poderia girar (Hillman, 2005).
Quando a alma e o espírito se dividem por meio da desaprovação do
espírito pela matéria, ambos sofrem no seu isolamento. Na ruptura entre
o espírito e a matéria, as feridas da alma são forçadas no corpo como
patologia, enquanto o espírito voa atrás do seu ideal escolhido. Contudo,
como foi apontado por Hillman (2005), a noção junguiana clássica de
curar o puer dos seus elevados ideais, aterrando-o com trabalho literal,
é uma violência à natureza dessa propensão arquetípica – um assassinato
do espírito. Em vez disso, é necessário é um “casamento do puer com a
psique” (p. 85), onde o puer começa a aterrar-se no trabalho metafórico
da reflexão imaginal e em uma estética de apreciação das imagens da
psique.
 
Isso significa que a busca e a procura são uma busca e procura
psicológicas, uma aventura psicológica. Isso quer dizer que o
impulso messiânico e revolucionário conecta-se primeiro com a
alma e deve cuidar primeiro da sua redenção. Só isso humanizará
a mensagem do puer, ao mesmo tempo tornando rubra (reddening,
literalmente “avermelhando”) a alma para conectá-la com a vida.
É nesse reino da alma que os dons do puer são necessários em
primeiro lugar.
(Hillman, 2005, p. 88)
 
 
Pontos de contato: relativizando o Ego
Além das elaboradas críticas direcionadas à psicologia junguiana, a
psicologia arquetípica também aderiu ao trabalho de Jung, elaborando
uma parte significativa de sua obra. De fato, Hillman (2004) observou:
“indubitavelmente o primeiro pai imediato da psicologia arquetípica é
Carl Gustav Jung” (p. 14). Embora os pontos de contato sejam
demasiado numerosos para serem nomeados e descritos nesse estudo, há
certas características da psicologia junguiana que são centrais à teoria e
prática arquetípicas. É provável que a mais notável dessas conexões seja
o trabalho, realizado por Jung e Hillman, de revisão da subjetividade
cartesiana dissociada e interiorizada do indivíduo moderno.
 
A descoberta de uma subjetividade interiorizada
No século dezessete, Descarte construiu uma posição filosófica que teve
vastas implicações psicológicas e teológicas em todo o mundo ocidental.
Para Descartes, cada característica do mundo físico era compreensível
em termos de corpos em movimento. Em uma tentativa de agradar a
Igreja, ele propôs que Deus era a causa inicial do movimento
(Gaukroger, 2006; van den Berg, 1961): “quanto à causa geral [do
movimento], parece-me óbvio que não é outra senão o próprio Deus,
que, em sua onipotência, criou a matéria ao mesmo tempo em que o
movimento e o repouso de suas partes” (como citado em Garber, 1982,
p. 166). Jan Hendrick Van den Berg (1961) notou que o posicionamento
de Descartes de Deus no início da criação efetivamente aboliu o senso
de imanência primordial de Deus. Com Deus removido do mundo
imanente, Descartes estava livre para investigar a matéria e a
personalidade sem precisar se preocupar com questões teológicas.
Como Deus foi despachado para fora da criação, o mundo criado foi
reduzido à realidade objetiva, definida por aquilo que ocupa espaço e é
mensurável, e a realidade subjetiva por um sujeito autorreflexivo. Por
meio dessas grandes alterações na cosmologia, Deus tornou-se uma não-
presença distante e abstrata, e a proclamação de Friedrich Nietzsche
(1866/2001) de que “Deus está morto” marca o momento em que a
distância tornou-se grande demais. A transcendência virou ausência, e a
ausência se transformou em morte.
Esse movimento causou um profundo impacto sobre a consciência
humana. Paul Kugler (2005) comentou:
Antes de Descarte, a existência fundamenta-se em um Deus
transcendente, na Matéria, ou nas Formas Eternas. Mas com o
cogito ergo sum de Descartes – “penso, logo existo” – o sujeito
humano pela primeira vez colocado diretamente no centro da
metafísica ocidental e da compreensão psicológica.
(p. 67)
Descartes realizou uma surpreendente alteração cosmológica: ele
colocou o sujeito humano “no centro do nosso sistema de pensamento”
(p. 67) e pôs a alma no interior da pessoa.
 
A perda e recuperação/descoberta do imaginal
Com o estrito dualismo de sujeito/objeto, o espaço intermediário, o local
da alma desde pelo menos a cosmologia grega pré-socrática, foi
descartado – deslocado na massiva transposição de Deus e sujeito. A
cosmologia desagregou-se em um sujeito ressequido, em objetos
distintos e sem vida, e um Deus distante. Os anjos do imaginal, “os seres
que nos conectam e nos mantêm em contato com a glória e a sabedoria de
outra ordem de realidade” (Romanyshyn, 2002, p. 111) foram expulsos e
considerados desnecessários. Segundo Hillman (1975a), a psicologia
cartesiana “não deixa espaço para qualquer coisa intermediária, ambígua
e metafórica” (p. 1). Ele acrescentou: “essa é uma perspectiva restrita e
nos levou a acreditar que entidades diferentes de seres humanos que
apresentem qualidades subjetivas interiores, são meramente objetos
“antropomorfizados” ou personificados, e não realmente pessoas no
significado aceito da palavra” (p. 1).
Por volta do século dezenove o sujeito tornara-se tão interiorizado e
isolado que surgiu a necessidade essencial de trazer essa nova estrutura
do eu para uma relação com o imaginal – um restabelecimento do eu
dentro da cosmologia mítica. Antes do desenvolvimento do sujeito
interiorizado, esse relacionamento era uma parte intrínseca da identidade
humana. O indivíduo comunicava-se com os Deuses ou Deus por meio de
ritual, oração e histórias. Jung (1956/1970) comentou sobre o efeito que
essa separação teve sobre o indivíduo moderno: “Uma pessoa sem um
mito é como alguém desenraizado, sem uma verdadeira conexão com o
passado ou com a vida ancestral que continua dentro dela, u ainda com a
sociedade humana contemporânea” (p. 197). O ego isolado, arrancado
do Pleroma[2], tornou-se um sintoma que precisa de uma resposta.
Enquanto a psicologia de Freud localizava uma forma de inconsciência
que era essencialmente sexual em resposta à sexualidade descartada
pelas normas sociais da Viena vitoriana (Van den Berg, 1961), o tipo de
inconsciência localizada por Jung era mítica na sua natureza, um
“inconsciente adquirido filogeneticamente e habitado por imagens
míticas” (Jung e Shamdasani, 2009, p. 208), marcado pelo
relacionamento descartado entre o indivíduo e o imaginal.
 
O nascimento do ego imaginal
A autoexperimentaçãode Jung descrita no seu Liber Novus (também
conhecido como O Livro Vermelho) fornece uma documentação
detalhada sobre essa tentativa de reconexão com o inconsciente mítico
(Jung e Shamdasani, 2009). Através das observações registradas em seu
diário, Jung levou à esfera coletiva tanto uma antiga sensibilidade quanto
uma nova maneira de relacionar-se com o imaginal. Devido à divisão
cartesiana, que deu origem à interiorização do assunto e ao nascimento
do ego moderno, Jung foi capaz de descobrir um assunto sujeito
radicalmente novo – um ego imaginal: um senso de si mesmo distinto,
mas fluido, relativizado pelas múltiplas figuras da psique imaginal.
O ego imaginal incorpora uma nova capacidade de relacionar-se com a
imagem utilizando uma sensibilidade metafórica, em vez dos modos
racionais de experimentar a imagem que, segundo Jung, estavam
limitados à expressão artística, especulação filosófica, um modo quase
religioso “levando à heresia e à fundação de seitas”, e um desperdício
da imagem “em toda forma de licenciosidade” (como citado em Jung e
Shamdasani, 2009, p. 211). Com Jung as imagens espontâneas da psique
foram dotadas da riqueza da metáfora inesgotável. Além disso, Jung
reconheceu a importância de viver a própria vida em conexão íntima
com essa sensibilidade metafórica.
Enquanto a ciência positivista se apressava em limitar a experiência
humana aos estreitos parâmetros do que é mensurável e lógico, Jung
relativizou a mente racional como simplesmente um modo de abordar os
fenômenos. Os diálogos imaginais de Jung exerceram um papel
importante no seu processo de diferenciar modos racionais e simbólicos
de experiência. Em um importante diálogo registrado no Livro Negro de
Jung, ele escreveu essa declaração de sua alma:
“Você sabe tudo que há para saber sobre a revelação manifesta,
mas ainda não vive tudo que deve ser vivido nessa época”. O “eu”
de Jung replicou, “posso compreender e aceitar isso. Mas é
obscuro para mim o modo como esse conhecimento poderia ser
transformado em vida. Você precisa me ensinar a fazê-lo.” Sua
alma respondeu, “Não há muito que dizer sobre isso. Não é tão
racional quanto você está inclinado a pensar. O caminho é
simbólico.”
(Jung e Shamdasani, 2009, p. 211)
 
Jung (1965) eventualmente concluiu que o mais importante era fazer as
pazes com o inconsciente através de um rigoroso envolvimento com o
diálogo: “Eu vi que tanta fantasia precisar ter um chão firme por baixo, e
que preciso retornar inteiramente à realidade... Tive que tirar conclusões
concretas dos insights que o inconsciente me mostrou” (p. 188). Foi essa
tarefa central que deu origem às práticas psicológicas de Jung,
particularmente a imaginação ativa e a análise de sonho, que passaram a
formar o coração da psicoterapia imaginal.
 
Imagem como ontologicamente real
O extensivo trabalho de Jung marca o nascimento de uma epistemologia
moderna que fornece um status ontológico à imagem psíquica, não como
uma emanação literal de Deus, mas uma realidade “como se fosse” – um
modo que precisa ser abordado a partir de uma sensibilidade metafórica,
ou o que Jung chamou de pensamento simbólico. Desde a antiga filosofia
grega, a metafísica ocidental tem apresentado uma posição incerta em
relação às imagens psíquicas, preferindo as designações de imaginário,
opinião e epifenômeno em relação à noção de realidade imaginal ou
psíquica (Kugler, 2005; Hillman, 1975b; Corbin, 1972). Por sua vez, a
partir de Jung os psicólogos profundos assumiram a defesa radical do
imaginal como sendo real, e o real como imaginal (Romanyshyn, 2002).
Esse sentimento é expresso perfeitamente na declaração de Romanyshyn:
“O imaginal é o fundamento do mundo; portanto, possui prioridade
ontológica em relação ao empírico e racional” (p. 118).
Essa posição ontológica é central para a psicologia junguiana e para
psicologia arquetípica. Segundo Shamdasani, “A noção de que essas
figuras têm uma realidade psicológica por conta própria, e que não eram
apenas fragmentos subjetivos, foi a lição principal que ele atribuiu à
figura de fantasia de Elias: objetividade psíquica” (Jung e Shamdasani,
2009, p. 210). Na sua autobiografia, Jung (1965) escreveu: “Filêmon e
outras figuras das minhas fantasias me provaram que há coisas na psique
que não foram produzidas por mim, mas que se produzem sozinhas e têm
vida própria” (p. 183).
 
Uma segunda subjetividade
Com o movimento na direção de valorizar a imagem psíquica como
primária em vez de reprodutiva, a agência fornecida ao sujeito
cartesiano deslocou-se e uma segunda agência subjetiva foi descoberta
(Kugler, 2005). Kugler observou: “Na época, era uma ideia radicalmente
nova” (p. 70). Jung referiu-se a essa subjetividade superordenada como
o Self (Si-mesmo); como observado acima, Hillman prefere a noção
politeísta de um panteão de Deuses. De qualquer modo, o ego não é mais
o mestre da casa; é o sujeito imaginal transpessoal, ou sujeitos, que
forma/m o agora altamente relativizado e fluido ego. Como disse Jung
(1942/1954):
O ego está para o Si-mesmo como o movido para o motor, ou
como o objeto para o sujeito, porque os fatores determinantes que
irradiam do nosso Si-mesmo cercam o ego e são, portanto,
supraordenados a este... Não sou eu que crio a mim mesmo, em vez
disso eu aconteço a mim mesmo.
(p. 155)
 
O ego imaginal é um devoto receptivo e atento da imagem psíquica,
mantendo sua hospitalidade como um tipo de “devoção às coisas como
são... [uma] presença no momento presente que libera a imagem no
evento, desliteralizando o caráter factual do evento, e dissolvendo ideias
preconcebidas sobre o que esse momento é ou o que deve ser”
(Romanyshyn, 2002, p. 118).
Jung (1965) argumentou que o desenvolvimento do indivíduo depende de
uma subjetividade que mantém um relacionamento próximo com as
múltiplas emanações do Si-mesmo arquetípico. Hillman (1975a, 2007)
ecoa esse atributo essencial do ego imaginal na sua repetida
admoestação de que os Deuses devem ser lembrados.
É essa função relativizante (Hillman) ou compensatória (Jung) da psique
imaginal que se destaca como uma das contribuições mais importantes na
obra de Jung e Hillman. A redução por Descartes do mundo vivo a um
recurso mensurável, controlável e consumível veio com um preço
elevado. Desnecessário dizer que os desequilíbrios na psique e na
matéria são tremendos. Através da costura cada vez mais estreita entre
ego e razão, a imaginação tornou-se estranha ao ego (Hillman, 1975b). A
explicação do ego imaginal evidenciado na obra de Jung e Hillman é
tanto uma lembrança do lugar essencial anteriormente fornecido à alma
assim como um novo desenvolvimento voltado para forjar uma conexão
essencial entre o espírito do tempo e o espírito da profundidade (Jung e
Shamdasani, 2009, p. 208).
 
A questão da relevância clínica
Os vários contribuidores da psicologia arquetípica concentraram seu
trabalho no reflexo de uma nova retórica tanto para a terapia como para
a cultura. A atenção persistente na epistemologia da alma resultou em
uma série de insights em relação ao processo mercurial desse aspecto
do ser, negligenciado de modo tão frequente. Contudo, as implicações
dessas ideias ainda permanecem inexploradas e latentes na sua maior
parte. Muitos psicólogos clínicos consideram a obra de Hillman pouco
prática e até mesmo irrelevante para o trabalho que realizam com o
paciente em sofrimento. Tacey (1998) afirma que Hillman perdeu a
“realidade incorporada da vida psíquica” (p. 218) no que ele considera
uma viagem mental filosófica, invocada apenas pelo seu “efeito
retórico” (p. 2320.
Como Tacey (1998) observou, o efeito retórico é de fato central para a
psicologia arquetípica. Sendo uma psicologia enraizada na estética, a
literatura da psicologia arquetípica busca evocar aquilo que ela
descreve, remetendo-se à antiga noção grega da inseparabilidade entre a
verdade e a retórica – “a retórica qua [por meio da] retórica busca a
verdade” (Grimaldi, 1975, p. 173).
Ao contrário da crítica pouco sutil de Tacey, a psicologia arquetípica
traz uma amplacoleção de ideias evocativas com uma riqueza de
implicações vitais para o campo da psicologia clínica. Tendo como foco
a substituição da fantasia dominante de uma psicologia científica por
uma psicologia do logos da alma, a psicologia arquetípica redefiniu a
noção de terapia, deslocando o foco da cura do sintoma para o cuidado
da alma (Hillman, 1972, 1975a, 1979a; Moore, 1994), uma abordagem
enraizada em pensar psicologicamente sobre a psicologia. A psicologia
clínica, segundo Hillman (1975a), sofre de cegueira em relação a si
mesma e uma escassez de ideias. Incontáveis livros didáticos, manuais
terapêuticos e artigos em periódicos abraçam uma multidão de técnicas
para tratar doenças psicológicas, mas poucos autores dão um passo atrás
para ver as ideias, ou fantasias, que formam e determinam a aclamada
técnica. Já a psicologia arquetípica contribuiu com uma rica literatura
que efetivamente esclarece os determinantes arquetípicos a partir dos
quais a prática terapêutica emerge – um corpo de ideias que “engendram
a reflexão da alma sobre a sua natureza, estrutura e propósito” (Hillman,
1975a, p. 117).
As técnicas da psicologia clínica frequentemente são direcionadas para
amortecer o ego heroico contra os diversos constituintes da psique –
enfrentamento, adaptação, desenvolvimento, crescimento, saúde,
resolução de problemas, tudo a serviço do ego. Em contraste como o
foco monocêntrico predominante em relação à adaptação egoica, a
psicoterapia arquetípica advoga uma polifonia de terapias
correspondente à multiplicidade intrínseca da psique. Cada determinante
arquetípico é visto tanto como um estilo particular de enfermidade e um
estilo particular de método terapêutico. A elucidação dos estilos
encontrados na literatura da psicologia arquetípica pode oferecer à
psicologia clínica uma ampliação de escopo além da mera adaptação
egoica rumo a uma terapia de significância arquetípica.
Os proponentes da psicoterapia arquetípica assumem uma posição
radical contra a estrita aderência ao modelo médico da psicologia
convencional (Hillman, 1975a, 1983; Paris, 2007; Romanyshyn, 2002).
Reduzir sintomas, combater complexos e fortalecer o ego são
movimentos que se afastam de um dos principais modos da expressão da
alma: a patologização. Hillman (1975a) escreveu: “antes de qualquer
tentativa de tratar, ou mesmo compreender fenômenos patologizados, nós
os encontramos como um ato de fé, considerando-os autênticos, reais e
valiosos do jeito que são” (p. 75).
Uma abordagem arquetípica à psicoterapia se afasta da noção de cura
rumo à meta de vivificação e de ver através do sintoma e da imagem de
fantasia. A patologia é redirecionada da fantasia do tratamento para uma
fantasia da poesia e ficção – realçando a particularidade da imagem e a
sua presença metafórica. Embora sempre permanecendo próximo à
imagem, o indivíduo começa a ver através dos seus significados literais
até sua corrente subterrânea mitopoética – um desdobramento
inexaurível de metáfora e revelação.
Além de abandonar a fantasia médica, a psicologia arquetípica também
tentou afastar-se da principal fantasia de Freud que prende a psique ao
desenvolvimento infantil, assim como a fantasia de Jung do
oposicionalismo psíquico (Hillman, 1975a, 2005). Hillman postulou que
a psicanálise foi sufocada pela reificação dessas metáforas. O trabalho
de ver através da própria psicologia ajuda a despedaçar a intensa
identificação com escolas psicológicas e coloca a psique de volta no seu
território natural, que é, defende Hillman (1975a), a expressão
idiossincrásica de um cosmos politeísta. Sem o trabalho de ver através,
a psicologia “permanece em um modelo monoteísta da consciência que
deve ser unilateral nos seus julgamentos e estreito na sua visão, pois não
está ciente da riqueza e variedade das ideias psicológicas” (p. 126).
 
 
Capítulo 2
Prática imaginal
 
Começando com a imagem
De pé em uma densa floresta, a visão é obscurecida, exceto nos pontos
onde as árvores se abrem para o horizonte. A luz que chega pela clareira
revela uma certa perspectiva e lança sombras sobre outras imagens.[3]
Aqui, no espaço da visão interpretativa, nos encontramos já situados
dentro de uma perspectiva. Temos na mão definições e formulações.
Atraídos pela chamada da clareira, seguimos por um caminho, um
método de investigação que revela e oculta. A posição tomada dá lugar a
um estilo particular de interpretação enquanto cobre simultaneamente os
caminhos alternativos de investigação. Presos por hábitos, o caminho
bastante batido, nós perdemos as sombras, a surpresa de uma imaginação
sem freios.
Seguindo o argumento de Jung (1939/1954a) de que “todo processo
psíquico é uma imagem e uma “imaginação (p. 544), a psicologia
arquetípica se estabeleceu como uma psicologia que se abstém de
hábitos, começando em vez disso com a imagem; seja em sonho, fantasia,
sintoma ou evento, todos os eventos psíquicos são tratados como
imaginais, ou seja, metafóricos, expressivos de significado através da
exibição estética, e dotados de uma fecundidade de significado. Em
relação à psique em frente à imagem, a posição tomada é dentro de uma
perspectiva policêntrica, de muitos centros. Começar com a imagem é
como estar em uma floresta onde o caminho sinuoso leva através de uma
multidão de clareiras – cada uma revelando um ponto de vista e um
caminho que era até então desconhecido. A Imagem revela, e então, de
maneira mercurial, muda para um centro diferente, exibindo aspectos do
que foi oculto em uma cascata enigmática de significado. “A verdadeira
iconoclasta é a imagem” (Hillman, 1975a, p. 8), já que ela continuamente
quebra a si mesma e começa novamente.
Enquanto símbolos (falo, seio, água) são, por definição, interpretações
generalizadas, compostos da experiência coletiva, as imagens (olhar
para um imenso arranha-céu, deitar-se na grama de uma colina
arredondada, enfiar o pé em um rio gélido e caudaloso) são sempre,
como Hillman observou, “particularizadas por um contexto, humor e
cena específicos... elas são precisamente qualificadas” (Hillman, 1977,
p. 62). A precisão resulta em diferenciação, que é, de acordo com Jung,
a essência da individuação. Ler um evento pelo seu conteúdo simbólico
troca o fenômeno psicológico real, cheio de significado idiossincrásico
e altamente diferenciado, por uma abstração reificada removida da
psique onde foi criada. Interpretações se transformam em doutrinação,
conduzindo o indivíduo um pensamento alinhado com a hermenêutica de
sua preferência. Não há surpresas, apenas nomes apodrecidos.
Seguindo Jung, Hillman (2004) reconheceu a imagem como o dado
primário da psique, a “fantasia governante por meio da qual a
consciência é possível para começar” (p. 24). Hillman argumentou que a
criação de imagens, poésis, é “a atividade autogeradora da própria
alma” (p. 18). A alma continuamente tece imagens na fantasia e sonho, e
essas imagens mitopoéticas, segundo Hillman (1972), formam a base
fundamental da experiência humana – uma noção que pode ser ligada à
alegação de Aristóteles de que pensamento sempre está associado a uma
imagem.
Tomemos como exemplo o toque de um despertador em uma manhã
particularmente sonolenta. O som toma forma no campo da consciência
do indivíduo, e assim que ele é registrado encontra sua expressão como
sonho. Meu próprio despertador, que é uma gravação do toque de um
campanário, se expressou em um sonho como o sino da escola
dispensando-me da aula da oitava série, assim como sinos de igreja
soando ao longe. Essa propensão para a formação de imagens é
onipresente.
Um segundo exemplo ocorreu na política. Em 13 de julho de 2012, o
Presidente Barack Obama fez a seguinte observação em um evento de
campanha em Roanoke, Virginia:
Se você teve sucesso, foi devido à ajuda de alguém no passado.
Em algum momento de sua vida você conheceu um bom professor.
Alguém ajudou a criar esse inacreditável sistema americano que
possuímos e que permitiu a sua prosperidade. Alguém investiu em
estradas e pontes. Se você hoje tem um negócio – você não
conseguiuisso sozinho. Mais alguém fez com que isso acontecesse.
Posteriormente, a mídia, particularmente os canais jornalísticos
conservadores como a Fox News, explodiram com respostas a uma
frase, “você não conseguiu isso sozinho”. Arrancada do seu contexto de
apresentação, a frase tornou-se imagem e foi costurada no mito
republicado do individualismo e livre empreendimento. Aprofundando a
imagem, descobrimos uma narrativa completa baseada em uma fantasia
literalizada que foi inculcada nas pessoas através da mídia e retórica de
campanha, um complexo coletivo cheio de afeto, defesas
psicologicamente primitivas e um tipo de obstinação ideológica que
ajudou a conduzir os Estados Unidos a um impasse político e uma série
de crises sociais, econômicas e religiosas: desemprego galopante, uma
recessão devastadora, pessoas perdendo suas casas, guerra religiosa,
crimes de ódio e assim por diante.
Todos nós estamos sujeitos a sermos capturados por essas imagens,
sujeitas a perspectivas monocêntricas e ações tacanhas. Contudo, uma
vez que a imagem tenha sido libertada da crosta rígida do literalismo,
ele se revela como carregada em termos de perspectiva, metáfora e
afeto, e determinada – na verdade supradeterminada – por psicodinâmica
pessoal, construções sociais e padrões arquetípicos. Para melhor ou
pior, essa criação de imagens é um fenômeno constante – informações
sensoriais, emoções, pensamentos, tudo surge e retorno de uma matriz
imaginal subjacente. Simplesmente não podemos experimentar fora da
nossa capacidade de criação de imagem situada cultural-historicamente.
Contudo, segundo Jung, podemos desenvolver certa flexibilidade
psicológica em relação com esses complexos culturais “reconciliando o
espírito do tempo com o espírito das profundezas (Jung e Shamdasani,
2009, p. 208), alimentando diálogo entre a imaginação mitopoética,
nossa história coletiva e a visão mais estreita da consciência do ego.
A preocupação central da vida de Jung (1921/1971) foi explicar a
fenomenologia dessa matriz mitopoética, chamada por ele de esse in
anima, uma realidade psíquica que existe como um espaço mediador
entre o físico, esse in re, e o intelectual, esse in intellectu. Segundo
Jung: “só através da atividade vital específica da psique é que a
impressão sensorial adquire aquela intensidade, e a ideia, aquela força
efetiva, que são os dois elementos indispensáveis da realidade viva” (p.
52). A imagem oferece intensidade e força efetiva. Em outras palavras, a
imagem evoca o estímulo emocional que liga cada um de nós à vida.
Segundo Berry (1984), essa terceira posição da imaginação, localizada
como uma força mediadora entre a ideia e a matéria, é um lugar de
atividade criativa, uma realização estética, que “cria a realidade todos
os dias” (Jung, 1921/1971, p. 52). Berry (1984) escreveu:
Como esse in anima é um ponto intermediário entre o subjetivo e o
objetivo, imaginativo e material, interno e externo, fantasia e
realidade, compartilha algo da natureza de cada um deles, mas de
uma nova forma não-literal, que Jung chama de “imagens”. As
imagens são os veículos da realidade psicológica.
(p. 124)
Da posição intermediária da imagem, as distinções entre interno e
externo se tornam irrelevantes. A imagem transcende, ou antes, dissolve
as limitações das fronteiras cartesianas. A imagem, como a emoção, está
sempre relacionada com a experiência interna e externa. A psicanálise
contemporânea descreveu esse espaço de mediação como a natureza
intersubjetiva da psique – estamos sempre em uma experiência
relacional (Stolorow, Brandchaft, e Atwood, 1987). Mesmo uma
experiência de isolamento e solidão faz parte de um relacionamento (R.
D. Solorow, comunicação pessoal, 18 de maio de 2012).
Imagem e afeto
Muito embora os fenômenos imaginais e afetivos tenham valor por conta
própria, o método terapêutico geralmente favorece sentimentos enquanto
negligencia o imaginal, o que Hillman (2004) considera que
eventualmente resulta em fortalecer a posição habitual do ego: “A
unicidade intensificada trazida pelas emoções, seu efeito monocêntrico e
limitador sobre a consciência, fornece suporte para a tendência já
monoteísta do ego de apropriar-se e identificar-se com suas
experiências” (p. 59). Desconsiderar a camada imaginal da própria
experiência emocional tende a causar uma identificação inflexível com o
sentimento como a totalidade da experiência, em vez de ser apenas uma
face de um fenômeno complexo. O sentimento é tratado como literal e
inequívoco. O “eu” em “eu estou triste”, ou “eu estou zangado”, é um
“eu” inchado, um “eu” que devorou todas as outras figuras imaginais
presentes na emoção, resultando em uma imaginação indiferenciada e um
ego sobrecarregado.
Como uma psicologia polivalente e fenomenológica, a psicoterapia
arquetípica está interessada nas múltiplas faces de uma experiência
assim como na particularidade de cada face. Descritores como raiva,
tristeza, medo e alegria são amplos e gerais – palavras mortas que pouco
fazem para diferenciar a própria experiência. Uma imagem, como já
observei, é sempre particular. Quando a raiva é qualificada por uma
imagem, o indivíduo ganha uma riqueza de material para se trabalhar.
Por exemplo, um paciente notou que esta zangado. Ele passou a
descrever como quando caminhava através de uma rica vizinhança e via
um carro importado sentia vontade de quebrar a janela ou furar os pneus.
A sua raiva era qualificada pela destruição, ou antes, a destruição é a
raiva: uma raiva-de-quebrar-janelas-e-furar-pneus. Um movimento
terapêutico subsequente poderia explorar essa imagem como metáfora.
Ao rastrear a inter-relação da imagem, é possível extrapolar que ele
passa rapidamente da raiva para a inveja até a destruição de material
valioso. Poder-se-ia seguir o caminho onde a imagem oferece uma
revelação da resposta do paciente à sua situação socioeconômica. Sua
raiva é, ao menos parcialmente, uma resposta à sua posição em uma
hierarquia econômica onde ele está separado da prosperidade por uma
barreira transparente, provocado pela riqueza do outro lado. De que
outras maneiras a sua raiva esmaga e corta aquilo que tem valor?
Relacionamentos íntimos? Sucessos pessoais? Memórias familiares?
Como essas experiências deixam ele com pneus vazios, janelas
quebradas e punhos sangrando? Poderíamos pensar nessa dinâmica em
termos da transferência. De que maneiras ele poderia destruir o valor
alimentado durante o tratamento, ou como ele poderia quebrar a janela
de vidro da neutralidade entre ele e eu para nos trazer ao mesmo nível –
quebrados, irados, destruídos?
A imagem de quebrar vidro e cortar pneus chegou lado a lado, alimentou
e ajudou a diferenciar a imagem já sempre presente da apresentação.
Esse paciente já estava revelando imagens da sua raiva com gesto, tom,
respiração e cadência. Enquanto a técnica psicanalítica cuida da
apresentação como um material derivativo, interpretando essas
expressões como apontadores para uma imagem central – transferência, a
psicologia arquetípica vira essa noção de ponta-cabeça, discutindo que o
gesto, tom, respiração e cadência são a imagem central, são a
transferência. A apresentação é significado.
A resposta incorporada nesse tipo de terapia imaginal é uma ação
psicológica que está por baixo do literalismo e dos atos destrutivos que
se originam do literalismo. A janela do carro importado torna-se uma
janela imaginal através da qual o paciente tem a oportunidade de
capturar pedaços da alma-no-mundo. A caminhada enraivecida pela
vizinhança rica é transmutada em um lugar onde a psique está na
superfície, e significado e materialidade se encontram.
Um sonho:
Eu estava sozinho diante da porta de um elevador. Um grupo de
sujeitos mal-encarados se aproximou de mim. Um deles tinha
três dardos na sua mão. Ele me mostrou a parte traseira dos
dardos, a cauda – uma parte do dardo que estabiliza sua
trajetória. Ele me desafiou a lutar com ele com os dardos.
Apavorado com a situação, me recusei. Ele continuou a me
pressionar, e eventualmente peguei os dardos. Enquanto estava

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