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PSICOLOGIA ARQUETÍPICA O legado clínico de James Hillman Jason A. Butler Aos meus três pais: Gary – pai de sangue Bruce – pai da carne James – pai do pensamento Sumário Agradecimentos 1 Introdução 2 Prática imaginal 3 Psicodinâmica arquetípica 4 Palavra e imagem 5 Sensibilidade estética 6 Reflexões e anulação (“undoing”) Índice Agradecimentos Esse livro seria comparativamente parco se não fosse pelas muitas conversas com meus queridos amigos. Dr. Evan Miller foi indispensável para acender o fogo, acrescentar combustível e provocar a chama, sempre me incitando a enfrentar “tópicos de duas pontas”. Bryce Way me ensinou o que significa sentir uma ideia e assumir o risco de viver esse sentimento. Vida Violeta, por todas as longas caminhadas errantes por cemitérios, florestas e jardins, pelo amor que mostrou pelos meus sonhos, e por seu espírito feérico, obrigado. Ao meu irmão e minha irmã, Shanna Butler e Chase Desso, seu apoio me ensinou o que significa ser uma família, um dom de valor inimaginável. Tenho uma dívida especial de gratidão com dois mentores muito importantes, Dr. Robert Romanyshyn e Dr. Michael Sipiora. Vocês me deram o dom da iniciação na tradição, me apresentando a um elenco de personagens e ideias que foram generosos e provocantes. Por último, gostaria de agradecer o Dr. Safron Rossi e os arquivos OPUS pelo grande esforço realizado para preservar e elaborar a obra de James Hillman. O tempo gasto pesquisando no material arquivado foi uma aventura cheia de tesouros. Capítulo 1 Introdução Uma das metas principais da psicologia arquetípica tem sido “desfazer a mochila” da psicologia – fazendo uso intenso de uma postura metodológica da via negativa, ou descrição pela negação, e desconstrução. Essa posição resultou em ampla coleção de críticas que, embora fossem controversas ou mesmo heréticas, causaram um impacto significativo no campo da psicologia. Contudo, é importante notar que essa abordagem desconstrutiva é uma fantasia entre muitas. Um movimento que busque ver o que está por trás dessa metodologia invoca um encontro imediato com a influência desmembradora de Dioniso, um deus intimamente associado com a revitalização pela desordem. É a presença dionisíaca que facilita a re-visão (re-visioning) e despedaçamento da teoria e prática estagnadas, violentamente fixadas e dogmáticas. Através do trabalho da psicologia arquetípica, Dioniso foi apresentado como um parceiro dialético para a abominável unilateralidade da psicologia como ciência natural apolínea. Por mais necessária que essa desconstrução tenha sido, o próprio James Hillman (2005) observou que toda imagem arquetípica tem seu próprio excesso e intensidade. Sem um elemento explicitamente construtivo, as implicações clínicas da psicologia arquetípica permanecerão subaproveitadas. Os vários teóricos que contribuíram para o campo da psicologia arquetípica ainda não produziram uma obra que sintetize de modo eficaz uma abordagem arquetípica à psicoterapia (Hillman, 2004). Fiel ao seu formato dionisíaco, pedaços desmembrados do método terapêutico estão espalhados por toda a literatura (Berry, 1982, 1984. 2008; Guggenbühl- Craig, 1971; Hartman, 1980; Hillman, 1972, 1975a, 1977a, 1978, 1979a, 1979b, 1980; Newman, 1980; Schenk, 2001; Watkins, 1981, 1984). Este estudo é uma tentativa de coletar as peças distintas do método arquetípico e entretecê-las com sonhos, imagens de fantasia e vinhetas clínicas no esforço de representar o estilo específico usado pela psicoterapia arquetípica. Ainda que respeitemos a importância da desconstrução e da via negativa, o objetivo desse texto é re-construir e descrever claramente a contribuição exclusiva da psicologia arquetípica para a prática terapêutica. Através da coleta cuidadosa das notas individuais sobre o método terapêutico e a mobilização de uma imaginação ativa a partir dos textos de Hillman, ou, mais precisamente, Hillman como uma imagem, esse estudo não só pretende delinear uma abordagem arquetípica à psicoterapia como também amplificar abordagens existentes para obter uma compreensão mais lúcida da relevância terapêutica da psicologia arquetípica. No texto dou muito pouca atenção às veementes falácias de espantalho de Hillman contra a psicoterapia que, como foi apontado por David Tacey (1998), são contaminadas por suas projeções. Em vez disso, minha atenção concentra-se na importância terapêutica integrada na obra de Hillman, particularmente do seu trabalho com a imagem. Embora meu envolvimento com a obra de Hillman tenha sido central para esse estudo, é essencial reconhecer os estilos polimorfos da psicoterapia arquetípica que foram desenvolvidos por Lopez-Pedraza (1977), Berry (1982, 1984), Watkins (1981, 1984, 1986), Hartman (1980), Newman (1980), Schenk (1989), Coppin (1996), Bleakley (1995) e Giegerich (1998), entre outros. A psicoterapia arquetípica será definida de modo geral como uma teoria e práxis da psicologia profunda cujo objetivo é: “a) uma representação precisa da imagem; b) ficar com a imagem enquanto ela é ouvida metaforicamente; c) descobrir a necessidade dentro da imagem; d) vivenciar a insondável riqueza analógica da imagem” (Hillman, 1977a, p. 82). Seguindo a compreensão de C. G. Jung (1929/1968) da imagem como psique, Hillman (2004) definiu essa característica básica da psicologia arquetípica como “a própria psique na sua visibilidade imaginativa; como um datum primário, a imagem é irredutível” (p. 18) Edward Casey (1974) qualificou ainda mais a noção da imagem na sua bem recebida declaração de que uma imagem não é definida por um tipo particular de conteúdo, isto é, uma forma pictórica, mas sim pela maneira como o indivíduo vê, ou seja, uma perspectiva imaginal. A ênfase central permitida para a imagem dentro da psicologia arquetípica qualifica a tradição como uma psicologia imaginal, o que significa “um estudo da psique... desenvolvido a partir da natureza e realidade da sua experiência, que é compreendida aqui como sendo imagens” (Watkins, 1984, p. 102). Introdução à psicologia arquetípica James Hillman (12 de abril de 1926 – 27 de outubro, 2011), força iniciadora e voz sustentadora da psicologia arquetípica, era um autor prolífico e talentoso, assim como provavelmente o mais influente teorista junguiano desde Jung. Suas ideias eram provocantes e desde o início da sua carreira constelaram reações altamente polarizadas na comunidade psicológica. Enquanto seu trabalho, desenvolvido durante mais de 50 anos, cobre uma ampla variedade de tópicos e contém uma série de movimentos diferentes e até contraditórios (ver Tacey, 1998), a obra de Hillman nunca se afasta do seu foco primário: a vivificação e elucidação de uma psicologia enraizada na imaginação arquetípica. Depois de obter seu diploma de Literatura Inglesa na Sorbonne em Paris e um segundo diploma de Ciência Mental e Moral no Trinity College em Dublin, Hillman seguiu para Zurique, onde foi treinado no Instituto Jung, fundado há apenas cinco anos. Em março de 1953, Hillman iniciou sua análise de formação com Carl Alfred Meier, uma das figuras mais centrais dos primeiros dias do instituto e um analisando de Jung. Durante sua formação no Instituto Jung, não levou muito tempo para que a natureza provocadora de Hillman se tornasse conhecida. Hillman rapidamente deu início ao seu confronto com ideias junguianas ortodoxas, algumas das quais ele desenvolveria durante toda a sua carreira, e outras que ele rejeitaria veementemente. Como o primeiro diretor de Estudos no Instituto Jung de Zurique, dedicado a iniciar um “processo de regeneração e renovação” (como citado em Russell, 2013, p. 455), Hillman também começou a confrontar uma geração mais velha de analistas e suas ideias previamente estabelecidas na direção do instituto. Hillman foi tomado pelo espírito do novo, pego na tensa dialética entre o velho e o jovem, senex e puer – um pareamento arquetípico que investigou e viveu durante boa parte da sua carreira. Enquanto completava a porção clínica da sua formaçãoanalítica, Hillman reuniu-se regularmente com um grupo de estudantes e um supervisor experimente para apresentar e criticar material de caso. Como descreveu na sua biografia, ele achava o processo inteiro desagradável, notando que “todos estão falando sobre alguém que não está lá, é tudo fantasia” (Russell, 2013, p. 421). Ele decidiu confiar no seu instinto, perguntando a um dos seus pacientes, assim como ao supervisor liderando o grupo, se o paciente podia sentar-se na reunião e falar por si mesmo sobre seu próprio processo psicológico. Embora o paciente tenha concordado, o supervisou negou o pedido de Hillman, considerando-o “radical demais” (p. 421), uma condenação que seria frequentemente usada em resposta à obra de Hillman. Fiel ao seu signo astrológico de Áries, Hillman apresentava uma natureza marcial, confiando na sua raiva como “seu demônio favorito” (Hillman, 1991, p. 147), a obra de Hillman era incitada “quando alguma coisa sentia-se ofendida”. Essas áreas de insulto, que nos primeiros dias da sua carreira estavam principalmente relacionados às interpretações vigentes do fenômeno do puer, eram sementes para a longa carreira de Hillman de diferenciar seu pensamento daqueles da escola junguiana clássica. Ao contrário de muitos estudantes em Zurique que caíram em um relacionamento sem questionamentos com a teoria junguiana, Hillman manteve um senso de pensamento crítico que lhe permitiu usar um ângulo diferente. Hillman resistiu à transformação em um devoto zeloso de Jung, chamando a influência de Jung de síndrome, “um tipo de projeção mágica” (p. 426). Hillman observou: “eu estava tão dentro do mundo junguiano, mas ao mesmo tempo algo em mim se protegia dele”. (p. 426). Ele se agarrou ao que considerava valioso no fenômeno do puer, protegendo sua própria experiência vivenciada desse arquétipo das interpretações redutivas que estava encontrando no Instituto. Naquela época Marie-Louise Von Franz estava oferecendo uma série de palestras sobre a patologia do puer. Seguindo Jung, ela enfatizou a relação entre o puer e a mãe e colocou uma grande ênfase na descida, uma cura terrena para o puer, e ocasionalmente enviava seus jovens pacientes para fazendas onde poderiam sujar seus sapatos, um aterramento desse espírito jovem. Hillman considerava esse movimento terrivelmente literal e em vez disso trabalhou para desliteralizar a terra, “para ver através dela, voltando-se para a psique, em vez de ter a psique transformada em terra” (como citado em Russell, 2013, p. 429). No início dos anos 60, Hillman tornara-se amigo íntimo de Adolf Guggenbühl-Craig, que, como Hillman, apreciava paradoxos e virar ideias consagradas de ponta-cabeça. Uma das suas contribuições mais notáveis nesse sentido veio de um texto que apresentou durante um circuito de palestras nos Estados Unidos com Hillman. O texto, chamado “Juventude e Individualidade”, desafiava a noção junguiana clássica de que o processo de individuação começa apenas depois que a pessoa chegou à meia-idade, argumentando que a adolescência introduz muitas características importantes da individuação psicológica (Russell, 2013). Recordando esse importante período, Hillman comentou, “a ideia era que estávamos tentando derrubar a geração mais velha” (p. 495). Apesar dos muitos movimentos feitos por Hillman para diferenciar esse pensamento da velha guarda, ou “junguianos de segunda geração” (Goldenberg, 1975), ele se apegou à noção de fidelidade à tradição. Ele descreve sua posição claramente em uma carta de 1965: Faço parte de muitas coisas: minha árvore familiar, os locais onde fui ensinado, a escola de psicologia da qual sou membro, o país onde nasci. A doutrina faz parte da minha medula. Eu trabalho dentro de uma doutrina, me esforço diariamente para sair, para combatê-la, para alterá-la, para quebrá-la. Mas pelo lado de dentro. (como citado em Russell, 2013) Foi durante esse acalorado debate com a ortodoxia junguiana que Hillman iniciou sua exploração formal da tensão puer-senex a convite da conferência Eranos de 1967. Respondendo à sua percepção de que a psicologia junguiana era dominada pelo senex negativo e o “culto do antigo” (Russell, 2013, p. 590), Hillman procurou redimir o puer da sua associação tradicional com a mãe, enfatizando em vez disso o papel arquetípico na relativização do senex negativo – a força opressiva do velho sábio. Além disso, Hillman desejava demonstrar o modo como o senex e o puer são necessários um para o outro, permanecendo como dois extremos de uma polaridade que é paradoxalmente uma “união de iguais” (Hillman, 2005, p. 58). Seus esforços para proteger a “úmida faísca” (Hillman, 2005, p. 54) do puer, para contrabalançar a velha guarda dentro da sua tradição psicológica, logo o levariam a anunciar uma diferenciação distinta da psicologia junguiana ortodoxa, iniciando um novo movimento que ele chamou de psicologia arquetípica. O primeiro uso do título psicologia arquetípica por Hillman ocorreu em um ensaio intitulado “Por que Psicologia Arquetípica?”, publicado pela primeira vez em 1970. Ali ele traçou um número de motivos para adotar um título que não “junguiano”, “analítico” ou “psicologia complexa”. Hillman notou a necessidade de diferenciar-se de Carl Jung, o homem, deixando a posse do nome para a família Jung. Ele também enfatizou o modo como o adjetivo “arquetípico” “fornece à psique uma chance de sair do consultório” e “fornece uma perspectiva arquetípica para o próprio consultório” (Hillman, 1975b, p. 142). Enquanto a psicologia analítica e complexa constela associações com uma psicologia do indivíduo, a psicologia arquetípica amplia o escopo para abarcar a dimensão da cultura, história e a “pluralidade das formas arquetípicas” (p. 143), uma psicologia politeísta. Por toda a sua carreira, Hillman usou a distinção da psicologia arquetípica para revisar, questionar, criticar e descartar muitas das principais características da psicologia de Jung e da psicanálise em geral. A posição de Hillman em relação a Jung e Sigmund Freud foi pegar as suas obras e abordá-las de tal modo a torná-las suas. Ele deu um passo para trás do trabalho literal como substantivo e psicologizou ou viu através até o verbo subjacente, como observou “o modo como o solo é semeado” (1999). Ao fazê-lo, ele assumiu o que compreendeu ser o modo de trabalho de Jung, em vez de uma aderência literal à sua obra. Especificamente, é o amor de Jung pelo incomum e idiossincrásico e seu talento para vincular esses fenômenos com sua raiz subjacente que o torna radical[1], e seguindo esse espírito, a “herança daimônica de Jung”, Hillman (1999) declarou-se um “autêntico junguiano”. Percorrendo com o olhar a obra de Hillman, torna-se claro que suas teorias nascem de uma aderência similar ao incomum e idiossincrásico. Hillman tomou a noção de Jung da individuação como diferenciação e expandiu-a em um modo de teorização assim como um modo de praticar psicologia. Essa agenda de diferença está disseminada pela obra da psicologia arquetípica. É importante observar que esse movimento também é essencial para a prática da psicoterapia arquetípica, onde o trabalho é prosseguir até a diferença, o incomum, e aprimorá-lo, seguindo o evento idiossincrásico até sua raiz arquetípica. Como Hillman (1971) observou, “pois o que é a individuação senão uma particularização da alma?” (p. 133). Descrever como a psicoterapia arquetípica é diferente da psicoterapia junguiana é uma tarefa inevitavelmente sujeita a generalizações excessivas. O processo psicoterápico está intimamente relacionado às idiossincrasias do terapeuta e do paciente, fazendo com que declarações gerais sobre as características de uma terapia “junguiana” ou “arquetípica” sejam algo intrinsecamente limitado. Contudo, diferenças nítidas podem ser descritas tomando como base as ênfases teóricas distintas dessas duas tradições altamente relacionadas. Diferenciando a psicologia junguiana e a arquetípica Hillman tem sido justificadamente criticado, principalmente por Tacey (1998), pelo seu extremismona tentativa de diferenciar-se de Jung, desqualificando o mestre enquanto exagerava implicitamente a originalidade do próprio trabalho. Um exemplo primário pode ser encontrado no trabalho posterior de Hillman (1992) enfatizando a noção neoplatônica de anima mundi. Não é preciso forçar a imaginação para perceber os paralelos entre a anima mundi de Hillman e a descrição de Jung do unus mundus (1970) e do arquétipo psicoide (1947/1970). Além disso, como foi apontado por Tacey (1998), “quarenta anos antes de Hillman, com muito menos fanfarra e bravatas, Jung há havia (re) descoberto a ideia neoplatônica da anima mundi” (p. 225). Tanto Jung quanto Hillman estavam tentando reconciliar a profunda ruptura entre o espírito e a matéria – espiritualizar a matéria e materializar o espírito, discutindo que a alma é o espaço intermediário dentro do qual essa conexão ocorre. Contudo, apesar do caráter comum de suas buscas, Hillman falsamente posiciona Jung como alguém interessado apenas na psique como interior, declarando em uma palestra não-publicada, “já para a nossa escola pós-junguiana arquetípica, a psique está mais externalizada, presente no mundo” (como citado em Tacey, 1998, p. 225). Todavia, Tacey demonstrou uma indulgência similar na retórica exagerada, acusando Hillman de uma perigosamente “incompleta compreensão de Jung”, “como se Hillman lesse Jung com um olho aberto e outro fechado” (Tacey, 2001, p. 116). Embora Tacey tenha realçado várias críticas importantes da obra de Hillman, incluindo a “apropriação conservadora e simplista da teoria junguiana” (Tacey, 1997, p. ix) no movimento mitopoético masculino de Bly, Hillman e Meade, uma pequena nota de pé de página na obra de Hillman, a generalização de Tacey (201) para toda a “vida e obra” (p. 116) de Hillman amplia a crítica muito além da razão. Por exemplo, Tacey deixa de levar em conta o modo como a obra de Hillman com a imagem forneceu profundos avanços para a noção de Jung da psique como imagem. Hillman segue as implicações dessa afirmação de modo muito mais fiel do que Jung, que oscila entre uma orientação fenomenológica e um essencialismo metafísico. Segundo o aspecto metafísico da obra de Jung, praticantes junguianos clássicos, representados por Von Franz (1996), Edinger (1992) e Neumann (1954/1995), tendem a abandonar os fenômenos psíquicos únicos em favor da abstração pela amplificação. Já a abordagem arquetípica busca manter a tensão entre os fenômenos e sua natureza essencial ou arquetípica de modo muito mais delicado. O fenômeno único recebe muito mais ênfase clínica e autoridade do que categorias teóricas e míticas. A aderência a diferença qualitativa e à particularidade estimulou os seguintes movimentos críticos importantes, que distinguem a abordagem arquetípica da teoria e prática junguianas clássicas: do arquétipo ao arquetípico, do símbolo à imagem, do inconsciente à imaginação, da compensação à complexidade de conjunções e do um aos muitos. Foi com essas torções que Hillman distanciou-se da psicologia junguiana tradicional e formou uma abordagem distinta chamada psicologia arquetípica. Assim, é importante dar atenção a cada uma dessas diferenças individualmente. Arquétipo a arquetípico A noção psicológica de arquétipo é talvez a mais importante contribuição de Jung para a psicologia e a cultura. Na obra de Jung (1964), arquétipo foi definido como tipos primordiais, imagens universais, “uma tendência a formar tais representações de um tema”, e “uma tendência instintiva” (p. 58). Baseando-se em Kant, Jung (1950/1969) observou que o próprio arquétipo é incognoscível; só a imagem arquetípica cai dentro da experiência humana. Em resposta a essa distinção, Hillman (2004) descartou o estudo do arquétipo como noumenon, ou coisa-em-si, e em vez disso concentrou sua atenção exclusivamente na experiência fenomênica. Seu argumento: “a psicologia arquetípica, diferente da junguiana, considera o arquetípico sempre fenomênico, evitando assim o idealismo kantiano implícito em Jung” (Hillman, 2004, p. 14). Como Robert Avens (1980) observou, “em vez de perguntar como o arquétipo e a imagem estão relacionados (como dois eventos distintos), começamos com a “imagem arquetípica” (p. 43). Esse movimento pode ser descrito como um deslocamento dos arquétipos como estruturas transcendentes para arquétipos como pessoas imanentes – um movimento para longe do metafísico e abstrato e rumo ao imaginal e concreto, do arquétipo como substantivo ao arquetípico como adjetivo. Ao fazê-lo, os psicólogos arquetípicos tentaram descartar a metafísica desnecessária difundida na psicologia junguiana para, em vez disso, se concentrarem em desenvolver a rica exposição da fenomenologia psicológica iniciada por Jung. Em um esforço para permanecer dentro dos parâmetros da fenomenologia psíquica – a experiência vivida da psique, Hillman (1933) apresentou o importante argumento de que os arquétipos são a priori não na sua gênese, porque isso envolveria uma crença metafísica além do alcance da experiência psicológica, mas a priori no seu valor. O valor arquetípico de uma imagem é anterior e dá forma à experiência pessoal. Ao invocar a perspectiva arquetípica, o indivíduo coloca uma experiência individual vívida dentro de uma cosmologia universal, encontrando seu lugar em relação aos Deuses. No seu uso do termo Deuses, Hillman (1975a) foi cuidadoso em distinguir a referência religiosa aos Deuses e seu uso psicológico. Especificamente, ele disse “a teologia considera os Deuses de modo literal, e nós, não” (p. 169). Ele acrescentou: Na psicologia arquetípica os Deuses são imaginados. Eles são abordados pelos métodos psicológicos da personificação, patologização e psicologização. São formulados de modo ambíguo, como metáforas para modos de experiência e como pessoas na fronteira do numinoso. São perspectivas cósmicas nas quais a alma participa. (p. 169) Ao transformar eventos em experiências através da imaginação, esse aspecto do numinoso integrado nas experiências cotidianas é revelado. Diferentemente da psicologia junguiana clássica, a psicologia arquetípica sugere que qualquer imagem pode ser justificada como arquetípica; é o modo como a imagem é tratada que facilita sua qualificação como arquetípica. Como Hillman (1977a) observou: “a imagem cresce no seu valor, torna-se mais profunda e envolvente, isso é, torna-se mais arquetípica à medida que seu modelo é elaborado” (p. 75). Imaginar uma imagem como arquetípica faz com que ela se torne mais arquetípica (Avens, 1980): Então, se concordamos que o caráter arquetípico das imagens consiste na sua polissemia (múltiplos significados) e polivalência, o adjetivo “arquetípico” deve ser tomado para apontar não a numinosidade das imagens, mas sim o valor de uma imagem, dotando-a com a mais ampla, rica e profunda significância possível. (p. 45) Por sua vez, quando qualquer fenômeno psíquico é abordado como arquetípico, ele também começa a transbordar de valor, excitando a imaginação, conjurando outras imagens do mito, evocando emoção, ganhando complexidade e profundidade poética. O seguinte exemplo pode ajudar a exemplificar essa importante distinção entre a teria junguiana e a arquetípica. Muitos analistas junguianos de formação clássica são ensinados a distinguir entre sonhos pessoais, expressando elementos do inconsciente pessoal, e grandes sonhos ou sonhos arquetípicos, expressando elementos do inconsciente coletivo. Esse privilégio hierárquico de um tipo de sonho em relação a outro e a noção de que é possível classificar um sonho como um grande sonho independente da experiência do sonhador do sonho coloca o analista em uma posição inflacionada como árbitro do significado arquetípico. Segundo a perspectiva da psicologia arquetípica, qualquer sonho pode ser um grande sonho. De fato, talvez não haja pequenos sonhos, só pequenas interpretações. Símbolo a imagem A noção de símbolo sugere uma ordem superior, um arquétipo ou númeno metafísico, fora ou além dos fenômenos apresentados – uma coisa representa algumaoutra coisa. Com uma representação simbólica o conteúdo manifesto aponta para o conteúdo latente apenas parcialmente cognoscível, como o dedo apontando para a Lua. Como disse Jung (1912/1967), símbolos funcionam como “um meio de expressão, como pontes e apontadores” (p. 330). Enquanto Jung (1912/1967) expressou um desejo de “evitar todas as asserções metafísicas” (p. 231), Hillman (1975a, 1977a) foi muito mais enfático em relação a permanecer com a experiência vivida, descartando qualquer interesse na abstração simbólica além dos fenômenos e se concentrando apenas no que pode ser vivenciado: a realidade psíquica. Na sua aderência à realidade psíquica, Hillman seguiu de perto a afirmação de Jung (1939/1954) de que a psique é imagem. Jung (1933/1960) insistia que “o que aparece para nós como realidade imediata consiste em imagens cuidadosamente processadas e... vivemos imediatamente apenas em um mundo de imagens” (p. 353). Hillman (1992) ecoa essa mesma sensibilidade na sua designação do “próprio evento como imagem” (p. 34). Além disso, Jung (1933/1960) notou: “Imagem e significado são idênticos e, à medida que a primeira toma forma, o segundo torna-se claro. Na verdade o padrão não precisa de interpretação: ele exibe seu próprio significado” (p. 201). Hillman alinhou-se com esse aspecto focado na imagem, ou fenomenológico, da obra de Jung e usou-o contra a tendência à abstração simbólica encontrada em outras partes dos escritos de Jung, e com ainda mais frequência na literatura secundária da psicologia junguiana. Embora Samuels (1985) junte a prática da psicoterapia arquetípica com a escola clássica da análise junguiana, notando que as duas escolas utilizam um método clássico-simbólico-sintético na análise, a citação que ele usa de Jung para descrever essa abordagem faz mais para mostrar a diferença entre o método clássico e arquetípico do que para criar uma ponte entre as duas escolas. Jung escreveu: É absolutamente necessário fornecer essas imagens fantásticas que emergem tão estranhas e ameaçadoras diante do olhar da mente com algum tipo de contexto para torná-las mais inteligentes. A experiência mostrou que a melhor maneira de fazer isso é por meio de material mitológico comparativo. (Jung, 193/1968, p. 33) Enquanto os praticantes junguianos clássicos enfatizam a necessidade de contextualizar a imagem fazendo conexões com “material mitológico comparativo”, a psicoterapia arquetípica demonstrou a maneira como esse tipo de ligação frequentemente serve como uma defesa intelectualizada contra a apresentação poderosamente evocativa da imagem particular (Hillman, 1977b). A natureza defensiva da amplificação é aparente no comentário de Jung. Ele notou as qualidades “estranhas” e “ameaçadoras” das imagens, dando a entender que a amplificação doma a imagem ao generalizar sua particularidade, embotando a aguda especificidade da imagem. Como Berry (1982) argumentou de modo tão convincente, a imagem já vem embutida no contexto da sua apresentação – inteligível na sua demonstração estética. A amplificação é sempre secundária em relação a atravessar a clareira e adentrar no mundo revelado pela imagem. Desse modo, a imagem e não o símbolo recebeu um papel central na psicologia arquetípica. Hillman (1977a) argumentou que, fenomenologicamente, símbolos nunca são vivenciados: “símbolos aparecem, só podem aparecer, em imagens e como imagens” (p. 650. Enquanto símbolos são sempre abstrações, imagens são sempre “particularizadas por um contexto, clima e cena específicos... elas são sempre qualificadas de modo preciso” (p. 62). O movimento do símbolo para a imagem eliminou o foco na interpretação de conteúdo latente. Com a imagem, a interpretação, no sentido de explicar o significado encontrado além dos fenômenos apresentados, não é necessária porque não é pressuposto que há algum outro material além daquele que se mostra. A imagem, como disse Hillman (1979b), não é um símbolo apontando para alguma outra coisa; em vez disso, o valor metafórico da imagem é intrínseco à apresentação da própria imagem como uma configuração precisa da psique. “[Imagens] são a própria psique na sua visibilidade imaginativa; como datum primário, a imagem é irredutível” (Hillman, 2004, p. 18). Ao trabalhar com uma imagem, o indivíduo entra no seu significado latente ao aprofundar a sua apresentação em si. A configuração dos particulares é a revelação do significado. Como Avens (1980) observou: “Imagens, no seu modo liberado, são elas mesmas personificações de significado; que elas significam o que são e são o que significam” (p. 40). O trabalho focado em imagem é, pela sua própria natureza, perturbador, porque traz consigo o desconhecido. Ler um evento pelo seu conteúdo simbólico tende a trocar essa qualidade perturbadora por uma abstração reificada. Um paciente traz um sonho de uma grande cobra negra e deixa a sessão com noções conceituais de instinto livre ou do inconsciente, a lua crescente torna-se a regeneração ou O Feminino, águas reflexivas tornam-se a função sentimento ou o afeto maternal. Como Hillman (1977b) declarou em um documento não publicado, “tratar uma imagem como um símbolo é fugir dela... Com demasiada frequência a amplificação torna-se uma medida contrafóbica contra o poder da imagem”. Do inconsciente à imaginação Hillman (1991) observou que uma das expansões mais significativa da psicologia de Jung é a maneira como utilizou o termo imaginação em vez de inconsciente. A noção de Hillman do imaginal originou-se na obra Psicologia e Alquimia de Jung (1937/1968) onde Jung define imaginação como a meta da obra alquímica. “Imaginatio”, escreve Jung, “é a evocação ativa de imagens (interiores) secundum naturam, um feito autêntico de pensamento ou ideação que... tenta capturar os fatos internos e retratá-los em imagens fiéis à sua natureza. Essa atividade é um opus, uma obra” (p. 167). De fato, Hillman faz disso o opus primário da psicologia arquetípica. Em um comentário com o intuito de explicar sua posição em relação ao uso da noção de “inconsciente”, Hillman (1991) declarou, “não que não exista inconsciência em nós o tempo todo... mas não vou usar a palavra como um substantivo abstrato para cobrir as implicações culturais que existem na [no termo] imaginação” (p. 32). Ele acrescentou: Além disso, a palavra “inconsciente” vem carregada com subjetividade e tornou-se um psicologismo. “Imaginação” conecta você imediatamente a uma tradição e a uma atividade estética. Com a linguagem. Ela se refere diretamente a imagens, que o próprio Jung dizia que eram o conteúdo principal do inconsciente. (p. 32) Com o movimento do inconsciente para a imaginação, Hillman novamente firmou sua posição sobre a diferenciação. Ao chamar o inconsciente de psicologismo, ele está apontando para a maneira como a palavra murchou até tornar-se um conceito seco, desprovido de qualquer especificidade – uma palavra morta. Como a noção tornou-se indissoluvelmente reificada, aqueles que usam o termo se esquecem de que é uma perspectiva, usando o termo como se “o inconsciente” fosse um lugar real. Seguindo a definição de Jung (1937/1968) de imaginação como o ato criativo de formação de imagens, Hillman passou de uma noção reificada para um ato operante – um ato que é indelevelmente fundamental para a realidade psíquica. Além disso, Hillman (1979a) argumentou que referências ao inconsciente trazem elementos importantes demais juntadas em uma massa indiferenciada, “coletando em um reservatório nebuloso todas as fantasias da profundidade, do mais baixo, do mais básico, do mais pesado (deprimido), e do mais sombrio” (p. 42). Em um esforço para descompactar o termo e revelar seus inúmeros conteúdos diferentes, Hillman argumentou: Enterramos no mesmo túmulo monolítico, chamado de “O Inconsciente”, o corpo vermelho e terreno do Adão primordial, o homem e a mulher comuns coletivos, e as sombras, os fantasmas e os ancestrais. Não podemos distinguir uma compulsão de uma chamada, um instinto de uma imagem, uma demanda desejosa de ummovimento da imaginação. (p. 42) Inerente ao termo inconsciente existe um viés de perspectiva voltado para a consciência egoica. As imagens apresentadas em sonhos, fantasias e complexos não fornecem indicação alguma de serem inconscientes. É só o ego da vigília que é inconsciente. Enquanto os métodos psicológicos voltados para elucidar a perspectiva do ego precisam da fantasia de uma coisa reificada chamada de inconsciente, a psicologia arquetípica, assim como a psicologia da imagem, volta-se para a história para avançar a noção de imaginação, onde “o ego” é simplesmente um entre muitos. Hillman trabalhou para enriquecer as noções psicológicas contemporâneas com conceitualizações históricas do que é chamado de inconsciente. Por exemplo, ele em várias ocasiões descreveu a prática clássica da memoria – uma técnica retórica usada para ordenar a mente onde as memórias são imaginadas como pessoas (Hillman, 1972, 1975a, 1983). Onde agora existe o inconsciente, antes tivemos as pessoas de imaginação, e memoria era a arte imaginal de diferenciar e relacionar-se com essas figuras. A obra de Aristóteles e dos neoplatônicos fala da memoria como o eco da divindade reverberando na alma da pessoa – imagem e ideia como herança divina (Hillman, 1972). Hillman observou, “como resultado, as imagens [da alma] tinham que ser consideradas realidades plenas, não meras fantasias, meras alucinações, meras projeções – nada que fosse “meramente” alguma coisa” (Hillman, 1972, p. 172). A intenção de Hillman ao reclamar a arte da memoria das criptas da história e atribuir-lhe importância como uma prática psicológica é uma parte do seu movimento de longa data para evitar as práticas e palavras mortas da psicologia contemporânea, e por sua vez, alinhar a psicologia arquetípica com uma linhagem de tradições centradas na imagem como o neoplatonismo, gnosticismo, cabalismo e alquimia. Localizar a psicologia arquetípica dentro dessas tradições permitiu acesso a uma rica variedade de ideias psicológicas que são muito mais precisas e diferenciadas fenomenologicamente do que aquelas disponíveis na psicologia contemporânea. Os psicólogos arquetípicos tentaram usar a recuperação de tradições centradas na imagem para curar a psicologia da sua dependência de conceitos reificados e excessivamente abstratos como o inconsciente. Da compensação à complexidade de conjunções A psicologia junguiana está cheia de noções de oposição: ego/sombra, anima/animus, inconsciente/consciente, introversão/extroversão, pensamento/sentimento e uma variedade de outros pares de opostos. O relacionamento entre esses polos dialéticos tem, de acordo com Jung, uma natureza compensatória: quando um aspecto se manifesta de modo intenso à mente consciente, o outro se apresenta como algum conteúdo inconsciente. Jung (1934/1966) argumentou que a compensação era particularmente relevante para a dinâmica dos sonhos. Ele escreveu: Cada processo que vai longe demais imediata e inevitavelmente evoca compensações, e sem estas não haveria um metabolismo normal ou uma psique normal. Nesse sentido podemos considerar a teoria da compensação uma lei básica do comportamento psíquico. Muito pouco de um lado resulta em demais do outro. Do mesmo modo, a relação entre consciente e inconsciente é compensatória... Quando nos preparamos para interpretar um sonho, é sempre útil perguntar: qual atitude consciente ele compensa? (p. 153) Para Hillman (1979a), a lei da compensação proposta por Jung não corresponde à fenomenologia da psique. O texto principal de Hillman sobre sonhos, Dream and the Underworld, apresenta o argumento de que a fantasia da compensação inicia um movimento para longe da imagem apresentada. A fantasia compensatória sugere que a imagem de sonho é incompleta em si mesma e precisa de uma interpretação que localiza o elemento de oposição presente nas identificações conscientes do sonhador. Esse movimento efetivamente traz o sonho para fora do submundo, um espaço imaginal que Hillman usou para descrever o terreno nativo do sonho, um reino mítico qualificado pela profundidade, ambiguidade metafórica, sombra, ocultamento e semelhança. Além disso, segundo Hillman, o posicionamento da imagem apresentada como compensação para uma atitude inconsciente inevitavelmente constela a necessidade do ego heroico de ação para retificar o desequilíbrio, e sob a influência desse dominante arquetípico, a noção de Jung (1934/1966) de enantiodromia, “a função reguladora dos opostos” (p. 72), torna-se “uma conversão literal e uma autorregulação literal” (Hillman, 1979a, p. 79). É importante notar que Hillman não se opõe à oposição em si; antes, é na localização do oposto fora da imagem apresentada. Ele argumenta: todo evento psíquico é uma identidade de pelo menos duas posições e é assim simbólica, metafórica e nunca unilateral. Ele só permanece assim se for tomado por um único lado; quando tentamos equilibrá-lo, quebramos sua harmonia oculta. (1979a, p. 80) O oposicionalismo é uma perspectiva que passa a ser necessária apenas quando o indivíduo deseja tomar parte sobre um território fora do espaço do sonho. Quando o ego desperto cruza a ponta para o mundo inferior, a percepção da oposição unilateral do sonho dissolve-se em uma complexidade de conjunções – “uma mistura ou união de “elementos” ou “substâncias” (Conjunction, 2008), a coincidentia oppositorum da alquimia. Hillman (1979a) procurou deslocar a noção de oposição de uma dialética de consciente/inconsciente para uma oposição mais absoluta: vida/morte, onde a morte é desliteralizada para significar “a autorregulação de qualquer posição pela psique, por uma percepção não literal, metafórica. Nesse sentido... conjunção e... a identidade de opostos significam a percepção simultânea pelas perspectivas da vida e morte, do natural e do psíquico” (p. 79). Não há indicação melhor da natureza relativizada do ego e das suas profundas limitações do que a experiência vivida de um sonho ou fantasia. Essas experiências psíquicas concentradas oferecem uma compreensão clara sobre a posição subordinada e marginal do ego em relação ao séquito de outros personagens psíquicos. A imaginação, como o modo central da expressão psíquica, rapidamente demonstra que o modo heroico de consciência, um estilo de consciência egoica ligado à literalidade, controle e busca da vitória, é falho e limitado em um padrão sisífico, dirigindo um esforço enorme com pouca consciência dada às repetições impotentes do indivíduo. Enquanto o ego conta com a luz brilhante da racionalidade, a imaginação escurece a luz, iniciando uma perda da certeza da qual a perspectiva egoica depende (Schenk, 2011, comunicação pessoal). À medida que a consciência egoica começa a cuidar das muitas mortes chegando incessantemente pelo processo imaginal, o modo heroico do ser cede a um ego imaginal caracterizado por uma sensibilidade metafórica interna onde a morte recebe um lugar em meio à vida e dentro dela. Hillman (1979a) sugeriu que o sonho é apresentado como um fenômeno homeopático, “onde a cura é a doença, a convalescência é uma ferida mais profunda, e o recém-nascido é morte” (p. 82). A imagem tem tudo que é necessário; abstrações simbólicas ou compensações do mundo desperto não são necessárias. Cada sonho apresenta a narrativa inteira: tensão, telos, e tratamento dentro dos dados sensoriais da imagem. Essa noção dá origem a uma posição metodológica que conduz o ego desperto para o território do submundo onde nasceu o sonho, e onde ele mantém sua vitalidade e riquezas. Do um para os muitos Um dos principais pontos de discórdia de Hillman em relação à obra de Jung é o que ele interpretou como um colapso da diversidade politeísta da psique em uma doutrina monoteísta. No seu ensaio Psicologia: Monoteísta ou Politeísta, Hillman (1971) abordou uma afirmação de Jung em Aion: “o estágio da anima/animus está relacionado com o politeísmo, o Si-mesmo com o monoteísmo” (como citado em Hillman, 1971. [/ 193). Além dessa declaração, Jung (1951/1968) observouque o trabalho com a anima/animus é um estágio que deve ser atravessado para chegar ao trabalho mais importante envolvendo o relacionamento do indivíduo com a totalidade. Jung escreveu: Qualquer um que deseje realizar a difícil tarefa de compreender algo não apenas intelectualmente, mas também de acordo com seu valor-sentimento, deve, para o que der e vier, defrontar-se com o problema da anima/animus para abrir um caminho para uma união superior, uma conjunctio oppositorum. Esse é o pré-requisito indispensável para a totalidade. (p. 31) Aqui a totalidade é usada como sinônimo do arquétipo que Jung chamou de Self (Si-mesmo). A descrição de Jung claramente estabelece uma hierarquia psíquica. Seu trabalho em Aion estabelece um esquema ou sistema, frequentemente usado na literatura secundária da psicologia junguiana, onde o Si-mesmo subordina e aglutina todas as outras todas as outras tendências arquetípicas. Como resultado, a teoria junguiana prioriza um relacionamento com o Si-mesmo, ou eixo ego-Si-mesmo (Edinger, 1992), mais do que a dinâmica relacional com as figuras multivalentes da psique. Essas figuras tornam-se “problemas” a servem vencidos no caminho rumo ao Si-mesmo como uma imagem de deus e arquétipo da totalidade e do equilíbrio. Hillman (1971) observou que a ordenação hierárquica da psique feita por Jung reflete uma fantasia evolucionária de progresso linear, popular na academia do século dezenove e do início do século vinte: assim como “anima/animus é um pré-estágio do Si-mesmo, do mesmo modo o politeísmo é um pré-estágio do monoteísmo” (p. 193). Essa é uma fantasia que surge de uma cultura imperialista dominante, onde o politeísmo e o animismo são considerados sistemas de crença primitivos e até mesmo infantis, muito menos desenvolvidos do que o monoteísmo transcendental, isto é, as religiões abraâmicas. Ao imaginar a psique através do monoteísmo do Si-mesmo, a psicologia junguiana alinha-se com culturalmente frequente privilégio da transcendência sobre a imanência, do um sobre os muitos, e do espírito sobre a alma. Hillman (1971) argumentou que o fator dominante arquetípico presente, mas oculto, na noção do Si-mesmo é o velho sábio ou senex. Com o Si- mesmo como peça central, a psicologia junguiana torna-se psicologia do senex e assim cai em fantasias de ordem e abstração. O senex como Kronos consome o panteão dos deuses, devorando seus filhos para manter seu poder superior. O status executivo fornecido ao Si-mesmo é antitético à psicologia arquetípica por vários motivos. Como Hillman (1971) observou, “uma primazia do Si-mesmo implica que a compreensão dos complexos no nível diferenciado, anteriormente formulada como um panteão politeísta... é menos significativa para o homem moderno do que esse Si- mesmo do monoteísmo.” (p. 193). Quando os complexos nos seus respectivos núcleos arquetípicos são considerados como secundários em relação ao princípio da totalidade e integração, os personagens diversos e dinâmicos da psique, os Deuses, com suas qualidades diferenciadas, afetos, bênçãos e maldições tornam-se menos acessíveis à imaginação – ocultos sob o tacão do Si-mesmo monoteísta. De tal modo, a psique é efetivamente reduzida ao ego e Si-mesmo, os Deuses são efetivamente reduzidos a doenças e, dentro da maioria das linhas psicológicas, as doenças são efetivamente reduzidas a algo a ser retificado pela modificação de comportamento ou análise. Os Deuses desaparecem e levam consigo suas bênçãos de insight, a prolificidade das imagens e a oportunidade para relacionamentos formadores de alma (soul-making). Hillman (1971) argumentou: “Até que sigamos Jung no exame da diferenciação da totalidade com o mesmo cuidado que ele aplicou à integração da totalidade, nossa psicologia não satisfaz a necessidade da psique de compreensão arquetípica dos seus problemas” (p. 207). A tarefa central da abordagem arquetípica à psicoterapia é revigorar o relacionamento com as múltiplas figuras da psique como seres independentes que exigem ser abordados “de acordo com seu próprio princípio, dando a cada Deus o que lhe é devido naquela porção da consciência, aquele sintoma, complexo, fantasia que pede um fundo arquetípico” (Hillman, 1971, p. 197). Isso exige que o terapeuta tenha uma aguda compreensão da constelação de qualidades contida por cada dominante arquetípico. Tal compreensão envolve primariamente uma relativa fluência em mitologia – um tópico que abordaremos detalhadamente no Capítulo 3. Ao suspender a noção amorfa de Si-mesmo, o indivíduo é levado a uma relação direta com a multiplicidade inerente da psique. Cada propensão arquetípica contém sua própria ordem, equilíbrio, excesso, intensidade e sombra. E ao relacionar as qualidades particulares apresentadas na especificidade da imagem, o praticante segue de perto os movimentos da psique e trabalha para aprimorar a “especificação das qualidades descritivas [da imagem] e [suas] metáforas implícitas” (Vannoy-Adams, 2008, p. 111). Em vez de um eixo ego-Si-mesmo, um psicólogo arquetípico pode imaginar uma multiplicidades de eixos, ou uma ““relativização” do ego pela imaginação” (Vannoy-Adams, 2008, p. 113). Esse movimento envolve uma perspectiva policêntrica. O ego é formado por uma variedade de diferentes propensões arquetípicas, e a organização dos fenômenos psicológicos correspondentes é imaginada não como uma mediação pelo Si-mesmo, de acordo com Hillman (1997), mas pelo “código da alma” – uma noção que explora o conceito platônico que imagina um daimon, ou ser intermediário, que está inextricavelmente envolvido com o destino do indivíduo e o desenvolvimento do seu caráter total. Clinicamente, esse afastamento das estruturas amorfas e reificadas da psique permitem um elemento de surpresa, espontaneidade e preservação do que é único no consultório. Contudo, essa recusa a reificar, estruturar e sistematizar a anatomia da psique pode deixar os praticantes com um sentimento de falta de chão. Conceitos e estruturas aliviam a ansiedade inerente ao misterioso processo de confrontar a psique. No lugar da abstração conceitual, a psicoterapia arquetípica oferece uma metodologia que facilita descobrir a base única de cada particularidade concreta, que cada imagem fornece, limitando assim o efeito entorpecente causado pelas formulações teóricas. Berry (2008) descreveu seu método da seguinte maneira: É melhor trabalhar a partir do evento até a ideia, e não o contrário: 1) comece com o evento vivo, isto é, a imagem; 2) concentre-se na imagem/evento, sentindo-o; 3) preste atenção nos elementos de ressonância que começarem a se formar a partir do evento... Eventualmente, as ideias vão brotar desses elementos. (p. 329) Alma e espírito A batalha assumida pela psicologia arquetípica em defesa dos muitos contra o domínio pelo um é reiniciada na distinção de alma/espírito de Hillman. Embora a psicologia junguiana seja uma expressão da alma, há uma forte propensão de perder de vista a alma em favor ao espírito, confundindo a psicoterapia com disciplina espiritual e permitindo que a agenda do espírito domine as necessidades da alma. Hillman (2005) descreveu o espírito como pertencendo a experiências de pico, transcendência, ar e alturas montanhosas – a partir das quais tudo parece unificado. O espírito tem uma natureza próxima com Apolo, “de visão aguçada”, o deus da luz e da previsão racional, um deus da pureza, deliberação e disciplina, gêmeo de Ártemis, a caçadora virgem. O espírito, na sua fantasia de voo, transcendência e experiência de pico, é também intimamente conectado às dinâmicas do puer aeternus, o jovem eterno encarnado nas nossas mitologias como os voadores Ícaro, Faetonte e Peter Pan. Hillman descreveu o puer como “narcisista, inspirado, efeminado, fálico, inquisitivo, inventivo, pensativo, passivo, fogoso e caprichoso” (p. 50). O puer é o fogo consumidor do espírito – alimentando o Pothos, ou anseio insaciável, inerente a qualquer disciplina espiritual. A distinção de alma/espírito de Hillman coloca a alma no profundo valeabaixo da alta montanha do espírito (Hillman, 1975a). No vale há multiplicidade, diversidade, relacionamento, particularidade, obscuridade, neblina e nevoeiro – muitas coisas são ocultadas, bloqueadas da visão. Há imediatez, umidade; é onde as coisas ficam confusas; onde moram as ninfas, fadas, duendes, ancestrais e gnomos, os inúmeros personagens da imaginação – um cortejo de vozes e opiniões (Hillman, 2005). Aqui encontramos a fertilidade, pluralidade e umidade – exemplificados na amarga umidade das lágrimas. No vale da alma há espaço para conter as muitas experiências repudiadas pelo espírito. A alma é fenomenologia, a realidade da experiência. Ao caminharmos por esse vale, encontrando eventos que podem ser digeridos em experiências corporificadas (Hillman, 1975a), caindo no lodo e lama, convivendo com a multidão de personagens, desafios e bênçãos consteladas nesses relacionamentos, temos a oportunidade de fazer alma. Aqui a psicologia arquetípica segue a declaração de John Keats (18992001), “Se preferir, chame o mundo de “o Vale da Formação da Alma” [the vale of Soul-making]. Então descobrirá para que serve o mundo” (p. 369). A alma não é um item estático, mas uma maneira de ver, um modo de estar no mundo e com o mundo. Fazer alma é modelar criativamente os encontros com a vida. O ideal espiritual estimula e exagera a identificação com os anseios do espírito permeado pelo puer. Quando as propensões do puer são literalizadas, quando a função reflexiva está ausente, a dinâmica do indivíduo seca por falta de água psíquica – o efeito lubrificante do como-se, o nem-apertado-demais-nem-solto-demais, como o ajuste de uma roda de bicicleta, sem o qual ela não poderia girar (Hillman, 2005). Quando a alma e o espírito se dividem por meio da desaprovação do espírito pela matéria, ambos sofrem no seu isolamento. Na ruptura entre o espírito e a matéria, as feridas da alma são forçadas no corpo como patologia, enquanto o espírito voa atrás do seu ideal escolhido. Contudo, como foi apontado por Hillman (2005), a noção junguiana clássica de curar o puer dos seus elevados ideais, aterrando-o com trabalho literal, é uma violência à natureza dessa propensão arquetípica – um assassinato do espírito. Em vez disso, é necessário é um “casamento do puer com a psique” (p. 85), onde o puer começa a aterrar-se no trabalho metafórico da reflexão imaginal e em uma estética de apreciação das imagens da psique. Isso significa que a busca e a procura são uma busca e procura psicológicas, uma aventura psicológica. Isso quer dizer que o impulso messiânico e revolucionário conecta-se primeiro com a alma e deve cuidar primeiro da sua redenção. Só isso humanizará a mensagem do puer, ao mesmo tempo tornando rubra (reddening, literalmente “avermelhando”) a alma para conectá-la com a vida. É nesse reino da alma que os dons do puer são necessários em primeiro lugar. (Hillman, 2005, p. 88) Pontos de contato: relativizando o Ego Além das elaboradas críticas direcionadas à psicologia junguiana, a psicologia arquetípica também aderiu ao trabalho de Jung, elaborando uma parte significativa de sua obra. De fato, Hillman (2004) observou: “indubitavelmente o primeiro pai imediato da psicologia arquetípica é Carl Gustav Jung” (p. 14). Embora os pontos de contato sejam demasiado numerosos para serem nomeados e descritos nesse estudo, há certas características da psicologia junguiana que são centrais à teoria e prática arquetípicas. É provável que a mais notável dessas conexões seja o trabalho, realizado por Jung e Hillman, de revisão da subjetividade cartesiana dissociada e interiorizada do indivíduo moderno. A descoberta de uma subjetividade interiorizada No século dezessete, Descarte construiu uma posição filosófica que teve vastas implicações psicológicas e teológicas em todo o mundo ocidental. Para Descartes, cada característica do mundo físico era compreensível em termos de corpos em movimento. Em uma tentativa de agradar a Igreja, ele propôs que Deus era a causa inicial do movimento (Gaukroger, 2006; van den Berg, 1961): “quanto à causa geral [do movimento], parece-me óbvio que não é outra senão o próprio Deus, que, em sua onipotência, criou a matéria ao mesmo tempo em que o movimento e o repouso de suas partes” (como citado em Garber, 1982, p. 166). Jan Hendrick Van den Berg (1961) notou que o posicionamento de Descartes de Deus no início da criação efetivamente aboliu o senso de imanência primordial de Deus. Com Deus removido do mundo imanente, Descartes estava livre para investigar a matéria e a personalidade sem precisar se preocupar com questões teológicas. Como Deus foi despachado para fora da criação, o mundo criado foi reduzido à realidade objetiva, definida por aquilo que ocupa espaço e é mensurável, e a realidade subjetiva por um sujeito autorreflexivo. Por meio dessas grandes alterações na cosmologia, Deus tornou-se uma não- presença distante e abstrata, e a proclamação de Friedrich Nietzsche (1866/2001) de que “Deus está morto” marca o momento em que a distância tornou-se grande demais. A transcendência virou ausência, e a ausência se transformou em morte. Esse movimento causou um profundo impacto sobre a consciência humana. Paul Kugler (2005) comentou: Antes de Descarte, a existência fundamenta-se em um Deus transcendente, na Matéria, ou nas Formas Eternas. Mas com o cogito ergo sum de Descartes – “penso, logo existo” – o sujeito humano pela primeira vez colocado diretamente no centro da metafísica ocidental e da compreensão psicológica. (p. 67) Descartes realizou uma surpreendente alteração cosmológica: ele colocou o sujeito humano “no centro do nosso sistema de pensamento” (p. 67) e pôs a alma no interior da pessoa. A perda e recuperação/descoberta do imaginal Com o estrito dualismo de sujeito/objeto, o espaço intermediário, o local da alma desde pelo menos a cosmologia grega pré-socrática, foi descartado – deslocado na massiva transposição de Deus e sujeito. A cosmologia desagregou-se em um sujeito ressequido, em objetos distintos e sem vida, e um Deus distante. Os anjos do imaginal, “os seres que nos conectam e nos mantêm em contato com a glória e a sabedoria de outra ordem de realidade” (Romanyshyn, 2002, p. 111) foram expulsos e considerados desnecessários. Segundo Hillman (1975a), a psicologia cartesiana “não deixa espaço para qualquer coisa intermediária, ambígua e metafórica” (p. 1). Ele acrescentou: “essa é uma perspectiva restrita e nos levou a acreditar que entidades diferentes de seres humanos que apresentem qualidades subjetivas interiores, são meramente objetos “antropomorfizados” ou personificados, e não realmente pessoas no significado aceito da palavra” (p. 1). Por volta do século dezenove o sujeito tornara-se tão interiorizado e isolado que surgiu a necessidade essencial de trazer essa nova estrutura do eu para uma relação com o imaginal – um restabelecimento do eu dentro da cosmologia mítica. Antes do desenvolvimento do sujeito interiorizado, esse relacionamento era uma parte intrínseca da identidade humana. O indivíduo comunicava-se com os Deuses ou Deus por meio de ritual, oração e histórias. Jung (1956/1970) comentou sobre o efeito que essa separação teve sobre o indivíduo moderno: “Uma pessoa sem um mito é como alguém desenraizado, sem uma verdadeira conexão com o passado ou com a vida ancestral que continua dentro dela, u ainda com a sociedade humana contemporânea” (p. 197). O ego isolado, arrancado do Pleroma[2], tornou-se um sintoma que precisa de uma resposta. Enquanto a psicologia de Freud localizava uma forma de inconsciência que era essencialmente sexual em resposta à sexualidade descartada pelas normas sociais da Viena vitoriana (Van den Berg, 1961), o tipo de inconsciência localizada por Jung era mítica na sua natureza, um “inconsciente adquirido filogeneticamente e habitado por imagens míticas” (Jung e Shamdasani, 2009, p. 208), marcado pelo relacionamento descartado entre o indivíduo e o imaginal. O nascimento do ego imaginal A autoexperimentaçãode Jung descrita no seu Liber Novus (também conhecido como O Livro Vermelho) fornece uma documentação detalhada sobre essa tentativa de reconexão com o inconsciente mítico (Jung e Shamdasani, 2009). Através das observações registradas em seu diário, Jung levou à esfera coletiva tanto uma antiga sensibilidade quanto uma nova maneira de relacionar-se com o imaginal. Devido à divisão cartesiana, que deu origem à interiorização do assunto e ao nascimento do ego moderno, Jung foi capaz de descobrir um assunto sujeito radicalmente novo – um ego imaginal: um senso de si mesmo distinto, mas fluido, relativizado pelas múltiplas figuras da psique imaginal. O ego imaginal incorpora uma nova capacidade de relacionar-se com a imagem utilizando uma sensibilidade metafórica, em vez dos modos racionais de experimentar a imagem que, segundo Jung, estavam limitados à expressão artística, especulação filosófica, um modo quase religioso “levando à heresia e à fundação de seitas”, e um desperdício da imagem “em toda forma de licenciosidade” (como citado em Jung e Shamdasani, 2009, p. 211). Com Jung as imagens espontâneas da psique foram dotadas da riqueza da metáfora inesgotável. Além disso, Jung reconheceu a importância de viver a própria vida em conexão íntima com essa sensibilidade metafórica. Enquanto a ciência positivista se apressava em limitar a experiência humana aos estreitos parâmetros do que é mensurável e lógico, Jung relativizou a mente racional como simplesmente um modo de abordar os fenômenos. Os diálogos imaginais de Jung exerceram um papel importante no seu processo de diferenciar modos racionais e simbólicos de experiência. Em um importante diálogo registrado no Livro Negro de Jung, ele escreveu essa declaração de sua alma: “Você sabe tudo que há para saber sobre a revelação manifesta, mas ainda não vive tudo que deve ser vivido nessa época”. O “eu” de Jung replicou, “posso compreender e aceitar isso. Mas é obscuro para mim o modo como esse conhecimento poderia ser transformado em vida. Você precisa me ensinar a fazê-lo.” Sua alma respondeu, “Não há muito que dizer sobre isso. Não é tão racional quanto você está inclinado a pensar. O caminho é simbólico.” (Jung e Shamdasani, 2009, p. 211) Jung (1965) eventualmente concluiu que o mais importante era fazer as pazes com o inconsciente através de um rigoroso envolvimento com o diálogo: “Eu vi que tanta fantasia precisar ter um chão firme por baixo, e que preciso retornar inteiramente à realidade... Tive que tirar conclusões concretas dos insights que o inconsciente me mostrou” (p. 188). Foi essa tarefa central que deu origem às práticas psicológicas de Jung, particularmente a imaginação ativa e a análise de sonho, que passaram a formar o coração da psicoterapia imaginal. Imagem como ontologicamente real O extensivo trabalho de Jung marca o nascimento de uma epistemologia moderna que fornece um status ontológico à imagem psíquica, não como uma emanação literal de Deus, mas uma realidade “como se fosse” – um modo que precisa ser abordado a partir de uma sensibilidade metafórica, ou o que Jung chamou de pensamento simbólico. Desde a antiga filosofia grega, a metafísica ocidental tem apresentado uma posição incerta em relação às imagens psíquicas, preferindo as designações de imaginário, opinião e epifenômeno em relação à noção de realidade imaginal ou psíquica (Kugler, 2005; Hillman, 1975b; Corbin, 1972). Por sua vez, a partir de Jung os psicólogos profundos assumiram a defesa radical do imaginal como sendo real, e o real como imaginal (Romanyshyn, 2002). Esse sentimento é expresso perfeitamente na declaração de Romanyshyn: “O imaginal é o fundamento do mundo; portanto, possui prioridade ontológica em relação ao empírico e racional” (p. 118). Essa posição ontológica é central para a psicologia junguiana e para psicologia arquetípica. Segundo Shamdasani, “A noção de que essas figuras têm uma realidade psicológica por conta própria, e que não eram apenas fragmentos subjetivos, foi a lição principal que ele atribuiu à figura de fantasia de Elias: objetividade psíquica” (Jung e Shamdasani, 2009, p. 210). Na sua autobiografia, Jung (1965) escreveu: “Filêmon e outras figuras das minhas fantasias me provaram que há coisas na psique que não foram produzidas por mim, mas que se produzem sozinhas e têm vida própria” (p. 183). Uma segunda subjetividade Com o movimento na direção de valorizar a imagem psíquica como primária em vez de reprodutiva, a agência fornecida ao sujeito cartesiano deslocou-se e uma segunda agência subjetiva foi descoberta (Kugler, 2005). Kugler observou: “Na época, era uma ideia radicalmente nova” (p. 70). Jung referiu-se a essa subjetividade superordenada como o Self (Si-mesmo); como observado acima, Hillman prefere a noção politeísta de um panteão de Deuses. De qualquer modo, o ego não é mais o mestre da casa; é o sujeito imaginal transpessoal, ou sujeitos, que forma/m o agora altamente relativizado e fluido ego. Como disse Jung (1942/1954): O ego está para o Si-mesmo como o movido para o motor, ou como o objeto para o sujeito, porque os fatores determinantes que irradiam do nosso Si-mesmo cercam o ego e são, portanto, supraordenados a este... Não sou eu que crio a mim mesmo, em vez disso eu aconteço a mim mesmo. (p. 155) O ego imaginal é um devoto receptivo e atento da imagem psíquica, mantendo sua hospitalidade como um tipo de “devoção às coisas como são... [uma] presença no momento presente que libera a imagem no evento, desliteralizando o caráter factual do evento, e dissolvendo ideias preconcebidas sobre o que esse momento é ou o que deve ser” (Romanyshyn, 2002, p. 118). Jung (1965) argumentou que o desenvolvimento do indivíduo depende de uma subjetividade que mantém um relacionamento próximo com as múltiplas emanações do Si-mesmo arquetípico. Hillman (1975a, 2007) ecoa esse atributo essencial do ego imaginal na sua repetida admoestação de que os Deuses devem ser lembrados. É essa função relativizante (Hillman) ou compensatória (Jung) da psique imaginal que se destaca como uma das contribuições mais importantes na obra de Jung e Hillman. A redução por Descartes do mundo vivo a um recurso mensurável, controlável e consumível veio com um preço elevado. Desnecessário dizer que os desequilíbrios na psique e na matéria são tremendos. Através da costura cada vez mais estreita entre ego e razão, a imaginação tornou-se estranha ao ego (Hillman, 1975b). A explicação do ego imaginal evidenciado na obra de Jung e Hillman é tanto uma lembrança do lugar essencial anteriormente fornecido à alma assim como um novo desenvolvimento voltado para forjar uma conexão essencial entre o espírito do tempo e o espírito da profundidade (Jung e Shamdasani, 2009, p. 208). A questão da relevância clínica Os vários contribuidores da psicologia arquetípica concentraram seu trabalho no reflexo de uma nova retórica tanto para a terapia como para a cultura. A atenção persistente na epistemologia da alma resultou em uma série de insights em relação ao processo mercurial desse aspecto do ser, negligenciado de modo tão frequente. Contudo, as implicações dessas ideias ainda permanecem inexploradas e latentes na sua maior parte. Muitos psicólogos clínicos consideram a obra de Hillman pouco prática e até mesmo irrelevante para o trabalho que realizam com o paciente em sofrimento. Tacey (1998) afirma que Hillman perdeu a “realidade incorporada da vida psíquica” (p. 218) no que ele considera uma viagem mental filosófica, invocada apenas pelo seu “efeito retórico” (p. 2320. Como Tacey (1998) observou, o efeito retórico é de fato central para a psicologia arquetípica. Sendo uma psicologia enraizada na estética, a literatura da psicologia arquetípica busca evocar aquilo que ela descreve, remetendo-se à antiga noção grega da inseparabilidade entre a verdade e a retórica – “a retórica qua [por meio da] retórica busca a verdade” (Grimaldi, 1975, p. 173). Ao contrário da crítica pouco sutil de Tacey, a psicologia arquetípica traz uma amplacoleção de ideias evocativas com uma riqueza de implicações vitais para o campo da psicologia clínica. Tendo como foco a substituição da fantasia dominante de uma psicologia científica por uma psicologia do logos da alma, a psicologia arquetípica redefiniu a noção de terapia, deslocando o foco da cura do sintoma para o cuidado da alma (Hillman, 1972, 1975a, 1979a; Moore, 1994), uma abordagem enraizada em pensar psicologicamente sobre a psicologia. A psicologia clínica, segundo Hillman (1975a), sofre de cegueira em relação a si mesma e uma escassez de ideias. Incontáveis livros didáticos, manuais terapêuticos e artigos em periódicos abraçam uma multidão de técnicas para tratar doenças psicológicas, mas poucos autores dão um passo atrás para ver as ideias, ou fantasias, que formam e determinam a aclamada técnica. Já a psicologia arquetípica contribuiu com uma rica literatura que efetivamente esclarece os determinantes arquetípicos a partir dos quais a prática terapêutica emerge – um corpo de ideias que “engendram a reflexão da alma sobre a sua natureza, estrutura e propósito” (Hillman, 1975a, p. 117). As técnicas da psicologia clínica frequentemente são direcionadas para amortecer o ego heroico contra os diversos constituintes da psique – enfrentamento, adaptação, desenvolvimento, crescimento, saúde, resolução de problemas, tudo a serviço do ego. Em contraste como o foco monocêntrico predominante em relação à adaptação egoica, a psicoterapia arquetípica advoga uma polifonia de terapias correspondente à multiplicidade intrínseca da psique. Cada determinante arquetípico é visto tanto como um estilo particular de enfermidade e um estilo particular de método terapêutico. A elucidação dos estilos encontrados na literatura da psicologia arquetípica pode oferecer à psicologia clínica uma ampliação de escopo além da mera adaptação egoica rumo a uma terapia de significância arquetípica. Os proponentes da psicoterapia arquetípica assumem uma posição radical contra a estrita aderência ao modelo médico da psicologia convencional (Hillman, 1975a, 1983; Paris, 2007; Romanyshyn, 2002). Reduzir sintomas, combater complexos e fortalecer o ego são movimentos que se afastam de um dos principais modos da expressão da alma: a patologização. Hillman (1975a) escreveu: “antes de qualquer tentativa de tratar, ou mesmo compreender fenômenos patologizados, nós os encontramos como um ato de fé, considerando-os autênticos, reais e valiosos do jeito que são” (p. 75). Uma abordagem arquetípica à psicoterapia se afasta da noção de cura rumo à meta de vivificação e de ver através do sintoma e da imagem de fantasia. A patologia é redirecionada da fantasia do tratamento para uma fantasia da poesia e ficção – realçando a particularidade da imagem e a sua presença metafórica. Embora sempre permanecendo próximo à imagem, o indivíduo começa a ver através dos seus significados literais até sua corrente subterrânea mitopoética – um desdobramento inexaurível de metáfora e revelação. Além de abandonar a fantasia médica, a psicologia arquetípica também tentou afastar-se da principal fantasia de Freud que prende a psique ao desenvolvimento infantil, assim como a fantasia de Jung do oposicionalismo psíquico (Hillman, 1975a, 2005). Hillman postulou que a psicanálise foi sufocada pela reificação dessas metáforas. O trabalho de ver através da própria psicologia ajuda a despedaçar a intensa identificação com escolas psicológicas e coloca a psique de volta no seu território natural, que é, defende Hillman (1975a), a expressão idiossincrásica de um cosmos politeísta. Sem o trabalho de ver através, a psicologia “permanece em um modelo monoteísta da consciência que deve ser unilateral nos seus julgamentos e estreito na sua visão, pois não está ciente da riqueza e variedade das ideias psicológicas” (p. 126). Capítulo 2 Prática imaginal Começando com a imagem De pé em uma densa floresta, a visão é obscurecida, exceto nos pontos onde as árvores se abrem para o horizonte. A luz que chega pela clareira revela uma certa perspectiva e lança sombras sobre outras imagens.[3] Aqui, no espaço da visão interpretativa, nos encontramos já situados dentro de uma perspectiva. Temos na mão definições e formulações. Atraídos pela chamada da clareira, seguimos por um caminho, um método de investigação que revela e oculta. A posição tomada dá lugar a um estilo particular de interpretação enquanto cobre simultaneamente os caminhos alternativos de investigação. Presos por hábitos, o caminho bastante batido, nós perdemos as sombras, a surpresa de uma imaginação sem freios. Seguindo o argumento de Jung (1939/1954a) de que “todo processo psíquico é uma imagem e uma “imaginação (p. 544), a psicologia arquetípica se estabeleceu como uma psicologia que se abstém de hábitos, começando em vez disso com a imagem; seja em sonho, fantasia, sintoma ou evento, todos os eventos psíquicos são tratados como imaginais, ou seja, metafóricos, expressivos de significado através da exibição estética, e dotados de uma fecundidade de significado. Em relação à psique em frente à imagem, a posição tomada é dentro de uma perspectiva policêntrica, de muitos centros. Começar com a imagem é como estar em uma floresta onde o caminho sinuoso leva através de uma multidão de clareiras – cada uma revelando um ponto de vista e um caminho que era até então desconhecido. A Imagem revela, e então, de maneira mercurial, muda para um centro diferente, exibindo aspectos do que foi oculto em uma cascata enigmática de significado. “A verdadeira iconoclasta é a imagem” (Hillman, 1975a, p. 8), já que ela continuamente quebra a si mesma e começa novamente. Enquanto símbolos (falo, seio, água) são, por definição, interpretações generalizadas, compostos da experiência coletiva, as imagens (olhar para um imenso arranha-céu, deitar-se na grama de uma colina arredondada, enfiar o pé em um rio gélido e caudaloso) são sempre, como Hillman observou, “particularizadas por um contexto, humor e cena específicos... elas são precisamente qualificadas” (Hillman, 1977, p. 62). A precisão resulta em diferenciação, que é, de acordo com Jung, a essência da individuação. Ler um evento pelo seu conteúdo simbólico troca o fenômeno psicológico real, cheio de significado idiossincrásico e altamente diferenciado, por uma abstração reificada removida da psique onde foi criada. Interpretações se transformam em doutrinação, conduzindo o indivíduo um pensamento alinhado com a hermenêutica de sua preferência. Não há surpresas, apenas nomes apodrecidos. Seguindo Jung, Hillman (2004) reconheceu a imagem como o dado primário da psique, a “fantasia governante por meio da qual a consciência é possível para começar” (p. 24). Hillman argumentou que a criação de imagens, poésis, é “a atividade autogeradora da própria alma” (p. 18). A alma continuamente tece imagens na fantasia e sonho, e essas imagens mitopoéticas, segundo Hillman (1972), formam a base fundamental da experiência humana – uma noção que pode ser ligada à alegação de Aristóteles de que pensamento sempre está associado a uma imagem. Tomemos como exemplo o toque de um despertador em uma manhã particularmente sonolenta. O som toma forma no campo da consciência do indivíduo, e assim que ele é registrado encontra sua expressão como sonho. Meu próprio despertador, que é uma gravação do toque de um campanário, se expressou em um sonho como o sino da escola dispensando-me da aula da oitava série, assim como sinos de igreja soando ao longe. Essa propensão para a formação de imagens é onipresente. Um segundo exemplo ocorreu na política. Em 13 de julho de 2012, o Presidente Barack Obama fez a seguinte observação em um evento de campanha em Roanoke, Virginia: Se você teve sucesso, foi devido à ajuda de alguém no passado. Em algum momento de sua vida você conheceu um bom professor. Alguém ajudou a criar esse inacreditável sistema americano que possuímos e que permitiu a sua prosperidade. Alguém investiu em estradas e pontes. Se você hoje tem um negócio – você não conseguiuisso sozinho. Mais alguém fez com que isso acontecesse. Posteriormente, a mídia, particularmente os canais jornalísticos conservadores como a Fox News, explodiram com respostas a uma frase, “você não conseguiu isso sozinho”. Arrancada do seu contexto de apresentação, a frase tornou-se imagem e foi costurada no mito republicado do individualismo e livre empreendimento. Aprofundando a imagem, descobrimos uma narrativa completa baseada em uma fantasia literalizada que foi inculcada nas pessoas através da mídia e retórica de campanha, um complexo coletivo cheio de afeto, defesas psicologicamente primitivas e um tipo de obstinação ideológica que ajudou a conduzir os Estados Unidos a um impasse político e uma série de crises sociais, econômicas e religiosas: desemprego galopante, uma recessão devastadora, pessoas perdendo suas casas, guerra religiosa, crimes de ódio e assim por diante. Todos nós estamos sujeitos a sermos capturados por essas imagens, sujeitas a perspectivas monocêntricas e ações tacanhas. Contudo, uma vez que a imagem tenha sido libertada da crosta rígida do literalismo, ele se revela como carregada em termos de perspectiva, metáfora e afeto, e determinada – na verdade supradeterminada – por psicodinâmica pessoal, construções sociais e padrões arquetípicos. Para melhor ou pior, essa criação de imagens é um fenômeno constante – informações sensoriais, emoções, pensamentos, tudo surge e retorno de uma matriz imaginal subjacente. Simplesmente não podemos experimentar fora da nossa capacidade de criação de imagem situada cultural-historicamente. Contudo, segundo Jung, podemos desenvolver certa flexibilidade psicológica em relação com esses complexos culturais “reconciliando o espírito do tempo com o espírito das profundezas (Jung e Shamdasani, 2009, p. 208), alimentando diálogo entre a imaginação mitopoética, nossa história coletiva e a visão mais estreita da consciência do ego. A preocupação central da vida de Jung (1921/1971) foi explicar a fenomenologia dessa matriz mitopoética, chamada por ele de esse in anima, uma realidade psíquica que existe como um espaço mediador entre o físico, esse in re, e o intelectual, esse in intellectu. Segundo Jung: “só através da atividade vital específica da psique é que a impressão sensorial adquire aquela intensidade, e a ideia, aquela força efetiva, que são os dois elementos indispensáveis da realidade viva” (p. 52). A imagem oferece intensidade e força efetiva. Em outras palavras, a imagem evoca o estímulo emocional que liga cada um de nós à vida. Segundo Berry (1984), essa terceira posição da imaginação, localizada como uma força mediadora entre a ideia e a matéria, é um lugar de atividade criativa, uma realização estética, que “cria a realidade todos os dias” (Jung, 1921/1971, p. 52). Berry (1984) escreveu: Como esse in anima é um ponto intermediário entre o subjetivo e o objetivo, imaginativo e material, interno e externo, fantasia e realidade, compartilha algo da natureza de cada um deles, mas de uma nova forma não-literal, que Jung chama de “imagens”. As imagens são os veículos da realidade psicológica. (p. 124) Da posição intermediária da imagem, as distinções entre interno e externo se tornam irrelevantes. A imagem transcende, ou antes, dissolve as limitações das fronteiras cartesianas. A imagem, como a emoção, está sempre relacionada com a experiência interna e externa. A psicanálise contemporânea descreveu esse espaço de mediação como a natureza intersubjetiva da psique – estamos sempre em uma experiência relacional (Stolorow, Brandchaft, e Atwood, 1987). Mesmo uma experiência de isolamento e solidão faz parte de um relacionamento (R. D. Solorow, comunicação pessoal, 18 de maio de 2012). Imagem e afeto Muito embora os fenômenos imaginais e afetivos tenham valor por conta própria, o método terapêutico geralmente favorece sentimentos enquanto negligencia o imaginal, o que Hillman (2004) considera que eventualmente resulta em fortalecer a posição habitual do ego: “A unicidade intensificada trazida pelas emoções, seu efeito monocêntrico e limitador sobre a consciência, fornece suporte para a tendência já monoteísta do ego de apropriar-se e identificar-se com suas experiências” (p. 59). Desconsiderar a camada imaginal da própria experiência emocional tende a causar uma identificação inflexível com o sentimento como a totalidade da experiência, em vez de ser apenas uma face de um fenômeno complexo. O sentimento é tratado como literal e inequívoco. O “eu” em “eu estou triste”, ou “eu estou zangado”, é um “eu” inchado, um “eu” que devorou todas as outras figuras imaginais presentes na emoção, resultando em uma imaginação indiferenciada e um ego sobrecarregado. Como uma psicologia polivalente e fenomenológica, a psicoterapia arquetípica está interessada nas múltiplas faces de uma experiência assim como na particularidade de cada face. Descritores como raiva, tristeza, medo e alegria são amplos e gerais – palavras mortas que pouco fazem para diferenciar a própria experiência. Uma imagem, como já observei, é sempre particular. Quando a raiva é qualificada por uma imagem, o indivíduo ganha uma riqueza de material para se trabalhar. Por exemplo, um paciente notou que esta zangado. Ele passou a descrever como quando caminhava através de uma rica vizinhança e via um carro importado sentia vontade de quebrar a janela ou furar os pneus. A sua raiva era qualificada pela destruição, ou antes, a destruição é a raiva: uma raiva-de-quebrar-janelas-e-furar-pneus. Um movimento terapêutico subsequente poderia explorar essa imagem como metáfora. Ao rastrear a inter-relação da imagem, é possível extrapolar que ele passa rapidamente da raiva para a inveja até a destruição de material valioso. Poder-se-ia seguir o caminho onde a imagem oferece uma revelação da resposta do paciente à sua situação socioeconômica. Sua raiva é, ao menos parcialmente, uma resposta à sua posição em uma hierarquia econômica onde ele está separado da prosperidade por uma barreira transparente, provocado pela riqueza do outro lado. De que outras maneiras a sua raiva esmaga e corta aquilo que tem valor? Relacionamentos íntimos? Sucessos pessoais? Memórias familiares? Como essas experiências deixam ele com pneus vazios, janelas quebradas e punhos sangrando? Poderíamos pensar nessa dinâmica em termos da transferência. De que maneiras ele poderia destruir o valor alimentado durante o tratamento, ou como ele poderia quebrar a janela de vidro da neutralidade entre ele e eu para nos trazer ao mesmo nível – quebrados, irados, destruídos? A imagem de quebrar vidro e cortar pneus chegou lado a lado, alimentou e ajudou a diferenciar a imagem já sempre presente da apresentação. Esse paciente já estava revelando imagens da sua raiva com gesto, tom, respiração e cadência. Enquanto a técnica psicanalítica cuida da apresentação como um material derivativo, interpretando essas expressões como apontadores para uma imagem central – transferência, a psicologia arquetípica vira essa noção de ponta-cabeça, discutindo que o gesto, tom, respiração e cadência são a imagem central, são a transferência. A apresentação é significado. A resposta incorporada nesse tipo de terapia imaginal é uma ação psicológica que está por baixo do literalismo e dos atos destrutivos que se originam do literalismo. A janela do carro importado torna-se uma janela imaginal através da qual o paciente tem a oportunidade de capturar pedaços da alma-no-mundo. A caminhada enraivecida pela vizinhança rica é transmutada em um lugar onde a psique está na superfície, e significado e materialidade se encontram. Um sonho: Eu estava sozinho diante da porta de um elevador. Um grupo de sujeitos mal-encarados se aproximou de mim. Um deles tinha três dardos na sua mão. Ele me mostrou a parte traseira dos dardos, a cauda – uma parte do dardo que estabiliza sua trajetória. Ele me desafiou a lutar com ele com os dardos. Apavorado com a situação, me recusei. Ele continuou a me pressionar, e eventualmente peguei os dardos. Enquanto estava
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