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Senex negativo e uma solução renascentista James Hillman Tradução: Daniel Françoli Yago Homens perecem porque não conseguem conectar o começo ao fim. -Alcmeão de Crotona No capítulo anterior, aprendemos dois pontos essenciais da consciência senex. Primeiro, há uma “tensão excessiva” derivada de um “excesso de pneuma”, descrição essa que remonta ao Problemata de Aristóteles1. Essa característica básica é também referida como uma “irritabilidade exagerada dos poderes imaginativos”. Em outras palavras, o senex é particularmente suscetível aos efeitos das imagens mentais que elabora, e sofre de uma maneira “pneumática”, isto é, de forma mental, intelectual, espiritual. Segundo, a “tensão excessiva” também se refere à dualidade extrema desta particular figura. Muitos deuses gregos possuem dualidades. Eles tanto castigam quanto abençoam, tanto destroem quanto auxiliam. Nenhum deles, contudo, apresenta uma dualidade tão flagrante quanto Cronos. Sua natureza é dual não somente no que diz respeito a seus efeitos no mundo exterior dos eventos, mas igualmente em seu próprio destino pessoal – a tensão excessiva de seu sofrimento, nossa melancolia. Porque a dualidade é tão acentuadamente marcada em Cronos, ele bem poderia ser considerado o Deus das Oposições2. Em descrições da figura senex, repetidamente encontramos aspectos antitéticos contrastados pelas palavras positivo e negativo, beneficente e malevolente. Quando ele se revela, também o problema dos opostos se revela; quando os opostos surgem enquanto problema, assim o faz a consciência senex. Jung reconheceu e nos alertou acerca da inerente dualidade do senex: ... Sempre que o “humilde” e “gentil” velho aparece, é recomendável, por razões heurísticas, escrutinar seu contexto com algum cuidado... O velho também possui um 1 R. Klibansli, E. Panofsky, F. Saxl, Saturn and Melancholy (London Warburg Institute/Nelson, 1964), 33-36 e notas. O Problemata está incluído no segundo volume da tradução revisada de Oxford de The Complete Works of Aristotle. 2 Saturn and Melancholy, 134-35; ver também a oração de Agrippa de Nettesheim em que Saturno é invocado “por uma série de antíteses mais numerosa do que qualquer outra coisa já escrita”, 354. lado perverso, assim como o médico primitivo é um curador e um auxiliador tanto quando um temido produtor de venenos. A própria palavra pharmakon significa “veneno” e “antídoto”...3 Com essa definição de dualidade em mente, voltemos para as questões da negatividade senex. I. Destrutividade senex Virada de mentalidade para melancolia e frequente loucura e extravagância no Turno da Vida – o topo da Colina – dos 35 a 40 anos – diferente para cada homem. - Samuel T. Coleridge Se a dualidade está tão enredada nessa estrutura, como poderíamos saber a forma com que ela se enodará em nossas vidas? Haveria uma linha de fuga para ela? O que realmente seria mais destrutivo – ser o executor ou o executado; ser a temida e melancólica ausência de voz fitando o espaço ou um rei em seu trono terminal, atordoado e de punhos cerrados? As imagens não são alegres. Elas não constam em meio àquelas descritas pelos Pais Fundadores da busca pela felicidade. (Mas esses pais possuíam uma fantasia puer – vida, liberdade, uma declaração de independência do Velho Rei). Haveria uma alternativa à convenção saturnina, de forma a não sermos devorados pelo complexo do senex? A identificação com o senex ocorre sutilmente; aprendemos suas regras lentamente. É uma doença crônica, que rasteja sobre nós sem ser notada. Parecemos reconhecer a perda de nossa juventude primeiramente em nossa carne e lutar contra o senex no corpo. Mas o enrugar (o enegrescer) da mente é célere e frequentemente precede em anos o envelhecimento factual. O filho da imaginação pode morrer muito antes de o envelhecimento do corpo começar. Como mudar o velho rei de meus hábitos e atitudes? Como eu poderia tornar tudo o que aprendi e tudo o que hoje sei em caridosa sabedoria? Como admitir o novo e seus erros, desordem e ausência de sentido dentro de meus limites? Como eu poderia morrer corretamente? A maneira pela qual voltamo-nos sobre essas questões em nós mesmos afeta a transição da história. Somos 3 CW 9.1: 414. todos contrapesos na escala da história, como disse Jung. Talvez nosso peso psíquico aumente nessas escalas à medida que fantasiemos sobre o mais pesado de todos os fardos, o senex. Ao restringirmos tais questões a nós mesmos, aliviamos a história do fardo de carregá- las para nós. Afinal, o problema do envelhecimento começa na psique. Ela emana do individual para a civilização, destrutiva como radiação, uma queda livre à sociedade dos complexos que não conseguimos encerrar. A poluição começa das porções não digeridas de nossa história pessoal que lançamos sobre o corpo político. A história do externo está carregada das ganâncias, paixões e arrependimentos com as quais não chegamos a um acordo em nós mesmos. Se nos recusamos a admitir que urgências por suicídio e desintegração são igualmente básicas à mesma estrutura que produz ordem, como poderíamos nos preparar para o futuro? Como poderíamos falar de plenitude se a mesma pulsão de nossa consciência tem apetite por decadência e negação?4 Desemprego, depressão, crises energéticas e isolamento são fenômenos psíquicos. Se não compreendermos a natureza arquetípica de nossas reações nas zonas pertencentes a Saturno, nossas reações se tornam estereotipadas. Apertamos um botão, recebemos a mesma resposta. A história é obrigada a repetir-se simplesmente porque nos recusamos a ver o que está a produzir história. A transformação da história começa na alma como a destruição daquilo que aconteceu no tempo. É uma operação do senex no senex: a experiência da nigredo da depressão e do apodrecimento da mente repleta de tempo acumulado. A alquimia explica como esse trabalho funciona: “O órgão divino é a cabeça, pois nele reside a parte divina, nomeadamente, a alma...” e o filósofo deve “dedicar-se a esse órgão com mais cuidado que os outros órgãos”5. Na nigredo, o cérebro se obscurece. Por isso diz a receita de Hermes citada no Rosarium: “Reserve o cérebro... macere-o com vinagre forte, ou com urina de um menino, até que ele se obscureça”. O enegrecimento ou escurecimento é, ao mesmo tempo, um estado psíquico chamado de melancolia (bile negra). Em Aurelia oculta, há uma passagem em que a substância de transformação no estado da nigredo é autoexplicativa: 4 “A quem pertencem o incremento e o decremento”: tradução de 1824 de Thomas Taylor em The Mystical Hymns of Orpheus (London: Kessinger Publishing, 2003), 40. 5 CW 14: 732; ver CW 13:95, 101; CW 11: 350. Hades usava um adorno especial de pele de cachorro em sua cabeça; a cabeça de Saturno era coberta: R. B. Onians, Origins of European Thought (Cambridge, Mass: Cambridge University Press, 1954), 424. Sou um velho enfermo e fraco, dei nome ao dragão, portanto me fechei em uma caverna, de forma a ser resgatado pela coroa real... Uma ardente espada inflige grandes tormentos em mim; a morte enfraquece minha carne e ossos... Minha alma e meu espírito partiram; um terrível veneno, sou assemelhado ao corvo negro, pois este é o pagamento pelo pecado; no pó e na terra me deito...6 De um ponto de vista do senex, nossas complexidades não podem ser totalmente elucidadas, conduzidas até a luz, mesmo quando a terapia acredita que o processo da individuação gradualmente amplia a consciência. Que nossas complexidades se tornem mais claras pode implicar que perdemos contato com sua escuridão, a impenetrabilidade fundamental com o outro lado de seu cerne. O antídoto não é extraído do veneno, uma vez que o venenoe o antídoto constituem uma só realidade. A cobra que cura é a mesma cobra cujo bote mata; não há cobras “boas” e “más”, há somente uma única cobra até mesmo no Paraíso. Além disso, a cada extração de bondade da malignidade, de luz da escuridão, o velho material residual se torna mais denso. Na alquimia, a porção venenosa do complexo remanescente após a separação de suas partes boas se torna a nova nigredo, a substância em que se efetuará a próxima separação. O novo trabalho se volta para as velhas sobras, o chumbo, o corpo, o lodo negro que resta. Se a alquimia é uma “terapia”, então o foco ao qual sua operação repetidamente retorna é o componente senex do complexo. Eis aqui o obstinado veneno. Nesse sentido, a terapia se torna uma obra de Saturno, moagem das incrustações mais recalcitrantes do complexo, seus hábitos mais antigos, que não são nem reminiscências infantis, nem introjeções parentais, mas o fenômeno senex, isto é, a estrutura e os princípios pelos quais o complexo perdura. Para essa estrutura, sua natureza dupla é fundamental, pois não há experiência que possa ser exclusivamente benéfica. Mesmo os momentos da sabedoria mais bondosa e benigna podem produzir novas toxinas. O medo do veneno e a malignidade do velho sábio não constituem uma cautela heurística. Esse medo é um reconhecimento verdadeiro da natureza da sabedoria, de seu aspecto saturnino. Para que ocorram operações alquímicas em Saturno, o operador e o material operado precisam estar em relação simpática, isto é, sob a mesma constelação arquetípica. Trabalha-se a mente escurecida com o vinagre acre e os sais de juventude abandonada. A depressão seria o pré-requisito para se trabalhar com qualquer coisa que pertença ao senex. A própria consciência deve ser escurecida antes que possa aproximar-se da nigredo. Problemas insolúveis somente 6 CW 14: 733. podem ser devidamente adereçados por meio de uma atitude de desesperança que lhes conceda o devido sentido e os reflita de maneira justa. Ódio, inveja, crueldade opressora se tornam ferramentas de compreensão: provêm meios de obscurecimento da luz. E ao esconder e camuflar a cabeça, a depressão abraça e cuida da alma. Se a substância operada é o “velho” de nosso complexo, então esse trabalho não pode ocorrer sem o velho, que é nossa fraqueza e enfermidade, a monstruosidade dracônica de nosso poder destrutivo que a tudo devora em seu mau humor. A destrutividade senex nos confronta mais perigosamente do que percebemos – particularmente quando focamos nossa atenção na destrutividade fora de nós, por exemplo, no caos violento e despropositado da juventude. O perigo do senex reside apenas no fato de que não somos conscientes dele enquanto perigoso. Estamos tão acostumados com as instituições de ordem a partir das quais moldamos a sociedade, nossas vidas e concepções, que não vemos que essas instituições e imagens são perfiladas a partir de um Deus senex e são condicionadas por forças senex. Estamos tão acostumados com nossos complexos e seus odores que não percebemos sua putrefação. As fantasias que dispomos para lidar com questões históricas traem o senex por trás das fantasias: a esperança pela paz e plenitude e emprego; a segurança vinda de limites bem estabelecidos e acordos financeiros; o urbanismo como panaceia; longevidade; a extensão da lei e do conhecimento; a unificação através de monopólios e sistemas cada vez maiores, ou o reverso do isolamento individualista, um homem, uma arma, uma família, um abrigo antibomba; computadores e seus embasamentos na lógica do tipo “ou/ou” da contradição, armazeno e recuperação de memória; e, finalmente, a organização mundial e paternal com seu policiamento racional da desordem. Do mesmo modo, também, há a nossa esperança pelo Grande Indivíduo, um criativo homem sábio, cientista ou líder, que pode apaziguar tais problemas. O sábio7 que se destaca dos demais, mas que está próximo da terra, é apenas outra imagem antropomórfica do mesmo deus senex. Como o próprio Jung pontuou na passagem acima referida8, o velho sábio não é a solução, 7Para uma descrição bela e completa, mesmo que equivocadamente anti-junguiana, do sábio, do velho sábio, ou do “senex positivo” na literatura ocidental dos gregos até o Renascimento, ver Alarik W. Skarstrom, “Fortunate Senex”: The Old Man, a Study of the Figure, his Function and his Setting, diss. (Yale University, 1971); Ann Arbor: University Microfils, 1972). 8 CW 9.1: 413-15. pois o veneno e o antídoto são inseparáveis. Assim, retirar-se da cena para adentrar nas questões espirituais do Pai – solidão, reflexão, sabedoria – pode somente produzir mais escurecimento do cérebro, mais dragões. Bater em retirada não bastará, uma vez que a psique não se move em isolamento; a alma requer envolvimento e emoção, mesmo quando o espírito ascende sozinho às montanhas9. “C’est une grande folie de vouloir être sage tout seul” [é uma grande loucura querer ser sábio por conta própria], diz La Rochefoucauld, que pode implicar que a sabedoria do sábio solitário é loucura. Ao considerarmos o velho sábio e qualquer um dos “Caminhos da Sabedoria”, do Zen a Blavatsky, como soluções para o problema senex, é recomendável ter em mente a ambivalência das imagens em questão. Uma consciência que escolhe a sabedoria também escolhe o senex; e a escolha do senex implica a destruição de um ou outro estilo. O arquétipo não permite que o ego selecione suas partes mais doces10. A mimese implica o mito vivido em suas consequências. O senex e sua anima, Lua11, tendem a materializar e externalizar questões para fora da psique. Sem a possibilidade da psique nos eventos atuais, eles se tornariam indisponíveis para a reflexão humana. Poderíamos pensar e planejar, mas nosso pensamento e planejamento não seriam reflexivos do fator subjetivo. O pensamento e o planejamento são eles mesmos a reflexão das forças arquetípicas que criam os problemas que pedem pelas soluções construídas pelo intelecto. Os aspectos antipsicológicos do que é construído por pensadores e planejadores 9 Sobre a diferença entre alma e espírito, ver a discussão estendida do capítulo 3. Também ver o meu Re- Visioning Psychology (Re-vendo a psicologia) (New York: Harper & Row, 1975), 68-70. 10 Ver A. Guggenbühl-Craig, The Old Fool and the Corruption of Myth (Putnam, Conn: Spring Publications, 2006). 11 W.W. Fowlerm The Religious Experience of Roman People (London: Macmillian, 1933), 481-82; Ausfühliches Lexicon der griechischen und römischen Mythologie, ed. W. H. Roscher (Leipzig: B. G. Teubner, 1884), III: “Lua”. Marcel Leglay (Saturne Africain [Paris: Arts et Métiers Graphiques, 1961-66], 1: 457) considera a Lua como sendo o primeiro nome de um nome duplo: Lua Saturni, no qual o prefixo se refere a um atributo menor do poder maior de Saturno. Assim, Lua se torna um gênio específico ou uma força dentro do complexo de Saturno, tendo duas funções particulares – agricultura e exército – combinados na ideia de spoiling (estragar e espoliar). Cf. A discussão de G. Dumézil sobre a “Lua Mater” em Déesses latine et mythes védiques, Coll. Lat (Bruxelles: 1956), 99-107. Ele conclui que a Lua (que corresponde à Nirrti védica) pertence a uma constelação básica indo-europeia que enfatiza a importância primária da ordem (tanto no pensamento romano quanto no indiano, mas diferentemente dos gregos em que não há uma figura correspondente). Lua, portanto, representa o balanceamento de opostos para se alcançar a ordem, como “Mother Dissolution” e a ideia de desintegração (Dumézil, 114). Ver também o capítulo 9 sobre o senex e o feminino. traem Saturno, não em seu furor profético e compreensão imaginativa, mas com suas obsessões pelaordem. Dentro de nós, o senex luta para manter a ordem ao assentar leis ou ao projetar novos sistemas de resolução de conflitos. Não queremos a agitação que a luta puer-senex produz em nós. Assim, Saturno se autoperpetua pelo fingimento de que as questões da existência não são psicológicas, mas reais, econômicas, políticas, práticas. Sempre que fazemos uso dessas lógicas, sempre que assumimos uma postura antipsicológica ou antierótica, é o senex quem está falando. Saturno nunca está “em favor da mulher ou da esposa”12. Ele evita a conexão entre Eros e psique. Um dos principais subterfúgios da evitação dessa conexão é novamente a concretização de Eros em sexualidade. De forma que até pode-se dizer que a pornografia é regida por Saturno. O Eros pornográfico não possui alma, e em quase nada difere da psique ressequida, profanada, desprovida de amor da psicologia acadêmica, outra conserva de poder do senex. O seco necessita de lubricidade, a negação convida a pornografia. Nós criamos uma era psicopática e concretista ao definirmos consciência como primariamente orientada pela realidade, ao nos esquecermos que a realidade psíquica é primária e que as fantasias, sentimentos e valores de Eros são primários na realidade psíquica. A psicopatia é outra palavra para uma atuação [acting-out] inabalável, irrefletida e irremediável. O sociopata deposita sua patologia e sua psicologia sobre a sociedade. A sociedade deve ser culpada pela sua sina e a sociedade é o local em que ela pode ser desfeita – insiste o sociopata. O modelo de pensamento na sociopatia não difere do modelo da sociologia: ambas consideram a sociedade tanto causa quanto cura da aflição psíquica. Quando a realidade da psique é secundária em relação a realidade real “exterior”, o que resta fazer senão atuar [act out] nas ruas? O senex decretou que é onde a ação deve ocorrer, e o puer, tentando mudar a sociedade, é involuntariamente capturado pela crença de seu pai. Desse modo, ele é engolfado enquanto castra, incapaz de produzir real mudança. A mudança real está implicada na mudança arquetípica, uma mudança nos dominantes míticos de nossas percepções. Pois é o senex, também, que cria o problema geracional e a diferença geracional. O senex funciona em termos temporais13, sucessão, a visão patriarcal de pais e filhos. Quando usamos essa linguagem estamos novamente sob o domínio do senex. A despeito das bênçãos 12 Citado no capítulo 1 – Ed. 13 E. Panofsky, “Father Time”, Studies in Iconology (New York: Harper Torchbook, 1962). que oferece através do patrocínio e do patrimônio, a castração é inerente ao modelo geracional. Cronos, que castrou seu pai, também castrou sua paternidade. “Pai” e “filho” não quer dizer somente uma sucessão no tempo, mas múltiplas formas de encarnar o arquétipo ancestral. Há a forma paterna e a forma filial do eu ser eu mesmo, o avô e o menino – formas de representar o mito familiar. “Juventude” e “idade” são maneiras simbólicas de expressar certas realidades psíquicas por meio de personificações. É necessário que eu não esteja preso em uma dessas personificações para que minha consciência não seja a de um menino quando tenho a forma e a imagem de um velho, e vice-versa. A literalidade da mente saturnina poderia nos confinar nas nossas peles14 e em suas rugas, enquanto que a consciência pode desempenhar diferentes papeis no drama familiar, incluindo as figuras ancestrais e talvez aquelas que ainda não nasceram. A fantasia geracional, bem como sua guerra interior, é essencial para o motivo Urano-Cronos-Zeus. E para a Bíblia, um livro patriarcal que devota páginas e páginas à descendência geracional. A era da psicopatia nos ameaça com a possibilidade contínua de destruição imediata. Mas o inimigo não é mais como antes: um inimigo com planos, sonhos esquizoides de dominação mundial, enredos paranoicos. Não há um plano mestre; os assassinos entre nós já estão fardados ou só desejam causar um pouco de tumulto. A destruição vem de uma criança que não tinha nada de melhor para fazer em uma tarde ensolarada. Ou, possuído pelo puer, o assassino se torna sua própria força explosiva, uma tocha viva que purifica o mundo de podridão senex. Sua bomba relógio foi posta em suas mãos pelo Velho Rei. A consciência senex, quando apartada do puer, oferece destruição a esse convite crônico. A devoção senex à sua própria definição de ordem só deixa uma única porta aberta: a obliteração. Mesmo aqui, a contradição extrema e inerente de Saturno, sustentar e negar, é operativa. Além da senilidade e de seus contornos obsessivos, paranoides e melancólicos, também podemos acrescentar a ambivalência esquizoide às categorias diagnósticas da consciência senex. A destruição é uma de suas defesas. Não poderia a destrutividade do senex, constelada por ele mesmo, começar dentro de si mesma? O establishment não poderia ser desmantelado e desfeito através de reflexão? Os monumentos podem permanecer; mas sua dignidade pretensiosa não pode ser levada em seu 14 A pele pertence às fronteiras governadas por Saturno, assim como, segundo o folclore medieval, também governava as peles de animais, cascos de árvores, couros, crostas, cascas e conchas, ou seja, limites concretos. próprio grau de seriedade. A autodestruição da consciência senex poderia começar com compreensões sobre sua própria maneira de ser consciente – o suicídio através da mimese. A Saturnália fornecia uma destruição de hierarquia, lei, ordem e tempo. Ela trazia a Era Dourada de volta. Todas as fronteiras rebaixadas, a luxúria liberta, negações e precauções levadas pelo vento – dentro dos limites de seu próprio “jogo”. A Saturnália reincorporava o puer, seu sonho de liberdade e seu mundo fora do tempo. Mas a Saturnália é também um fenômeno interior pelo qual podemos ver a civilização, e nós mesmos, através da lente saturnina. Quando me vejo como uma caricatura do que eu sou, a Saturnália começa, e a aparência de minha loucura começa a brilhar através do sistema contra ela construído. Os gregos faziam piadas com Cronos, que era “um símbolo de caducidade e imbecilidade”15. Cronos era repleto de frases antiquadas, de banalidades dignas de um Apolônio, um velho ridículo que passou seu tempo dedicando-se à tolice gratuita da senilidade e que é destronado por seu filho. Mesmo seu dom profético estava obscurecido com referências a uma visão turva de olhos remelentos. Por mais sábio que seja, ele também é caduco. Parte do desmantelamento do poder de Saturno pode ser uma dádiva vinda de seu próprio tipo de humor – mesmo quando a perda da “alegria” é supostamente um sinal clínico de depressão. Piadas vulgares envolvendo latrinas, roupas de baixo e odores desagradáveis – que classicamente “pertencem” a Saturno – fazem o puer menino retornar à constelação. Aqui, até ver através “de baixo para cima” pode se tornar uma piada suja. A sátira também pertence a essa operação de desmantelamento. Elliott16 escreveu sobre as relações entre a Saturnália e a sátira, demonstrando que a forma literária é uma maneira de virar as coisas de cabeça para baixo. Tal estratégia também salva o senex de sua própria seriedade, ainda que não deixe de sustentar seu alto patamar na hierarquia superior. Pois, nesse raciocínio, se alguém consegue manter uma postura satírica em relação a seus complexos, se os enxerga como um Swift ou os retrata como um Daumier, de maneira grotesca, então poderia imaginar-se dotado de uma consciência penetrante que vê através das debilidades humanas. É um jeito de ser Deus, outra inflação do velho sábio. Esse tipo de 15A. O. Lovejoy e G. Boas, Primitivism and Related Ideas in Antiquity (New York: Octagon, 1965), 77ff.; H. Oeri, Der Typ der komischenAlten in der griechischen Kömodie (Basel: B. Schwabe, 1948). 16 R. C. Elliott, “Saturnalien, Satire, Utopie”, Antaios IX (1967): 412-28. “Muito pouco se sabe sobre os primeiros autores da Cronia grega”, Lovejoy & Boas, op. cit., 65, mas mostram materiais relevantes, 65- 70. compreensão não demonstra resultados psicológicos, permanecendo imóvel dentro da perspectiva senex que a tudo domina com poder cerebral, ainda que um poder apodrecido. Satiristas notoriamente não se aprofundam psicologicamente; meramente relustram seus estilos, reafiando o mesmo gume de sempre. Seja qual for o instrumento, a iniciativa principal é ver através desse estilo de consciência, destruir sua destrutividade com compreensão. Pois o senex não está no mundo exterior das instituições da sociedade mais do que qualquer velho deus estaria no mundo superior dos céus. Todos caíram nos mundos interiores e inferiores. Podemos encontrar o senex em nossos relatos solitários, arrumação da casa, adivinhações; sozinhos atrás do volante a caminho de casa; com a cabeça debaixo do chuveiro, sob o secador; solitários na mesa da cozinha olhando o café preto, na cama fitando a noite – a mente senex alinhavando as pontas desfiadas do dia, concedendo-lhes ordem. Aqui está nossa melancolia tentando produzir conhecimento, tentando ver através. Mas a verdade é que a melancolia é o conhecimento: o veneno é o antídoto. Essa é a compreensão mais destrutiva do senex: nossa ordem senex reside em nossa loucura senex. Nossa ordem é, em si, loucura. O velho rei é o insano Rei Lear, e o velho sábio, um homem louco como o profeta e o geômetra17, com sua obsessão pela inerte ordem parmenidiana, louco como um Conselheiro de Administração com suas tabelas de organização e seus gráficos de crescimento, como um General senex que chama suas armas de “brinquedos”. Quanto mais velhos nos tornamos, mais loucos ficamos, mas o senex dos nossos complexos pode prever o desfecho insano de cada complexo. “Toda visão interior é uma previsão”, diz Coleridge (em On the Constitution of the Church and the State)18. Thomas Browne transpôs a loucura progressiva do complexo para a linguagem moral: Mas a idade não retifica, somente encurva nossas naturezas, aprofundando más disposições em hábitos piores, e (como doenças), traz vícios curáveis; pois a cada dia que enfraquecemos em idade, nos fortalecemos em pecado... O mesmo vício produzido aos dezesseis não é o mesmo... aos quarenta anos, mas incha e se duplica pela circunstância de nossas idades... Quanto mais se dedica ao pecado, maior qualidade 17 Para mais sobre Saturno e a geometria, ver Saturn and Melancholy, 312ff., 327ff. 18 S. T. Coleridge, On the Constitution of the Church and the State [1830] (London: J. M. Dent, 1972), 52. maligna ele adquire; assim como sucede ao tempo, também se progride nos graus da maldade... como imagens da Aritmética, o último grau vale mais do que todos que vieram antes dele19. Contra o conhecimento prévio de sua própria loucura, e também contra a loucura em si, a consciência senex constrói suas fundações com ordens, sistemas, conhecimentos e justiças, que repetidamente não se sustentam na realidade, pois tais fundações são igualmente fantasias do complexo contra a sua acumulação de acentuadas “corcundas”. A consciência puer não vê a loucura do arquétipo. Ela transita entre os deuses como um belo Ganimedes servindo ambrosia, portador de suas mensagens, mas ignorante do horror das entrelinhas. (Quanto tempo demora para o puer em nós aprender a sofrer, a feder e a murchar, a encontrar o ácido, o sal, a lixívia, o chumbo e o estrume). O profeta da consciência senex, e o agrimensor, de fato sabem das proporções que os deuses podem adquirir e das loucuras que o arquétipo pode nos conduzir em seu excesso e enfermidade. O establishment é o refúgio: o reino do ego, de César e da consciência senex, uma fortaleza de sanidade, o que não deixa de ser igualmente uma fantasia. A única proteção é a dissolução dessa fantasia de sanidade; na linguagem de Joseph Conrad, a receita é “a imersão no elemento destrutivo” e o conhecimento do “horror, o horror”, que, neste caso, é a própria loucura especial de Saturno, sua melancolia. Penetrar no enigma da destruição senex implica adentrar no coração da escuridão. Se a sabedoria é o que mais almejamos e a destruição o mais que tememos, e se ambas são “filhas de Saturno”, então como aprofundar a primeira e escapar da última? Já que ambas as faces do senex regem nosso tempo e destino, haveria uma linha de fuga? II. Incurabilidade senex Uma “linha de fuga” – além da Saturnália e de suas travessuras e humor negro levando ao reconhecimento da compreensão da melancolia através da melancolia – reside no abandono total da noção de linha de fuga. Essa noção é, de qualquer forma, uma reação puer ao senex, cuja consciência prefere a cicuta dentro das paredes da prisão, a cura da morte. 19 T. Browne, Religio Medici (London: Everyman, 1964), 47. As imagens senex da ampulheta e do Pai-Tempo, da Ceifadora e do Velho com Barba Branca, entre outras, não são somente emblemas abreviados do processo temporal que toma lugar dentro ou fora de nós. Elas se referem à identidade antiga, discutida por Plutarco, por exemplo, do Kronos de Heríodo ao Cronos, Tempo. Os emblemas demostram que a estrutura arquetípica não diz tanto respeito a porções quantificáveis de tempo, ou processos temporais, passagem do tempo, quanto fala do tempo em si como uma realidade ontológica. De forma que lazer e preguiça são formas de “encontrar o tempo” ou de “passar o tempo”, e a retirada do fluxo do mundo é um jeito de ocupar-se com o eterno, sendo assim preenchido ou possuído por ele. Constância, luto, letargia e solidão não levam somente a desaceleração do tempo ou a retirada das coisas; elas são formas de experienciar a essência senex de Kronos-Cronos, em que tempo é uma qualidade que beira a uma infinitude não-processual ou inalterável (a fidelidade da amizade, o retorno das estações, a prolongada dor do luto), um estado de ser em que o devir está intensamente elevado ao seu próprio limite. Nesse sentido, a consciência senex é particularmente temporal, estruturando sua visão em termos de cronicidade. Ela visa ao eterno, uma vez que o eterno dura mais que tudo; e seu julgamento se baseia na verdade em termos de durabilidade, e não se a verdade promove a compreensão, se toca ao coração, ou traz beleza. A beleza, em si, é definida em termos e critérios inalteráveis de forma ou sentido, de verdades eternas, enquanto que a prova do amor não é o ardor, mas a constância. A máxima ídiche é uma máxima senex: “Ama-me pouco, mas ama-me demoradamente” [Love me little, but love me long]. Assim, se as coisas foram duradouras, elas estão conectadas ao arquétipo do senex, e se um complexo perdura, ele tende a se estabilizar, congelando-se em uma parte comum dos fundamentos psíquicos do sujeito, e finalmente, através da intratabilidade absoluta, transformando um fardo a ser escondido em um hábito a ser vestido. Na consciência senex, o tempo é a “cura”, no sentido de bronzeamento, curtimento, enrijecimento, arejamento seco, sal, fumaça, alúmen20. Para a consciência senex um complexo precisa permanecer verdadeiro a si mesmo. Através de constância e sofrimento, o vício eventualmente passar a considerar-se como virtude. Tenacidade (Saturno como tenax) é a chave, de forma que qualquer complexo suficientemente duradouro passa a oferecer os padrões da vida psíquica em geral. A psique torna-se dominada 20 Para exemplos de curas para problemas de saúde senex (rigidez das juntas, gota, dores reumáticas, hemorroidas, problemas de pele), por meio do metal chumbo,ver Mr. Goulard, A Treatise on the Effects and Various Preparations of Lead, Particularly of the Extract of Saturn (London: P. Elinsly, 1773). O extrato é feito, de acordo com o apêndice de G. Arnaud, com o vinagre mais intenso que puder ser encontrado. pelo seu elemento mais estável, seu complexo mais habitual e recorrente, que, por ser duradouro, influencia outras atitudes a escolher o mesmo caminho. Seus valores são temporais – tempo como história, como morosidade, ou como resistência a mudança. Se um hábito ou sintoma possui suficiente história pessoal, ou pode ser conectado a uma ideia histórica ou a um símbolo, então se tornam aceitáveis. “Sempre fui desse jeito”. Se uma compulsão pode ser percebida em detalhes ou como recorrente em um dado período (em um relacionamento, uma análise longa, uma obra de arte), ela é, ipso facto, parte de um estilo. Ou, novamente do ponto de vista da consciência senex, se uma questão não pode ser alterada, permanece recalcitrante e obstinada a qualquer tratamento, pela mesma virtude de sua durabilidade, ela então deve ser verdadeira e boa. A fixidez das coisas é a evidência de seu patamar superior na escala dos valores. Portanto, o senex faz as coisas durarem, serem difíceis de desmanchar, nós mesmos coagulados nesta ou naquela rigidez, e ao gradualmente ampliar seu reino estoico, acrescenta camadas na armadura do caráter em favor de nossa estabilização psíquica. O senex nos mantém em prolongada dor e em prolongado tratamento para a dor, nós mesmos como os servos e as vítimas do tempo, cronicamente capturados em ocupações que desejaríamos encerrar, em casamentos que quereríamos acabar, em hábitos que nenhuma resolução de Ano Novo poderia chanfrar. “Amadurecimento é tudo” passa a significar o mesmo que “tenacidade é tudo”21. III. Repressão e negação Pois há falsidade em nosso conhecimento, e a escuridão está tão firmemente plantada em nós que até nosso tatear falha. - Albrecht Dürer Estamos tão acostumados a nomenclaturas negativas dos arquétipos na psicologia junguiana que termos como “mãe negativa”, “animus negativo”, “tentativas negativas de restauro da 21 Maturação ou conclusão é uma das raízes conjecturadas para a palavra Kronos (H.J. Rose, A Handbook of Greek Mythology [London: Methuen, 1964], 69n.). Quando confundimos maturação com tenacidade [endurance] ou resistência, então repetimos a confluência mítica de Kronos com Cronos (Tempo); de forma que assim tenacidade [endurance] volta a se referir ao seu sentido radical de “duro”. A lógica senex então diz: o que está maduro em nós é o que está totalmente coagulado, uma pedra. Uma lógica dionisíaca de maturidade possivelmente nos conduziria ao que é doce e úmido, como uma uva madura. persona” e “sentimento negativo” se tornaram convenções de linguagem. O senex negativo deriva do mesmo tipo de epíteto, e ele também não basta. Primeiramente, deixemos claro que, porque o senex negativo não é um problema do ego, ele não pode ser alterado pelo ego. Não se trata meramente de uma questão de admoestações morais (como se o ego pudesse ser melhor, ser mais modesto, ou humilde, ou “consciente”). Tampouco se trata de um problema de atualização de ideias (como se o ego devesse “seguir em frente”). Viajar, para mudar ideias por meio de novas impressões, e assim desfazer coagulações, era a cura da depressão recomendada pela psiquiatria do século 19, e os antecedentes dessa prática remontam a Celso22. A raiz desse endurecimento também não seria um mero declínio da vitalidade biológica (como se o ego fosse obrigado a manter seu corpo em forma e ativo). Esses problemas no ego são mais consequências do que causas; eles refletem uma desordem anterior no solo arquetípico do ego. Que o senex negativo não seja o resultado do ego está bastante claro nos desesperados estados de acedia23 em que as causas são localizadas fora do ego. A psiquiatria fala de depressão endogênica ou metabólica e recomenda tratamento físico, como se afirmasse que tais estados são totalmente exteriores à influência da vontade e da razão. Portanto, precisamos questionar mais detidamente a negatividade da consciência senex. Tais fenômenos ancestralmente chamados de malefícios e relacionados a Saturno também requerem “salvação”, se desejarmos ser metodologicamente consistentes. Ao deixarmos um lado da fenomenologia senex nas sombras de um julgamento negativo, todos os fenômenos subsumidos sob essa rubrica – silencio, decadência e podridão, o foco na morbidade e na penúria, apatia, rigidez paranoide, impotência, dor psíquica – são abreviados, seus sentidos 22 J. Starobinski, Geschichte der Melancholiebehandlung von den Anfängen bis 1900 (Basel: Documenta Geigy, 1960), 67ff. A terapia para depressão em forma de viagem sugerida por Calmeil parece ter mirado em uma recuperação através da redescoberta da Antiguidade, um “Renascimento”, isto é, “o museu no lugar do hospital” e a rota da viagem atravessava o mundo clássico, Florença, Roma, Nápoles, Atenas. Fazia-se uma tentativa de reconectar quase que literalmente com as imagens da Antiguidade. O paciente junto ao seu tutor-guia-terapeuta de fato fazia escavações. Cf. Dictionnaire encyclopédique des sciences médicales III: “Lypemanie” (Paris, 1870). (Lypemanie foi um termo do século 19, tirado de Esquirol, para tristia sem delírio). 23 S. Wenzel, The Sin of Sloth, Acedia in Medieval Thought and Literature (chapel Hill: University of North Carolina Press, 1967). extirpados de suas fantasias, condenados. A fantasia é aprisionada na própria estrutura da consciência sobre a qual se fantasia. Por exemplo: o mais notório dos crimes senex, fielmente comentado desde a sua primeira aparição em Hesíodo, de Salústio a Goya – Cronos comendo seus filhos24 – como pertencente ao senex “negativo”; que doravante vem a assumir apenas um sentido, isto é, a deglutição da juventude pela idade, da alegria pela depressão, da liberdade pela forma, da imaginação pelo intelecto, da inocência pela experiência, etc. A mesma negatividade que atribuímos ao senex nos captura no senex negativo. Nos tornamos uma de suas crianças, nossa fantasia engolida pela posição arquetipicamente forçada sobre nós pela imaginação, e então cessamos de imaginar. Deixamos o dualismo básico da estrutura nos forçar a tomar uma posição, a familiar estância egoica que precisa escolher ou uma posição positiva ou uma negativa. É essa própria divisão, e não o que nós julgamos ser positivo ou negativo, que nos insere na consciência senex. Todos esses julgamentos sobre um arquétipo partem de uma perspectiva egoica, que retira do arquétipo o que ele deseja para sua autopreservação, rejeitando como “negativo” o outro lado e, dessa forma, acumulando compensatoriamente ainda mais negatividade. Ao fazer esse julgamento “negativo”, o ego é guiado pelo senex. A negatividade parece necessária ao senex. Por quê? 24 A fantasia de Cronos comendo a criança é levado a sério por Robert Graves (Greek Myths [Hammondsworth: Penguin, 1960], 1: 42), que escreve que “nos distritos atrasados da Arcádia, garotos ainda eram devorados em contextos sacrificiais, mesmo na era cristã”. Aqui, Graves se torna uma “criança de Saturno”, assumindo concretamente uma era passada quando crianças eram comidas. Ele localiza uma fantasia grega arquetípica na Grécia histórica e geográfica. Contudo, o culto norte-africano de Saturno de fato incluía sacrifício de crianças até o fim do século 2 d.C.; de acordo com Leglay (Saturne Africain, 1: 317), quinhentas crianças deveriam ser oferecidas em um único grande rito. O propósito parecia ser o de revigoramento do pai com a nova vida da criança, um ritual que garantia a saúde do deus e, consequentemente,a saúde da comunidade. Agostinho, que veio desse distrito onde Saturno governava (e que atacou Saturno em seus escritos), diz que os romanos não adotaram esse rito. De acordo com Leglay, o sacrifício de crianças não é uma prática greco-romana, mas pertence a Molk (Móloque) e, portanto, está inserido dentro do modo religioso púnico/fenício/cartaginense/africano. Leglay dá documentação completa. Para referências adicionais da fantasia do devoramento da criança, ver o meu The Myth of Analysis [O Mito da Análise] (Evanston, III.: Northwestern University Press, 1972), 276-77. Sobre Saturno como Móloque, ver Lovejoy & Boas, op. cit., 74f., Klibansky, 135n. Acredito que os hábitos de alimentação compulsiva de nossa juventude, incluindo a anorexia, assim como aqueles da velhice, podem ser explorados nos termos do mitologema senex-puer. Nós vimos que essa estrutura sofre de um “tensionamento excessivo”, que tende a ser vencida por uma compulsão a ordem. Por um lado, a antítese ocorre em Saturno como em nenhum outro deus, caracterizando uma consciência autodestrutiva, ambivalente e irracional. Por outro, é o princípio da sobrevivência duradoura por meio da ordem e, portanto, arquetipicamente compelido a negar sua própria natureza conflitante. Ainda que seja o “senhor dos opostos”, Saturno não é o “senhor das ambiguidades”, cujas oposições internas e ambivalências de sua essência poderiam nos levar a supor. Ao invés de ambiguidade, Saturno é patrono da precisão dedutiva e da mensuração, cujas lógicas negam a ambiguidade. A mesma natureza senex se expressa em pares de opostos coincidentes (a colheita e a praga, a verdade e o engano, o protetor e o ogro) e também necessita reprimir o paradoxo simbólico de opostos através de uma ordem separativa e racional. Eis sua tensão. Ademais, em sua própria tensão, as antíteses perduram: o senex que carrega consigo extrema tensão é o mesmo princípio que busca retornar à Era Dourada e se livrar da tensão interna (Freud). O mesmo princípio constrói um universo na razão e também encontra a estrutura de sua razão em antinomias incompatíveis (Platão em Parmênides, Nicolau de Cusa, Kant). O mesmo princípio que, de um lado, insiste no concreto, no literal e também no lógico, e de outro, também adentra nas profundezas da mente expressáveis pelo que Empson chamava de o sétimo tipo, ou definitivo, da ambiguidade25. Os jeitos de produzir ordem26 são muitos e sintetizamos alguns deles aqui. O triunfo final da compulsão a ordem é a formação do ego, e essencial para essa formação são seus hábitos epistemológicos. O senex constrói o ego ao excluir terceiros termos, ao manter os opostos em 25 W. Empson, Seven Types of Ambiguity, ver. ed. (London: Chatto & Windus, 1947), esp. 192-97, 232-33. 26 A forma de ordenação particularmente cara à teoria junguiana é pelo número (tradicionalmente uma província de Saturno, mesmo que tradicionalmente seja atribuído a Minerva e Mercúrio). Jung, quando idoso, voltou-se particularmente aos números para estudá-los como “o arquétipo da ordem” (CW 8: 870). O interesse de Jung foi subsequentemente trabalhado por M. -L. von Franz em seu Número e Tempo (Evanston, Ill.: Northwestern Univ. Press, 1974) onde encontrarmos muitas imagens e conceitos, assim como preocupações, da consciência senex. A. Plaut, “The Ungappable Bridge: Numbers as Guides to Objects Relations and to Cultural Development”, Journal lof Analytical Psychology 18/2 (1973) também tenta uma ordenação fundamental do mundo psíquico por meio dos números. O número fantasia surge em um contexto de opostos antitéticos (a ponte imperturbável entre sujeitos e objetos, ou entre a medicina e a psicologia [von Franz]) como uma forma de uni-los. extrema tensão, especialmente através de suas regras e leis que sustentam fronteiras, categorias, muralhas. Esses hábitos do pensamento foram desvendados pela lógica de Aristóteles, os axiomas e provas de Euclides, as classificações de Lineu, as antinomias de Kant. E tais hábitos seguem o Estrangeiro de Platão, que diz: “Devemos continuar como antes, sempre dividindo e escolhendo apenas uma parte, até chegarmos ao cume de nossa escalada e ao objetivo de nossa jornada” (Político, 268d-e). Particularmente importante para a consciência senex é a lei da contradição. Opostos, tais como o puer e o senex, tornam-se contradições. “A oposição”, defende C. K. Ogden27 em seu ensaio sobre o sujeito, “não deve ser definida como o grau máximo da diferença, mas como uma forma especial de repetição, nomeadamente, de duas coisas similares que são mutuamente destrutivas em virtude de sua semelhança”. Mas a contradição congela a destruição em exclusão mútua: o ou/ou da negação. Dentro do princípio da negação residem todos os julgamentos de positivo e negativo de quaisquer esferas – moral, estética, psicológica. Até mesmo o “in”-consciente foi nomeado de maneira senex, o que faz com que percamos sua similaridade com a consciência e, ao contrário, o experienciemos como seu oponente negativo. O ego, também, nos escritos finais de Freud, foi definido através da influência senex da negação28. 27 C. K. Ogden, Opposition, A Linguistic and Psychological Analysis (Bloomington: Indiana University Press, 1967), 41. 28 Em Beyond Pleasure Principle [Além do Princípio do Prazer] (1920) (London: The International Psychoanalytical Press, 1950), a descrição que Freud faz do ego soa como uma formulação da consciência senex, como se Freud fosse uma “criança de Saturno” quando o ensaio foi escrito. Ele escreve que a psicanálise “primeiro veio a conhecer [o ego] como uma ação repressiva, censora, capaz de erigir estruturas protetivas e formações reativas” (69-70). Ele faz uma “distinção precisa entre pulsões egoicas, que nós equacionamos às pulsões de morte, e pulsões sexuais, que nós equacionamos às pulsões de vida” (71-72). A pulsão de morte, usando o ego como seu instrumento de repressão, mostra-se por meio do sadismo e do ódio. O ego se opõe à conjugação das entidades (Eros), implicando, dessa maneira, que o ego é o fator segregador e isolante da psique. Acima de tudo, para nossa ênfase acerca da formulação saturnina de Freud, a pulsão de morte busca “remover a tensão interna” (78) e “restaurar um estado anterior de coisas” (79). A “compulsão a repetição que nos coloca nos trilhos da pulsão de morte” (ibid.) está de acordo com “o esforço mais universal de toda substância viva – nomeadamente, o retorno a quiescência do mundo inorgânico” (86). Nos recordamos das inclinações de Saturno para os símbolos inorgânicos e abstrações. O ego como pertencente ao senex na concepção de Freud é uma ideia que A negação, de acordo com Freud, é repressão: “Um julgamento negativo é o substituto intelectual para a repressão; o “Não” no qual ele é expresso é a marca da repressão”29. Aqui, Freud desloca a negação da filosofia para a psicologia. Ele a viu como um equivalente da repressão. Mas por que esse tipo de repressão? Kant responde: “A província peculiar dos julgamentos negativos existe unicamente para evitar o erro”30. Em outras palavras, esse tipo de repressão que chamamos de negação mira particularmente na manutenção de um ideal e no aperfeiçoamento da visão de verdade e ordem, o cosmos senex. A condição para que a repressão seja necessária é a consciência significar ordenação, e ordenação por meio da negação. Outras perspectivas arquetípicas – lunares, herméticas, heroicas, apolíneas, etc – organizam o mundo sob diferentes lógicas criando diferentes estilos egoicos. Mas o ego senex prospera sobre a repressão e faz derivar sua energia da força de seus limites. Amplifique repressões e o ego enfraquecerá – o que não é de todo verdade, por exemplo, em um cosmos dionisíaco. Mas aumente repressões para o senex eo ego perderá seu papel no controle central. Desprovido de seu apoio arquetípico no senex, ele é “invadido”, torna-se “inconsciente”, um rei destronado, errante como Lear e em busca do amor, e cujas mais profundas expressões do amor chegam no fim, sobre a morte, na forma de um “Nunca” (Rei Lear, 5. 3). A psicanálise que amplia repressões não foi originalmente pensada para quem aparece ainda com mais força em seu texto “Negation”, Collected Papers V (London: Hogarth Press, Institute of Psycho-Analysis, 1950), 185: “A afirmação... pertence ao Eros, enquanto que a negação... pertence à pulsão de destruição... Essa visão de negação se harmoniza muito bem com o fato de que em análise nós nunca descobrimos o ‘não’ no inconsciente, e que o reconhecimento do inconsciente por parte do ego é expressado de forma negativa”. 29 Freud, “Negation”, 182. 30 A passagem aparece no começo da Parte I da Doutrina Transcendental do Método, em A Crítica da Razão Pura, trad. J. M. D. Meiklejohn (London: Everyman, 1934), 407. “Julgamentos negativos – aqueles que não o são meramente no que diz respeito à lógica, mas a respeito de seu conteúdo – não são comumente considerados em respeito especial. Eles são, ao contrário, considerados como invejosos inimigos para nosso desejo insaciável por conhecimento; e quase requer um pedido de desculpas para nos induzir a tolerar, muito menos para premiá-los e respeitá-los. Todas as proposições, de fato, podem ser logicamente expressas de uma forma negativa; mas em relação ao conteúdo de nossa cognição, a peculiar província do julgamento negativo existe somente para que o erro seja evitado”. Para a necessidade do erro, ver meu ensaio “Sobre a Necessidade da Psicologia Anormal”, Eranos Yearbook 43 (1974) e para uma discussão sobre erro e errância (vaguear, fantasia), ver meu Re-Vendo a Psicologia, capítulo 3. envelhece. A repressão é inerentemente necessária para a consciência senex, consequentemente emanada de suas antíteses internas. A repressão em nossa cultura há muito tem sido associada com analidade. Freud atribuía ao caráter anal três principais características: “Eles são excepcionalmente ordeiros, parcimoniosos e obstinados”31. Esses traços, junto a outros posteriormente elaborados (inibição, sadismo, uma especial obsessão em relação ao tempo), parecem uma descrição em linguagem psicanalítica do senex clássico. A relação entre o ânus e a melancolia tem uma longa história. Um tratamento específico da melancolia, até Pinel levantar uma voz humanizada e oficial contra tal ação, consistia na mais violenta forma de expurgo, o heléboro32. Por meio de sua ingestão, esperava-se livrar a melancolia de sua excessiva bile negra. As fezes enegrecidas (na verdade, sangramentos internos) eram erroneamente assumidas como evidências de seu sucesso. Datando da época dos escritos hipocráticos, o reestabelecimento das hemorroidas era um sinal prognóstico favorável no quadro melancólico: o sangramento anal convocava o excesso e o humor venenoso. Esquirol no começo da psiquiatria moderna e Calmeil em 1870 ainda encontraram coincidências entre o reaparecimento do sangramento anal com a cura da melancolia33. Norman O. Brown escreveu o estudo definitivo sobre repressão e analidade34. Tantas são as qualidades e funções senex discutidas em seus capítulos que constituem um apêndice 31 Freud, “Character and Anal Erotism” [Caráter e Erotismo Anal], Collected Papers II (London: Hogarth Press: Institute of Psycho-Analysis, 1953), 45. 32 Heléboro (raiz negra), ainda que frequentemente usado em conexão à melancolia, não era específico para ela; era também empregado em outras desordens mentais e físicas. Para uma descrição de sua violência, ver “elléborisme” em Dictionnaire des sciences médicales (Paris: 1815); ver também o artigo de Pécholier em Dictionnaire encyclopédique des sciences médicales, XII (Paris: 1886). Na medida em que a melancolia foi compreendida de forma literalista como uma doença da bile negra, tudo que poderia induzir à purgação de seu negror ou de sua acumulação no sangue era tido, consequentemente, como agente terapêutico. O alívio usual da parte inferior do corpo ocorria por meio da menstruação e do sangramento hemorroidal. Ver E. Fischer-Homberger, Hypocrondie (Bern: Huber, 1970), 23. A fúria negra, temperamentos negros, e o espírito negro da disposição saturnina encontram seus precursores nos textos gregos clássicos, ver F. Kudlien, “Die Urgeschichte der griechischen Begriffe ‘Schwarze Galle’ und ‘Melancholie’”, em Der Beginn des medizinischen Denkens bei den Griechen (Zurich/Struttgart: Artemis Verlag, 1967), com notas. 33 Starobinski, op. cit. 18. 34 N. O. Brown, Life Against Death (New York: Vintage, 1959), Part V, “Studies in Anality”. contemporâneo ao material apresentado em Saturn and Melancholy, demonstrando a consistência do arquétipo. Para Brown, analidade e repressão pertencem a um mesmo agrupamento simbólico, de forma que o fim da repressão (o telos de seus próprios escritos) também significaria o fim do caráter anal e de sua civilidade repressiva. O que, também, encerraria o tipo de ego ao qual aprendemos a chamar de civilizado, mas que, para ele, que nunca perde de vista o papel da negação nesse tipo de consciência, é sádico, avaro, paranoide e suicida. Para se levar adiante o pensamento de Brown, requer-se, primeiramente, traçar distinções entre três termos – consciência senex, repressão e analidade, tanto como símbolo quanto como zona corporal35. Deveremos inicialmente livrar a repressão de seu foco anal e de sua redução ao caráter anal. Para que seja abrangente, a sequência deve ser: arquétipo senex, e então repressão, e então analidade. Visto que o senex inclui a repressão como um atributo, então a repressão, por sua vez, inclui o ânus. A repressão é primária ao senex; a analidade é secundária. (Sentido e verdade, envelhecimento, melancolia, o possuidor de outras características já mencionadas não pode ser de todo reduzido, mesmo pelo sistema psicanalítico mais selvagem, a analidade). A analidade não é a condição ocidental básica, mas a consciência senex, que se focou repressivamente sobre o ânus de forma a retirar as energias libidinais que dele emanam36. O principal problema na posição de Brown é seu comprometimento com a hipótese materialista que postula o corpo como anterior à psique. Assim, traços psíquicos como repressão e negação se tornam secundários à real zona libidinal do ânus. Quando eventos psíquicos derivam do corpo, o corpo se torna algo diferente da psique, um campo no qual 35 Outras partes corporais e aflições tradicionalmente associadas a Saturno são: vesícula biliar, bile negra, ossos e cabeça, bexiga, pele e pelos, a orelha direita (e sua surdez), tontura, todas as doenças lentas (reumatismo) e febres, condições crônicas, qualquer inibição de funcionamento (aleijamento, problema de fala, impotência), excreções (fezes, cálculos renais; urina, reuma dos olhos e do nariz): cf. Picatrix: Das Ziel des Wiesen von Pseudo-Magriti, trad. H. Ritter & M. Plessner (London: Warburg Institute, 1862). 36 Ver Freud, “On the transformation of instincts with special reference to anal erotism” [Transformação dos instintos, em particular no erotismo anal], Collected Papers II, 164. “... Cada uma das três qualidades, avareza, pedantismo e teimosia, vem de fontes eróticas anais – ou, para expressá-lo de maneira mais cautelosa e mais completa – vêm de poderosas contribuições dessas fontes”. No sistema da Yoga Kundalini, a consciência associada ao Muladhara, o centro corporal “localizado” na região coccígea do ânus e do genital, não tem um caráter especificamente anal ou genital, mesmo quando se vale de contribuiçõesde fontes arquetípicas anais ou genitais. podemos “confiar” enquanto “solo seguro”, algo mais velho, mais universal e objetivo. O corpo começa a assumir outro nível de realidade, não mais o corpo experienciado pela imaginação. Ele se torna um conjunto de conceitos baseados nas observações externas e composto por conteúdos ontológicos e morais. Eu seria o último a me juntar ao que Brown considera ser a deserção neo-freudiana da “compreensão psicanalítica inicial sobre a base corporal de todas as superestruturas ideológicas”37. Mas deixemos corpo e alma juntos, não considerando nenhum mais primário que o outro, nenhum mais real, básico ou valioso. Na medida em que fantasiamos o corpo enquanto uma “base”, nós criamos um objeto biológico de outra ordem separado do que ele porta. A antítese inerente a todo pensamento implica que sempre que elevamos algo, no mesmo momento também rebaixamos algo. Sempre que precisamos focar no corpo, nós começamos igualmente a perder contato com ele. Ao livrarmos a repressão de sua redução a um enfoque corporal, também poderemos livrar esse foco, o ânus, da repressão da consciência senex. Se nele reinasse Afrodite, se converteria em uma região de alegria libidinal e amor sexual; se fosse o trickster, um reino de brincadeiras irresponsáveis e piadas; se fosse o heroísmo hercúleo (que tende a servir a um velho rei), um trabalho de limpeza, uma empreitada cultural; Deméter38, a quem pertence a digestão, uma parte despudorada do ciclo de crescimento e morte. Em outras palavras, uma psicologia arquetípica pode imaginar zonas corporais e funções através de várias perspectivas. Outra “visão excremental” (Brown) seria possível se a consciência senex e sua repressão não mais se fixassem na analidade. A repressão precede a fase anal e torna possível a organização infantil da libido através de fases; a repressão precede e permite a existência da própria civilização. Porque a repressão pertence ao arquétipo senex, ela possui uma fonte arquetípica, não uma fonte anal. 37 Brown, Life Against Death, 203. O apoio para a hipótese de uma “base corporal para todas as superestruturas ideológicas” vem de algumas teorias da linguagem, por exemplo, O. Jesperson (Negation in English and Other Languages, 2nd ed. [Copenhagen: A. F. Host, 1966], 6ff.) que escreve: “... o velho negativo ne, que assumo estar junto da variante me, uma interjeição primitiva de desgosto, acompanhada pela expressão facial de contração dos músculos do nariz... Essa origem natural explica o fato de que começos negativos com sons nasais (n, m) são encontramos em muitas linguagens fora da família indo- europeia”. 38 Diógenes Laércio VI, 69 sobre Diógenes, o Cínico: “Era o hábito [de Diógenes] fazer tudo em público, tanto os trabalhos de Deméter quanto os de Afrodite”. Freud notou que o “recalcado permanece inalterado pela passagem do tempo”39. O que foi reprimido não decai, nem desaparece – tampouco se desenvolve. Mas uma vez que o ego, esse sim, se desenvolve, a repressão faz com que o próprio tempo interior fique fora de ordem, partes moventes e partes estagnadas. Façamos então uma inversão proposital da observação de Freud e digamos “para conservar os complexos inalterados pela passagem do tempo, recalque-os”. Saturno é o grande conservador que traz todas as coisas para a atemporalidade, de uma maneira ou de outra. Repressão e negação servem a esse propósito. Até então, analisamos a repressão como um mal, uma atividade egoica, um mecanismo de defesa que gera a neurose. Poderia a repressão ser vista de forma nova? Poderia esse fenômeno ser “salvo”? Quais são suas necessidades? Se a repressão descontextualiza eventos psíquicos de seu próprio tempo, ela os traz de volta para a atemporalidade. Do ponto de vista do ego, isso é regressão. Mas o ego é, ele mesmo, um dinamismo pululante, que heroicamente projeta-se para o futuro, chaminés que liberam um rastro de poluição, o rugido imperturbável da história que fica para trás. O ego anseia pelo tempo e nunca o tem suficientemente. Retirar as coisas do tempo encerra seus movimentos na história, seus crescimentos e mudanças. Quando reprimimos algo fora do tempo, o complexo se reaproxima da atemporalidade do mundo arquetípico. É claro, isso implica que o componente infantil do complexo permanece cronologicamente intocado. Mas o componente infantil é também a juventude do complexo, seu aspecto pueril, sua primordialidade. Se, seguindo Freud, podemos falar de um “recalcado primordial”, então a repressão é primordial. Ainda que Freud situe a repressão no ego, constatando que “nós nunca descobrimos o ‘não’ no inconsciente”40, é mais preciso afirmar que repressões (como projeções) acontecem antes de o ego ser formado e, mais, que a repressão forma o ego como o conhecemos. Porque a repressão é dada primordialmente com id, ela é arquetípica e necessária. Ela pertence aos arquétipos, especialmente o senex. Podemos imaginar a repressão dessa maneira. A ordem dos poderes primordiais requer limites41 entre eles. A consciência de um tende a excluir a consciência do outro. A repressão mútua entre suas perspectivas é uma contra-tendência à sua própria vinculação42. “Um deus 39 Freud, New Introductory Lectures on Psychoanalysis (London: Leonard and Virginia Woolf at the Hogarth Press, and the Institute of Psycho-Analysis, 1933), 99. Ver Beyond the Pleasure Principle, 33; e Life Against Death, 274-77. 40 Freud, “Negation”, loc. cit. sup. 41 N. O. Brown, ‘Boundary” in Love’s Body (New York: Random House, 1966). 42 Ver o meu Mito da Análise, 264. mantém o outro sob controle”43. Todos reprimem-se mutuamente. A repressão estabelece seus limites e reflete um aspecto senex que estabelece ordem através do mundo arquetípico pela negação que evite qualquer poder de exceder sua necessidade. Do mesmo modo que a repressão afirma seus limites dentro do arquetípico, por meio da repressão afirmamos os limites dos padrões pelos quais vivemos. Os papeis que desempenhamos se situam dentro da pele deste ou daquele padrão arquetípico. Suspender repressões é também perder os limites e borrar as distinções entre os modos de existência. O pano de fundo politeísta da existência requer uma repulsão contínua das energias entre formas, entre polos negativos de dois filões magnéticos. Os deuses, que juraram por Estige (ódio), mantêm-se em seus confins e não invadem esferas que não são suas. E cada deus igualmente tem seu estilo de exclusão, de forma que quando reprimimos, o fazemos sempre a partir de um estilo ou de outro. A repressão pode ser diferenciada por meio do mito: quem está excluindo quem? Não há um ato global de repressão geral a menos que nosso estilo esteja modelado por um princípio monoteístico que começa pela exclusão de todo o resto, isto é, nenhum outro deus. Uma descrição acurada do inconsciente coletivo afirma a multiplicidade de centelhas que não pode ser formulada por sincretismo, panteísmo, ou monoteísmo unitarista. Cada um desses “ismos”, ao amalgamar e unificar, perde as distinções dadas pela repressão. O reino imaginal também pede por limites fixos, do contrário não haveria geografia imaginal. Não é somente o espaço interno que conta, mas os espaços internos, uma precisão de topoi, cada figura arquetípica no contexto bem definido de sua paisagem, de seu clima44. Se a Era Dourada é a utopia onde (e não quando) Kronos-Saturno reina, então a Era Dourada é uma topologia do primordialmente reprimido, onde a repressão continuamente produz diferentes locais para a distinção das imagens primordiais. Nossas repressões humanas conservam a vida psíquica do desenvolvimento para além da primordialidade. Sim, elas mantêm os complexos no campo da infantilidade, isto é, em sua infância – mas isso não quer dizer:perto do imaginal? A repressão primordial poderia ser invertida para significar reprimido em nome da primordialidade, o retorno do recalcado, a visão transcendente dessa terra que chamada “era dourada”. O propósito fundamental e a contumaz intenção da consciência senex de Cronos é o retorno a esse lugar da imaginação. Reprime-se para restaurar a perfeição. Sua consciência é utópica. Só existem as contradições superadas. 43 H. Usener, Götternamen (Frankfurt: Verlag C. Schulte-Bulmke, [1895] 1948), 348. 44 Sobre topografia imaginal, ver E. S. Casey, “Toward and Archetypal Imagination”, Spring: An Annual of Archetypal Psychology and Jungian Thought (1974). O lócus da imagem é particularmente importante na arte da memória, em na geografia do imaginal nos escritos de Corbin. Se perguntarmos pelo que é reprimido, a resposta emerge tanto de Freud quanto do mito. O reprimido é o infantil, as crianças de Cronos que representam as outras variedades arquetípicas da imaginação. As crianças devoradas pelas infantilidades que nutrem a vida da fantasia e que foram vistas pela psicodinâmica freudiana como neuróticas e regressivas. Esses deslocamentos, distorções, simbolizações e fantasias são as crianças fermentando interiormente, produzindo o excesso de pneuma e elevando os poderes imaginativos do senex às raias do exagero. Na consciência senex, a criança precisa ser devorada. Isso pertence ao mito. Não é algo “negativo”. Para o neoplatonismo (Salústio), comer crianças reflete a autofertilização introvertida em que “devorar denota uma união de si com a própria substância”45 – a própria semente e o cultivo dessa semente46. Da perspectiva da consciência senex, enquanto as crianças permanecerem dentro, elas estãarão no lugar certo; devorá-las as mantêm vivas. O problema irrompe quando elas irrompem. Pois Saturno é dirigido tanto pela urgência de percepção concreta quanto por sua mente extravagante. Ele vive em duas casas vizinhas, Capricórnio e Aquário. A necessidade de materializar abstrações e imagens transforma a criança interior em uma pedra objetiva, o pensamento materializado e literalizado que é tão característico do senex. Dessa forma, o que vemos é o mesmo arquétipo que tanto contém quanto quebra a contenção. A fermentação o excede porque Saturno tem fome pelo concreto. Ele constrói seu receptáculo muito literalmente. Quando o receptáculo da fermentação psíquica é definido pelo 45C. O. Miller, Introduction to a Scientific System of Mythology (1825), trad. J. Leitch (London: Longman, Brown, Green and Longmans, 1944), 308; a discussão sobre Salústio está em seu Concerning the Gods and the Universe, A. D. Nock, ed. (Cambridge: The University Press, 1927), par. 4. O conto de Uranos-Cronos- Zeus recebeu inúmeros comentários, especialmente neoplatônicos. Comparar com F. Bacon, Cogitaciones de scientia humana (1605), Sp. III, 86; Sp. VI, 723-25. Este e outros mitos “explicados” por Bacon estão no livro de P. Rossi, Francis Bacon (London: Routledge & K. Paul, 1968), 73-134. Vico contribui mais com uma hermenêutica sociológica (T. G. Bergin & M. H. Fisch, The New Science of Giambattista Vico, Livro II, par. 587 [Ithaca, N. Y. Cornell University Press, 1968], 213). Para uma elaborada fantasia sexual apresentada como uma “interpretação” acadêmica do mitologema, ver G. S. Kirk, Myth, Sather Lectures, (Cambridge e Berkeley: University of California Press, 1970), 218: “... O mito parece transmitir uma mensagem sutil, que excessos e atos não-naturais no reino do sexo e do nascimento levantam contrabalanceamento e excessos dissuasivos na outra direção”. Para outra perspectiva, arquetípica dessa vez, sobre o mito, ver M. Stein, “The Devouring Father”, em Fathers and Mothers, ed. P. Berry (Zurich: Spring Publications, 1973). 46 Ver “On Seeds”, Apêndice III, em Skarstrom, op. cit. senex, nós estipulamos códigos sacerdotais e pesadas leis técnicas para a alquimia, as práticas espirituais, a psicoterapia, selando-o com proibições literais – o que faz com que o receptáculo precise quebrar, e Saturno se autodestruir. A consciência senex assume o segredo hermético literalmente como repressão saturnina. O mistério se torna mudez; o Não a defensa sempre necessária. Ao começarmos com uma fantasia da repressão primordial – ao invés dos atos repressivos refletidos no ego – podemos ver a necessidade da repressão na vida psíquica. Nós a imaginamos como uma forma dos deuses afastarem-se em mútuo respeito. Eles se mantêm perpetuamente em conexão com Saturno e limitados por sua ordem restrita. Porque ele é pai de Zeus, os princípios de exclusão, repressão, negação e limitação são pais dos atos criativos. As limitações que Saturno impõe desde as bordas exteriores das esferas sobre os outros deuses e as que a consciência senex impõe sobre a psique podem ser vistas como uma forma modificada de negação. Lá reside um valor real no ego saturnino informado pelo espírito senex da limitação. Conheça-te a ti mesmo se torna conheça teus limites, limites que são poderes que não pertencem a qualquer humano. O ego, então, não mais é um fazedor e um construtor, um criador, ou portador de qualquer expectativa romântica que o herói nos requeira. O ego se torna um conservador, uma figura guardiã, ou uma testemunha das fronteiras de um reino enfraquecido, que cochila na borda da loucura estrelada em relação contínua com o que está “lá fora”. A consciência da limitação é regente e, ao mesmo tempo, está exilada. Ela flutua entre complexos, um vigia na noite de suas fantasias, mantendo o tempo através da mensuração das imagens que cortam o céu interior, um astrólogo de constelações. Caídos os heróis, seu papel se dá entre a depressão e o sacrifício; pois limitação significa servir a Saturno, o deus do sacrifício: Moisés e Abraão, patriarcas, demandando a totalidade, “custando não menos que tudo”, tão semelhantes a Móloque. O reino encolhe; a diminuição é ascendente; o que não for sacrificado, de qualquer forma, decairá. Mas o sacrifício, que é a depressão sob outro disfarce – e é também limitação – não é um gesto único. Através da depressão prolongada, o sacrifício se torna crônico; mantém-se o sacrifício e perpetua-se a limitação em um modo mimético do deus senex. IV. Uma solução renascentista O intelecto especulativo não pensa em nada do que é prático e não é assertivo sobre o que deve ser evitado ou perseguido. - Aristóteles, De Anima, III Como chegar a um acordo com o arquétipo em sua totalidade foi a questão que Marcilio Ficino (1433-99), o psicólogo mais profundo do Renascimento, lidou ao longo de sua vida. ... Ele mesmo era um melancólico e um filho de Saturno – o último dado, de fato, em circunstâncias particularmente desfavoráveis, pois em seu horóscopo, a estrela negra, cuja influência ele tão inabalavelmente acreditava, estava em seu ascendente e que, ademais, estava no signo de Aquário, a “residência noturna” de Saturno. É incomumente esclarecedor ver como a noção de Saturno de Ficino, bem como sua melancolia, brotaram de seu fundamento pessoal, psicológico, pois não há dúvida que ele, à despeito de sua familiaridade com Dante e o antigo neoplatonismo, fundamentalmente considerava Saturno como uma estrela essencialmente de azar, e a melancolia como um destino essencialmente infeliz, de forma que ele tentou fazer frente a isso nele mesmo e nos outros por meio das artes médicas que ele havia aprendido com seu pai, aperfeiçoadas pelo seu próprio treino e, finalmente, firmemente embasadas na magia astral neoplatônica.47 47 Saturn and Melancholy, 256. Em uma carta ao seu amigo Cavalcanti, Ficino discorre sobre seu horóscopo: “Saturno estabeleceu-se nomeio de Aquário, meu ascendente, recebendo a influência de Marte no mesmo lugar; a Lua está em Capricórnio... O Sol e Mercúrio em Escorpião, outra casa catastrófica dos céus. Vênus em Libra e Júpiter em Câncer talvez tenham sofrido alguma resistência quanto ao que concerne minha natureza melancólica”. (“Lettres sur la Conaissance de soi et sur l’astrologie”, trad. et ann. Par. A. Chastel, in La Table ronde [n.d.]). A tradução do francês para o inglês é minha, originalmente em latim na Basel Edition (1576). Ver Saturn and Melancholy, 256ff. com notas, para as versões em inglês e em latim das muitas cartas. O resultado de sua dedicação foram três volumes, De Vita Triplici (1482-89)48, sobre os sintomas e a terapia da consciência senex. Nesse trabalho, ele se autoriza a uma identificação total com seu sujeito; opus e operador afetados pela mesma constelação: O sistema de Ficino – e este talvez tenha sido seu principal êxito – foi planejado para dar à “contradição imanente” de Saturno um poder redentor: o melancólico altamente dotado – que sofria sob Saturno, na medida em que o deus atormentava o corpo e as faculdades inferiores com pesar, medo e depressão – poderia salvar a si mesmo através do próprio ato de voltar-se voluntariamente para o mesmo Saturno.49 O poder redentor da contradição senex foi descoberto no ato de voltar-se para sua própria contradição. A antítese de sua natureza libera compreensão curativa. A compreensão é uma função do pensamento; contemplação, especulação, música, matemática, e especialmente a imaginação, se tornam via regia. Os problemas são tomados em seus extremos, onde não mais constituem realidades vivas, mas se tornam fantásticas, refletindo sua fonte na realidade imaginal. O mundo é levado de volta ao seu logos, o fim ao seu começo no nous. As questões são retiradas do estreito campo da depressão particularizada e expandidas para a contemplação melancólica dos universais impessoais e imaginais. A acedia do silêncio e da introspecção através da recusa de culpar qualquer pessoa que não a si próprio, de culpar suas próprias estrelas, conduz até o espaço interior, memoria. Crucial para esse movimento interior foi a percepção de que a interioridade precisa ser negra e vazia, do contrário o antídoto não poderá nascer do veneno. O enfoque rígido e autocentrado sem fugas para esperanças futuras é precisamente o método melancólico, um processo arquetípico de autocorreção. 48 Ver T. Moore, The Planets Within: The Astrological Psychology of Marsilio Ficino (Great Barrington, Mass: Lindesfarne Press, 1990); Marsilio Ficino’s Book of Life, trad. C. Boer (Dallas: Spring Publications, 1980). 49 Saturn and Melancholi, 270-1. Em uma carta ao Arquibispo de Florença, Ficino descrevia a depressão que muito o tolhia. Após um favor que a ele foi negado, ele disse, “Eu estava fortemente estarrecido e procurei com o maior cuidado a razão dessa série de desordens. Não encontrando nenhuma razão na Terra, a encontrei nos céus”. Chastel sugere que esse fora o início da “obsession saturnienne” de Ficino. (“Lettres”, 200). A própria agitação e os pensamentos recorrentes que acompanham a estreita solidão e o monólogo imaginal interior são atividades periféricas que seguem o compasso de todo centramento. As contradições entre centro e circunferência aparecem no paradoxo da “depressão agitada” – mãos que se pressionam, necessidade por ritmo consistente, insônia. O santo do deserto, intensamente focado, é assaltado por distrações tagarelas; o Velho Rei deseja ser deixado em paz com seus livros ao mesmo tempo em que está ocupado defendendo suas longínquas fronteiras. (Somente quando estamos capturados em uma fantasia de centramento é que nos preocupamos com “dez mil coisas”). A estrutura trabalha à moda obsessiva a partir de sua oposição interna. O símbolo corporal é ainda a cabeça50. Na velha doutrina médica (Hipócrates): “A fatiga da alma vem do pensamento da alma”51; a nova visão de Ficino vira essa lógica de cabeça pra baixo. Agora, os esforços mentais restauram a alma. Sua fatiga é sua porta de entrada. Apatia, acedia, depressão não são meramente sintomas de algo errado que precisa ser curado, mas indicativos do que a alma está naturalmente buscando, isto é, uma completa percepção da via imaginativa. Similis similibus curantur. O senex é a sua própria possibilidade inerente de transcender sua “tensão excessiva”. O arquétipo, por mais enfermo e prejudicado que possa ser, como os deuses neoplatônicos, que são imortais, está a se autoperpetuar; sua energia não se esgota. Ele busca métodos para sua própria revivificação. Alguns desses métodos de revivificação já foram vistos: a pedofagia onde a criança é consumida para permanecer fermentando dentro do pai; a adoração ancestral (que é a adoração do “arquétipo”) dos mais velhos que refletem o passado, que os vê nos netos; o furor melancólico em que as fúrias silenciosas e negras agitam a alma; a depressão que suga energia de seus arredores; o retardo a serviço da perpetuação; a Cronia ou Saturnalia através das quais uma reversão de valores restaura as leis do deus. Através de cada um desses métodos, o arquétipo se sustenta. Quando um psicoterapeuta considera ser benéfico para o sujeito depressivo não resistir a sua depressão, ou para sujeitos mais velhos ocuparem-se com os pensamentos, as visões e as 50 Saturn and Melancholy, 286. “The Motif of the Drooping Head”. Ver E. Goodenough, Jewish Symbols in the Graeco-Roman Period, Vol. 10 (New York: Bollingen, 1964), 58; sobre a emissão de chumbo da cabeça do caído Gaiomar ver “The mysticism of the seven metals”; R. Burton, The Anatomy of Melancholy, 3 vols. (New York: E. P. Dutton & Co., Everyman edition, 1932) I: 409; II: 235; ver também vol. I, 300-30 sobre a melancholia como uma aflição do intelectuais; sobre Cronos-Saturno como nous, Plotino, Enn. V, 1, 4; ver Saturn and Melancholy, 153, 155. 51 Saturn and Melancholy, 84. estranhas alteridades de seus sonhos, o psicoterapeuta está expressando o que Ficino, filho de Saturno que foi, apresentara como um método convincente. A consciência senex está finalmente em descanso no reino imaginal dos archai, que são dei ambigui de infindáveis complicações e contradições. A melancolia nos conduz aonde não mais podemos imaginar ou pensar, ao vácuo interno que é também os limites mais distantes da mente. Essas são zonas fronteiriças, uma condição limítrofe da ambivalência emocional que, como Freud escreveu, é um fator radical da melancolia52. Mas, por ora, do que pudemos reunir da abordagem de Ficino ao que poderia ser chamado de fundo psicótico da depressão, não há fúria que encerre as contradições internas pela escolha de um ou de outro elemento de seu quadro. Os impulsos opostos se mostram como indistinguíveis. Nessa fronteira, um lado é igual ao outro. A fantasia aqui transcende os opostos como um problema. As imagens são meramente elas mesmas, não passíveis de acusação para comporem julgamentos, posições ou oposições. Não há nada a se afirmar ou negar, pois, como disse Aristóteles: “Fantasia é distinta da asserção ou da negação...”53. Dessa perspectiva, a terra de Saturno e dos espíritos ctônicos aos quais ele é associado, Lua a corruptora, a destruição de toda a existência com o escurecimento do cérebro e a maldição do chumbo, podem ser pensados sob uma nova forma. Eles se referem a uma decadência e a uma descida abaixo da terra e suas realidades ao imum coeli¸ ao deus oculto (Deus abscondidus) e a terra do nous, a terra oculta. A terra oculta é a islâmica “terre celeste” nas palavras de Corbin54, ou ao budista “terre pure” nas palavras de Paul Mus55. A sagrada arte da geometria de Saturno seria a arte dessas terras. Não o mundo físico que não mostra