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Nossos e-books são disponibilizados gratuitamente, com a única finalidade de oferecer leitura edificante a todos aqueles que não tem condições econômicas para comprar. Se você é financeiramente privilegiado, então utilize nosso acervo apenas para avaliação, e, se gostar, abençoe autores, editoras e livrarias, adquirindo os livros. Semeadores da Palavra Digitalizado por Karmitta www.semeador.forumeiros.com http://www.semeador.forumeiros.com/ AGRADECIMENTOS entusiasmo estimulante de Kathy Helmers da Alive Com- munications em Colorado Springs e Stephen Hanselman da HarperSanFrancisco proporcionaram-me a motivação para terminar este livro. Kathy também me ajudou a escrever o capítulo três, "A enorme dificuldade", e exerceu grande influência na parte dos "Excluídos", no último capítulo. Os ensinamentos, escritos e testemunho pessoal do teólogo moral Charles E. Curran, da Southern Methodist University, exerceram um importante papel em minha vida e ministério. Minha libertação do legalismo e casuísmo tem suas raízes no professor Curran durante os anos do meu curso de graduação na Catholic University. Quando me perguntam o nome das cinco pessoas mais se- melhantes a Cristo que já conheci, Richard Foster está sempre na lista. Agradeço a John Eames e James Bryan Smith, que dedicaram horas à leitura do manuscrito e fizeram importantes sugestões. Minha sincera gratidão às muitas pessoas que me escrevem e, de fato, dizem: "Não pare de escrever". E a Philip Yancey, cujo coração é maior e melhor que o melhor de seus livros. O 6 CONFIANÇA CEGA E por último, mas não menos importante, agradeço a Ka-thy Reigstad, cujo trabalho de revisão realizado com competência e sensibilidade transformou Confiança cega num livro mais coerente e agradável em comparação com o que eu havia escrito. SUMÁRIO Prefácio 9 Prólogo 11 1. O caminho da confiança 15 2. O caminho da gratidão 37 3. A enorme dificuldade 49 4. Pensamentos grandiosos 61 5. Artistas, místicos e palhaços 77 6. Infinito e íntimo 87 7. Confiar em Jesus 97 8. A confiança contaminada 121 9. Confiança humilde 127 10. O jarro trincado 139 11. A geografia do aqui e agora 153 12. Confiança cega 167 Bibliografia 185 PREFÁCIO empre e em todos os lugares, a suprema questão para a ralé maltrapilha é a pessoa de Jesus Cristo. O que são maltrapilhos? Quem são eles? A obscura assembleia de pecadores salvos, que sabem que são inexpressivos, têm consciência de seu quebrantamento e da sua incapacidade diante de Deus, pecadores que se fiam na misericórdia divina. Atónitos diante do extravagante amor de Deus, não dependem de sucesso, fama, riqueza nem poder para autenticar o valor que eles têm. Seu espírito transcende todas as distinções entre fracos e poderosos, instruídos e analfabetos, bilionários e pedintes, génios high-tech e nerds low-tech, homens e mulheres, circo e santuário. "Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal" (ITm 1:15). Aturdido e confuso pela experiência pessoal com o Messias dos pecadores, percorrendo as ruas barulhentas das grandes cidades e as estradas de terra dos vilarejos, o maltrapilho segue pela vereda da confiança cega no perdão irreversível do Mestre. As defesas que ele construiu contra sua verdade como pecador salvo são destruídas no redemoinho da misericórdia que brilha como relâmpagos em sua vida. S 12 CONFIANÇA CEGA se tornou artigo raro. É por isso que recebo com alegria os pensamentos perspicazes de Brennan Manning sobre um assunto vital, mas tantas vezes negligenciado. Manning vincula o adjetivo "cega" ao substantivo "confiança" — Confiança cega. E uma combinação que pode nos surpreender à primeira vista, mas "cega" é uma palavra que pode se referir a algo "absoluto", "irrestrito", "sem medida". Mas é bem nesse ponto que vemos pela primeira vez a competente abordagem que Manning faz do assunto, pois, ao nos chamar a uma "confiança cega", ele está realmente se posicionando contra toda a "autopiedade" que contamina a cultura moderna. Ele nos chama a uma confiança que se recusa terminantemente a fazer da autopiedade o maior bem da vida. Este livro é de fato um ataque frontal a todos os pecados egocêntricos de nossos dias: autoindulgência, vontade própria, serviço em causa própria, louvor dirigido a si mesmo, autogratificação, justiça própria, autossuficiência e outros do mesmo género. Manning chama de "segunda conversão" esse movimento decisivo na direção de uma confiança radical em Deus. E é isso mesmo. Conversão implica tanto afastamento quanto aproximação. Ao nos aproximarmos de Deus estamos aprendendo a nos afastar do "mundo, da carne e do Diabo". Também estamos nos afastando de nós mesmos como centro e razão do nosso viver, pois vamos percebendo que Deus é verdadeiramente a essência e o centro de todas as coisas. É com muita satisfação que vejo que, em seu desejo de nos chamar a uma vida de confiança em Deus, Manning não passa simplesmente por cima das tragédias da existência humana. Ele está disposto a encarar a angustiante questão que todos carregamos dentro de nós: "Como é que alguém se atreve a propor o caminho da confiança, se o que temos diante de nossos C A P I T U L O UM O CAMINHO DA CONFIANÇA ste livro teve início numa observação feita por meu diretor espiritual: "Brennan, você não precisa de mais conhecimento sobre a fé. Você já tem conhecimento para os próximos trezentos anos. A coisa mais urgente na sua vida é confiar no que você já recebeu". Aquilo me pareceu bem simples. Mas sua observação disparou um processo de reavaliação da minha vida, do meu ministério e da autenticidade do meu relacionamento com Deus — uma reavaliação que durou dois anos. O desafio de realmente confiar em Deus forçou-me a desconstruir o que eu havia construído durante a vida toda, a deixar de me agarrar ao que eu tinha tanto medo de perder, a questionar meu investimento pessoal em cada palavra que eu já havia falado ou escrito sobre Jesus Cristo e a me perguntar sem medo se eu confiava nele. Depois de horas incontáveis de silêncio, solitude, autoexa-me e oração, aprendi que o ato de confiar deve ser eminentemente inabalável. O filme Carruagens de fogo recebeu o Oscar em 1981 como melhor filme do ano. Ele retrata a história de dois corredores E O CAMINHO DA CONFIANÇA 17 reduzido, as quais confiam invariavelmente em seu amor pater- nal na adversidade e na alegria, na tribulação e na consolação. Essas almas de fato agradam e dão imenso prazer ao coração do seu Pai celestial. Não há nada que ele não esteja preparado para lhes conceder. "Peça-me metade do meu Reino", exclama ele à alma que confia, e "eu o darei a você". 1 Confiança inabalável é uma coisa rara e preciosa, pois quase sempre exige um grau de coragem que beira o heroísmo. Quando a sombra da cruz de Jesus se projeta sobre nós na forma de fracasso, rejeição, abandono, traição, desemprego, solidão, depressão, perda de um ente querido, quando estamos surdos para todas as coisas, exceto para o grito da nossa dor, quando o mundo que nos rodeia de repente se torna um lugar hostil e ameaçador — nesses momentos podemos clamar angustiados: "Como um Deus de amor pode permitir que isso aconteça?". É nessas horas que são lançadas as sementes da desconfiança. É preciso coragem de herói para confiar no amor de Deus não importa o que nos aconteça. O aluno mais inteligente que já tive no seminário foi um jovem chamado Augustus Gordon. Hoje ele passa seis meses por ano como ermitão numa cabana solitária nas montanhas Smoky, no estado do Tennessee. Nos outros meses do ano, ele viaja pelo país pregando o evangelho em prol da organização Food for the Poor, uma iniciativa missionáriaque envia alimentos para os famintos e sem-teto no Haiti, na Jamaica e em outras ilhas caribenhas. Numa visita recente, perguntei-lhe: "Augustus, numa só frase, qual a sua definição de vida cristã?". Ele nem piscou para 1 The Virtue ofTrust, p. 12. 18 CONFIANÇA CEGA responder: "Brennan, posso definir a vida cristã numa única palavra: confiança". Já faz mais de quatro décadas que fui alcançado por Jesus numa capelinha nas montanhas Allegheny, no oeste da Pensilvânia. Depois de milhares de horas de oração e meditação sobre os anos vividos até aquele momento, posso declarar de forma inequívoca que a submissão confiante, a exemplo de uma criança, é o espírito que define a autêntica vida de discípulo. E eu acrescentaria que a grande necessidade da maioria das pessoas é muitas vezes a mais desconsiderada — a saber, a necessidade de uma confiança intransigente no amor de Deus. Além disso, eu diria que, embora haja vezes em que é melhor nos aproximarmos de Deus como faria um maltrapilho diante do Rei dos reis, é muito melhor nos achegarmos a ele como uma criancinha se achegaria a seu pai. Na Palestina do primeiro século, a pergunta que prevalecia na discussão religiosa era: como podemos apressar a vinda do reino de Deus? Jesus apontou para um único caminho: o caminho da confiança. Ele nunca pediu aos discípulos que confiassem em Deus. Pelo contrário, ele ordenou peremptoriamente: "Creiam em Deus; creiam também em mim" (Jo 14:1, NVI). A confiança não era um aspecto secundário dos ensinamentos de Jesus; era o coração deles. Ela, e somente ela, poderia apressar a vinda do reino de Deus. Quando o brilhante eticista John Kavanaugh foi trabalhar por três meses na "casa dos moribundos" em Calcutá, ele estava à procura de uma clara resposta sobre como viver melhor os anos que lhe restavam de vida. Na primeira manhã ali, ele conheceu a Madre Teresa. E ela lhe perguntou: — Como lhe posso ser útil? Kavanaugh pediu que ela orasse em seu favor. — E você quer que eu ore por qual necessidade? O CAMINHO DA CONHANÇA 19 E ele verbalizou o pedido que havia carregado consigo milhares de quilómetros desde os Estados Unidos: — Ore para que eu tenha clareza. E ela disse com firmeza: — Não, eu não vou orar por isso. Quando ele lhe perguntou o porquê, ela respondeu: — Clareza é a última coisa a que você deve se apegar. Quando Kavanaugh comentou que ela sempre lhe parecera ter a clareza que ele tanto ansiava, ela riu e disse: — Nunca tive clareza; o que eu sempre tive foi confiança. Então vou orar para que você confie em Deus. 2 "E nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós" (ljo 4:16). Quando vamos em busca de clareza, tentamos eliminar o risco de confiar em Deus. O medo do caminho desconhecido a nossa frente destrói a confiança infantil na bondade ativa do Pai e em seu amor irrestrito. Muitas vezes partimos da premissa de que o ato de confiar irá desfazer a confusão, iluminar a escuridão, acabar com a incerteza e remir o tempo. Mas a nuvem de testemunhas de Hebreus 11 revela que não é bem assim. Nossa confiança não traz uma clareza definitiva neste mundo. Ela não elimina o caos, não entorpece a dor nem nos serve de muleta. No momento em que tudo está obscuro, o coração que confia diz, a exemplo de Jesus na cruz: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc 23:46). Se nos livrássemos da tentação de fazer da fé uma anuência despropositada a um balcão empoeirado cheio de doutrinas, descobriríamos assustados que a essência da fé bíblica reside em confiar em Deus. Como observa Marcus Borg: "A primeira 2 America 173, ns 3, 29 de jul. de 1995, p. 38. 20 CONFIANÇA CEGA é uma questão da mente; a segunda, uma questão do coração. A primeira pode não nos transformar; a segunda traz mudança intrínseca". 3 A fé que traz vida à comunidade cristã não é tanto uma questão de acreditar na existência de Deus, mas uma confiança prática em seu cuidado amoroso debaixo de toda e qualquer pressão. Muita coisa está em jogo aqui, pois não terei dito em meu coração "Deus existe" se eu não disser "eu confio em ti". A primeira afirmação é racional, abstrata, talvez uma questão da teologia natural, é a mente trabalhando com sua lógica. A segunda é "comunhão, pão que comemos de uma mão invisível". 4 Diante de obstáculos intransponíveis e sem ter ideia alguma do que vai acontecer no final, o coração que confia diz: "Aba, entrego minha vontade e minha vida a ti, sem reservas e com confiança inesgotável, pois tu és meu Pai amoroso". Embora muitas vezes desconsideremos nossa necessidade de confiar sem vacilar no amor de Deus, tal necessidade é a mais urgente que temos. É o remédio para tantas doenças, melancolia e ódio contra nós mesmos. O coração que se converte da desconfiança para a confiança no perdão irreversível de Jesus Cristo é redimido da ação corrosiva do medo. O grande pavor existencial de que a salvação está reservada unicamente aos bons e piedosos, o temor anónimo de que estejamos predestinados ao fracasso espiritual, o pessimismo mórbido que nos leva a pensar que as boas novas do amor de Deus não passam de uma ilusão — todos esses elementos se unem para formar uma fina membrana de desconfiança que nos mantém num estado crónico de ansiedade. 5 Jesus: A New Vision, p. 111. 4 Daniel BERRIGAN, Isaiah: Spirit of Courage, Gift ofTears, p. 37. O CAMINHO DA CONFIANÇA 21 A conversão decisiva (ou aquilo que chamo de segunda conversão) da desconfiança para a confiança — conversão que deve se renovar todos os dias — é o momento da soberana libertação do cativeiro da preocupação. Esse supremo ato de confiança na aceitação de Jesus é tão transformador, que pode ser corretamente chamado de hora da salvação. Tantas vezes, o que está claramente faltando no conceito de salvação mecânica e externa é a autoaceitação, experiência internamente personalizada e arraigada na aceitação que vem de Jesus Cristo. Ela ordena libertação da culpa insana, da vergonha, do remorso e do ódio contra nós mesmos. Qualquer coisa que esteja aquém disso — autorrejeição sob todas as formas — é um inequívoco sinal de falta de confiança na completa suficiência da obra de salvação realizada por Jesus. Será que ele me libertou mesmo do medo em relação ao Pai e do ódio contra mim mesmo? O ato de confiar com base na graça é a grande decisão da vida. Sem ele, nada tem valor, e dele deriva o significado definitivo de todos os relacionamentos e conquistas, de cada sucesso ou fracasso. Uma confiança sem limites no amor misericordioso de Deus desfere um golpe mortal contra o ce-ticismo, contra o cinismo, contra a autocondenação e contra o desespero. E o nosso ato de obediência à ordem de Cristo: "Creiam em Deus; creiam também em mim". As palavras de Angelo Silésio, teólogo do século XV, são plenamente ortodoxas: "Se Deus deixasse de pensar em mim, ele deixaria de existir". Silésio está apenas parafraseando a mensagem de Jesus: "Não se vendem cinco pardais por dois asses? Entretanto nenhum deles está em esquecimento diante de Deus. Até os cabelos da vossa cabeça todos estão contados. Não temais! Bem mais valeis do que muitos pardais" (Lc 12:6-7). Por sua própria natureza, Deus está pensando em mim. 22 CONFIANÇA CEGA Quem vive da desconfiança desconsidera essas palavras como se fossem mera hipérbole e se mantém sombrio, melancólico e medroso. O discípulo que confia as recebe e dá pulos de alegria. A premissa da confiança segundo a Bíblia é a convicção de que Deus quer que cresçamos, avancemos e experimentemos plenitude de vida. Esse tipo de confiança, todavia, é adquirida apenas aos poucos e quase sempre através de uma série de crises e provações. No meio da angústia indescritível no monte Moriá, Abraão, ali com seu filho Isaque, aprendeu que o Deus que o havia chamado para crercontra a esperança era eminentemente confiável, e a única coisa que se podia esperar dele era confiança incondicional. O grande patriarca é modelo da essência da confiança nas Escrituras hebraicas e cristãs: ter convicção de que Deus é digno de crédito. O relato da história da salvação aponta para a realidade in- variável de que a confiança precisa ser purificada pelo fogo da provação. Davi, a figura mais admirada da história do judaísmo sabia o que era medo, solidão, fracasso e até planos sinistros que visavam tirar-lhe a vida; mas ele conquistou o coração de Deus com sua confiança inabalável: Em me vindo o temor, hei de confiar em ti. Em Deus, cuja pa- lavra eu exalto, neste Deus ponho a minha confiança e nada temerei. Que me pode fazer um mortal? (SI 56:3-4). ... e confio no SENHOR sem vacilar (SI 26:1). ... livrou-me, porque ele se agradou de mim (SI 18:19). No tocante a mim, confio na tua graça (SI 13:5). Espera pelo SENHOR, tem bom ânimo, e fortifique-se o teu coração; espera, pois, pelo SENHOR. (SI 27:14). Bem-aventurado o homem que põe no SENHOR a sua confiança (SI 40:4). O CAMINHO DA CONFIANÇA 23 Dar-te-ei graças para sempre, porque assim o fizeste; na presen- ça dos teus fiéis esperarei no teu nome, porque é bom (SI 52:9). Quanto a mim, porém, sou como a oliveira verdejante, na casa de Deus; confio na misericórdia de Deus (SI 52:8). Olhe para o esplendor de um coração humano que acredita que é amado! Talvez não seja por coincidência que o apóstolo João veio a ser conhecido como o discípulo amado. Por quê? "E nós conhecemos e cremos o amor que Deus nos tem" (IJo 4:16a). Davi e João, almas que entoavam o mesmo cântico de confiança inabalável no amor de Deus! Nunca me esquecerei do testemunho de um sacerdote episcopal chamado Tom Minifie, muitos anos atrás na igreja de St. Luke em Seattle, estado de Washington. Ele notou a presença sofisticada de um casal sentado no último banco com o filho de um ano de idade, portador da Síndrome de Down. Era óbvio, pelo comportamento dos pais, que aquela criancinha os deixava constrangidos. Eles se escondiam na parte de trás do templo, talvez planejando sair às pressas assim que o culto terminasse. Quando se dirigiam para a porta da rua, Tom os abordou e disse: "Venham comigo até meu escritório". Depois que se sen- taram, Tom pegou o bebé nos braços e o embalou com carinho. Então, olhando para o rosto da criança, começou a chorar. E perguntou-lhes: "Vocês têm ideia do presente que Deus lhes deu por meio desta criança?". Percebendo que os pais estavam confusos e até apreensivos, ele explicou sua reação: "Dois anos atrás, Sylvia, minha filha de três anos de idade, portadora da Síndrome de Down, faleceu. Temos mais quatro filhos e sabemos como as crianças podem ser uma bênção. Contudo, o presente mais precioso 24 CONFIANÇA CEGA que já recebemos em toda a nossa vida foi Sylvia. Com sua ex- pressão desinibida de afeto, ela nos revelou a face de Deus como nenhum outro ser humano já havia feito. Vocês sabiam que várias tribos de índios americanos associavam divindade com as crianças com Down, pois na sua incrível simplicidade elas eram uma janela por meio da qual se via o Grande Espírito? Cuidem dessa criança como cuidariam de um tesouro, pois ela os conduzirá ao coração de Deus". Daquele dia em diante, os pais começaram a sentir orgulho do seu filhinho. A confiança inabalável no amor de Deus nos inspira a sermos gratos pelas trevas que nos cercam, pelo desemprego, pela artrite que não pára de doer e nos leva a orar do fundo do coração: "Aba, em tuas mãos entrego meu corpo, mente e espírito e todo o dia de hoje — manhã, tarde e noite. A tua vontade para mim, seja ela qual for, é a minha vontade, dependendo de ti e confiando em ti no meio da realidade da minha vida. Ao teu coração confio o meu coração, frágil, inseguro, incerto. Aba, entrego-me a ti em Jesus, nosso Senhor. Amém". Ao longo da minha vida, na qual as vitórias tem sido modestas e pessoais, as provações, razoavelmente triviais, e os fracassos, grandes o suficiente para ferir a mim e as pessoas que amo, tenho sempre caído e me levantado, caído e me levantado. Cada vez que caio, sou levado a renovar meu esforço por meio de uma confiança cega no perdão dos meus pecados por pura graça, na vindicação e justificação da minha jornada maltrapilha baseada não em quaisquer boas obras que eu tenha praticado (a abordagem do fariseu no templo), mas numa firme confiança no amor de um Deus cheio de graça e misericórdia. Quando Roslyn e eu nos casamos, estávamos ambos desem- pregados. Meu ministério na igreja católica havia se encerrado, O CAMINHO DA CONFIANÇA 25 e eu era praticamente desconhecido em outras comunidades eclesiásticas. Convites para pregar quase desapareceram, e nin- guém me chamava para assumir algum trabalho ministerial. Nossa história talvez seja um paradigma para todo discípulo que confia. O caminho da confiança é um movimento em di-reção à obscuridade, ao indefinido, à ambiguidade, e não a um plano predeterminado e claramente delineado para o futuro. O passo seguinte revela-se a partir do discernimento de Deus agindo no deserto do momento presente. A realidade da confiança nua e crua é a vida de um peregrino que abandona aquilo que tem raízes, que é óbvio e seguro, e caminha para o desconhecido sem nenhuma explicação racional que justifique a decisão ou dê alguma garantia para o futuro. Por quê? Porque Deus ordenou aquele movimento e oferece sua presença e sua promessa. Ê claro que havia dias em que eu sentia medo, meu coração estava abatido e meu corpo tremia, em que prosseguia aos trancos e barrancos, sentindo-me como uma criança confusa e sozinha, perdida na noite escura, ouvindo barulhos assustadores e estranhos; trocando em miúdos, havia dias em que a ansiedade e a incerteza tomavam conta. Então, do nada vinha uma voz calma e tranquila: "Não tenha medo. Eu estou com você". O maior obstáculo em minha jornada pelo caminho da con- fiança foi uma sensação opressora de insegurança, incompetência, inferioridade e baixa autoestima. Não me lembro de ter recebido um abraço ou um beijo de minha mãe quando eu era pequeno. Chamavam-me de insuportável e de peste e viviam me mandando calar a boca e ficar quieto. Minha mãe havia ficado órfã aos três anos de idade — seus pais morreram de uma epidemia de gripe em Montreal — e a enviaram para um orfanato, onde ela morou muitos anos, até ser adotada. Então, quando tinha dezoito anos, mudou-se para 26 CONFIANÇA CEGA o Brooklyn, em Nova York, para estudar enfermagem. Como não havia recebido muita atenção nem afeto durante a infância, ela era incapaz de oferecê-los. Nos últimos anos de vida, meu pai transformou-se na pessoa mais gentil e bondosa que eu já conheci. Mas durante minha infância ele sempre esteve ausente. Pressionado pelas limitações de uma baixa escolaridade, durante a Grande Depressão ele procurou emprego freneticamente, mas em vão. Eu não entendia por que ele nunca estava presente (exceto para dar uma bronca ou para nos impor castigos físicos). Quando eu via crianças da minha idade desfrutando de um excelente relacionamento com seus pais, eu concluía que devia haver algo de errado comigo. A culpa era minha. Como eu vivia me culpando, a semente do ódio corrosivo contra mim mesmo germinou e fixou raízes. Na falta de qualquer expressão de atenção ou afeto da parte dos outros, eu achava inconcebível que Deus tivesse sentimentos positivos a meu respeito. Numa noite de muita neve, quando eu tinha seis anos, meu pai chegou em casa depois de um dia difícil procurando emprego e perguntou à minha mãe como os meninos haviam se comportado. Apontando para meu irmão Rob (quinze meses mais velho que eu), ela disse: "Ele não toma jeito. Quero que você o leve até a delegaciaagora mesmo. Diga aos policiais que o coloquem numa cela e o deixem ali". E foi o que meu pai fez. Ajoelhei-me sobre o parapeito da ja- nela com o nariz contra o vidro, torcendo sem esperanças para que meu irmão voltasse para casa. Meia hora depois, vi meu pai subindo a rua de volta, mas sozinho. O terror da rejeição e abandono tomou conta do meu coração. As lágrimas rolaram pelo meu rosto. Tremendo, percebi que não havia ninguém mais para me proteger. Eu estava completamente só e sabia que seria o próximo. O CAMINHO DA CONFIANÇA 2 7 Mas então vi meu irmão uns trinta metros atrás do meu pai, caminhando e fazendo uma bola de neve. O pânico interior cedeu um pouco, mas eu continuava assustado e abalado. Limpando as lágrimas dos olhos, desci do parapeito, assumi a posição machista de que meninos de seis anos não choram e fingi estar desinteressado num episódio traumático que me perseguiu durante anos. Mas isso não é tudo. Certa manhã, enquanto eu orava — eu já era adulto nessa época — vi a imagem de minha falecida mãe com seis anos de idade no orfanato, ajoelhada sobre o parapeito de uma janela e com o nariz contra o vidro, lágrimas rolando pelo rosto, e pedindo a Deus que enviasse um casal bonzinho que a adotasse. De repente toda a raiva que eu tinha dentro de mim contra a minha mãe, todo o ressentimento que eu tinha por causa de sua ausência quando eu era criança, tudo aquilo desapareceu. Soluçando, pedi perdão a ela. Com um sorriso radiante, ela disse: "Eu posso ter errado muito, mas você conseguiu". Quando ela me abraçou e me beijou, o maior inimigo da confiança em minha vida foi desarmado. Uma vida que se revolve no meio da vergonha, do remorso, do ódio contra si mesmo e da culpa por causa de erros reais ou imaginários do passado revela uma falta de confiança no amor de Deus. Mostra que não aceitamos a aceitação de Jesus Cristo e, assim, rejeitamos toda a suficiência de sua obra redentora. A preocupação com pecados do passado, fraquezas do presente e defeitos de caráter faz com que nossas emoções se agitem de formas autodestrutivas, encerra-nos na cidadela poderosa do eu e tomam o lugar de um Deus compassivo. Por experiência própria posso testemunhar que a linguagem da baixa autoesti-ma é dura e exigente; ela comete abusos, faz acusações, critica, rejeita, acha erros, culpa, condena, repreende e esbraveja num monólogo de impaciência e castigo. 28 CONFIANÇA CEGA Em vez de ficarmos surpresos por termos feito algo de bom — e certamente fazemos — ficamos chocados e horrorizados com nosso fracasso. Jamais julgaríamos nenhum outro filho de Deus com a mesma condenação selvagem com a qual nos oprimimos. O fato é que o ódio contra nós mesmos torna-se maior que a própria vida e cresce até o ponto de ser considerado o começo e o fim de tudo. A imagem da história infantil do Ga-linho Chicken Little me vem à mente. Em nosso ódio contra nós mesmos sentimo-nos como se o céu estivesse caindo. Assim, não é sem motivo que nos escondemos de Deus em oração. Simplesmente não acreditamos que ele possa cuidar de tudo que vai em nossa mente e coração. Ficamos a imaginar se ele poderia aceitar nossos pensamentos odiosos, nossas fantasias cruéis e nossos sonhos bizarros. Pode ele conviver com nossas imagens primitivas, nossas ilusões de grandeza e com os exóticos castelos que fabricamos em nossa mente? Concluímos que não e, portanto, escondemos de Jesus aquilo que mais precisa de seu toque de cura. 5 Para que cresçamos em nossa confiança, precisamos permitir que Deus nos veja e nos ame exatamente como somos. A melhor forma de fazer isso é por meio da oração. A medida que oramos, o amor irrestrito de Deus vai aos poucos nos transformando. Abrimo-nos para receber a verdade sobre nós da perspectiva da verdade de Deus. O Espírito abre nossos olhos para vermos a realidade, ignorando as ilusões, de modo que possamos perceber que somos vistos por Deus com. um olhar de amor. Em novembro de 1999, enquanto eu caminhava pelo campus da universidade Stanford, em Paio Alto, na Califórnia, dirigindo- 5 Henri NOUWEN, America 180, n" 13, 17 de abr. de 1999, p. 34. O CAMINHO DA CONFIANÇA 29 me para um auditório onde eu iria dar uma palestra, um aluno aproximou-se de mim e disse: "Gostei do seu jeans largo e baggy. Para um coroa, até que você é um cara legal". Com uma fisionomia de quem não havia gostado daquilo, respondi: "Se as pessoas não forem legais, por que valeria a pena viver? Dê-me uma boa razão por que você deveria se arrastar através da lama deste mundo sombrio, sinistro e melancólico se você não for legal. Dá para você imaginar como seria não ser legal num mundo legal?". Meio assustado, ele respondeu: "Nossa! Não é assim tão ruim, cara. Por que você não vai conversar com o capelão?". Quando lhe revelei minha identidade, ele riu. Convidei-o para acompanhar-me ao auditório e ouvir minha palavra sobre o amor de Deus. Para minha surpresa e satisfação, ele aceitou. Mais tarde naquela noite, enquanto caminhávamos de volta ao seu dormitório, ele disse que se sentia distante de Deus. E explicou-me: "O peso dos estudos aqui é grande. Eu cos- tumava levar uma vida de oração no segundo grau, mas tenho estado tão ocupado com os estudos, com a vida social e tentando me adaptar, que acabei descuidando de meu relacionamento com Deus. Eu sinto falta dele". Então, disfarçando, limpou as lágrimas. "Quero sentir a presença dele. A correria da vida me deixa tão afastado, que às vezes fico pensando se realmente confio em Deus. Daí eu me pego assustado. Mas eu continuo no mesmo esquema de vida, porque não consigo ver alternativa. Gostaria de estar mais perto de Deus." Na manhã seguinte, uma integrante do corpo docente daquela escola veio visitar-me. Suas palavras pareceram uma reprise do que aquele aluno havia compartilhado na noite anterior. Ela disse: "Houve um momento em minha vida que minha fé era tão grande, que ela era a própria força que eu tinha para cada dia. Eu tinha consciência da presença de Deus mesmo nas 30 CONFIANÇA CEGA situações mais estressantes. A presença de Cristo ardia como fogo dentro de mim. Mas aos poucos, quase sem perceber, fui deixando de me aquecer com sua presença. A competição, aca-demicamente falando, é muito grande aqui e exige muito da gente". E, suspirando profundamente, soltou o corpo para trás, afundando na poltrona. Depois de uma pausa, ela continuou: "Ontem, depois que você falou sobre o amor de Deus, chorei durante uma hora. Minha vida está muito vazia. Vejo tanta dor e sofrimento aqui no campus e fora dele também, que às vezes fica difícil acreditar num Deus de amor. Eu ainda tenho fé — sei que tenho — mas não consigo senti-la; perdi toda a percepção da presença de Deus. Sou como Maria Madalena chorando no jardim: '... levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram'. Sinto tanta falta de Deus, que às vezes fico profundamente emocionada. Gostaria tanto de ter de volta o relacionamento que eu tinha com ele!". Pois bem, olhe para aquele aluno e para essa moça e finja que você é o Deus de amor encarnado em Jesus de Nazaré. O jovem está triste porque sente sua falta, abatido por não estar perto de você, sofrendo por estar tão ocupado que acabou por negligenciá- lo, quase em pânico por não confiar mais em você. A jovem está chorando porque não consegue mais sentir sua presença como antes. O sofrimento em seu coração se deve à experiência que ela tem de sua ausência. Enredada pela vida académica, ela teme que sua fé esteja declinando e que venha a perdê-lo para sempre. Ainda supondo por um momento que você seja Deus, como você se sente em relação a essas duas pessoas? Consegue vê-las como pessoas que mantêm um relacionamento com você? O CAMINHO DA CONFIANÇA 31 Seu coração está transbordando de compaixão por seussenti- mentos de separação em relação a você? Consegue ver na vida dessas pessoas uma oração de anseio por você? Você as tomará nos braços no momento em que elas clamarem? Pegue seus sentimentos humanos, multiplique-os exponen- cialmente até o infinito e você terá uma noção do amor de Deus revelado em Jesus Cristo. Com uma forte afirmação de nossa bondade e um gentil entendimento de nossas fraquezas, Deus está nos amando — a mim e a você — neste exato momento, assim como somos e não como deveríamos ser. Não há nada que possamos fazer para aumentar seu amor por nós e nada que possa diminuí-lo. Quando, em nossa caminhada com Deus, somos atingidos por excesso de trabalho, depressão, problemas de família ou coisa pior, Deus não nos abandona. Nem nós, se andarmos pelo caminho da confiança, haveremos de abandoná-lo. Quando saímos do caminho, a confiança nos leva de volta; e não retrocedemos, hesitamos ou nos preocupamos com a possibilidade de Deus não nos acolher em seus braços. Não importa onde estejamos em nossa jornada, temos uma tranquila segurança de que nossa confiança no amor de Deus lhe proporciona imenso prazer. Todavia, se enxergamos um Deus pavio-curto, inacessível, que se aborrece facilmente, se a imagem que fazemos dele é de um Deus arrogante, indiferente ou cheio de raiva, atribuindo-lhe qualidades nada amorosas e nos encolhendo diante de seu olhar, descartaremos o caminho da confiança como uma ilusão, como um beco sem saída ou como um caminho fácil e suave para os fracos e tolos. Nosso ceticismo, cinismo ou racionalismo triunfante haverão de afastar para longe de nosso meio o Deus-conosco, fazendo dele um ser indiferente e desinteressado nas lutas e alegrias de seus filhos. 32 CONFIANÇA CEGA Daniel Considine escreveu na década de 1930: "Nunca houve uma mãe tão cega para os erros do filho quanto o Senhor para os nossos". 6 Portanto, nunca devemos nos desanimar com nossos erros. Podemos começar a fazer isso se não ficarmos surpresos com eles. Uma criancinha que não sabe andar direito não se surpreende com seus tropeços e quedas a cada passo que dá. Embora a gravidade do pecado não deva ser minimizada, desperdiçar tempo deplorando o passado mantém Deus longe de nós. Como disse o Pastor de Hermas no segundo século: "Pára de bater na tecla dos teus pecados e ora pedindo justiça". Qual a utilidade de nossa vida de oração, de nosso estudo da Bíblia, da teologia ou da espiritualidade, se não confiamos naquilo que aprendemos? Ficar num vai e vem entre um sim definitivo e um não desanimador nos mantém num estado de procrastinação terminal. Da mesma forma, uma ênfase exclusiva nas questões teológicas e quentes da moda (muitas das quais não são nem quentes nem teológicas) ou uma ênfase unilateral nas questões urgentes de justiça social podem temporária ou permanentemente adiar uma decisão de confiar no amor de Deus, mantendo-nos assim num estado de limbo espiritual. Minha avó paterna costumava dizer: "Viver sem correr riscos é correr o risco de não viver". O caminho da confiança é uma coisa arriscada, não há dúvida sobre isso. Mudar de profissão de uma hora para outra porque não nos sentimos realizados, assumir o cuidado extenuante dos pais idosos, isolar-se por três dias em silêncio e solitude com Jesus sem ficar estressado, fazer um trabalho voluntário no subSaara com somente alguns escassos recursos espirituais, assumir um cargo impopular com rumores Confidence ín God, p. 17. O CAMINHO DA CONFIANÇA 33 de descontentamento e medo nos bastidores, dominar a desilusão quando ficamos de frente com o descrédito nos lugares onde menos se esperava — todos esses desafios exigem disposição para arriscar uma jornada rumo ao desconhecido e prontidão para confiar em Deus mesmo no meio das trevas. É claro que não se deve agir impulsivamente. Toda e qualquer decisão mais importante deve ser precedida por um processo de discernimento cuidadoso, e isso envolve família, amigos e um mentor espiritual. Mas quando chega a hora certa, somente o discípulo que confia com determinação em Deus ousará correr o risco. E essa confiança não parte da ingenuidade, mas há consciência de que a possibilidade de errar e de se dar mal é bem concreta. Mas sem se expor à possibilidade de fracasso, não existe risco. Explicando o desenvolvimento de sua fé, o psiquiatra Gerald May escreve: Sei que Deus é amoroso, e o seu amor é confiável. Sei disso pela via direta, por meio da experiência da minha vida. Hou- ve inúmeras vezes em que duvidei, principalmente quando eu achava que a bondade de Deus significava que eu não seria atingido por coisas ruins. Mas, tendo passado por sofrimento um número razoável de vezes, hoje sei que a bondade de Deus é algo muito mais profundo do que sofrimento e prazer — ela inclui as duas coisas.' Naturalmente, os que assumem riscos irritam os legalistas, que se sentem ameaçados por qualquer pessoa que confie em Deus e não na lei. Eles tendem a desprezar homens e mulheres 7 Simply Sane, p. 155. 34 CONFIANÇA CEGA que não sejam tão cautelosos quanto eles. Colocam-se acima dos pecadores e dos não-conformistas. Em virtude dessa confiança no próprio eu, aliada a uma falta de autoconhecimento, os legalistas revelam-se incapazes de receber a graça; eles não vivem nem ousam viver com base na confiança num Deus de amor. Balançam a cabeça em desaprovação, invocam tradições sacrossantas e sem motivo lançam mão de sua arma mais cruel e poderosa: a opressão pela culpa. Ameaçados pela liberdade daqueles que confiam em Deus e não na lei, os legalistas avisam que haverá trágicas consequências e uivam como um grupo de lobos na noite. O discípulo, porém, não mais assolado pelo desejo de agradar os outros e considerando a aprovação de Deus mais valiosa que a desaprovação dos homens, segue em frente com o olhar fixo em Jesus, "Autor e Consumador da fé" (Hb 12:2). Achei fascinante um dos livros de Henri Nouwen, The Inner Voice of Love [O secreto som do amor], relativamente pequeno, apenas 115 páginas, publicado no dia de sua morte. Nouwen emprega os termos confiar ou confiança 65 vezes. Alguns exemplos: A cada momento precisamos decidir confiar na voz que nos diz: "Eu te amo. Eu te teci no ventre de tua mãe" (SI 139:13). Pare de perambular por aí. Pelo contrário, volte para casa e confie que Deus lhe trará o que você precisa. Pois, por tudo que você consegue se lembrar, você tem sido alguém que se preocupa em agradar os outros, dependendo deles para ter sua identidade. Mas agora você deve abrir mão de todos os apoios que produz para si mesmo e confiar que Deus lhe é suficiente. A escolha fundamental é confiar sempre que Deus está com você e lhe dará o que você mais precisa. 8 8E101, 105, 112, 113. O CAMINHO DA CONFIANÇA 35 Os livros anteriores de Nouwen estão pontuados com a palavra fé. E também em seu canto do cisne, ele emprega uma vez a palavra fé e sessenta e cinco vezes confiar. O que quero dizer com isso? Em algum lugar ao longo do caminho, na vida do cristão maduro, a fé junta-se com a esperança (falaremos mais sobre isso) e transforma-se em confiança. Baseada na experiência que temos da fidelidade invariável de Deus, floresce a confiança de que ele está conosco para continuar e terminar o que começou. Essa confiança era tão inabalável na vida de Nouwen, que ele pôde olhar para a própria morte como uma experiência alegre. Tenho certeza disso. E acho que a fidelidade no caminho da confiança nos conduzirá ao mesmo ponto aonde Jó foi conduzido: "Embora ele me mate, ainda assim esperarei nele" (Jó 13:15, NVI). C A P Í T U L O DOIS O CAMINHO DA GRATIDÃO igamos que eu faça uma enquete com dez pessoas, per- guntando a cada uma a mesma coisa: "Você confia em Deus?". Suponha que as dez respondessem: "Sim, eu confio em Deus",mas nove delas realmente não confiassem. Como eu descobriria qual dos maltrapilhos estava dizendo a verdade? Eu iria filmar a vida das dez pessoas durante um mês e então, depois de assistir a cada um, faria meu julgamento pelo seguinte critério: a pessoa com um espírito predominante de gratidão é a que confia em Deus. A principal qualidade de um discípulo que confia é a gratidão. Ela surge de uma clara percepção, avaliação e aceitação de tudo na vida como graça — como uma dádiva das mãos do Pai que não conquistamos nem merecemos, e a aceitação da dádiva é uma forma implícita de agradecimento ao doador. O coração grato exclama de manhã: "Senhor, obrigado pela dádiva de mais um dia". E continua expressando sua gratidão à medida que as bênçãos vão surgindo: Obrigado pela dádiva de amar e ser amado, pela beleza dos animais na fazenda e nas florestas, pelo som da cachoeira, pela D 38 CONFIANÇA CEGA beleza da velocidade da truta no riacho. Obrigado pelo cervo correndo pelas campinas, pelo fogo e pela água, pela magia de Monet, pelo arco-íris depois da chuva de verão, pela moça de cabelos esvoaçantes que desce a encosta da colina e pela xíca- ra de café fumegante. Obrigado pelo sorriso no rosto de uma criança que toma um sorvete de chocolate, pelo cachorro que abana a cauda e pelo toque do seu focinho frio no meu rosto. Obrigado por eu ter nascido naquela casa da rua 48 Leste, no Brooklyn, e não na casa ao lado. Se meu local de nascimento tivesse sido outro, eu poderia nunca ter conhecido Jesus e tantas pessoas lindas que conheci por meio dele. Obrigado pe- las quatro estações do ano, pelos dias gloriosos de sol e, acima de tudo, pelo dom de Jesus Cristo, o Sol que não se põe, que, por meio de sua morte e ressurreição, colocou-nos na estrada rumo à glória. Nunca me esquecerei de ter lido Seven Essays on Metaphysics [Sete ensaios sobre metafísica], de Jacques Maritain, durante meus dias no seminário de St. Francis, em Loretto, na Pensilvânia. Em um desses ensaios, Maritain conta de um dia em que ele, um filósofo renomado de 77 anos de idade, deu pulos no alto de um monte em Toulouse, na França, gritando aos céus: "Estou vivo, estou vivo!". Tendo a experiência de um arrebatamento repentino e absolutamente maravilhoso diante do dom da vida, a alegria de estar investido de existência, o privilégio de ser em vez de não ser, Maritain caiu de joelhos suspirando palavras de louvor e gratidão. A redescoberta da dádiva preciosa da vida e da existência, muitas vezes consideradas tão corriqueiras, dá lugar ao espírito de gratidão; a consciência das eventualidades, forçosamente apresentadas pelo noticiário da noite, motiva a decisão de aceitar o convite para celebrar a vida um dia por vez. Unidas a uma consciência intermitente da presença divina, as palavras O CAMINHO DA GRATIDÃO 39 de Jesus "eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância" (Jo 10:10) brilham com a sensação de que a vida deve ser infinitamente valorizada. Sobre a minha mesa de trabalho encontra-se uma foto minha, na qual seguro nos braços a pequena Eloise Grace Elford, filha de um querido amigo, com uma semana de vida, nascida em Surrey, na Inglaterra, pesando pouco mais de três quilos. Gerada pela semente de seus pais e pelo beijo de Deus, ela entrou na história humana, generosamente enriquecida com o dom da vida, e presenteou a nós três (suspeitos como sempre — o pai e a mãe também estavam no quarto) com um sorriso que parecia gritar: "Eu existo! E tão bom estar viva!". Hans Urs von Balthasar, teólogo suíço, declara: "Precisamos apenas saber quem e o que realmente somos para romper em louvor e gratidão espontâneos". Mesmo sofridos e arruinados como somos, olhar para nossa grandeza como filhos amados de Aba, vivos e vibrantes em Cristo Jesus, supera a sensação repugnante de nosso eu desprezível e provoca a grata exclamação: "Graças te dou, visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste" (SI 139:14). Aqui podemos descobrir a razão pela qual os grandes santos sempre se referiam a sua pecaminosidade. Motivados não por masoquismo, falsa modéstia ou baixa autoestima, mas por gratidão, eles aprofundam cada vez mais a consciência de que sua paixão por Cristo, a vida heróica de oração e sua generosidade no ministério eram dons imerecidos. Eles também passaram a perceber melhor como tantas vezes se esqueciam dos dons que tinham. A parábola do credor incompassivo declara que pecamos contra Deus se deixamos de perdoar as pequenas faltas de nosso próximo. Mas a verdade é que pecamos todos os dias, sempre que deixamos de ser gratos a Deus por suas dádivas multiformes. 40 CONFIANÇA CEGA Teria sido ingratidão o pecado original de Adão e Eva? Será possível que Deus esteja interessado na gratidão de nosso coração mais do que em qualquer outra coisa? A parábola dos dez leprosos (Lc 16:11-19) dá apoio a essa conjectura. Em 1996, George Gallup Jr. escreveu um livro intitulado The Saints Among Us [Os santos entre nós]. Cristão sincero e episcopal consagrado, esse famoso pesquisador reconhecia a verdadeira santidade em pessoas aparentemente comuns que ele localizava entre os segmentos da população mais pobre, de baixíssima escolaridade e de pele não branca. Quando lhe perguntaram o que essa identificação implicava, Gallup respondeu: Em muitos casos, há pessoas que enfrentam situações económicas dificílimas, mas a confiança que elas têm lhes dá capacidade para sair de condições cruéis e achar alegria na vida, conseguindo se superar. O fato de serem das classes inferiores dá a entender que, mesmo atingidas por problemas económicos, elas não se deixam derrotar. São mais dispostas a perdoar, mais agradecidas e menos inclinadas a preconceitos, além de terem o dobro de disposição de estender a mão ao próximo como pessoas no extremo inferior da escala de compromisso espiritual. Em outros estudos que temos realizado, tais como de contribuição financeira, descobrimos que os pobres, proporcionalmente aos ricos, contribuem mais para obras assistenciais. Cercados pela miséria, encontram oportunidades de ajudar em todo canto. Os ricos, principalmente agora em que o abismo entre eles e os pobres está maior, tendem a se isolar e, portanto, não vêem muito da crueldade da vida.1 Se você passar algum tempo com mulheres negras de mais idade no chamado Sul Profundo (Nova Orleans, por exem- 1 Citado numa entrevista em America, 26 de out. de 1996, p. 20. 40 CONFIANÇA CEGA Teria sido ingratidão o pecado original de Adão e Eva? Será possível que Deus esteja interessado na gratidão de nosso coração mais do que em qualquer outra coisa? A parábola dos dez leprosos (Lc 16:11-19) dá apoio a essa conjectura. Em 1996, George Gallup Jr. escreveu um livro intitulado The Saints Among Us [Os santos entre nós]. Cristão sincero e episcopal consagrado, esse famoso pesquisador reconhecia a verdadeira santidade em pessoas aparentemente comuns que ele localizava entre os segmentos da população mais pobre, de baixíssima escolaridade e de pele não branca. Quando lhe perguntaram o que essa identificação implicava, Gallup respondeu: Em muitos casos, há pessoas que enfrentam situações econó- micas dificílimas, mas a confiança que elas têm lhes dá capa- cidade para sair de condições cruéis e achar alegria na vida, conseguindo se superar. O fato de serem das classes inferiores dá a entender que, mesmo atingidas por problemas económi- cos, elas não se deixam derrotar. São mais dispostas a perdoar, mais agradecidas c menos inclinadas a preconceitos, além de terem o dobro de disposição de estender a mão ao próximo como pessoas no extremo inferior da escala de compromisso espiritual. Em outros estudos que temos realizado, tais como de contribuição financeira, descobrimos que os pobres, proporcio- nalmente aos ricos,contribuem mais para obras assistenciais. Cercados pela miséria, encontram oportunidades de ajudar em todo canto. Os ricos, principalmente agora em que o abismo entre eles e os pobres está maior, tendem a se isolar e, portan- to, não vêem muito da crueldade da vida. 1 Se você passar algum tempo com mulheres negras de mais idade no chamado Sul Profundo (Nova Orleans, por exem- 1 Citado numa entrevista em America, 26 de out. de 1996, p. 20. O CAMINHO D A GRATIDÃO 41 pio), não poderá deixar de observar o número de vezes que elas dizem "obrigada, Jesus" ao longo do dia. O fariseu do templo (Lc 18:9-14), todavia, não conhece o espírito de gratidão. Ele se mostra indignado pelo fato de Jesus se preocupar com pecadores, enfurecido com sua amizade com a ralé. O erro fundamental desse fariseu, homem de justiça própria que condena os pecadores injustos, estava em acreditar na sua infalibilidade. Consciente de sua religiosidade, ele expressa gratidão somente pelo que tem e pelo que é; ele está cego para o que não tem e para o que não é. Na realidade, o que Jesus diz para esse inimigo do evangelho da graça é isto: essas pessoas que você despreza são realmente pecadores não porque não fizeram sua meditação da manhã, mas porque a pro' fissão as corrompeu, e foram enredadas pela sensualidade e pela ganância. Entretanto, elas se arrependeram de coração e agora têm aquilo que falta a você — uma profunda gratidão a Deus por sua misericórdia e bondade. Por trás de todos os clamores do pecador agradecido está uma confiança inabalável na pessoa e na promessa de Jesus. Suas parábolas sobre a gratuidade da graça destilavam como chuva refrescante sobre o solo ressecado da religiosidade farisaica, como uma tempestade que varre as esquinas sombrias da religião do aleluia sentimental e vibra como relâmpagos na atmosfera sulfurosa de legalistas impetuosamente determinados a uma ortodoxia não-histórica. Lemos no Novo Testamento histórias que esclarecem o conceito da graça. Lemos sobre os trabalhadores da décima primeira hora na vinha e sobre a generosidade pródiga do proprietário (Mt 20:1-16), sobre o coletor de impostos arrependido que volta para casa justificado (Lc 18:10-14), sobre mendigos, aleijados, cegos e paralíticos que têm assento 42 CONFIANÇA CEGA reservado no banquete messiânico (Lc 14:16-24), sobre o filho pródigo, miserável e esfarrapado, e seu pai generoso, que escandaliza o espírito calculista e trivial da religião controlada por homens (Lc 15:11-32). Somos então apresentados ao Deus revelado em Jesus Cristo, que é incomparavelmente outro. Uma confiança impoluta na revelação de Jesus permite-nos respirar mais livremente, dançar com mais alegria e cantar com mais gratidão pela dádiva da salvação. Andar em gratidão é um modo de vida inclusivo, atento, contagioso e teocêntrico. Vejamos cada um desses aspectos. A gratidão é inclusiva. Numa reunião dos Alcoólicos Anó- nimos em Kinsale, na Irlanda, um homem chamado Tony afirmou: "Se eu fosse obrigado a escolher uma doença entre todas as doenças que afligem a humanidade, escolheria a minha [alcoolismo], pois existe alguma coisa que eu possa fazer". Naquela reunião (a exemplo de todas as outras), ele se apresentou como "um alcoólico grato em recuperação". Quando lhe perguntaram o porquê disso, ele respondeu: "Porque sem os doze passos deste programa eu jamais teria me encontrado com Deus". Do mesmo modo, no livro de Jó, aquele homem de Deus, com a vida arruinada, afirma: "... temos recebido o bem de Deus e não receberíamos também o mal?" (Jó 2:10). O saudoso Henri Nouwen escreveu sobre a gratidão espiritual: Ser grato pelas coisas boas que nos acontecem na vida é fácil, mas ser grato por tudo que temos na vida — o bom e o ruim, os momentos de alegria e os momentos de tristeza, os sucessos e os fracassos, as recompensas e as rejeições — exige um ár- duo trabalho espiritual. Somos pessoas gratas somente quando podemos dizer obrigado por tudo que nos trouxe ao momento presente. Enquanto ficarmos dividindo nossa vida entre pes- O CAMINHO DA GRATIDÃO 43 soas e fatos que gostaríamos de lembrar e pessoas e fatos que gostaríamos de esquecer, não poderemos alegar que a plenitu- de de nosso ser é uma dádiva de Deus pela qual devemos ser gratos. Não tenhamos medo de olhar para todas as coisas que nos trouxeram até onde estamos hoje e confiar que em breve veremos nelas a mão de um Deus que ama e orienta. 2 Sim, a gratidão é inclusiva. Como psicanalista, Eric Erikson comentou certa vez que há somente duas escolhas: integração e aceitação de toda a história de nossa vida ou o desespero. Assim, o apóstolo Paulo escreve: "Em tudo dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco" (1TS5:18), A gratidão é atenta. Quando estamos internamente dispersos por tudo que nos ocupa, por obsessões, vícios, falta de ponderação e preocupação com TV, esportes, fofocas, filmes, leituras inúteis e assim por diante, não podemos estar atentos para as dádivas que nos chegam a cada dia. O discípulo pergunta ao mestre: "Que preciso fazer para me tornar plenamente iluminado?". E o mestre responde: "Cons- ciência". O discípulo coça a cabeça e pede ao mestre que explique melhor. O mestre responde: "Consciência, consciência, consciência, consciência". Estar consciente e alerta para a presença de Deus, que se manifesta numa música que ouvimos no rádio do carro, numa flor como o narciso, num beijo, numa palavra de ânimo de um amigo, numa tempestade, num bebé recém-nascido, no nascer e no pôr do sol, no arco-íris, ou nas magníficas linhas no rosto de um velho pescador de lagostas exige uma libertação interior do eu possibilitada pela oração. A gratidão nasce de um espírito de oração que nos ajuda a 2 Bread for the Journey. 44 CONFIANÇA CEGA perceber a magnólia Dei, as maravilhas de Deus — a travessia do mar Vermelho, a coluna e o fogo e assim por diante. A gratidão é contagiosa. É sempre um prazer estar perto de pessoas gratas. Elas têm um espírito cativante. É simplesmente impossível estar simultaneamente grato e ressentido ou cheio de autopiedade. John Kavanaugh relata a história de uma idosa agradecida num hospital: Ela tinha um tipo de "doença degenerativa", e estava perdendo diferentes funções ao longo do mês. Uma aluna minha calhou de encontrá-la numa visita por coincidência. E voltou várias vezes movida por uma estranha força que vinha da alegria da mulher. Embora não conseguisse mais mexer os braços e as pernas, ela dizia: "Sou muito feliz porque ainda consigo mexer o pescoço". Quando ela não conseguia mais mexer o pescoço, ela dizia: "Sou muito feliz porque consigo ver e ouvir". Quando a jovem estudante finalmente perguntou-lhe o que aconteceria se ela perdesse a visão e a audição, a simpática velhi- nha disse: "Vou ficar muito grata se você vier me visitar". Havia uma liberdade incomum no olhar daquela estudante quando ela me contou sobre sua amiga. De alguma forma um grande inimigo havia sido desarmado em sua vida.3 O irmão David Steindl-Rast observa: "A raiz da alegria é a gratidão. [...] Não é a alegria que nos torna agradecidos; é a gratidão que nos faz felizes".4 Por fim, a gratidão é teocêntrica. G. K. Chesterton observou certa vez que a pior coisa para um ateu é sentir-se grato e não ter a quem agradecer. O caráter teocêntrico da gratidão tem por âncora a confiança de que há alguém a quem podemos ' America 73, n1210, 7 de out. de 1995, p. 24. 4 Gratefulness: The Heart of Prayer, p. 204- O CAMINHO DA GRATIDÃO 45 agradecer. Temos motivos para argumentar que o tema dominante da vida interior e das orações de Jesus era a gratidão. Educado na tradição judaica, Jesus com certeza agradecia a Deus antes e depois de comer e orava os grandes salmos de ação de graças (21, 28, 30,65, 66, 116, 136, 139) com profunda gratidão pelo amor e pela fidelidade de seu Pai. No hino de júbilo (Lc 10:21), ele agradece a seu Aba "porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado". No cenáculo, com uma aguda consciência de sua morte iminente, ele tomou um pouco de pão e, "tendo dado graças" (Lc 22:19) o partiu e deu aos discípulos. Sabedor de que seu Pai manifestava-se na beleza das pequenas coisas, Jesus mostrava-se grato pelos pássaros no céu, pelos lírios do campo, pelo sol e pela lua, vales e montanhas, pelos animais que cruzavam os campos e pelos peixes que nadavam no mar. Recebemos a dádiva imerecida da salvação não por algum mérito nosso, mas pela misericórdia divina. Nossos pecados foram perdoados pelo sangue de Jesus Cristo. Recebemos um convite genuíno para beber vinho novo para sempre na festa das bodas no reino de Deus. Conforme prometeu Jesus, "para que comais e bebais à minha mesa no meu reino" (Lc 22:30). Quando as pessoas percebem que receberam uma dádiva que nunca poderão pagar, seu rosto e ações notificam isso, e a vida que levam segue na direção da gratidão humilde e alegre. Elas simplesmente regozijam-se na dádiva. "Rendei graças ao SENHOR, porque ele é bom, e a sua misericórdia dura para sempre" (SI 107:1). Se John Henry Newman escreveu um livro intitulado Gram- mar of Assent [Gramática da anuência], pode-se dizer que Francisco de Assis escreveu uma Gramática da gratidão. Seu senso de gratidão e sua absoluta dependência de Deus não eram emoção e fantasia, mas realidade e fato. Em seus momentos 46 CONFIANÇA CEGA mais sombrios, ele assim mesmo palmilhava o caminho da gra- tidão, consagrando-se à mais elevada forma de dar — dar graças. Seu lírico Cântico do irmão sol inclui até uma exclamação de louvor pela "irmã morte". Ele sabia que era uma pessoa ple- namente possuída por outra, pertencia completamente a outra e era absolutamente dependente de outra. O contrário da gratidão, logicamente, é a ingratidão. A questão da ingratidão era tão grave na opinião de Inácio de Loiola, que ele escreveu uma carta a Simon Rodriguez em que declara: Parece-me que, à luz da Bondade divina, [...] a ingratidão é o pecado mais abominável e deve ser execrada aos olhos de nosso Criador e Senhor e por todas as suas criaturas capazes de desfrutar sua glória divina e eterna. Pois ela é o esquecimento das graças, benefícios e bênçãos que recebemos. [...] Pelo con- trário, o reconhecimento agradecido das bênçãos e das dádi- vas é amado e estimado não apenas na terra, mas também no céu. 5 A antítese de dar graças é murmurar. Os murmuradores vivem num estado de estresse autoinduzido. A exemplo do grupo de trabalhadores na vinha que haviam trabalhado de sol a sol e se sentiram explorados quando os que chegaram depois receberam o mesmo salário (Mt 20:1-16), eles reclamam das injustiças da vida, da escassez de seus dons, da insensibilidade do cônjuge e do patrão, dos liberais que estão destruindo a igreja e dos conservadores que abandonaram seus postos, reclamam do calor e da pizza fria, dos ricos gananciosos e da indolência dos pobres, da vitimização nas garras do leão do 5 Letters of St. Ignatius Loyola, p. 55. Citado por Peter van Breeman, Let Ali God's Glory Through. O CAMINHO DA GRATIDÃO 47 imposto de renda, do governo e do fabricante do Viagra. (Não causa surpresa a informação de que pessoas estressadas e que vivem reclamando têm duas vezes e meia mais chances de pegar resfriados do que as pessoas que se mostram gratas, de acordo com Ronald Glaser, virologista do estado de Ohio.) Em sua Regra para mosteiros, São Bento considerou a mur- muração uma grave ofensa contra a vida comunitária. E escreveu: "Se um discípulo murmura, não apenas em voz alta, mas no coração [...] seus atos não serão aceitos com favor por Deus, que sabe que ele está murmurando no coração". Manifestando sua profunda oposição a esse comportamento, ele acrescenta: "Primeiro e acima de tudo, não haja nenhuma palavra ou sinal de murmuração, nenhuma manifestação por qualquer que seja o motivo. Se, porém, alguém for apanhado murmurando, que seja submetido a severa disciplina" (cap. 34). Em minha opinião, o trecho mais maravilhoso na Regra de Bento descreve a resposta adequada a um "monge contumaz" que estava criando discórdia numa comunidade monástica. "Que o padre Abbot envie dois monges fisicamente fortes para terem uma conversa com ele" (cap. 20, grifos do autor). O devoto fundador do monasticismo ocidental deixa implícito que um direto de esquerda na boca do estômago e um cruzado de direita no queixo iriam clarear rapidinho a mente do irmão re-clamão. Ser grato por uma oração não respondida, dar graças num estado de desolação interna, confiar no amor de Deus em face das maravilhas, circunstâncias cruéis, obscenidades e lugares-comuns da vida é sussurrar uma doxologia no meio das trevas. C A P I T U L O TRÊS A ENORME DIFICULDADE antarei para sempre as tuas misericórdias, ó SENHOR (SI 89:1). Como foi difícil para mim entoar esse cântico quando um telefonema certa manhã trouxe a notícia da morte de meu amigo Rich Mullins, de 41 anos de idade, num acidente automobilístico algumas horas antes em Illinois. Sem explicar, recusei vários convites para falar em cultos celebrados em sua memória, em Nashville, Wichita e Chicago. Eu me sentia perdido em meu mundo interior confuso, sombrio e assustador, cheio de dúvidas, medo, dor e raiva por causa da morte de Rich. Oh!, provai, e vede que o SENHOR é bom (SI 34:1). Como foi duro para Anne Donovan, quando deu à luz um natimorto. Ela disse: "Tudo em que eu havia depositado minha confiança — a ciência moderna, a intuição feminina, a misericórdia de Deus — havia falhado e eu não tinha nada que me servisse de apoio". Amigos bem-intencionados apresentavam as condolências com palavras como "foi da vontade de Deus", "não entendemos a vontade de Deus", e diziam-lhe do C 50 CONFIANÇA CEGA "privilégio que ela agora desfrutava por ter seu próprio anjinho", mas o único gosto em sua boca era o de cinzas. 1 Louvai ao SENHOR, porque o SENHOR é bom (SI 135:3). O louvor que se ouviu do povo da República Dominicana atingido pelo furacão Georges não foi abundante. Milhares de mortos, famílias destruídas, dezenas de milhares de desabrigados e a economia em ruínas. A bondade de Deus não foi cantada, louvada nem provada nos casos de famílias destruídas por terremotos na Turquia e em Taiwan, vítimas cujo sofrimento é visto em todo o mundo. A onipresença da dor e do sofrimento — indesejados, apa- rentemente imerecidos e que não se sujeitam a explicações nem soluções — levanta um enorme obstáculo a uma confiança infalível na bondade infinita de Deus. Como alguém tem coragem de propor o caminho da confiança em face da dor nua e crua, que não escolhe cor, raça nem posição social, da desordem mundial e do terror da história? Qualquer autor cristão que não considere essas realidades cruéis ou as descarte como de pequena monta é ingénuo, ou desonesto, ou desligado da angústia que detona a confiança de muitos cristãos que lutam contra ela. Quando a dor e o sofrimento se juntam ao monstruoso mistério do mal, chegamos a uma encruzilhada de onde não há caminho de volta. A onda de assassinatos nas escolas de alguns estados americanos, a violência do assassino em série Rafael Resendez- Ramirez, a selvageria das torturas sexuais de Charles Ng, de 38 anos de idade, que levaram à morte de seis homens, três mulheres e dois bebés, o horror por causa da mãe 1 America (1997). America é um excelente periódico que trata de teologia, espi- ritualidade, artes e da situação da igreja em todo o mundo. A ENORME DIFICULDADE 51 de setenta anos de idade que confessoumuito tempo depois ter sufocado seus oito filhos antes que completassem dois anos de idade, as sepulturas coletivas de albaneses mortos em Ko-sovo — a lista de males parece não ter fim, impressionando tanto cristãos como não-cristãos com mais intensidade que a presença de Deus. Ao lado de Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Samuel Beckett e Eugène Ionesco, muitos cristãos têm se mostrado incapazes de conviver com o que eles mais temem — a solidão e as coisas absurdas da vida. Eles descartaram o Deus de amor como se ele não passasse de fantasia e foram envolvidos pelos dedos gelados do agnosticismo e do ateísmo. Louis Dupré escreve: A absoluta magnitude do mal que nossa era tem experimenta- do como campos de concentração, guerras nucleares, genocí- dios tribais ou conflitos raciais não levanta a questão de como Deus pode tolerar tanto mal, mas nos faz perguntar como a realidade mais tangível do mal ainda permite a possibilidade da existência de Deus. 2 A dor, o sofrimento e o mal constituem um divisor de águas para a comunidade da fé. Muitos evitam a questão por completo, ao passo que outros tentam substituir a confiança religiosa pela arte, pela reflexão racional ou pela especulação filosófica. Na verdade, conforme observa Dupré: "O mal convida à especulação filosófica, mas é o rochedo que faz a filosofia naufragar". 3 Até mesmo a teologia não tem condições de resolver o problema da mãe cujo filhinho acabou de morrer de câncer. 2 Religious Mystery and Rational Reflection, p. 41-5 IbicL, p. 42. 52 CONFIANÇA CEGA O livro de Jó e os salmos de lamento não revelam nenhum interesse de tirar de Deus a responsabilidade pela tragédia e pela miséria da existência humana. Os salmos apresentam a realidade nua e crua, incómoda e brutalmente honesta. È para um Jó com raiva e atónito que Deus aparece e fala, e ainda se dirige depois ao Elifaz teologicamente sofisticado, dizendo que peça as orações de Jó, acrescentando "porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó" (Jó 42.7). No capítulo 53 de seu livro profético, Isaías fala da figura misteriosa do servo sofredor, que, embora "desprezado, e o mais rejeitado entre os homens", brutalmente agredido, "tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si", mas ainda assim triunfou. As Escrituras cristãs falam da cruz e dão testemunho de que Deus pode transformar em bem os males mais hediondos. Escrevendo sobre a indescritível barbaridade do Holocausto, em que seis milhões de homens, mulheres e crianças foram aniquilados, Frederick Buechner declara: "Mas todas essas ex- plicações soam obscuras e inadequadas diante das câmaras de gás de Buchenwald e Ravensbruck, os fornos de Treblinka". 4 Ao longo de todo o sofrimento excruciante da experiência humana Jesus permanece, nas palavras pungentes de Ray-mond Nogar, The Lord of the Absurd [O Senhor do absurdo], 5 e a esperança na promessa da ressurreição permanece firme e indiscutível. No entanto, para a esposa atingida pela dor de ver o marido e três filhos pequenos serem mortos por um motorista embriagado, afirmar a vida eterna oferece pouco alívio. Do mesmo modo, Anne Donovan, depois de um parto em que 4 listening to Your Life, p. 285. 5E 126. A ENORME DIFICULDADE 53 seu bebé nasceu morto, ouviu apenas risos zombeteiros do céu quando uma amiga bem-intencionada recitou-lhe um poema piegas com esta repugnante mensagem: Deus olhou em volta no céu e resolveu que aquele lugar precisava de mais beleza; então ele colheu uma linda flor — seu bebé que havia nascido morto — para alegrar o céu. Anne disse: "Cerrei os lábios para não dizer alguma coisa da qual eu pudesse me arrepender". 6 Harriet Beecher Stowe mostrou que compreendia as pro- fundezas da luta humana quando escreveu estas palavras a uma amiga em sofrimento: Quando o coração é dilacerado de uma hora para outra, creio ser uma impossibilidade física ter fé ou resignar-se; ocorre uma revolta do sistema animal e instintivo e, embora possamos nos submeter a Deus, isso é provocado por um esforço constante e doloroso e não por alguma doce atração. Além da trindade da dor, do sofrimento e do mal, acrescente-se outro grande obstáculo a uma confiança inabalável no amor misericordioso de Deus: o testemunho infeliz de cristãos ultraconservadores com suas imagens execráveis de um Deus mau. Eles falam num tom sepulcral e frívolo a respeito de uma divindade que, com prazer maldoso, lança num lago de fogo noventa por cento das pessoas criadas a sua imagem e semelhança. Igualmente repugnante é a divindade descrita pelo inigualável Philip Yancey em seu livro magistral What's So Amazing About Grace? [Maravilhosa graça]: "Cresci com a imagem de um Deus calculista", ele recorda, "que pesava meus atos bons e maus em balanças e sempre me achava em falta. 6 Donovan, "Article Title", XX. 54 CONFIANÇA CEGA [...] Eu imaginava Deus como um ser distante e assustador que preferia medo e respeito em vez de amor". 7 O escritor Paul Messbarger lembra-se de uma vez que ele e a esposa foram passar férias em Nova Orleans. A semelhança da maioria dos turistas, foram para o Quarteirão Francês no primeiro dia. Ao virarem a esquina para a Royal Street, uma mulher veio na direção deles. Ela estava vestida como uma profissional, a não ser pelo par de ténis que usava. Com um sorriso escancarado, ela disse: "Eu logo soube que vocês eram salvos". Perplexo com a invasão e sem conhecer direito o jargão evangélico, Paul murmurou: "Assim espero". A mulher postou-se no caminho deles quando tentaram continuar andando. E exclamou: "Não é maravilhoso? Vocês não sentem que o arrebatamento está perto?". Confuso, o casal não respondeu nada. Então a mulher começou a mencionar as tensões que aumentavam em vários países do leste europeu e pareciam caminhar para o caos. Ela interpretava a escalada de conflitos internacionais como um claro sinal de uma guerra nuclear iminente — uma guerra que apressaria o fim do mundo, quando então os eleitos seriam convocados para o céu, transportados fisicamente numa viagem sem escalas. Isto foi o que Messbarger disse depois sobre ela: Revestida de uma confiança invencível, aquela mulher imatura anunciava com toda a serenidade uma mensagem indescri- tivelmente obscena: ela estava comemorando uma destruição em massa, pois, por decreto divino, algumas pessoas seriam re- tiradas deste mundo e elevadas ao céu para desfrutar de alegria 7 R52, 70 [veja bibliografia]. A ENORME DIFICULDADE 55 eterna. Mas daí veio a jogada. Enquanto eu procurava palavras para dar uma resposta à altura daquela ofensa, ela enfiou um papel na minha mão e disse que se comparecêssemos a uma apresentação de uma construtora de condomínios que não du- raria mais que uma hora, ganharíamos como cortesia um café da manhã no famoso restaurante The Court of Two Sisters na Bourbon Street! 8 Desde a grosseira crueldade dos julgamentos das bruxas de Salém até os dias de hoje com imagens blasfemas e implacáveis de um Deus vingativo, a consciência cristã de muita gente tem sido assombrada pelos terrores de um Deus que não tem piedade, fazendo com que as pessoas duvidem até do que vêem. Os clichés, o palavrório e as exortações acerca da necessidade de confiarmos em Deus partem geralmente de crentes nominais que nunca passaram pelo vale da desolação; essa verborragia toda não somente é inútil, mas também é prova cabal de amargura insaciável. Somente quem já passou por esse vale, quem já bebeu do cálice do sofrimento, quem já experimentou solidão e alienação existencial da condição humana ousa sussurrar o nome do Santo em face de nossa aflição indescritível. Somente o testemunho dessas pessoas é válido; somente o amor dessa gente é digno de crédito. O enorme desafio da confiança é exacerbado para osque se encontram em estado de depressão; para os que estão dentro de um casamento sem amor, insistindo na convivência por amor dos filhos, mas sem ver saída; para os que anseiam por um amigo, mas parecem condenados à solidão, para os que não 8 America, 1997, p. 37. 56 CONFIANÇA CEGA conseguem fazer florescer nada que lhes chega às mãos; para os desejam levar uma vida normal, mas se sentem irremediavelmente derrotados por algum vício que não conseguem dominar; para aqueles cuja vida de fé, oração e ministério para Deus começou com altos ideais e com grande entrega pessoal, mas agora tudo parece não ter sentido — pessoas para quem a fé não mais representa consolo e segurança, cujas orações estão envoltas em trevas, cujos ministérios se transformaram em rotina superficial. E então o sofrimento — sempre acabamos caindo de volta no tema do sofrimento. Como fica o desafio de confiar para os três milhões de refugiados que, com suas lágrimas, regam as estradas e os arrozais; para os que vivem em países onde ser negro não é ser belo, mas inferior; para os vinte mil sem-teto que vivem nas ruas de Calcutá, que fazem pequenas fogueiras para cozinhar restos de alimento, defecam nas sarjetas e se encolhem junto aos muros para dormir; para os que estão destruindo corpo e alma com álcool, cocaína e heroína; para os que mancham com o próprio sangue a terra desde Kosovo até a Irlanda do Norte ou pelas ruas de sua cidade natal; para as crianças com barriga inchada no Sudão; para os prostitutos e prostitutas de doze anos de idade (ou mais jovens ainda) em Nova York e outros lugares; para aqueles que estudam em escolas decadentes e sub-humanas? Talvez o leitor ache que estou exagerando a enorme dificuldade para causar um efeito dramático. Mas os que andaram pela longa e solitária estrada que leva ao Calvário não pensam assim. Nem os que viveram angústias insuportáveis e recusa-ram-se a desistir e perder as esperanças. O cético pode dirigir-se a Laura, uma moça cuja carta estava hoje em minha caixa do correio: A ENORME DIFICULDADE 5 7 A única coisa que anseio ouvir de Deus é: "Muito bem". Mas sei que nunca ouvirei isso dele, porque sou muito preguiçosa, burra e egoísta. Sou uma criança mimada e ingrata. Um fra- casso total. Faça um favor a si mesmo, Brennan. Amasse esta carta e me esqueça. O cético pode também falar àquelas mulheres que, na infância, sofreram violência sexual do pai, do tio ou do irmão e agora estão tomadas de fúria, vergonha, impotência e ódio contra si mesmas. Ou a Anne Donovan, enquanto ela segura nos braços seu bebé morto. Se o assunto é esse, fale comigo sentado no meio-fio da avenida General Meyer aqui em Nova Orleans. Estou impregnado de álcool por causa de uma recaída. Minhas roupas estão rasgadas, meu corpo está fedendo, e não me barbeei. Meu rosto e meu abdómen estão inchados; meus olhos, vermelhos como se fossem sangrar. Estou agarrado a uma garrafa de vodca quase vazia. Meu casamento está desmoronando, meus amigos estão quase sem esperanças, e minha honra está manchada. Meu cérebro está confuso, e minha mente virou uma lata de lixo cheia de promessas que abandonei, de sonhos que não se realizaram e de resoluções que não levei adiante. Atrás de mim, a uns cinquenta metros, está a clínica de de- sintoxicação do hospital E Edward Hebert. Ao tomar o último trago, estremeço pela dor e tristeza que causei. Ir às reuniões dos Alcoólicos Anónimos, passar pelos doze passos, falar com meu padrinho, ler a Bíblia, orar — tudo isso deu certo para os outros. E por que não funcionou para mim? Sei que jamais ouvirei as palavras: "Muito bem, servo bom e fiel". Entro em pânico: acabou a bebida. Procurando nos bolsos encontro uma nota de cinco dólares. Cambaleando quatro 58 CONFIANÇA CEGA quarteirões, encontro uma loja de conveniência ainda aberta à meia-noite. Compro meio litro de uma vodca barata. Volto pelo mesmo caminho, ziguezagueando através da avenida para retomar meu lugar no meio-fio. Não quero o tratamento resgatador de desintoxicação. Continuo a beber. Meus olhos estão cheios de lágrimas. Eu, um filho bêbado de Aba, estou clamando: "Jesus, onde estás?" Logo apago com meia garrafa de voda sobre o peito. Quando acordo na manhã seguinte, fico sabendo que dois integrantes da equipe haviam ido para a avenida e me carregaram para a clínica de desintoxicação. Como as pessoas podem bater palmas e celebrar a Deus com vozes de júbilo (SI 47:2) no meio da dor, do sofrimento, da tristeza e do desespero galopante? È possível resistir e no fim transpor a desolação e a melancolia de um panorama marcado pelo mal e pela destruição? Depois da conversão de Saulo / Paulo na estrada para Damasco, Jesus disse a Ananias: "... pois eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome" (At 9:16). Qualquer pessoa que Deus use de forma especial é sempre profundamente ferida. Não é por acaso que o título de um dos livros de Michael Ford sobre a vida e o ministério de Henri Nouwen é Wounded Prophet [O profeta ferido]. Somos, cada um de nós, pessoas insignificantes a quem Deus chamou e dispensou sua graça para usar de modo especial. Aos olhos dele, os grandes ministérios têm tanto valor quanto os que chamam pouca atenção e não são famosos. No último dia, Jesus olhará para nós em busca não de medalhas, diplomas ou honras, mas em busca de cicatrizes. Aonde levamos o mau cheiro exalado pela dor, pelo sofrimento e pelo mal? A especulação filosófica e a reflexão racional naufragam nos bancos de areia da enorme dificuldade. A ENORME DIFICULDADE 59 O único território inexplorado faz com que fixemos o olhar no vasto oceano sem fronteiras da glória de Deus. Ireneu, discípulo do apóstolo João, é nosso guia em Contra a heresia do gnos-ticismo, sua obra de cinco volumes. A sempre citada primeira metade de uma oração de duas partes diz: "A glória de Deus é o ser humano plenamente vivo". Mas a parte menos mencionada diz: "... e a vida do homem consiste em contemplar a Deus". 9 9 Ireneu, Contra a heresia do gnostichmo. C A P I T U L O Q U A T R O PENSAMENTOS GRANDIOSOS o filme Waking Ned Devine, um garoto de dez anos pergunta ao pastor interino de sua igreja: — Você já viu a Deus? — Não diretamente — responde o jovem ministro — mas eu recebo revelações. — Você ganha bem? — pergunta o garoto. — Não. As recompensas do meu trabalho são principalmente espirituais. Então o pastor pergunta ao menino: — Você já pensou numa vida de serviço dedicado à igreja? — Na verdade, não. Eu não quero trabalhar para alguém que eu nunca vejo e não me paga nem salário mínimo. Desconfio de que Ireneu pensava em algo mais quando falou de contemplarmos a Deus na passagem citada no fim do capítulo três. A essência da experiência de contemplação reside na kabõd (palavra hebraica traduzida por glória) do Senhor. Na Bíblia, kabõd é um conceito teológico rico e complexo com múltiplas nuanças de sentido. Começando com o Antigo Testamento, o primeiro sentido, o mais primitivo, tem a ver N 62 CONFIANÇA CEGA com o peso de um objeto determinado numa balança. O segundo sentido, também encontrado no Antigo Testamento, refere-se à riqueza material. O sonho de Salomão em Gibeão contém esta promessa: "Também até o que me não pediste eu te dou", disse Javé, "tanto riquezas como glória [kabõd]; que não haja teu igual entre os reis, por todos os teus dias" (lRs 3:13). Como parte do segundo sentido, a palavra é também usada figuradamente para descrever alguém que alcançou uma posição de destaque, status, proeminência, poder (Gn31:l). Num período posterior, a comunidade judaica identificava kabõd com "o 'peso', grandeza, eminência, poder e autoridade de Deus".' A estupenda majestade de Deus se manifesta na magnólia Dei. Saltando um momento para o presente,
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