Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo Câncer como Doença Hereditária O câncer é hoje reconhecido como uma doença genética multifatorial originada a partir da interação de diversos fatores de risco genéticos e ambientais que resultam no acúmulo de mutações em genes cruciais nos processos de replicação e reparo do DNA, bem como na divisão e proliferação celular. Processos epigenéticos também estão reconhecidamente envolvidos no processo de carcinogênese. Cerca de 5 a 10% dos tumores são predominantemente causados por mutações germinativas em genes de predisposição ao câncer que apresentam elevada penetrância e padrões mendelianos de herança. Desse modo, são três as principais fontes de evidência que demonstram o papel da genética para a origem do câncer: • estudos populacionais que demonstram aumento do risco de câncer em familiares de indivíduos portadores da doença; • agrupamentos familiais de câncer e recorrência de tumores; • síndromes de predisposição hereditária ao câncer. A primeira fonte de evidência refere-se a estudos populacionais que mostram um aumento do risco relativo para câncer em um indivíduo que tenha pelo menos um familiar afetado com o tumor. Registros de câncer de base populacional avaliam a magnitude do risco de câncer para um indivíduo que tem uma história familiar. Esse risco, denominado “risco relativo familiar”, está relacionado ao grau de parentesco do paciente com o familiar afetado por câncer, com o número de familiares afetados e também com a idade ao diagnóstico de câncer em alguns tipos tumorais. 2 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo A segunda fonte de evidência de transmissão genética da predisposição ao câncer provém do estudo de recorrência familiar de algumas formas comuns de câncer, como câncer de mama e CCR. Nessas situações, frequentemente denominadas de “agregados familiais”, os diagnósticos tumorais são feitos em idades similares à idade média de ocorrência populacional, não há clara evidência de herança monogênica e não se identifica uma mutação única em gene de predisposição ao câncer que possa explicar por si só o fenótipo, que provavelmente decorre da interação de mutações em múltiplos genes de baixa penetrância com fatores de risco ambientais comuns aos indivíduos afetados por câncer na família. A terceira fonte de evidência inclui as síndromes hereditárias de predisposição ao câncer, geneticamente determinadas, em que há um risco de desenvolver câncer muito maior que o da população geral e os tumores ocorrem em idade precoce. Nesse caso, geralmente se identificam mutações germinativas em um único gene de predisposição de alta penetrância, que são primariamente responsáveis pelo fenótipo. Embora a maioria das síndromes de predisposição hereditária ao câncer seja isoladamente rara, essa categoria compreende um grupo extenso, que inclui dezenas de doenças genéticas de etiologia monogênica. O estudo de síndromes raras de predisposição hereditária ao câncer tem contribuído de forma marcante para o desenvolvimento do conhecimento científico e clínico em Oncologia, tanto para o entendimento da carcinogênese hereditária quanto da esporádica. A identificação de drogas-alvo moleculares para o tratamento de várias dessas síndromes, como rapamicina na esclerose tuberosa e inibidores de parp-1 em mulheres com câncer de mama associado a mutações germinativas nos genes BRCA, é o primeiro passo para a concretização dos esforços de muitos anos de pesquisa no sentido de oferecer uma medicina mais direcionada e personalizada a indivíduos com riscos genéticos específicos. COMO IDENTIFICAR A PREDISPOSIÇÃO HEREDITÁRIA AO CÂNCER? A anamnese e o levantamento detalhado da história familiar de câncer continuam sendo ferramentas fundamentais na avaliação clínica de um indivíduo ou família com suspeita de predisposição hereditária ao câncer. Nessa avaliação, dois aspectos são fundamentais: • o entendimento dos achados da história pessoal e familiar que devem levantar suspeita de uma síndrome de câncer hereditário e sugerir encaminhamento para avaliação do risco genético de câncer; • o entendimento dos aspectos técnicos, éticos, sociais e legais envolvidos no diagnóstico clínico e laboratorial de um indivíduo e uma família com predisposição hereditária ao câncer. 3 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo A consulta de avaliação do risco genético de câncer se inicia a partir de uma anamnese detalhada, que é realizada se buscando informações sobre antecedentes pessoais, incluindo doenças prévias, internações ou cirurgias realizadas. É importante questionar o paciente sobre a ocorrência de lesões benignas, tais como pólipos, cistos ou nódulos, que são características de determinadas síndromes de predisposição ao câncer. Todos os pacientes devem ser questionados quanto à origem étnica, uma vez que certas mutações germinativas em genes de predisposição ao câncer são mais prevalentes em determinadas populações. Esse é o caso da população dos judeus Ashkenazi, que apresenta em cerca de 2% de sua população uma de três diferentes mutações germinativas nos genes BRCA1 (185delAG e 5382insC) e BRCA2 (6174delT) associada ao câncer de mama hereditário, bem como uma elevada prevalência da mutação 1906C>G no gene MSH2, associada à síndrome de Lynch (SL). Apesar da relação entre exposição ambiental e síndromes hereditárias de predisposição ao câncer não serem bem estabelecida, todos os pacientes são questionados sobre o contato com radiação em altas doses, ou outros fatores de risco ambientais/ ocupacionais para câncer. Todos pacientes que comparecem à primeira consulta devem ser submetidos ao exame físico, com foco na detecção de dismorfias que possam estar relacionadas às síndromes genéticas ligadas ao câncer. Alguns aspectos específicos podem ser fortemente sugestivos de determinada síndrome como o habitus marfanoide verificado em alguns pacientes portadores da síndrome da neoplasia endócrina múltipla 2B (MEN-2B) e a macrocefalia associada às lesões de pele benignas características na síndrome de Cowden. Por fim, além das dismorfias, várias síndromes genéticas de macrossomia e/ou deficiência cognitiva estão associadas a maior risco para o desenvolvimento de tumores, especialmente na infância. Exemplos incluem a neurofibromatose, esclerose tuberosa, síndrome de Beckwith-Wiedemann e a anemia de Fanconi. As histórias familiares de câncer devem ser registradas em heredogramas de, no mínimo, três gerações, incluindo as linhagens materna e paterna do paciente. Embora observações recentes indiquem que o relato da história familiar de câncer, especialmente de primeiro grau, seja bastante confiável, independentemente do nível 4 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo educacional, um esforço deve ser feito para confirmar o maior número possível dos diagnósticos de câncer na família. Essas confirmações podem ser obtidas em laudos do exame anatomopatológico do tumor (o ideal), atestados de óbito, bases de dados de câncer (registros populacionais ou hospitalares) e prontuários médicos. Além da confirmação de um diagnóstico, a confirmação de que determinado familiar não é afetado por câncer também pode ser de grande importância e, em alguns casos específicos, a ausência de um diagnóstico de câncer em um familiar de idade avançada pode ter um valor preditivo negativo muito elevado. Por fim, em situações específicas, risco genético para câncer pode existir e ser significativo mesmo quando a história familiar de câncer é negativa e apenas um caso isolado pode ser identificado na família. Uma das explicações para essa observação é a ocorrência de mutações de novo, frequentes em diversas síndromes de predisposição hereditária ao câncer, como retinoblastoma e polipose adenomatosa familiar. A outra explicação pode ser uma estruturafamiliar limitada, em que o pequeno tamanho de uma família e/ou o pequeno número de indivíduos de determinado sexo vivos até uma certa idade pode restringir a expressão fenotípica de uma síndrome de predisposição hereditária ao câncer. O refinamento dos critérios clínicos para as diferentes síndromes e a possibilidade de diagnóstico molecular em um número maior de famílias tornou evidente que pode haver uma sobreposição clínica entre diferentes fenótipos sindrômicos. Sendo assim, o fenótipo de múltiplos casos de câncer de cólon associados à identificação de um pequeno número de pólipos adenomatosos em uma família podem ter, em seu diagnóstico diferencial, SL, síndrome de polipose adenomatosa familiar atenuada ou ainda síndrome de polipose associada ao gene MUTYH. QUANDO INVESTIGAR UM INDIVÍDUO PARA PREDISPOSIÇÃO HEREDITÁRIA AO CÂNCER? O diagnóstico de uma síndrome familiar de câncer, seja ele advindo do levantamento da história familiar ou obtido por meio da identificação de uma mutação germinativa em gene de predisposição ao câncer, fornece meios para identificar indivíduos em maior risco e para promover estratégias de prevenção do câncer nos mesmos. Apesar de serem importantes adjuntos do diagnóstico clínico, os testes genéticos devem ser realizados apenas quando a história familiar e/ou outro achado clínico sugerem uma considerável probabilidade de predisposição hereditária ao câncer. QUAIS AS REPERCUSSÕES DO DIAGNÓSTICO DE PREDISPOSIÇÃO HEREDITÁRIA AO CÂNCER EM UM INDIVÍDUO E/OU FAMÍLIA? A investigação de indivíduos e famílias em risco para câncer hereditário é importante pelas seguintes razões: portadores de mutação em genes de predisposição ao câncer 5 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo apresentam riscos cumulativos vitais de câncer muito superiores aos da população geral; esses indivíduos são diagnosticados com câncer em idade jovem e frequentemente com mais de um tumor primário ao longo da vida; familiares de um portador de mutação podem ser igualmente portadores e apresentar os mesmos riscos de câncer; estratégias de detecção precoce e/ou intervenções de redução de risco de câncer estão descritas para muitas síndromes de predisposição hereditária e as recomendações de manejo nessas famílias são distintas daquelas propostas para a população geral. As diferentes estratégias de manejo de pacientes com predisposição hereditária ao câncer estão genericamente divididas em recomendações de rastreamento e intervenções de redução do risco de câncer em indivíduos afetados. IMPORTÂNCIA DO ACONSELHAMENTO GENÉTICO NO CÂNCER HEREDITÁRIO Essencial ao processo de diagnóstico clínico e laboratorial das síndromes de predisposição hereditária ao câncer está o aconselhamento genético (AG). Quando a investigação envolve realização de teste genético, este divide-se em AG pré-teste e AG pós-teste. O objetivo principal do AG em oncogenética, do ponto de vista técnico, é a identificação dos indivíduos portadores de uma síndrome de predisposição hereditária ao câncer e a comunicação dos riscos associados a esse diagnóstico, para que a equipe multiprofissional que atende o paciente e sua família possa definir, em conjunto com o paciente, o planejamento das medidas de rastreamento ou intervenção para redução de risco aplicáveis. O processo de AG envolve: • coleta de informação pessoal e familiar, por meio da elaboração de heredograma; • diagnóstico diferencial e definição de como o diagnóstico definitivo pode ser estabelecido; uma vez estabelecido o diagnóstico provável ou de certeza: • estimativa de risco de desenvolver os tumores associados à doença no caso do probando, riscos para demais familiares e riscos reprodutivos (de transmitir a síndrome à prole); • comunicação da informação ao indivíduo e à família, que compreende todos os dados relevantes para o entendimento da evolução, transmissão, condutas de vigilância e redução de risco de câncer e outras complicações da doença. Em alguns casos, o acompanhamento psicológico durante a investigação de uma síndrome de predisposição hereditária ao câncer e após definição do diagnóstico é fundamental. A maioria dos programas de avaliação de risco genético para câncer estabelecidos se baseia em uma proposta de abordagem multidisciplinar. EXEMPLO DE MANEJO COM PACIENTES COM PREDISPOSIÇÃO HEREDITÁRIA AO CÂNCER DE MAMA E OVÁRIO 6 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo Rastreamento de indivíduos de alto risco As recomendações para portadoras de uma mutação germinativa em BRCA1 ou BRCA2, em termos de rastreamento para câncer de mama, incluem: • aos 18 anos, devem-se iniciar o autoexame e as orientações quanto aos sinais e sintomas de alerta para câncer; • a partir dos 25 anos, exame clínico da mama semestral. • a partir dos 25 anos, mamografia anual intercalada com ressonância magnética nuclear das mamas (realizada entre os dias 1 e 15 do ciclo menstrual); • a partir dos 35 anos (ou 5 a 10 anos antes do mais precoce tumor de ovário ocorrido na família), ultrassonografia transvaginal e CA 125 sérico semestral. É importante ressaltar que nenhuma das medidas de rastreamento para câncer de ovário é comprovadamente eficaz tanto para diagnóstico precoce quanto em relação à diminuição da mortalidade, sendo que algumas diretrizes (NCCN) não mais recomendam rastreamento para esse tipo de câncer. Estratégias de redução do risco de câncer Estudos retrospectivos e prospectivos demonstraram que a mastectomia bilateral profilática é a intervenção de maior redução do risco de câncer de mama em mulheres com mutações em BRCA1 e BRCA2, e deve ser considerada uma opção 7 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo especialmente quando há história prévia de hiperplasia atípica e mamas de difícil avaliação pelos exames de imagem. No entanto, em estudo mais recente publicado por Kurian et al., o rastreamento das mamas com ressonância e mamografia em portadoras de mutação nos genes BRCA1 e BRCA2 demonstrou taxas de sobrevida equivalentes àquelas conferidas pelas cirurgias redutoras de risco, A salpingo-ooforectomia bilateral tem valor definido na redução do risco de câncer de ovário em pacientes portadoras de mutações, com redução do risco de até 90%. Adicionalmente, essa intervenção está associada a uma redução de 50% no risco de câncer de mama. O benefício em termos de redução de risco é tanto maior quanto mais precoce for realizada a cirurgia, com melhores resultados em pacientes operadas na pré-menopausa. No entanto, como a média de idade ao diagnóstico de câncer de ovário é de 45 anos, muitos autores defendem a postergação da cirurgia até a constituição da prole. A análise dos tecidos retirados deve ser realizada com minúcia, para descartar doença in situ ou clinicamente aparente. Recomenda-se que pacientes submetidas à salpingo-ooforectomia bilateral recebam reposição hormonal se sintomáticas até os 50 anos de idade. Opções de intervenção não-cirúrgica incluem a quimioprevenção e a modificação dos fatores de risco. Metanálise de estudos clínicos em prevenção primária com tamoxifeno demonstrou uma redução geral da incidência de câncer de mama de 38%; e de 48% para tumores com expressão de estrógeno. No entanto, esse tipo de prevenção deve ser reservado para pacientes de risco moderado e alto risco devido aos riscos associados ao tratamento (câncer de endométrio e eventos tromboembólicos). Novas terapias têm sido desenvolvidas na tentativa de atuar especificamente sobre as rotas metabólicas de pacientes com mutações em genes BRCA. A inibição da enzima PARP1 (poly adenosine diphosphate-ribose polymerase 1), responsável pelos reparos das quebras bifilamentares no DNA, facilita o processo de apoptose de células tumorais que não expressam proteínas BRCA, estimulando a morte da célula tumoral. Estudos de fase I e II estão em andamento e a combinaçãode inibidores da PARP1 a agentes citotóxicos quimioterápicos não parece aumentar o perfil de efeitos adversos.
Compartilhar