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53 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 32, 2017 A AINDA DESCONHECIDA LITERATURA-MUNDO Zhang Longxi1 RESUMO: Literatura-Mundo não faz sentido se compreendida literalmente, porque não é a soma total de todas as literaturas nacionais. Se compreendida literalmente, a literatura-mundo se tornaria, diz Claudio Guillén, uma “ideia louca, inalcançável na prática, que não mereceria um leitor real, mas um iludido guardião de arquivos que também fosse multimilionário.” PALAVRAS-CHAVE: Literatura-mundo, Circulação, leitura de grandes obras de literatura ABSTRACT: World literature does not make sense if understood literally, for it is not the sum total of all national literatures. Literally understood, world literature would become, says Claudio Guillén, a “wild idea, unattainable in practice, worthy not of an actual reader but of a deluded keeper of archives who is also a multimillionaire.” KEYWORDS: World Literature, Circulation, the Reading of Great Works of Literature A literatura-mundo não faz sentido se entendida literalmente, pois não é a soma total de todas as literaturas nacionais. Se compreendida literalmente, a literatura-mundo se tornaria, diz Claudio Guillén, uma “ideia louca, inalcançável na prática, que não mereceria um leitor real, mas um iludido guardião de arquivos que também fosse multimilionário.”2 Obviamente, a literatura- mundo não significa e não pode significar o número incrivelmente grande de todas as obras literárias reunidas a partir das várias tradições literárias do mundo. Muitos têm tentado definir ou redefinir a literatura-mundo para transformar a "ideia louca" em algo sensível, e entre estes, David Damrosch ofereceu uma definição com mais peso que tem ajudado o crescimento da literatura- mundo em estudos recentes. Ele entende "literatura-mundo de modo a abranger todas as obras literárias que circulam além de sua cultura de origem, seja na tradução ou em sua língua original.”3 Esta definição é influente porque efetivamente reduz monstruosamente as inúmeras obras literárias a uma quantidade mais ou menos gerenciável e, assim, estabelece o limiar básico da literatura-mundo. "Uma obra entra na literatura-mundo por um processo duplo", afirma Damrosch: "primeiro, por ser lido como literatura; segundo, circulando para um mundo mais amplo para além de seu ponto de origem linguístico e cultural.”4 A circulação é a palavra-chave na definição de Damrosch, e, de fato, grandes obras da literatura-mundo — das epopeias Homéricas para Dante e Shakespeare, de Rabelais e Cervantes para Dickens e Balzac, de Jane Austen para Virginia Woolf, de Goethe e Hugo para Wordsworth e Keats, de Baudelaire e de Rilke para T. S. Eliot e Yeats, de James Joyce para Kafka e muitos mais — tornaram-se conhecidas em escala global através da ampla circulação e por serem lidas no original ou em tradução por leitores muito além de seu ponto de origem linguístico e cultural. A circulação separa assim as obras de renome e prestígio internacional das outras obras que permanecem localmente conhecidas e lidas e, portanto, não fazem parte da literatura-mundo. A circulação enquanto tal, no entanto, não me parece suficiente para distinguir uma obra de verdadeiro significado global das inúmeras outras obras que são populares e que circulam no mercado editorial por um tempo como best-sellers internacionais. Todos sabemos que muitos best-sellers de sucesso comercial promovidos por editores e populares no mercado não sobrevivem ao gosto frívolo e caprichoso do público leitor, embora os best-sellers não sejam, por definição, desprovidos de valores literários e incapazes de se tornarem verdadeiramente grandes obras. Claramente é um juízo de valor quando identificamos algumas obras como "grandes" ou "verdadeiramente grandes" e não caracterizamos outras obras da mesma forma. O juízo de valor 1 City University of Hong Kong 2 Claudio Guillén, The Challenge of Comparative Literature, trans. Cola Franzen (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993), p. 38. 3 David Damrosch, What Is World Literature? (Princeton: Princeton University Press, 2003), p. 4. 4 Ibid., p. 6. 54 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 32, 2017 é inevitável na leitura e na apreciação da literatura. Porém, o juízo de valor é algo que estudiosos da literatura tendem a evitar no atual ambiente acadêmico, particularmente nas universidades europeias e americanas, onde os valores são reconhecidos como sendo dependentes de fatores econômicos, sociais e políticos, e considerados elitistas, politicamente incorretos, e até mesmo ideologicamente repressivos. É, portanto, compreensível que o valor literário de uma obra não figure explicitamente na definição de Literatura-Mundo de Damrosch. Em sua discussão sobre o conceito cambiante da literatura-mundo "como um corpo estabelecido de clássicos, como um cânone evolutivo de obras-primas, ou como múltiplas janelas do mundo," entretanto, ele tacitamente aborda a questão do valor e do juízo de valor.5 Dos clássicos ao cânone de obras- primas para janelas do mundo, há uma gradação implícita de valores, e nem toda obra literária que circula no mundo pode transformar-se em qualquer uma dessas categorias. Ou seja, os valores literários são realmente importantes para distinguir o que é e não é literatura-mundo. Nesse caso, usar a circulação como chave para a conceitualização da literatura-mundo não me parece adequado para diferenciar grandes obras dignas de fazer parte da literatura-mundo, do grande número de livros que são simplesmente populares e que circulam além de seu ponto de origem linguístico e cultural. A circulação é descritiva do processo de recepção de um livro, por isso, Damrosch também fala da literatura-mundo como "um modo de circulação e de leitura, um modo que é tão aplicável às obras individuais quanto aos corpos de material, disponíveis para a leitura de clássicos estabelecidos e novas descobertas similares.”6 Na minha opinião, a literatura-mundo não pode e não deve ser apenas aqueles clássicos ou obras-primas já amplamente difundidos, e que, como mencionei acima, são quase exclusivamente obras canônicas ocidentais de Homero a Kafka. Não estou a sugerir que se desmitifique ou "decanonize" o grande cânone ocidental, mas estou a afirmar que a literatura-mundo deve abranger muito mais do que as já conhecidas obras canônicas ocidentais. Para mim, a literatura-mundo é emocionante, pois oferece inúmeras oportunidades para ampliar o cânone da literatura mundial de modo a incluir grandes obras de outras tradições literárias, particularmente, não-ocidentais, e até mesmo de "menor" tradição europeia; obras que permanecem desconhecidas ou pouco lidas para além do âmbito das suas tradições nacionais, mas obras que têm sido reconhecidas como de alto valores literários e têm se tornado canônica nessas tradições literárias. Nos últimos dez a quinze anos, a literatura-mundo tornou-se um novo campo em expansão nos estudos literários em muitas regiões diferentes do mundo. Está em ascensão porque, a meu ver, satisfaz a necessidade de ler grandes obras literárias após o domínio das teorias literárias e dos estudos culturais, que atingiram o seu auge nos anos 80 e 90 quase à custa da literatura. Robert Alter já argumentou em 1989 que foi um grande fracasso dos Estudos Literários que "muitos entre uma geração inteira de estudantes profissionais de literatura se afastaram da leitura", e, mais nocivamente, que eles até desenvolveram "uma atitude pela literatura se aproximando às vezes ao desdém.”7 Frank Kermode colocou mais claramente de forma sarcástica que através de "uma série de decisões institucionais" no mundo acadêmico, muitos estudiosos literários tinham "deixado de falar muito sobre literatura.”8 Isto foi confirmado por Haun Saussy em seu relatório de 2006 sobre o estado da disciplina de literatura comparada nasuniversidades americanas quando ele observou que "em momentos, nas últimas décadas, parecia possível fazer uma carreira em estudos literários sem fazer referências substanciais a obras literárias.”9 Neste contexto, podemos entender bem a importância de considerar uma obra "lida como literatura" como a primeira etapa no "processo duplo" de Damrosch por meio do qual uma obra "entra na literature-mundo." Como a arte da linguagem, a literatura é feita para ser lida e apreciada. Mas já 5 Ibid., p. 15. 6 Ibid., p. 5. 7 Robert Alter, The Pleasure of Reading in an Ideological Age (New York: Simon and Schuster, 1989), pp. 1011. 8 Frank Kermode, Pleasure and Change: The Aesthetics of Canon (Oxford: Oxford University Press, 2004), pp. 15, 16. 9 Haun Saussy, “Exquisite Cadavers Stitched from Fresh Nightmares: Of Memes, Hives, and Selfish Genes,” in Haun Saussy (ed.), Comparative Literature in an Age of Globalization (Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2006), p. 12. 55 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 32, 2017 há algum tempo, ler literatura, especialmente a leitura de literatura por os seus valores literários e prazer estético, tornou-se um problema na América e no ocidente em geral devido as teorias críticas e estudos culturais altamente politizados; a "guerra canônica" e a "decanonização" das grandes obras literárias do ocidente, a fragmentação da profissão literária podem ser talvez um reflexo da fragmentação da sociedade americana. Discuti esta questão noutro lugar, e defendo que a literatura-mundo pode oferecer a melhor perspectiva para os estudos literários atuais e para o futuro: A leitura como um problema crítico será resolvida no próprio ato de ler, e é provavelmente na leitura das melhores obras de diferentes tradições literárias do Oriente e do Ocidente que reside o futuro da nossa disciplina. É nossa esperança que, voltando às grandes obras da literatura-mundo, possamos conseguir uma revitalização dos estudos literários, equilibrando, de um lado, a experiência estética da leitura por prazer, e, do outro, a gratificação intelectual da profundidade teórica e do conhecimento.10 A literatura-mundo não só torna possível retornar à leitura de grandes obras literárias sem desculpas, mas também abre o conceito de cânone literário a muitas grandes obras nas tradições literárias mundiais que ainda não foram conhecidas ou lidas como literatura-mundo. Mas por que temos de insistir na ideia controversa do cânone? Isto está relacionado ao problema da literatura- mundo como uma "ideia louca" impossível que mencionamos no início. Ars longa, vita brevis. Ou, como diz Zhuangzi, o grande filósofo daoísta chinês: "minha vida tem limites, mas o conhecimento é ilimitado. Perseguir o ilimitado com o limitado, isso é perigoso.”11 A brevidade da vida ou o impulso implacável em face ao tempo constitui uma profunda ansiedade humana à qual muitos poetas têm se expressado de maneiras diferentes. "Se nós tivéssemos mais tempo e mundo," o amante tristemente percebe no famoso poema de Andrew Marvell; "mas sempre escuto às costas assombrado o carro em que se achega o tempo alado.”12 Porque é humanamente impossível ler todos os livros, torna-se importante e necessário que nós usemos o nosso tempo com sabedoria e lermos apenas os melhores e mais valiosos livros, isto é, as obras canônicas das várias tradições literárias mundiais. Idealmente, todas as grandes obras da literatura mundial deveriam circular amplamente, e constituírem o cânone da literatura-mundo, mas, infelizmente, a realidade é que nem todos os livros que circulam amplamente são de alto valor literário e dignos de nossa leitura atenta, e que nem toda obra de grande valor, especialmente obras de tradições não-ocidentais ou até mesmo as chamadas "menores" tradições da literatura europeia, tem entrado no cânone da literatura-mundo. "Na verdade, na maioria das histórias da literatura-mundo, até então sem exceção, são produtos do mundo ocidental", como observa Theo D'haen, "literaturas não-europeias foram rotineiramente negligenciadas, especialmente, em suas manifestações mais modernas.” Mesmo entre as literaturas europeias, ele continua a argumentar: "o tratamento tem sido desigual. Concretamente, a literatura francesa, inglesa e alemã e, em menor escala, a literatura italiana e espanhola, ao lado da literatura em grego antigo e em latim, receberam a maior fatia da atenção e do espaço.”13 Mas, certamente, muitas tradições literárias fora das grandes literaturas europeias também têm as suas próprias grandes obras, algumas das quais devem ser introduzidas e amplamente difundidas para se tornarem parte da literatura-mundo. O fato é que, no entanto, muitas dessas obras permanecem não traduzidas e, portanto, desconhecidas internacionalmente, por mais grandes e canônicas que possam ser em suas próprias culturas. Isto é o que eu chamo de desequilíbrio de poder entre os países ocidentais e não-ocidentais 10 Zhang Longxi, “Reading Literature as a Critical Problem,” in Ruth Vanita (ed.), India and the World: Postcolonialism, Translation and Indian Literature: Essays in Honour of Professor Harish Trivedi (New Delhi: Pencraft International, 2014), p. 15. 11 Guo Qingfan 郭慶藩 (ed.), Zhuangzi jishi 莊子集釋 The Variorum Edition of the Zhuangzi ], in vol. 3 of Zhuzi jicheng 諸子集成Collection of Masters Writings], 8 vols. (Beijing: Zhonghua shuju, 1954), chapter 3, “The Chief of Nurturing Life,” p. 54. 12 Andre Marvel, “To his Coy Mistress,” in Louis L. Martz (ed.), English Seventeenth-Century Verse, vol. 1 (New York: W. W. Norton, 1969), pp. 301, 302. 13 Theo D’haen, “Major/Minor in World Literature,” Journal of World Literature, 1:1 (Spring 2016): 34. 56 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 32, 2017 e suas culturas; o desequilíbrio do poder suave relacionado ao desequilíbrio de poder econômico, político e militar. A diferença de conhecimento seria uma indicação clara: um estudante universitário chinês com alguma educação básica saberia os nomes de grandes escritores e poetas ocidentais de Homero a Kafka, mas um estudante universitário americano ou europeu dificilmente teria qualquer ideia de quem são os grandes escritores e poetas chineses. É improvável que um estudante ocidental tenha ouvido falar de Du Fu, Li Po, Tao Yuanming, Su Dongpo e muitos outros autores canonizados, apesar de suas obras serem muito valorizadas na China. A língua chinesa tem, provavelmente, mais falantes do que qualquer outro, e a literatura chinesa possui uma grande e longa tradição que remonta a mais de três mil anos, mas quando se trata de circulação a nível mundial, a tradição literária chinesa é, definitivamente, "menor" em comparação com as grandes literaturas europeias. Por isso, não é tão estranho quanto pode parecer quando eu argumento que grande parte da literatura mundial permanece desconhecida e ainda por ser descoberta por estudantes da literatura-mundo. Em todos os países e culturas, os críticos e estudiosos estabeleceram tradições literárias de obras canônicas que são o pilar dessas tradições, as melhores e mais valiosas obras que são os veículos dos valores mais importantes de sua cultura e tradição. Se a literatura-mundo deve incluir apenas o melhor das várias tradições mundiais, deve ser uma coleção e integração de cânones literários de diferentes tradições. Mas como saberemos quais obras são canônicas em diferentes tradições, particularmente tradições fora do bem conhecido cânone europeu, obras canônicas em tradições não-europeias e literaturas "menores" escritas em línguas "menos estudadas"? Quais são as melhores obras na literatura persa e árabe, na literatura africana e australiana, na literatura holandesa, polonesa, escandinava ou sérvia? Quem são os maiores poetas e escritores da literatura brasileira ou argentina? As críticas canônicas e literárias estão intimamenterelacionadas. Sendo assim, precisamos de estudiosos e críticos de diferentes tradições culturais para argumentar pela canonicidade e valor das melhores obras em suas tradições, e nos convencer por que uma determinada obra é valiosa e vale a pena ser lida além de sua cultura de origem. A partir desta perspectiva, é evidente que a literatura-mundo deve incluir as obras mundiais canônicas não apenas de grandes tradições literárias em francês, inglês, alemão, italiano ou espanhol, mas muito mais cânones literários até então não reconhecidos globalmente; e que a crítica literária e o argumento acadêmico são necessários para estabelecer a canonicidade e o valor de uma determinada obra ou grupo de obras, e para convencer os leitores de seus valores e da necessidade de leitura para muito além do seu ambiente linguístico e cultural nativo. Esta é uma tarefa importante para todos os estudantes de literatura comparada e mundial. Uma tarefa que exige o nosso persistente esforço e diligente trabalho, e também aponta para territórios desconhecidos com o entusiasmo de novas descobertas de valor e de beleza. 57 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 32, 2017 BIBLIOGRAFIA ALTER, Robert. The Pleasure of Reading in an Ideological Age. New York: Simon and Schuster, 1989. DAMROSCH, David. What Is World Literature? Princeton: Princeton University Press, 2003. D'HAEN, Theo. “Major/Minor in World Literature,” Journal of World Literature, 1:1 (Spring 2016): 34. GUILLÉN, Claudio. The Challenge of Comparative Literature. trans. Cola Franzen. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993. KERMODE, Frank. Pleasure and Change: The Aesthetics of Canon. Oxford: Oxford University Press, 2004. LONGXI, Zhang. “Reading Literature as a Critical Problem,” in Ruth Vanita (ed.), India and the World: Postcolonialism, Translation and Indian Literature: Essays in Honour of Professor Harish Trivedi. New Delhi: Pencraft International, 2014. MARVEL, Andre. “To his Coy Mistress,” in Louis L. Martz (ed.), English SeventeenthCentury Verse, vol. 1 New York: W. W. Norton, 1969. QINGFAN, Guo 郭慶藩 (ed.), Zhuangzi jishi 莊子集釋 The Variorum Edition of the Zhuangzi ]. in vol. 3 of Zhuzi jicheng 諸子集成Collection of Masters Writings], 8 vols. Beijing: Zhonghua shuju, 1954. SAUSSY, Haun. “Exquisite Cadavers Stitched from Fresh Nightmares: Of Memes, Hives, and Selfish Genes,” in Haun Saussy (ed.) Comparative Literature in an Age of Globalization. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2006.
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