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TEORIA DA LITERATURA III Silvana Oliveira Código Logístico 58229 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6187-7 9 788538 761877 Os conteúdos de Teoria da Literatura são fundamentais para o aluno do curso de Letras, uma vez que apresentam os conhecimentos básicos sobre o fenômeno literário, suas características específicas, suas formas de realização e de avaliação. Ao longo do curso de Letras, é estudada a literatura produzida em vários momentos da nossa história, tanto nas comunidades falantes de língua portuguesa como nas de língua estrangeira. Nesse sentido, os conhe- cimentos de Teoria da Literatura ajudam a compreender como se dá a produção, a circulação e a recepção dos textos literários. Este livro está organizado de forma a trazer os conhecimentos básicos sobre os processos de avaliação por que passa a literatura. Essa avaliação é função da crítica literária. Organizamos a sequência de estudos de modo que fiquem claros os mecanismos culturais e artísticos que colaboram para a existência da literatura como criação artística e também os mecanismos históricos, políticos, culturais e artísticos que concorrem para que possamos dizer qual é o valor de determinado texto literário no tempo e no espaço. Teoria da literatura III IESDE BRASIL S/A 2018 Silvana Oliveira Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ O51t Oliveira, Silvana Teoria da literatura III / Silvana Oliveira. - [2. ed.]. - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2018. 150 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6187-7 1. Literatura. 2. Crítica literária. 3. Literatura comparada. I. Título. 18-52361 CDD: 801.95 CDU: 82.09 © 2009-2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: loloalvarez/jayfish/iStockphoto Silvana Oliveira Pós-doutorada em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Licenciada em Letras pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), onde é professora associada e atua no Programa de Pós-Graduação em Linguagem, Identidade e Subjetividade. Seus interesses de pesquisa centram-se nas relações entre literatura e filosofia. Sumário Apresentação 9 1 Literatura e crítica literária 11 1.1 O que é literatura? 11 1.2 Os muitos conceitos de literatura 12 1.3 Funções da literatura 12 1.4 Funções da teoria literária 14 1.5 Funções da crítica literária 15 1.6 O papel do crítico literário 15 2 O valor na literatura 21 2.1 A crítica literária e as outras instituições 21 2.2 O julgamento crítico 22 2.3 Os critérios de valorização da obra literária 23 2.4 A metodologia do discurso crítico 24 2.5 O que é um clássico? 26 3 O panorama da crítica literária no tempo 31 3.1 Conceitos críticos do mundo grego 31 3.2 Os clássicos e a crítica: características da Escola Clássica ou Classicismo 33 3.3 A crítica literária no Romantismo e na Modernidade 34 3.4 A crítica literária nos séculos XX e XXI 36 4 Os períodos literários e a crítica biográfica 43 4.1 Relações entre a história e a literatura 43 4.2 A figura do autor 45 4.3 A biografia e a obra 46 4.4 A proposta de análise da crítica biográfica 48 5 Determinismo e Formalismo 59 5.1 O que é Determinismo? 59 5.2 O Formalismo Russo 60 6 A crítica estilística e a nova crítica 67 6.1 Como definir um estilo? 67 6.2 A proposta de análise da crítica estilística 69 6.3 Os novos críticos e a profissionalização da crítica 70 6.4 A materialidade do texto literário 71 6.5 A proposta de abordagemda crítica estilística e da nova crítica 72 7 As teorias estruturalistas 79 7.1 O Estruturalismo e suas várias abordagens 79 7.2 Os principais teóricos e críticos do Estruturalismo 81 7.3 A cientificidade da análise estruturalista do texto literário 84 7.4 A proposta de abordagem das teorias críticas do Estruturalismo 84 8 Sociologia da literatura 89 8.1 A relação entre literatura e sociedade 89 8.2 Os críticos sociológicos 90 8.3 Os problemas da abordagem sociológica 95 9 A estética da recepção 99 9.1 A história literária e a história do leitor 99 9.2 O autor e o leitor 102 9.3 Leitor, texto e sentidos 102 9.4 A hermenêutica e a interpretação do texto literário 104 9.5 A proposta de abordagem da estética da recepção 104 10 A psicanálise na literatura 115 10.1 Os principais conceitos da psicanálise 115 10.2 A leitura e a interpretação psicanalítica 117 10.3 Os teóricos e os críticos psicanalíticos 118 10.4 A proposta de abordagem da crítica psicanalítica 118 11 Literatura comparada 123 11.1 A diversidade dos textos literários no tempo e no espaço 123 11.2 O problema das literaturas nacionais 124 11.3 Estratégias de comparação dos textos literários 125 11.4 Comparar para interpretar 126 11.5 Abordagens da literatura comparada 127 12 Principais correntes da crítica contemporânea 139 12.1 Literatura e estudos culturais 139 12.2 Literatura de autoria feminina 141 12.3 Literatura de autoria de minorias étnicas e sexuais 143 Gabarito 149 Apresentação Muito bem-vindo aos estudos de Teoria da Literatura. O interesse na sua formação é o motor principal dos trabalhos que estamos desenvolvendo para que chegue até você um livro da melhor qualidade e com todas as informações necessárias para facilitar a sua aprendizagem. Temos muito prazer em apresentar esta obra para os seus estudos. Os conteúdos de Teoria da Literatura são fun- damentais para o aluno do curso de Letras, uma vez que apresentam os conhecimentos básicos so- bre o fenômeno literário, suas características específicas, suas formas de realização e de avaliação. Ao longo do curso de Letras, você estudará a literatura produzida em vários momentos da nossa história, tanto nas comunidades falantes de língua portuguesa como nas de língua estrangeira. Nesse sentido, os conhecimentos de Teoria da Literatura ajudarão a compreender como se dá a produção, a circulação e a recepção dos textos literários. O livro que apresentamos agora está organizado de forma a trazer os conhecimentos básicos sobre os processos de avaliação por que passa a literatura. Essa avaliação é função da crítica lite- rária. Organizamos a sequência de estudos de modo que fiquem claros os mecanismos culturais e artísticos que colaboram para a existência da literatura como criação artística e também os meca- nismos históricos, políticos, culturais e artísticos que concorrem para que possamos dizer qual é o valor de determinado texto literário no tempo e no espaço. Os capítulos apresentam ao todo 12 temas, assim divididos: • Literatura e crítica literária; • O valor na literatura; • O panorama da crítica literária no tempo; • Os períodos literários e a crítica biográfica; • Determinismo e Formalismo; • A crítica estilística e a nova crítica; • As teorias estruturalistas; • Sociologia da literatura; • A estética da recepção; • A psicanálise na literatura; • Literatura comparada; • Principais correntes da crítica contemporânea. Com base no estudo desses temas, você compreenderá quais as propostas de abordagem do texto literário e quais os principais critérios de avaliação que cada proposta estabelece. Com isso, pretendemos que você também se torne analista e crítico do fenômeno literário. 1 Literatura e crítica literária O objetivo deste capítulo é estabecer relações entre a produção literária e a crítica que se en- carrega de sua interpretação. A literatura ganha sentido no momento em que determinado público especializado dela se ocupa e propõe interpretações e leituras que devem se sustentar nos elementosde composição das obras. Assim, a crítica literária se apresenta como uma instituição que valida e, ao mesmo tempo, justifica a existência disto a que chamamos literatura. Estudaremos, portanto, as relações existentes entre a produção literária e a produção do discurso crítico sobre a literatura. 1.1 O que é literatura? As discussões desta seção concentram-se na teoria literária ou Teoria da Literatura. São re- flexões que têm preocupado o ser humano desde que houve consciência do processo criativo de- nominado literatura. A pergunta que abre este capítulo (O que é literatura?) vem sendo feita há mais de 2.500 anos. Isso mesmo! Não com estas palavras, é claro. Os gregos antigos, por exemplo, já se dedica- vam a pensar sobre aquelas manifestações do espírito que não tinham uma função muito clara, como as narrativas contadas de uns para os outros, ou as declamações com temas alegres ou tristes que emocionavam os ouvintes, ou ainda as encenações teatrais que tanto interessavam ao público da época. Platão e Aristóteles foram os pioneiros na tentativa de organizar toda essa produção huma- na a que hoje damos o nome de literatura. É preciso lembrar que, no momento em que os gregos viviam e pensavam a literatura, as coisas não eram como nós as conhecemos hoje. Obviamente não existia o livro impresso e as manifestações literárias se davam oralmente: as narrativas e os poemas eram declamados por homens conhecidos como aedos ou rapsodos, cuja função era a de fazer circular oralmente – por meio de declamações públicas – essas composições entre o maior número possível de pessoas. O registro que temos dos textos daquela época é bastante posterior ao momento em que eles foram compostos. As noções sobre o que é literatura variam bastante de acordo com a época, mas não podemos negar que boa parte das ideias de Platão e Aristóteles ainda vale e nos fornece as bases para respon- der a essa questão. Afinal, não podemos esquecer que nossa cultura é herança que recebemos dos gregos antigos. Como já deve ter ficado claro para todos, estabelecer o conceito de literatura não é nada simples: dependemos de contextos históricos, referências culturais e esforço teórico. Além disso, fica claro de início que a noção de literatura está diretamente relacionada à arte. Pois a literatura é compreendida, de modo geral, como o exercício artístico da linguagem. Teoria da literatura III12 Muito mais coerente é falar em conceitos de literatura, no plural, porque assim podemos pensar em toda a diversidade da produção artística que se utiliza da linguagem verbal, sem deixar nada de fora. Sendo assim, vamos a eles, aos conceitos de literatura. 1.2 Os muitos conceitos de literatura Segundo importantes e tradicionais estudiosos como Soares Amora (1973) e Hênio Tavares (1991), podemos pensar os conceitos de literatura em dois grandes blocos históricos, ou seja, em duas Eras – a Clássica e a Moderna. A Era Clássica vai desde a época de Platão e Aristóteles, os primeiros teóricos da literatura, até o século XVIII; a Era Moderna vai desde o Romantismo até os nossos dias. Alguns teóricos mencionam a Era Pós-Moderna, mas essa é uma outra conversa. Na Era Clássica, primeiramente há uma preocupação em estabelecer um conceito relacionado à forma com que a linguagem é utilizada para dizer se determinada composição é arte literária ou não. Em segundo lugar, os antigos falam no conteúdo quando se estabelece que a arte literária é a que cria, pela palavra, uma imitação da realidade. Disso podemos concluir que, para os clássicos, ou seja, para os gregos antigos, a literatura é um uso especial da linguagem com o objetivo de criar uma imitação da realidade. Aqui temos três aspectos que merecem destaque. • Observe que se trata de um uso da linguagem, ou seja, é preciso que uma determinada língua seja o suporte para a composição da obra que será considerada literatura. • Esse uso especial da linguagem é direcionado para a criação, ou seja, a literatura não é como a história, que tem a pretensão de registrar a verdade dos fatos: a literatura cria ficção, pois não está interessada no registro da verdade imediata. • Essa criação se dá na medida em que imita a realidade – aqui temos a ideia de imitação (ou mimese, estudada por Aristóteles), estabelecendo que a referência da literatura é a imitação da realidade. Isso quer dizer que, mesmo sendo criação, a literatura precisa se referenciar na realidade, imitando-a. Na Era Moderna, ou seja, a partir dos românticos do século XVIII, a literatura passa a ser compreendida, de maneira mais ampla, como o conjunto da produção escrita. Isso se deve, princi- palmente, ao advento da imprensa1. 1.3 Funções da literatura Além do aspecto relacionado ao texto impresso, a partir da Era Moderna a literatura passou a ter uma relação mais direta com a ideia de ficção, de criação, afastando-se um pouco da noção clássica de imitação da realidade. 1 Em 1442, Johannes Gensfleish Gutenberg (1397-1468) desenvolveu técnicas de impressão em papel. Literatura e crítica literária 13 A figura do artista criador tornou-se muito importante neste período: é da sua mente e da sua intuição que nasce a criação de uma realidade que não precisa estar tão presa à realidade em- pírica. Trata-se da realidade que o senso comum admite como a única. Podemos dizer que, a partir dessa época, acredita-se que ao artista cabe a visão das coisas como ainda não foram vistas e como são verdadeiramente. O aspecto mais importante dessa noção de literatura é o fato de que a realidade passa a ser considerada de múltiplas formas. Cada artista concebe o mundo a partir da sua subjetividade, da sua intuição, e sua obra é um retrato livre dessa interioridade. No seu livro O Demônio da Teoria, Antoine Compagnon, um dos teóricos mais respeitados, afirma que, “no sentido mais amplo, literatura é tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém” (COMPAGNON, 2003, p. 31). O autor diz ainda que “o sentido moderno de literatura (romance, teatro e poesia) é insepa- rável do Romantismo, isto é, da afirmação da relatividade histórica e geográfica do bom gosto, em oposição à doutrina clássica da eternidade e da universalidade do cânone estético” (COMPAGNON, 2003, p. 32). Podemos compreender que a noção de literatura está diretamente ligada à época em que foi produzida. O que não foi considerado literatura há 200 anos, hoje pode muito bem ser concebido como obra literária: não há mais a crença, como havia na Era Clássica, de que a literatura abrange obras eternas e de valor universal. Dizemos, então, que a literatura existe em relação à época em que foi produzida e ao país em que apareceu. Antoine Compagnon (2003, p. 35) nos lembra que as definições de literatura, segundo sua função, parecem relativamente estáveis, quer essa função seja compreendida como individual ou social, privada ou pública. Aristóteles falava de katharsis (catarse), ou de purgação, ou de purificação de emo- ções como o temor e a piedade. É uma noção difícil de determinar, mas ela diz res- peito a uma experiência especial das paixões ligada à arte poética. Aristóteles, além disso, colocava o prazer de aprender na origem da arte poética: instruir ou agradar, ou ainda instruir agradando, serão as duas finalidades, ou a dupla finalidade, que também Horácio reconhecerá na poesia, qualificada de dulce et utile. Devemos concordar que, quanto à função, as definições de literatura são bastante estáveis. Quando pensamos em para que serve a literatura, ainda recuperamos as ideias de Aristóteles que nos cabem para compreender o fenômeno da arte da palavra. Entretanto, quanto à sua diversidade, o conceito de literatura tornou-se bastante problemá- tico. Temos uma variedade tão grande de produção escrita que qualquer um de nós fica confuso diante do último romance de Paulo Coelho, da sequência de aventuras de Harry Potter ou da bio- grafia de Elvis Presley. Isso tudo é literatura? Seria maisfácil se apenas os livros consagrados, os ditos clássicos, fossem considerados lite- ratura, mas não podemos ignorar toda a variedade de produção escrita que circula nesse ambiente. Teoria da literatura III14 A questão da qualidade dessas obras torna-se, então, urgente. Como saberemos quais são as obras que atendem ao bom uso da linguagem, conforme rezaram os gregos? Como saberemos quais obras têm valor estético, ou seja, têm beleza artística? E aí entra a Teoria da Literatura, novamente. A reflexão sobre a realização da obra literária poderá nos apontar um norte no sentido de estabelecer valores: estéticos, morais, de permanência, de ruptura, valores que possam nos autorizar a reconhecer tais obras como manifestações artísticas do humano na palavra. 1.4 Funções da teoria literária Para falar de teoria literária, temos antes que compreender o que é teoria. Podemos con- cordar que, para grande parte dos problemas do dia a dia, existe uma série de soluções já testadas e aprovadas por uma maioria de pessoas. Claro que temos de levar em conta que a “maioria” que decide qual a melhor forma de resolver um problema é sempre a maioria que “pode mais”, não é? Há sempre aqueles que não são consultados para dar sua opinião, pois não “podem nada” na or- dem do dia. Entre os que podem mais e acabam determinando qual a melhor forma de resolver os problemas do cotidiano estão aqueles que têm dinheiro, que têm poder, que sabem falar, escrever e outras coisas mais. Então, o conjunto de soluções testadas e aprovadas para os problemas vividos em uma so- ciedade é o que podemos chamar de senso comum, uma espécie de acordo que fazemos para viver em sociedade. Uma pessoa pode passar a vida inteira resolvendo todos os problemas que se apresentam usando aquilo que o senso comum determina. Mas, um belo dia, essa pessoa pode querer pensar um pouqui- nho mais sobre diferentes formas de resolver problemas na sua vida, tornando-se uma teórica! A partir desse momento, essa pessoa pode não aceitar mais tão facilmente as soluções dita- das pelo senso comum. Ela estará muito interessada em pensar por si mesma e, quem sabe, inven- tar modos originais de enfrentar a realidade. Vejam que, com um exercício livre do pensamento, podemos nos transformar em teóricos e pensar sobre a realidade criando teorias a respeito dela. Uma teoria, como resultado do exercício de pensar sobre a realidade, contestando as ideias já prontas e as soluções já dadas para os problemas que enfrentamos nas várias esferas da vida, precisa ser verificada na realidade. Quando nos interessamos por pensar e criar teorias, estamos, de várias formas, combatendo pre- conceitos. Isso porque passaremos a criar conceitos novos, sobre os quais teremos pensado bastante. Para Compagnon (2003, p. 19), algumas distinções são necessárias. Primeiramente, quem diz teoria pressupõe uma prática, diante da qual uma teoria se coloca, ou diante da qual se elabora uma teoria. Conforme o autor, nas ruas de Gênova, algumas casas trazem este letreiro: “Sala de teoria”. Não se faz aí Teoria da Literatura, mas se ensina o código de trânsito – a teoria é, pois, o código da direção. Literatura e crítica literária 15 Diante disso, podemos perguntar: que prática a Teoria da Literatura codifica, isto é, organiza mais do que regulamente? Não é, parece, a própria literatura ou a criação literária: a Teoria da Literatura não ensina a escrever romances ou poemas. Na verdade, estabelece os modos pelos quais os estudos literários podem se organizar. Podemos dizer, enfim, que a teoria literária instrui os estudos literários ou os estudos da literatura. A teoria literária é um discurso, ou melhor, uma construção discursiva da qual participam muitos agentes, dentre os quais se destacam os autores e os leitores. Ela se configura como uma proposta de interpretação do fenômeno literário. Assim, temos diversos movimentos teóricos im- portantes que buscam dar conta da produção literária. É comum dizer que a teoria literária “corre atrás” da produção literária para compreender seus mecanismos de realização do modo mais efi- ciente possível. 1.5 Funções da crítica literária A crítica literária utiliza-se da teoria literária, e isso significa dizer que precisa dela. Vimos que a teoria se configura como uma proposta de interpretação da obra literária. A crítica, por sua vez, dirá se essa interpretação é válida, ou seja, se o que a obra diz e o modo como diz são válidos como expressão artística. Todos nós já nos perguntamos um dia por que Machado de Assis é um autor tão importante na história da literatura. Quem disse que ele é importante? De certa forma, foi a crítica literária que o fez. É claro que não disse sozinha, outras instituições importantes participaram desse julgamento – a escola de Ensino Fundamental e Médio e a universidade. A crítica literária divide, com a escola e com a universidade, a função de julgar a produção literária de seu tempo. Ao realizar esse julgamento, ela estabelece, simultaneamente, o que cada época julga importante em termos artísticos e culturais. 1.6 O papel do crítico literário Segundo Machado de Assis, no seu famoso ensaio “O ideal do crítico”, a ciência e a consciên- cia são as condições principais para se exercer a crítica. Ainda mais: a crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da sim- patia, procure reproduzir unicamente os juízos da sua consciência. Ela deve ser sincera, sob a pena de ser nula. Não lhe é dado defender nem os seus interesses pessoais, nem os alheios, mas somente a sua convicção, e a sua convicção deve formar-se tão pura e tão alta que não sofra a ação das circunstâncias externas. [...] Com tais princípios, eu compreendo que é difícil viver; mas a crítica não é uma profissão de rosas, e se o é, é-o somente no que respeita à satisfação íntima de dizer a verdade. (ASSIS, 1994) Teoria da literatura III16 Na perspectiva de Machado de Assis, o crítico literário é uma espécie de missionário que dirá a verdade, nada mais do que a verdade, sobre determinada obra literária. O papel do crítico é portar-se como um juiz, que deve julgar o valor da obra literária. Para Antonio Candido (2000, p. 31), crítico literário importante, o papel do crítico pode ser compreendido da seguinte forma: toda crítica viva – isto é, que empenha a personalidade do crítico e intervém na sensibilidade do leitor – parte de uma impressão para chegar a um juízo. [...] Entre impressão e juízo, o trabalho paciente da elaboração, como uma espécie de moinho, tritura a impressão, subdividindo, filiando, analisando, comparan- do, a fim de que o arbítrio se reduza em benefício da objetividade, e o juízo resulte aceitável pelos leitores. Além disso, Candido também considera que o crítico deve ser um “árbitro objetivo” capaz de julgar o valor da obra artística por meio de dois mecanismos básicos – a impressão e o juízo. Enquanto Machado de Assis fala em ciência, Antonio Candido fala em impressão, mas precisamos entender que a impressão adequada sobre determinada obra necessita do conhecimento – ou seja, da ciência. Temos então que o papel do crítico literário é julgar – por meio dos conhecimentos que a teoria literária estabelece – o valor da obra de literatura. Ampliando seus conhecimentos No artigo que você lerá agora, Machado de Assis apresenta, de forma lúcida e clara, as ca- racterísticas da crítica literária brasileira, bem como discute as funções do crítico literário e sua importância para que haja uma produção consistente e amadurecida. Leia com atenção, pois o texto vai ajudar na compreensão de muitos conceitos discutidos nesta obra. O ideal do crítico (ASSIS, 19942) [...] Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante,elevada – será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feios; condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença – essas três chagas da crítica de hoje –, ponde em lugar deles a sinceridade, a solicitude e justiça – é só assim que teremos uma grande literatura. 2 O texto na íntegra pode ser acessado na Biblioteca de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Disponível em: <https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=209757>. Acesso em: 30 ago. 2018. Literatura e crítica literária 17 É claro que essa crítica, destinada a produzir tamanha reforma, deve-se exigir as condi- ções e as virtudes que faltam à crítica dominante – e para melhor definir o meu pensa- mento, eis o que eu exigiria no crítico do futuro. O crítico atualmente aceito não prima pela ciência literária; creio até que uma das condições para desempenhar tão curioso papel é despreocupar-se de todas as questões que entendem com o domínio da imaginação. Outra, entretanto, deve ser a marcha do crítico; longe de resu- mir em duas linhas – cujas frases já o tipógrafo as tem feitas – o julgamento de uma obra, cumpre-lhe meditar profundamente sobre ela, procurar-lhe o sentido íntimo, aplicar-lhe as leis poéticas, ver enfim até que ponto a imaginação e a verdade conferenciaram para aquela produção. Deste modo, as conclusões do crítico servem tanto à obra concluída como à obra em embrião. Crítica é análise – a crítica que não analisa é a mais cômoda, mas não pode pre- tender a ser fecunda. Para realizar tão multiplicadas obrigações, compreendo eu que não basta uma leitura super- ficial dos autores, nem a simples reprodução das impressões de um momento, pode-se, é ver- dade, fascinar o público, mediante uma fraseologia que se emprega sempre para louvar ou deprimir; mas no ânimo daqueles para quem uma frase nada vale, desde que não traz uma ideia, esse meio é impotente, e essa crítica negativa. Não compreendo o crítico sem consciência. A ciência e a consciência, eis as duas condições principais para exercer a crítica. A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procure reproduzir unicamente os juízos da sua consciência. Ela deve ser sincera, sob pena de ser nula. Não lhe é dado defender nem os seus interesses pessoais, nem os alheios, mas somente a sua convicção, e a sua convicção deve formar-se tão pura e tão alta que não sofra a ação das circunstâncias externas. Pouco lhe deve importar as simpatias ou antipatias dos outros; um sorriso complacente, se pode ser recebido e retribuído com outro, não deve determinar, como a espada de Breno, o peso da balança; acima de tudo, dos sorrisos e das desatenções, está o dever de dizer a verdade, e em caso de dúvida, antes calá-la, que negá-la. Com tais princípios, eu compreendo que é difícil viver; mas a crítica não é uma profissão de rosas, e se o é, é-o somente no que respeita à satisfação íntima de dizer a verdade. Das duas condições indicadas acima decorrem naturalmente outras, tão necessárias como elas, ao exercício da crítica. A coerência é uma dessas condições, e só pode praticá-la o crí- tico verdadeiramente consciencioso. Com efeito, se o crítico, na manifestação de seus juízos, deixa-se impressionar por circunstâncias estranhas às questões literárias, há que cair frequen- temente na contradição, e os seus juízos de hoje serão a condenação das suas apreciações de ontem. Sem uma coerência perfeita, as suas sentenças perdem todo o vislumbre de autoridade, e abatendo-se à condição de ventoinha, movida ao sopro de todos os interesses e de todos os caprichos, o crítico fica sendo unicamente o oráculo dos seus inconscientes aduladores. O crítico deve ser independente – independente em tudo e de tudo –, independente da vai- dade dos autores e da vaidade própria. Não deve curar de inviolabilidades literárias, nem de cegas adorações; mas também deve ser independente das sugestões do orgulho, e das impo- sições do amor-próprio. A profissão do crítico deve ser uma luta constante contra todas essas dependências pessoais, que desautoram os seus juízos, sem deixar de perverter a opinião. Para que a crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial – armada contra a insuficiência dos seus amigos, solícita pelo mérito dos seus adversários [...]. Teoria da literatura III18 A tolerância é ainda uma virtude do crítico. A intolerância é cega, e a cegueira é um elemento do erro; o conselho e a moderação podem corrigir e encaminhar as inteligências; mas a into- lerância nada produz que tenha as condições de fecundo e duradouro. É preciso que o crítico seja tolerante, mesmo no terreno das diferenças de escola: se as prefe- rências do crítico são pela escola romântica, cumpre não condenar, só por isso, as obras-pri- mas que a tradição clássica nos legou, nem as obras meditadas que a musa moderna inspira; do mesmo modo devem os clássicos fazer justiça às boas obras daqueles. [...] Será necessário dizer que uma das condições da crítica deve ser a urbanidade? Uma crítica que, para a expressão das suas ideias, só encontra fórmulas ásperas pode perder as esperanças de influir e dirigir. Para muita gente será esse o meio de provar independência; mas os olhos experimentados farão muito pouco caso de uma independência que precisa sair da sala para mostrar que existe. Moderação e urbanidade na expressão, eis o melhor meio de convencer; não há outro que seja tão eficaz. Se a delicadeza das maneiras é um dever de todo homem que vive entre homens, com mais razão é um dever do crítico, e o crítico deve ser delicado por excelência. Como a sua obrigação é dizer a verdade, e dizê-la ao que há de mais suscetível neste mundo, que é a vaidade dos poetas, cumpre-lhe, a ele sobretudo, não esquecer nunca esse dever. De outro modo, o crí- tico passará o limite da discussão literária, para cair no terreno das questões pessoais; mudará o campo das ideias, em campo de palavras, de doestos, de recriminações – se acaso uma boa dose de sangue frio, da parte do adversário, não tornar impossível esse espetáculo indecente. Tais são as condições, as virtudes e os deveres dos que se destinam à análise literária; se a tudo isto juntarmos uma última virtude, a virtude da perseverança, teremos completado o ideal do crítico. [...] Atividades 1. Considere a noção de mimese como os clássicos a concebiam e assinale a alternativa correta. a) Mimese significa o ato da criação literária. b) A realidade era concebida pelos clássicos como mimese. c) Mimese e arte literária são sinônimos. d) A mimese não é um requisito para a criação literária. e) A imitação da realidade consiste na mimese. 2. Assinale a alternativa que corresponde à função da teoria literária. a) Orientar a produção literária. b) Regrar o modo como os escritores devem produzir. c) Interpretar a produção literária de cada época. d) Propor julgamento para a produção literária. e) Estabelecer os limites da produção literária. 3. Quais as instituições que promovem o julgamento da obra literária? Literatura e crítica literária 19 Referências AMORA, Antonio Soares. Teoria da Literatura. 8. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1973. ASSIS, Machado de. O ideal do crítico. In: ASSIS, Machado de. Obra Completa de Machado de Assis. v. 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Disponível em: <https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/ documentos/?id=209757>. Acesso em: 30 ago. 2018. _____. Contos Consagrados. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. BARBOSA, João Alexandre. A Biblioteca Imaginária. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. _____. 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São Paulo: Edusp, 1982. 2 O valor na literatura Há uma expectativa e uma esperança sempre presentes quando um leitor entra em uma livraria para comprar livros ou mesmo quando abre um jornal para consultar a lista dos mais vendidos: a de que sua escolha a partir destes dois cenários – a livraria e o jornal – seja boa. Ora, quem dirá a ele qual livro deve ser escolhido? Os especialistas. No caso do livro literá- rio, espera-se que os críticos sejam capazes de dizer quais são os bons livros, ou seja, aqueles que merecem ser lidos. A discussão sobre o valor na literatura envolve, pelo menos, dois princípios: o valor da lite- ratura, de modo geral, e o valor da obra, de modo específico. 2.1 A crítica literária e as outras instituições Quando nos referimos aos especialistas da literatura, estamos pensando em professores e pesquisadores da área, além de nos críticos literários. Esses profissionais atuam, principalmente, em três instituições sociais que, a rigor, definem e creditam o valor de uma obra literária: a Escola Básica e de Ensino Médio, a universidade e a imprensa. A escola representa, neste contexto, a instituição responsável pela formação básica do cida- dão, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio. É na escola que a criança e o jovem entendem o que é o livro e como ele funciona socialmente. O livro que a escola acolhe em suas classes é va- lorizado a priori, visto que carrega consigo um valor formativo – ele é, literalmente, um clássico: o livro das classes escolares. A universidade (ou academia) representa o ambiente em que o conhecimento é produzido e avaliado sem as determinações externas, sejam de ordem social ou econômica. Embora não possa- mos dizer que a universidade é uma ilha isolada do resto do mundo, é onde o estudioso encontra ambiente propício para produzir conhecimento e valor protegido de imposições e interesses de outra ordem. Dentro da universidade se faz a avaliação teórica dos textos literários e, simulta- neamente, a sistematização daquilo que se produz em literatura. A avaliação e a sistematização da literatura, dentro da universidade orientam a ação de professores e especialistas que atuam na escola. Assim, as duas instituições – escola e universidade – devem estar em constante diálogo e mútua colaboração. A imprensa acolhe o discurso crítico sobre a literatura. As revistas, os jornais, os programas de televisão e a internet são suportes do discurso crítico para chegar ao grande público. E o pro- cesso para alcançar cada um desses meios é bastante diverso. Sabemos que, para escrever em uma revista especializada em literatura, o crítico literário precisa ser reconhecido como profissional. Em jornais de importante circulação ocorre o mesmo. Já na internet, qualquer um de nós pode postar a sua avaliação crítica de qualquer obra sem nenhuma restrição. A diversidade dos meios Teoria da literatura III22 em que a crítica literária circula amplia seu alcance e seu poder de avaliação. Ao pensarmos em determinado livro, é comum que a base para o julgamento do seu valor seja a opinião expressa por determinado crítico em uma revista, um jornal, um programa de televisão ou mesmo na internet. 2.2 O julgamento crítico Antoine Compagnon (2003) afirma que o público espera que os profissionais da literatura lhe digam quais são os bons e quais são os maus livros; que os julguem, separem o joio do trigo, fixem o cânone. Cânone literário é o conjunto das grandes obras clássicas, aquelas cujo valor não pode ser questionado, pois já está consolidado na cultura de determinada sociedade. Um exemplo para a literatura brasileira é Machado de Assis, que já pertence ao cânone literário brasileiro: o valor da sua obra não pode, ou pelo menos não deve, ser questionado. O mesmo não acontece com a obra de um autor como Paulo Coelho, cuja avaliação especializada ainda não se consolidou entre quem critica sua obra e quem nela vê destacado valor. Os leitores, de modo geral, confiam na avaliação crítica que resulta dos discursos produzidos na escola, na universidade e na imprensa. Entretanto o público espera também que se diga por que determinado livro é bom enquanto outro é ruim. Será possível para as instituições julgarem o valor de uma obra sem se limitarem às noções de gosto? Por muito tempo, a ideia do bom e do belo como critérios absolutos para a valorização de uma obra artística funcionaram exclusivamente. Por outro lado, em vários momentos da história da literatura houve a produção de obras em que esses conceitos foram substituídos pelo horror. O Romantismo, por exemplo, quando passa a encenar a morte em todas as suas possibilidades, traz o horror para a discussão do valor literário. Obras como Frankestein, de Mary Shelley, ou Drácula, de Bram Stoker, não podem ser jul- gadas pelos critérios do bom e do belo. O Romantismo, que trouxe outros elementos para a análise do valor da obra literária, tornou mais problemático o seu julgamento crítico. 2.2.1 O valor da literatura em si mesmo A literatura é um conceito que se estabeleceu a partir do século XVII: até então era entendida como tudo aquilo que congregava o conhecimento, sem separação entre o que era criação e o que era ciência. É preciso entender, sobretudo, que literatura, desde sempre, esteve associada à civiliza- ção: conhecimento e arte para civilizar. A partir do momento que literatura passa a designar os textos criativos, seja poesia ou prosa, há a associação com arte e com a humanização do ser. Neste sentido, literatura guarda um valor em si mesma, ou seja, é por meio da literatura e dos valores éticos e morais por ela veiculados que nos reconhecemos como humanos, no prazer e no sofrimento. O valor na literatura 23 Quando nos referimos a uma literatura nacional, por exemplo, estamos falando de um con- junto de obras que congrega o pensamento e os valores produzidos e cultivados por determinado grupo social. Por mais que o conceito de literatura nacional possa ser problemático, não há como negar que funciona para espelhar o ideário de um grupo social e cultural. É só pensarmos em obras como Iracema, de José de Alencar, Os Lusíadas, de Luís de Camões, ou Macunaíma, de Mário de Andrade, para concordarmos que a literatura carrega os valores que determinado grupo social, em determinadotempo, julga necessários para que um povo se reconheça e possa dizer-se a si mesmo frente ao grande conjunto do mundo. 2.2.2 O valor específico de uma obra Para que uma obra possa receber a atenção especial das instituições que promovem o julga- mento crítico, precisa da abordagem da teoria literária. Em cada tempo, a teoria elabora proposições de análise que se encarregarão da tarefa do julgamento crítico. É claro que as teorias também estão submetidas às determinações históri- cas e aos movimentos da cultura. Nesse sentido, não se pode afirmar que uma é melhor do que outra. A teoria é, antes, reflexiva, e ela mesma pode ser questionada. Uma obra abordada por determinada corrente teórica pode ser julgada como de pouco valor, mas uma outra corrente pode atribuir-lhe valor baseada em critérios diferentes e surpreender o especialista com pon- tos de vista bastante variados. A obra literária, no limite, deve suportar diferentes abordagens, esse seria o seu valor mais permanente: sua capacidade de suportar e sustentar variadas abordagens. 2.3 Os critérios de valorização da obra literária Para que um texto passe a ter o status de literatura é preciso haver consenso de algumas instituições importantes dentro de uma sociedade. Se pensarmos no mundo clássico, nos gregos antigos, perceberemos que, para uma obra daquele período passar para a história como literatura, foi preciso uma apreciação generalizada envolvendo público e especialistas. Podemos dizer que isso também acontece hoje. Quando uma obra é apresentada em uma sociedade, é apreciada pelo público leitor, pela crítica especializada, pela escola (como instituição social) e pela academia (as universidades). Só depois dessa apreciação – que pode levar muito tempo – uma obra ganha status de literatura. Os critérios são, portanto, historicamente construídos. Pensemos no romance, por exemplo. Quando essa modalidade literária apareceu formalmente, em fins do século XVIII, houve mui- ta resistência em considerar literatura aquelas produções narrativas tão próximas da oralidade. Os romances eram narrativas cujos conteúdos se afastavam da temática nobre e provocavam certo desconforto em um mundo onde apenas o que era considerado grandioso merecia ser chamado de arte ou literatura. Teoria da literatura III24 A produção do romance romântico é muito variada: desde romances de horror até eróticos foram produzidos nesse período, e todos circulavam de modo a receberem atenção especial do público e dos especialistas. Foi preciso muito tempo para que obras como Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe, ganhassem o status de clássico. Sobre isso, Compagnon (2003, p. 227) nos lembra que a avaliação dos textos literários (sua comparação, sua classificação, sua hierar- quização) deve ser diferenciada do valor da literatura em si mesmo. Mas é claro que os dois problemas não são independentes: um mesmo critério de valor (por exemplo, o estranhamento, ou a complexidade, ou a obscuridade, ou a pureza) preside, em geral, à distinção entre textos literários e não literários, e à classifi- cação dos textos literários entre si. Como vimos, Compagnon relaciona os critérios de valor para o texto literário como operacionais tanto para dizer o que é literatura como para estabelecer o grau de valor entre as obras literárias. Isso significa dizer que se pode julgar um texto em comparação com outro. Podemos di- zer, então, que o romance Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, é mais literário do que o romance A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo? A resposta para essa questão é: “sim, podemos”, desde que deixemos claro qual foi o critério que nos autorizou a esse julgamento. Se tomarmos o critério da complexidade, veremos que no caso do primeiro romance há um proces- so mais elaborado na composição dos elementos da narrativa e, portanto, se demonstrarmos isso satisfatoriamente, estaremos autorizados a dizer que Grande Sertão: veredas é um romance mais bem realizado que A Moreninha. Segundo Zaponne e Wielewicki (2005), até o século XVIII, o público leitor era claramente definido: havia a “sociedade polida”, intelectualizada e interessada tanto pelas artes quanto pela manutenção de valores morais, e os incapazes de ler, dedicados ao trabalho braçal, com os quais a produção literária, grosso modo, não precisava se preocupar. A partir daí, entretanto, foi surgindo uma classe de leitores intermediária, que não é mais formada de “pessoas influentes”, bem versadas nas discussões culturais e intelectuais, nem pelos analfabetos, que não conseguem ler coisa algu- ma. Os autores apontam para o fato de que essa nova classe de leitores é alfabetizada, mas para ela a leitura não tem o mesmo sentido que para as “pessoas influentes” e intelectualizadas a quem a literatura se dirigia antes. Assim, o crítico literário passa a se dirigir a um público que, como ele, trabalha para viver e não está inserido nas formas de diálogo intelectualizado e polido das elites. O crítico, então, precisa se preocupar com questões mais próximas da realidade social dos novos leitores, além de explicar por que determinadas obras devem e merecem ser lidas. 2.4 A metodologia do discurso crítico Como qualquer esforço em prol do conhecimento, a crítica literária é a busca de uma ver- dade e, assim como a ciência, é constantemente revista e reformulada. Isso porque não existe nem O valor na literatura 25 atua em um campo imutável, afinal, todos vemos ao nosso redor obras que não recebiam nenhuma atenção no passado e, agora, são abordadas seriamente pela crítica. O estudo dos textos de autoria feminina é um claro exemplo do constante movimento que o discurso crítico realiza em direção à produção e sobre si mesmo. Escritas no século XVII e atribuídas a Mariana Alcoforado, as Cartas Portuguesas (2002) despertaram o interesse da crítica só muito mais tarde, não apenas pela questão da autoria, mas também para apontar o lugar da obra no cenário da literatura portuguesa. Voltando a Zaponne e Wielewicki (2005), vemos que textos considerados não literários no passado são estudados como literatura hoje, e autores menores, ou que produzem gêneros menos respeitados, podem vir a ser valorizados pela academia. Assim, a crítica e a Teoria da Literatura estudadas nos meios acadêmicos têm papel fundamental na definição do que seja literatura e nas possibilidades e restrições das leituras literárias. As teorias produzidas no sentido de propor abordagens ao texto literário são apresentadas como soluções e caminhos de investigação para o fenômeno literário, mas nenhuma pode ser to- mada em termos absolutos. Hoje não interessa mais uma teoria prescritiva e instrumental, e sim uma teoria reflexiva, que também possa trazer para o trabalho do crítico a reflexão sobre os limites de seu próprio discurso. Isso quer dizer que, ao se tomar uma determinada teoria ou corrente da crítica para abor- dar uma obra literária, também é preciso perceber que aspectos da obra a referida teoria não pode esclarecer suficientemente. Dessa maneira, é possível perceber que qualquer coisa pode ser objeto de reflexão teórica, inclusive o próprio discurso crítico. Não queremos nos tornar chatos e sair por aí teorizando sobre tudo a ponto de aborrecer nossos interlocutores, mas qualquer estu- dioso precisa considerar aquilo que o cerca, seja no plano concreto ou no plano das ideias, como matéria para reflexão. Só a partir dessa percepção da realidade é que venceremos os dogmas, as crenças que são aceitas como verdade – e tanto prejudicam o avanço do conhecimento – e o próprio processo de aprendizagem. Para nós, estudiosos da literatura, pensar teoricamente nos habilita a considerar a criação artística com a palavra de modo a entender as condições em que tal obra foi produzida, as inten- ções dessa produção e, ainda, em que circunstâncias e com quais intenções essa mesma obra foi recebida por um determinado leitor. Dessa discussão teórica resulta o conjuntode conhecimentos a que chamamos teoria literária. Já temos diante de nós, portanto, um grande acúmulo de reflexão teórica sobre literatura e vamos estudar tudo isso. Só que isso não significa que não nos exercitaremos teoricamente por meio dos textos teóri- cos já existentes, e sim que, ao lermos um deles, não precisamos aceitar o que nos diz como verdade absoluta. Estamos nos tornando teóricos também e, ao ler teoria, temos de nos posicionar critica- mente, de modo a operacionalizar o que lemos para elaborar nossas próprias teorias com a ajuda daqueles que nos precederam, assim como com a força do nosso pensamento. Como afirmam Zaponne e Wielewicki (2005) citando Eagleton, a questão teórica sem- pre lembra a imagem da perplexidade da criança sobre práticas com as quais ainda não está Teoria da literatura III26 familiarizada, levando-a a produzir questionamentos acerca daquilo que, para o adulto que já per- deu esse estranhamento, parece óbvio. A investigação teórica permite essa redescoberta do óbvio, o desafio a práticas consideradas normais e naturais, tais como a própria associação da palavra literatura com obras já consagradas. A investigação teórica permite, assim, reavaliações da realida- de e novas tomadas de posição. O questionamento e o estabelecimento do valor literário de uma obra passam por todo um exercício de reflexão do qual o estudioso de literatura é o ator principal. 2.5 O que é um clássico? Para responder a esse questionamento, Compagnon (2003, p. 234) retoma um texto de Saint- Beuve, Qu‘Est-ce qu’un Classique1, de 1850, em que se apresenta uma definição riquíssima: um verdadeiro clássico [...] é um autor que enriqueceu o espírito humano, que realmente aumentou seu tesouro, que lhe fez dar um passo a mais, que des- cobriu uma verdade moral não equívoca ou apreendeu alguma paixão eterna nesse coração em que tudo já parecia conhecido e explorado; que manifestou seu pensamento, sua observação e sua invenção, não importa de que forma, mas que é uma forma ampla e grande, fina e sensata, saudável e bela em si; que falou a todos num estilo próprio, mas que é também o de todos, num estilo novo sem neologismo, novo e antigo, facilmente contemporâneo de todas as idades. (COMPAGNON, 2003, p. 234) Para Saint-Beuve, o clássico transcende todas as tensões e todas as contradições. Seria uma obra absoluta, entre o individual e o universal, entre o atual e o eterno, entre o local e o global, en- tre a tradição e a originalidade, entre a forma e o conteúdo. Seria a obra perfeita, a dicção absoluta do ser. Mas, embora belíssima, tal proposição traz uma problemática explícita, pois, sendo assim, muitas obras que vemos circular com o rótulo de clássicas deveriam ser banidas imediatamente. Já se viu que o termo clássico se emprega o mais das vezes para obras que têm circulação garantida nas escolas, universidades e meios críticos reconhecidos. Essas instituições operam um julgamento crítico que delega valor e prestígio às obras por meio de um complexo processo histó- rico e cultural. Para Antoine Compagnon (2003), a definição de clássico apresentada por Saint-Beuve é ro- mântica e antiacadêmica. Segundo Compagnon, a associação entre criação e tradição é a garantia mais imediata para que determinada obra ganhe status de clássica, da mesma forma que é muito perigoso tornar-se um clássico rápido demais. Daí a importância do processo histórico que conso- lida e avalia – pela ação das instituições autorizadas – o clássico. Embora possamos falar de certo relativismo no estabelecimento dos clássicos contemporâ- neos, é sempre bom lembrar que é preciso confiança no discurso elaborado e consolidado pelas instituições responsáveis por alguma estabilidade nesse campo. Da mesma forma, é preciso traba- lhar no sentido de garantir a confiabilidade dessas instituições. 1 Tradução livre: O que é um clássico? O valor na literatura 27 Ampliando seus conhecimentos A seguir, você poderá acompanhar o processo de análise do conto “O burrinho pedrês”, de João Guimarães Rosa, autor consagrado clássico na literatura. Um exercício teórico: análise do conto “O burrinho pedrês”, de João Guimarães Rosa (OLIVEIRA, 2003, p. 104-1092) “O burrinho pedrês”3 é experiência iniciática para a leitura de Rosa e, ainda, para algo que pode ser dito como a “aprendizagem da espiral”, expressa neste conto a partir da imagem da boiada, principalmente. Magnífica concentração de adjetivos persegue os sentidos em fuga pela multiplicidade de cores, formas e movimentos dos bois, diversos e dessemelhantíssimos, como partes díspares de um todo a inaugurar segmentos inéditos de sentido a cada novo movimento. Das seis da manhã à meia-noite do mesmo dia, o burrinho tem a sua vida dada no relato de eventos espiralados tal como os deslocamentos da boiada no conto. A conexão entre os eventos da narrativa obedece à ordem caótica na qual há uma superdetermi- nação de futuro, imprevisível, posto que a conexão obedece à lógica da espiral. Em pontos sem determinação prévia poderá haver, incessantemente, inéditos elos e relações inusitadas de causa e efeito. [...] Por meio do recurso do sumário, o narrador dá a conhecer, nos primeiros quatro parágrafos do conto, a origem, atual estado e fatos relevantes da vida [...] [do burrinho] Sete-de-Ouros. Sem iniciar a ação, priorizando a cena, o narrador apresenta a boiada; primeiro, suas cores – as mais achadas e impossíveis –; depois, o movimento – correntes de oceano, rodando redemoinhos –; a forma diversa dos cornos. Neste mundo prenhe de determinações, a lin- guagem precisa também se potencializar sem regateios; o narrador não se intimida diante dos limites da dicção do mundo e seu discurso espraia-se deleitosamente pelas coisas, como que a propor estranhos contatos entre palavra e coisa. Contato pautado sempre pelo excesso concentrado; esse discurso voraz persegue inexoravelmente o sentido e não lamenta a perda; antes se vangloria através da adição de significantes, como a cercar incansavelmente algo que está aí, mas onde? [...] A ação encadeia-se de modo a conectar eventos que o acaso organiza numa lógica caótica; demoníaca, pois tudo no sertão é redemoinho: o corisco promove o movimento dos bois na manhã noiteira da fazenda da Mata; o movimento dos bois excita os cavalos; os cavalos desa- lojam o burrinho; o burrinho segue até as proximidades da varanda e é visto e lembrado. Sete-de-Ouros é todo potência e força não usada. Na espiral dos acontecimentos, ele tem a sabedoria de deixar que o movimento do mundo o envolva sem desperdício de vã oposição. 2 O texto na íntegra está disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269858/1/Oliveira_ Silvana_D.pdf>. Acesso em: 30 ago. 2018. 3 Conto publicado em: ROSA, João Guimarães. Sagarana. 31. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Teoria da literatura III28 Deleuze diz, [...] a propósito de Kafka, que é um único e mesmo desejo, um único e mesmo agenciamento que se apresenta como agenciamento maquínico de conteúdo e agenciamento coletivo de enunciação. A máquina da boiada é um agenciamento de conteúdo e, como todo agenciamento, não tem somente duas faces, ele se compõe de segmentaridades que se estendem sobre vários segmentos contíguos, ou se dividem em segmentos que são, por sua vez, agenciamentos. A boiada como agenciamento de conteúdo, com seus bois de diferentes cores; movimentos dís- pares; cornos variados e reações imprevisíveis. Essa máquina tem seus segmentos de poderes e territórios; capta o desejo, fixa-o, territorializa-o. Quando decide mover-se de sua coxia para um espaço de maior tranquilidade, o burrinho experimenta o funcionamento dessa máquina: passa rente aos bois-de-carro – pesados eunucos de argolas nos chifres, que remastigam, subalternos, como se cada um trouxesse ainda ao pescoço a canga, e que mesmo disjungidos se mantêm paralelos, dois a dois. Corta ao meio o grupo de vacas leiteiras, já ordenhadas, tranquilas, com as crias ao pé. E desvia-seapenas da Açucena. Mas, também, qualquer pessoa faria o mesmo, os vaqueiros fariam o mesmo, o major Saulo faria o mesmo, pois a Açucena deu à luz, há dois dias, um bezerrinho muito galante, e é bem capaz de uma brutalidade sem aviso prévio e de cabeça torta, pegando com uma guampa entre as costelas e a outra por volta do umbigo, com o que, contado ainda o impacto da marrada, crível é que o homem mais vir- tuoso do mundo possa ser atirado a seis metros de distância, e a toda a velocidade, com alças de intestino penduradas e muito sangue de pulmão à vista. (ROSA) É preciso dizer, no entanto, que o agenciamento maquínico da boiada, ou a máquina-boiada, tem também suas pontas de desterritorialização ou linhas de fuga, por onde ele mesmo – o agenciamento boiada – foge ou deixa passar suas enunciações ou expressões que desarticulam o funcionamento da máquina, deformando-a ou metamorfoseando-a. No fragmento abaixo, está-se diante da boiada agora metamorfoseada, eu diria até, contaminada, por sentidos outros que escaparam do agenciamento de conteúdo fixo, propondo desterritorializações alucinantes de sentido: alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava a mastreação de chifres. E com- primiam-se os flancos dos mestiços de todas as meias-raças plebeias dos campos-ge- rais, do Urucuia, dos tombadores do Rio Verde, das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim. Sós e seus de pelagem, com as cores mais achadas e impossíveis: pretos, fuscos, retintos, gateados, baios, vermelhos, rosilhos, barrosos, alaranjados; castanho tirando a rubros, pitangas com longes pretos; betados, listados, versicolores; turinos, marchetados com polinésias bizarras; tartarugas variegados; araçás estranhos, com estrias concêntricas no pelame – curvas e zebruras pardo-sujas em fundo verdacento, como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira lavrada, ou faces talhadas em granito impuro. (ROSA) As linhas de fuga ou pontas de desterritorialização possibilitam que o agenciamento se estenda ou penetre em um campo de imanência ilimitado (DELEUZE; GUATTARI); nesse campo o agenciamento de enunciação – no caso de Guimarães Rosa, sua linguagem em estado de flo- rescência – age sobre o conteúdo de modo a formar a espiral. É na própria boiada, é no rio mesmo que a máquina do desejo atua. Não há transcendência, mas imanência. A boiada tor- na-se cordilheira em movimento e o rio uma serpente gigantesca a bater cauda engolindo aquilo que envolve em espiral. O valor na literatura 29 Não existe nenhum desejo, diz Deleuze, que não flua em um agenciamento e, para ele, o desejo sempre foi um construtivismo, construir um agenciamento, um agregado: o agregado da saia, de um raio de sol, de uma rua, de uma mulher, de uma vista, de uma cor... construir um agenciamento, construir uma região, juntar. O agenciamento, então, diz respeito a fenômenos físicos e, para que um evento ocorra, algumas diferenças de potencial devem surgir, como um clarão ou uma corrente, de forma que o domínio do desejo é construído. Assim, toda vez que alguém diz eu desejo isto ou aquilo, aquela pessoa está no processo de construir um agencia- mento, nada mais do que isso, o desejo não é nada mais do que isso. Atividades 1. Quais as instituições autorizadas, histórica e socialmente, pelo estabelecimento dos clássicos na literatura? a) Internet e televisão. b) Crítica e escola. c) Escola, universidade e imprensa. d) Imprensa. e) Escola. 2. Apresente uma breve definição de cânone literário. 3. A partir de que período histórico a literatura passou a ser compreendida como criação artís- tica, não mais associada a todo e qualquer conhecimento? a) Século XX. b) Século XVI. c) Século XII. d) Século XVIII. e) Século I. Referências ALCOFORADO, Mariana. Cartas Portuguesas. São Paulo: Martin Claret, 2002. ALENCAR, José de. Iracema. 24. ed. São Paulo: Ática, 1991. ANDRADE, Mário de. Macunaíma. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. ASSIS, Machado de. Contos Consagrados. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. BARBOSA, João Alexandre. A Biblioteca Imaginária. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996. CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Rio de Janeiro: Bibliex, 1980. CANDIDO, Antonio. O Observador Literário. 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O Romance Experimental e o Naturalismo no Teatro. São Paulo: Edusp, 1982. 3 O panorama da crítica literária no tempo O caminho histórico da crítica literária precisa ser traçado tendo em vista as referências do mun- do grego e latino para, depois, alcançarmos as implicações da tradição no momento contemporâneo. O primeiro manual de teoria e crítica literária, antes mesmo de essas noções estarem elabo- radas como nós as conhecemos hoje, foi escrito por Aristóteles, um dos mais influentes pensadores da Antiguidade. Trata-se do livro que conhecemos hoje como Poética (1992), no qual o autor dis- corre longamente sobre os modos de realização da poesia, estabelecendo comparação entre a for- ma épica e a forma trágica. Tendo vivido por volta de 360 anos antes de Cristo, Aristóteles fundou alguns conceitos-chavepara o pensamento teórico e crítico. 3.1 Conceitos críticos do mundo grego 3.1.1 Imitação Para Aristóteles, na Poética (1992), a imitação é requisito para a boa realização da obra, da criação artística. Na concepção aristotélica, é possível reapresentar – na narrativa, na poesia ou no teatro – a realidade como é experimentada. E ao conceito de imitação ele associou as noções de verossimilhança e necessidade. • Verossimilhança equivale à semelhança com a verdade. • Necessidade significa a relação de causa e efeito que rege os eventos no tempo de qualquer narrativa. Acompanhando a análise de Segismundo Spina (1995, p. 84), vemos que Platão (outro pen- sador grego, posterior a Aristóteles) se refere ao conceito de imitação de modo um pouco diferente: não alcança ser “cópia fiel da realidade”, pois a perfeita reprodução só é possível a um deus, nunca ao homem. Nessa concepção, somente um deus poderia fazer a reprodução de um ser humano, indo além da forma que retratam os pintores para conseguir retratar o interior de uma pessoa, com todo o caráter, a ternura, o calor, o movimento, a alma e o pensamento. Para Platão, fazer poesia era uma atividade inferior, pois era o mesmo que executar uma cópia de terceiro nível: o mundo das ideias é o de primeiro nível, copiado pela realidade material que, por sua vez, é o mundo de segundo nível. Assim, a poesia e a arte, em geral, se apresentam como cópia da cópia, o que torna a poesia inferior a qualquer outra prática social. A realidade ideal só existe no mundo mental, concebido pela capacidade intelectiva do ho- mem. Para Platão, esse mundo ideal é a verdadeira realidade, impossível de ser copiado. Assim, a realidade material é, para ele, apenas uma sombra do mundo das ideias. Na sua concepção, os poetas são nocivos à sociedade porque copiam aquilo que já é uma cópia. Vemos, então, que para Platão é o conceito de mimese que desvaloriza a prática da poesia e da literatura em geral. Teoria da literatura III32 Nesse sentido, ele contradiz Aristóteles, que via na mimese um importante vínculo entre a realida- de e aquilo que a poesia e a literatura deveriam representar. Já para Aristóteles, a imitação está na base do comportamento humano. É compreensível, portanto, que ela seja também a base para a criação em arte. No texto da Poética (1992), encontramos a afirmação: “A epopeia, o poema trágico, bem como a comédia, o ditirambo e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e a do citaredo, todas vêm a ser, de modo geral, imitações” (ARISTÓTELES, 1992, p. 19). Para Aristóteles, ao contrário de Platão, a imitação não era nociva à sociedade; antes, ela funcionaria como um exercício didático para a vida. 3.1.2 Verossimilhança Em linhas gerais, o conceito de verossimilhança apresentado por Aristóteles pode ser asso- ciado à noção de coerência. Assim, verossímil é algo que poderia ser verdade: semelhante àquilo que é vero, verdadeiro. Para ele, Quanto ao limite conforme a natureza mesma da ação, sempre quanto mais longa a fábula até onde o consinta a clareza do todo, tanto mais bela graças à amplidão; contudo, para dar uma definição simples, a duração deve permitir aos fatos suceder-se, dentro da verossimilhança ou da necessidade, passando do infortúnio à ventura, ou da ventura ao infortúnio; esse o limite da extensão conveniente. (ARISTÓTELES, 1992, p. 27) Aristóteles já nos apresenta dois critérios para a valorização e o julgamento da obra artística: a verossimilhança e a necessidade. Isso quer dizer que o desenrolar de uma peça (embora ele se refira ao teatro, vale para outras composições narrativas) deve atender às regras do acontecer da vida, a fábula deve acontecer obedecendo à semelhança com o real e o princípio de necessidade. O que Aristóteles chama de necessidade é o curso esperado dos eventos, também associado à semelhança com o real. Espera-se, por exemplo, que um filho sofra se seu pai for morto, então podemos dizer que esse sentimento em relação ao pai está na esfera da necessidade. 3.1.3 Catarse Catarse é palavra usada por Aristóteles na Poética (1992, p. 24), quando trata dos efeitos da tragédia. A primeira referência à catarse surge no capítulo VI, aquele em que se define a tragédia como espécie ou gênero da poesia dramática. A tragédia é vista como imitação de uma ação de caráter elevado, feita por meio de atores, e não de narrativa; por meio de representação, e não de recitação, e que, ao provocar terror e piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções. A pu- rificação das emoções é a catarse. Mais à frente, em uma das principais passagens do livro, distinguindo a poesia da história, Aristóteles insiste na ideia da tragédia não ser só imitação de uma ação completa, mas de eventos que, por meio de momentos contraditórios, provocam no espectador-leitor as emoções dramáticas da piedade e do terror. Pouco depois, no capítulo XIII, ao explicar a natureza da ação trágica e das emoções dramáticas, o autor diz que uma trama de fatos ou mito que provoque a punição de um malvado não é suficiente para criar terror e piedade: a verdadeira catarse só acontece quando o O panorama da crítica literária no tempo 33 espectador-leitor assiste ao infortúnio de alguém que não mereceria isso – e daí a natureza contra- ditória da ação na tragédia clássica. A noção de catarse como referência para o julgamento da obra e como recurso crítico acom- panha os estudos literários desde Aristóteles, pois garantir o efeito de “purificação das emoções” ou a higiene da alma é um dos grandes valores atribuídos à arte literária. Temos, assim, o caráter terapêutico atribuído à arte narrativa, seja no teatro ou nas composições narrativas orais e escritas. Mesmo o cinema utiliza essa noção na valorização de suas produções. 3.2 Os clássicos e a crítica: características da Escola Clássica ou Classicismo Nos estudos literários e artísticos, a ideia de clássico associa-se diretamente ao mundo antigo grego e latino. Entretanto também dizemos clássico quando nos referimos aos artistas que, a partir dos séculos XV e XVI, retomaram os princípios da arte greco-latina como vetores de sua produção. O ponto de partida da Escola Clássica, como nos lembra Hênio Tavares (1991, p. 52-53), está, remotamente, nas literaturas grega e latina. Modernamente, vamos encontrar esse ponto no Humanismo, movimento cultural que se deu na Itália, no século XIV, e se espalhou pelo continente europeu, dominando amplamente os séculos XV e XVI. O Humanismo buscava o aperfeiçoamento do homem nas instâncias da moral, da cultura e da arte. Na literatura clássica, o Humanismo surgiu como atividade de erudição: realizaram-se inventá- rios magníficos das obras gregas e latinas, cujo interesse seduziu os homens de cultura – os humanis- tas. Desse interesse renasceram as obras do mundo antigo, esquecidas havia tempos. É como se fosse descoberto um antigo tesouro e o interesse se concentrasse em mostrá-lo para toda a humanidade. Ainda segundo Tavares (1991, p. 52-53), o termo clássico pode ser interpretado em vários sentidos. Para caminhar na discussão crítica, tomamos do autor duas definições. • Em sentido específico ou restrito, o artista é considerado clássico quando adota os pro- cessos recomendados pela Escola Clássica, ou seja, segue os padrões elaborados pelos classicistas. Neste sentido, destacamos autores como Camões, Bocage, entre outros. • Em sentido amplo, o autor é considerado clássico quando, pelas qualidades e pelo estilo vital de sua obra, torna-se modelo da arte que realiza, independentemente do tempo e do espaço, da época ou da escola literária a que se filia. 3.2.1 Imitação dos antigos gregos e latinos Aqui o sentido de imitação não carrega nenhuma carga negativa: não se trata de plágio ou simples cópia, mas de uma acomodação da experiência artística dos antigos à realidade contempo- rânea do autor que escreve. O caso exemplar de autor classicista é o de Camões, poeta que escreveu Os Lusíadas ao gosto clássico; seus modelosimplícitos foram a Ilíada, de Homero, e a Eneida, de Virgílio. A ideia de originalidade em nada atinge a prática da imitação dos antigos, pois, para trazer o modelo antigo como referência de sua obra, o autor precisava conhecer muito bem os clássicos, associando-os à sua composição de modo particular e próprio. Teoria da literatura III34 3.2.2 Idealismo Aristóteles afirma que a imitação das coisas deve acontecer de modo a não falar delas como são, e sim a revelar como deveriam ser. Neste sentido, a realidade clássica é uma transfiguração do real, ou seja, mesmo calcada na realidade empírica, a arte deve estabelecer um modelo superior a ela. Em outras palavras, a imitação da realidade deve ser idealizada. 3.2.3 Racionalismo e universalismo O artista deve conceber a realidade de modo a revelar o que ela tem de universal, de verdade moral e estética para a razão. Racionalismo e universalismo são conceitos pares, pois é a ideia de universalismo que torna possível a concepção de homem ideal, ou seja, aquele representado como deveria ser, e não como é, na sua individualidade, como fariam os românticos mais tarde. A ideali- zação do ser humano e do amor são feitas a partir do princípio da racionalidade e da ordem. Vêm daí as noções de bom e belo, que tomamos como universais ainda hoje. 3.2.4 Fixação dos gêneros As formas fixas caracterizam a produção dos clássicos. Quando Camões decide escrever uma epopeia – Os Lusíadas –, toma como modelo a forma fixa da épica clássica, a mesma de Homero e Virgílio: escreve em estrofes de oito versos, todos decassílabos. Cada gênero ou espécie de composição é delimitado por regras rígidas que devem ser segui- das pelo artista clássico. 3.3 A crítica literária no Romantismo e na Modernidade Para entendermos Romantismo e a Modernidade como momentos marcantes à produção de um discurso crítico, já de início destacamos uma personalidade: Charles Baudelaire. Responsável pela produção de sentido para o mundo moderno, Charles Baudelaire é o gran- de nome da segunda metade do século XIX, diretamente associado ao questionamento dos princí- pios clássicos da arte tradicional e ao advento de uma concepção moderna da criação artística em todos os níveis da expressão humana. Segundo Harmuch (2006), Charles Baudelaire criou seus precursores, pois os escritores que o antecederam foram, de certa forma, iluminados pelo seu modo de apresentar as questões rela- cionadas à arte. Para Baudelaire, a manifestação da arte não estaria diretamente associada à expressão do belo clássico. Pelo contrário, a experiência artística estava, também, naquilo que a tradição execra- va. Vejamos um exemplo: Hino à beleza Vens tu do céu profundo ou sais do precipício, Beleza? Teu olhar, divino mas daninho, Confusamente verte o bem e o malefício, E pode-se por isso comparar-se ao vinho [...] O panorama da crítica literária no tempo 35 Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa, Beleza! Ó monstro ingênuo gigantesco e horrendo! Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta De um infinito que amo e que jamais desvendo? [...] (BAUDELAIRE, 1991, p. 37) Esse poema indica que a expressão da beleza pode se dar por meio do que é dito como hor- roroso ou monstruoso. Isso significa que a arte perde o caráter exemplar e didático que vinha exer- citando desde Aristóteles. Para os românticos, a expressão artística seguia ao encontro de mundos ainda não expressos pela arte, mundos terríveis e escuros, em que a ordem e a clareza clássicas não poderiam entrar. Quando consideramos que o Romantismo coloca em cena expressões artísticas que tan- gem ao horror e ao monstruoso, não estamos afirmando que a forma dessa expressão deve ser monstruosa ou descuidada: claro está que nos referimos ao conteúdo. O valor artístico não é mais atribuído pela exemplaridade de uma obra ou pelo seu caráter didático – o que a crítica julga são a forma e a profundidade dessa expressão. O valor da produção se julga também pela capacidade de a obra se justificar diante da tradi- ção. O que se espera é que ela seja capaz de “explicar” seus procedimentos inovadores e, com isso, revelar o seu valor. Harmuch (2006) nos diz que, a partir do Romantismo, os autores já não tinham os mode- los clássicos para determinar o que deveria ou não pertencer à categoria da chamada grande arte e, em certo sentido, viram-se mais livres para buscar caminhos diferentes à realização estética. Em um outro aspecto, ficaram sem parâmetros, inseguros diante da própria criação e, é claro, diante da criação alheia. Instaurou-se o que Leyla Perrone-Moisés chamou de mal-estar da avaliação (1998, p. 10). O mal-estar generalizado faria, por exemplo, com que se chegasse à criação do termo Pré- -Romantismo, tentativa de denominação do período em que o instável, o diferente e a liberdade criadora passassem ao primeiro plano. E o Romantismo perturbou as consciências críticas ainda por muito tempo, a ponto de alguns críticos afirmarem que a grande revolução na história da lite- ratura ainda é o Romantismo. Podemos dizer, diante disso, que os românticos inventaram um novo modo de fazer crítica literária: ao explicarem a própria obra, estavam fazendo crítica literária. É o caso de Almeida Garrett que, em 1846, publicou o livro Viagens na Minha Terra, no qual mistura o estilo digressivo e reflexivo ao modelo de romance de amor que o Romantismo popularizou. Ao discutir a realização do livro e os seus pontos de vista sobre a literatura como um todo, o autor fez uma espécie de crítica literária nova, dentro da própria obra, a exemplo de Baudelaire no poema “Hino à beleza”, que apresentava um novo conceito de beleza a ser expresso pela arte literária. Teoria da literatura III36 3.4 A crítica literária nos séculos XX e XXI O século XX propiciou o aparecimento de várias “escolas críticas”, cada uma delas vinculada a uma perspectiva particular em relação ao fenômeno literário. A abordagem dessas escolas deve considerar, antes de tudo, uma proposta de interpretação, sem demérito de nenhuma frente à outra. Vejamos, então, quais as principais correntes ou escolas da crítica literária que, aparecidas ao longo do século XX, operam significativamente no modo como a crítica contemporânea, no século XXI, aproxima-se da literatura. 3.4.1 Crítica biográfica Considera a perspectiva da vida do autor como chave para a compreensão da obra. Um exemplo simplificado seria a tentativa de explicar a obra do poeta Manuel Bandeira a partir do fato de que teve diagnóstico de tuberculose aos 18 anos de idade. 3.4.2 Determinismo e Formalismo O Determinismo vem do século XIX e influencia algumas abordagens do século XX, uma vez que estabelece uma função direta para a literatura: a denúncia das mazelas sociais, provocadas pelas determinações históricas. O Formalismo se configura como uma ênfase na análise dos mecanismos textuais – o texto em si mesmo é o que interessa. 3.4.3 Crítica estilística A essência da abordagem estilística consiste em detectar e explicar certos aspectos linguísti- cos dentro de um texto, estabelecendo as relações de interesse com as várias áreas de investigação textual, tais como a biografia do autor, a ideologia circundante à obra, a estética autoral. 3.4.4 Nova crítica Assim como o Formalismo, a nova crítica está interessada em demonstrar os mecanismos peculiares de realização textual em cada “acontecimento” literário. Some-se a isso a ideia de que a prática da crítica deve ser entendida como uma atuação especializada. 3.4.5 Estruturalismo O Estruturalismo se desenvolveu por meio dos estudos linguísticos e antropológicos, prin- cipalmente. Interessa pensar em estruturas relativamente permanentes ou, como diziam alguns estruturalistas, uma grámatica universal da narrativa ou da poética que pudesse ser aplicada de modo mais ou menos estável à produção literária. 3.4.6 Sociologia da literatura A literatura é entendida como um discurso social, capaz de interferir na organização da sociedade,
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