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Rafael Lazzarotto Simioni Visite nossos sites na Internet wwwjurua.com.br e www.editorialjurua.com e-mail: editora@jurua.com.br Fundação de Amparo à Pesquisa do • Estado de Minas Gerais ISBN: 978-85-362-4528-7 .JURUR Brasil — Av. Munhoz da Rocha, 143 — Juvevê — Fone: (41) 4009-3900 Fax: (41) 3252-1311 — CEP: 80.030-475 — Curitiba — Paraná — Brasil EDITORA Europa —Rua General Torres, 1.220 — Lojas 15 e 16 — Fone: (351) 223 710 600 — Cento Comercial D'Ouro — 4400-096 — Vila Nova de Gaia/Porto — Portugal Editor: José Emani de Carvalho Pacheco Simioni, Rafael Lazzarotto. S589 Curso de hermenêutica jurídica contemporânea: do positivismo clássico ao pós-positivismo jurídico./ Rafael Lazzarotto Simioni./ Curitiba: Juruá, 2014. 832p. 1. Positivismo (Direito). 2. Hermenêutica jurídica. I. Título. CURSO DE HERMENÊUTICA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA DO POSITIVISMO CLÁSSICO AO PDS-POSITIVISMO JURÍDICO 00630 CDD 340.1 (22.ed.) CDU 340 Curitiba Juruá Editora 2014 1 ESCOLA DA EXEGESE 1.1 MOTIVOS França, início do século XIX. A Revolução Francesa de 1789 pro- vocou transformações enormes em todas as áreas da experiência humana, inclusive na concepção de Estado, de direito e de decisão jurídica. O Ilumi- nismo francês apresentou-se como uma ideologia tão forte que até mesmo o passado histórico precisava ser negado. Isso porque, para assegurarem-se os três pilares do Iluminismo — liberdade, igualdade e fraternidade — era neces- sário colocar um ponto final na história de trevas que foi a Idade Média. O século das Luzes precisava se separar dos tempos das trevas, dos tempos da dominação, da desigualdade social e do obscurantismo místico-religioso que caracterizaram a Idade Média. 1.1.1 Desconectar o Direito do Passado Histórico Era necessário, portanto, uma concepção de direito desconectada do passado. Era necessário mudar o curso da história, colocando os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade em um futuro que merecia ser persegui- do. A Revolução Francesa procurou romper com o passado. Negar o passado das trevas para dar um novo curso à história. Para _tanto, o direito tornou-se nm,instrumento importante, especialmente porque a lei escrita permitia exa- tamente essa desvinculação do passado histórico. A lei escrita permitia que , . -se desconsiderassem as razões históricas que justificaram as normas juridi- _ cas. Porque a partir do_momento.em_ que_ a norma apresentava-se na forma escrita, o seu texto constituía, por si só, a expressão do que deveria ser inter- pretado, arguit entado e ddcididorio campo cro direito. Razões históricas, motivos do passado, costumes, tudo isso era ob- jeto de uma forte crítica por parte dos ideais iluministas. Precisamente por- 3 30 Rafael Lazzarotto Simioni que o passado de trevas que foi a Idade Média devia ser deixado para trás, para que o esclarecimento guiasse a sociedade no sentido dos seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Nesse contexto, portanto, era imprescin- dível uma concepção de direito não histórica, quer dizer, um direito que orien- tasse as decisões somente para aquilo que era fruto da razão do próprio ilu- minismo: os textos legais sistematizados, em especial o Code civil, a expres- são máxima da razão iluminista sobre o direito na época. O Code civil não era apenas um código civil tal como o entende, mos hoje. O Code civil constituía, por si só, o fundamento tanto da experiên- cia quanto da racionalidade do direito. Era o resultado da sistematização de um conjunto de textos legais que permitia respostas jurídicas para todas asi questões práticasl. Todas as questões jurídicas estavam previstas nos textos' legais sistematizados no Code. E se porventura uma questão Pão estivesse' prevista lá, era porque não se tratava de uma questão jurídica. E com essei fundamento se poderia então argumentar x) aastamento de qualquer- presta- para uma pretensão sem respaldo jurídico. E o fato de se acreditar que todas as questões práticaTs encontravam uma resposta jurídica nos textos legais do Code civil; permitia a tomada de decisões jurídicas sem nenhuma necessidade de interpretar as situações prá- ticas a partir de seus contextos históricos, como também permitia que a ar- gumentação jurídica ficasse restrita a uma lógica bastante simples de mera subsunção do caso no texto legal. As respostas do direito às questões práticas poderiam então ser simplesmente deduzidas dos textos legais segundo uma , lógica analítica exageradamente dogmática. E utilizamos a expressão "dogmá- ' tica" agiu no sentido forte de que o texto da lei, por si só, constituía um ,1r*V2 )5 dogma que não poderia ser questionado, nem mesmo interpretado, muito menos contrariado ou relativizado pela argumentação e pela decisão jurídica. 4' Interpretar o texto da lei constituía inclusive um ato reprovável, já': que o texto legal era considerado não só como o resultado racional e ilurni- - nado de uma decisão política do legislativo, mas sobretudo como um valor r;superior ao próprio governo. Conforme Rousseau, o governo é o garantidor, I ‘-administrador e no máximo interprete das leis2. É o governo que depende das ; r : í Corno observou W1EACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tra- dução de A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenlcian, 1993. p. 379: "E precisamente a crença jusracionalista na possibilidade de um direito justo em abso- luto (numa certa situação histórica) que faz crer ao legislador que é possível regular uma vez por todas qualquer situação pensáveP". 2 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Frammenti politici. In: Scritti politici. Roma: Laterza & Figli, 1994. v. 2, [p. 227-316], p. 244: "Pertanto, se le leggi esistono prima dei Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 31 leis, não as leis do governo. Por isso o legislativo, diferentemente de hoje, era considerado um dos poderes mais importantes da estrutura do Estado3. Para a decisão jurídica cabia apenas aplicar a lei. E daí, também, tanto a fór- mula de Rousseau, para quem os magistrados só têm que obedecer as leis fundamentais do Estado4, quanto a de Montesquieu, segundo o qual o juiz é a boca da leis. Isso porque a lei não só emana de uma vontade geral considera- da sempre correta na proteção dos interesses privados, mas também porque a sua duração revela a todos a equidade e a segurança que ela propicia6. A obediência à lei é sinônimo de liberdade, porque obedecer a uma lei é obede- cer à vontade pública, não à vontade de alguém'. Com efeito, a ideia de lei no iluminismo é uma ideia quase sobrenatural. A lei é a expressão máxima de uma vontade política que procura se esfôrçar para atingir a perfeição da vontade de Deus. E nesse sentido, a lei passa a ter um caráter igualmente sagrado, pois embora não expressem a perfeição ideal das leis de Deus, as leis civis revelam-se, contudo, como expressão da razão iluminista. Pensa-senas vantagens de tempo e de esforço que o legalismo da Escola da Exegese permitiu para as decisões jurídicas. Se antes era necessá- rio argumentar, para justificar uma resposta do direito a uma questão, sob as diversas — e incontroláveis — variáveis dos costumes históricos de cada es- trato social, agora torna-se possível simplesmente argumentar que a resposta a tal questão jurídica é esta porque o texto da lei diz que é esta e não outra. O ganho de tempo e de simplicidade na argumentação jurídica é significativo. governo, esse sono indipendenti dal governo anzi è il governo stesso che dipende dalle le- ggi, poiché solo da queste trae la propria autorità e, lungi dall'esserne autore o padrone, ne è solo garante, amministratore e, ai massimo, interprete". Tanto que se pode ler em Rousseau uma expectativa bastante otimista depositada no le- gislativo: "È impossibile corrompere il legislatore in corpo, ma ingannarlo è facile. I suoi rappresentanti, invece sono difficili da ingannare, ma facili da corrompere, e raramenteaccade che non siano" (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Considerazioni sul Governo di Polo- fia e sul progetto di riformarlo. In: . Scritti politici. A cura di Maria Garin. Bari: Laterza & Figli, 1994. v. 3, [p. 175-281], p. 204). 4 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Frammenti politici. In: . Scritti politici. Roma: Laterza & Figli, 1994. v. 2, [p. 227-316], p. 244. Cf. MONTESQUIEU. De l'esprit des Mis. Paris: Librairie Garnier Frères, 1927. p. 154 [Livre XI, Chapitre VI]. 6 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Frammenti politici. In: . Scritti politici. Roma: Laterza & Figli, 1994. v. 2, [p. 227-316], p. 245. 7 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques., p. 108: "As leis não são, propriamente, mais do que as con- dições da associação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o seu autor. Só àqueles que se associam cabe regulamentar as condições da sociedade. [..] Então, das luzes públicas re- sulta a união do entendimento e da vontade no corpo social, daí o perfeito concurso das par- tes e, enfim, a maior força do todo. Eis donde nasce a necessidade de um Legislador". 32 Rafael Lazzarotto Simioni Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 33 Essa concepção de direito foi conhecida também como o legalismo da codificação pós-revolucionária. Nessa concepção, não há nenhuma dife- rença entre direito e texto legal. Direito e texto de lei confundem-se em uma única identidade dogmática. O direito é o texto da lei, tanto quanto o texto da lei é o direito. E assim a Escola da Exegese permitiu entender o direito exa- tamente segundo os ideais da Revolução Francesa: negando os costumes e tradições que vinham das "trevas" da Idade Média, para permitir apenas a legitimidade esclarecida da lei editada segundo as exigências do século das Luzes. 1.1.2 Multijurisdicionalidade e Direito Costumeiro Fragmentado A Escola da Exegese erigiu o texto da lei como o único material para ser trabalhado sob o nome de direito. Porque uma vez escrita, a lei po- deria ser tanto entendida por todos, quanto difundida para todos que a ela se encontravam submetidas. Essa combinação de meio de comunicação e meio de difusão ins- tituída pela forma escrita da lei permitiu resolver também ursa problema his- tórico do Estado medieval, que era o problema da multijurisdicionalidade: havia tantas jurisdições quanto o número de classes, estamentos ou estratos sociais. Havia uma jurisdição para mercadores, outra para nobres, outra ain- da para religiosos, para plebeus etc. Cada estrato social tinha uma jurisdição correspondente9. E isso acontecia exatamente porque não havia relações jurí- dicas significativas entre estratos sociais distintos. Nobres não realizavam contratos com plebeus e vice-versai°. As relações eram de dominação, explo- ração e submissão. E do mesmo modo que cada estrato social possuía a sua própria jurisdição, também havia um direito costumeiro fragmentado, de ín- dole jusnaturalista, com tantos costumes quanto o número de estratos sociais. Cada estrato social possuía tanto o seu próprio direito costumeiro quanto uma jurisdição correspondente". E isso representava um problema Sobre os meios de difusão da comunicação, ver-se: LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Raffaele. Teoria deita società. 11. ed. Milano: Franco Angeli, 2003. Cf. TARELLO, Giovani. Storia della cultura giuridica moderna: assolutismo e codifica- zione del diritto. Bologna: II Mulino, 1976. p. 27. Relações jurídicas entre nobres e plebeus eram tão raras e inusitadas que inclusive vira- vam novelas, como as de Shakespeare. Uma interessante ilustração desse período históri- co e do significado do inicio da proteção jurídica aos contratos firmados por plebeus pode ser lida em FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière. Cf. TARELLO, Giovani. Storia della cultura giuridica moderna: assolutismo e codifica- zione dei diritto. Bologna: Ii Mulino, 1976. p. 28-29: "L'espressione 'particolarismo fiuridi- co ' è stata inventada e fatta circolare dai giuristi positivisti dall'Ottocento, proprio al fine di para a pretensão de governo de um território ou de uma nação por um Esta- do. Um poder central de controle e direção daquela forma de sociedade es- tratificada exigia, como condição de possibilidade, a unificação da jurisdição e também do direito. Quer dizer, a pretensão do Estado de governar um ter- ritório multijurisdicionalizado, onde o direito se encontrava fragmentado na forma de múltiplos direitos costumeiros, de índole jusnaturalista, exigia um instrumento capaz de unificar tanto as múltiplas jurisdições quanto os frag- mentados direitos costumeiros de cada estrato social. Para isso a lei escrita foi uma resposta perfeita. Porque com base na lei escrita, o próprio direito se torna geral e abstrato: geral no sentido da di- fusão para todas as pessoas e estratos sociais do território do Estado ou da nação; e abstrato no sentido de que a sua aplicação não dependeria mais de nenhuma razão histórica, mas tão somente da subsunção do caso concreto nos elementos sintáticos descritos no texto da lei. Esses três motivos juntos constituíram uma boa razão para justifi- car as pretensões da Escola da Exegese. A sua concepção legalista de direito permitiu, de uma só vez: a) coordenar a necessidade do Iluminismo de rom- per com o passado; b) unificar a múltiplas jurisdições que antes eram dividas em conformidade com os estratos sociais medievais; bem como c) substituir os direitos costumeiros de cada estrato social medieval por um direito racio- nal, geral e abstrato, que vale para todos e que, exatamente por isso, apre- sentou-se como instrumento de promoção dos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. 1.2 FUNDAMENTOS 1.2.1 Justificações Teóricas Mas apesar da proeminência da lei escrita como o único vetor vá- lido da decisão jurídica na Escola da Exegese, há também outros dois pres- supostos que constituem o seu estilo de interpretação, argumentação e de- contrapporre la felice situazione dei diritto codificato a quella, infelice, che la precedeva; [.], in cui ia concomitanza di tendenze storicistiche e di tendenze corporativistiche, mentre ostacolava nella prima metà dei secolo XIX il processo di codificazione, dissuadeva dall'adozione di uno schema di interpretazione storiografica fondato sulla contrapposizione tra diritto frantumato in sistemi particolari e diritto unificar° da una codificazione unifor- me". Também Wieacker destaca, a respeito do Código de Napolão, essa necessidade política de "substituir o antigo particularismo feudal por um direito geral dos franceses baseado na razão". (WLEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tradução de A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenlcian, 1993. p. 386) 9 10 II 34 Rafael Lazzarotto Simioni _ t• cisão. Ao lado do pressuposto político do legalismo liberal, a Escola da Exegese tem também um pressuposto filosófico no jusnaturalismo ilumi- nista, bem como um pressuposto cultural no fenômeno das codificações pós-Revolução Francesa12. Esses três pressupostos juntos, articulados de modo implícito nos discursos da Escola da Exegese, constituíram as suas bases fundamentais de justificação científica. São três, pois, os fundamen- tos que constituem a justificação teórica (científica) da Escola da Exegese: uma imagem política da lei escrita, uma imagem filosófica jusnaturalista e uma imagem cultural da forma codificada dessa lei escrita. A lei escrita tinha, assim, um fundamento simultaneamente político, filosófico (jusnatu- ralismo iluminista) e cultural. O fundamento político da lei escrita apontava para o modelo de Estado da época, segundo o qual somente as leis politicamente legitimadas pelo Estado de assembleia representativa e com seus poderes separados po- deriam pretender validade. Separava-se assim a lei escrita das normas mo- rais, religiosas, éticas e toda aquela carga histórica que fundamentava o di- reito costumeiro. Esse fundamento político da lei escrita permitia, portanto, renunciar ao direito costumeiroe cumprir com as exigências de rompimento com o passado da Revolução Francesa. No lugar do passado histórico e de suas tradições consuetudinárias, colocava-se agora a legitimidade política do Estado, já fundamentada por filósofos como Rosseau e Montesquieu. Naturalmente, um fundamento político é insuficiente para consti- tuir o pano de fundo dos discursos práticos que seriam necessários à aplica- ção do direito pelas decisões jurídicas. A fundamentação de uma decisão jurídica exige mais fundamentos prévios. Uma fundamentação política dos textos legais deixa aberto um espaço muito grande para argumentações. E por isso o fechamento dessa rede de pré-fundamentações foi realizada com base nos ideais filosóficos do jusnaturalismo iluminista, que pregava a exis- tência de um direito natural-racional superior, o qual foi colocado como fun- damento metafísico dos textos legais. Quer dizer: um direito natural-racional metafisico, colocado como pano de fundo dos textos legais, para cobrir qual- quer aresta eventualmente aberta por perguntas sobre os motivos da decisão por uma e não outra resposta do direito. Essa combinação de justificações políticas e jusfilosóficas ilumi- nistas permitiram então um arranjo ideal com o momento cultural da época, cuja moda eram as codificações: a sistematização dos textos legais em códi- gos que não apenas facilitavam a pesquisa das soluções jurídicas, mas que 12 Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 181. Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 35 sobretudo corporificavam o direito. Com efeito, os códigos eram mais que coletâneas de leis: eles simbolizavam a própria unidade do direito. Simboli- zavam o lugar, o sentido e a própria corporeidade material do direito. E exa- tamente em razão da combinação entre a fundamentação política, jusfilosófi- ca e cultural das codificações, a ideia de código passou a simbolizar também a ideia de que todas as respostas jurídicas, todo o direito, toda a regulamen- tação jurídica, estava de modo total, exclusivo e definitivo, no código. O có- digo era o direito completo. O direito era o código. Não havia direito fora do texto legal do código. E essa ideia foi uma conquista da Escola da Exegese, pois antes dela, nos códigos dos séculos XVII e XVIII, não havia uma ruptura com as tradições históricas, tampouco havia uma concepção de inexistência de lacu- nas, tanto que esses códigos remetiam, no caso de lacunas, a fontes subsidiá- rias de direito, que eram os recursos ao direito natura113. A partir, da Escola da Exegese, contudo, a codificação ganha o sentido da completude e da au- \ tossuficiência. Tanto que o juiz já não poderia mais recusar-se a julgar um caso sob o pretexto de lacuna na lei'''. 1.2.2 Justificações Práticas Dessa justificação teórica da ideia de direito na Escola da Exegese foram projetadas — e dogmatizadas — as suas justificações práticas. E entende- mos por justificação prática aquele conjunto de argumentos que são realizados previamente pela doutrina jurídica para, depois, na prática das decisões jurídi- cas, não se precisar discuti-los em cada situação concreta. Essas justificações práticas são argumentos que tomam seus postulados já argumentados para as decisões. E exatamente porque não se precisa argumentar o que já está argu- mentado, a importância simbólica dessas justificações práticas é determinante do estilo de interpretação, argumentação e decisão jurídica. No caso da Escola da Exegese, podem ser sinalizadas três funda- mentações prévias para os discursos práticos das decisões jurídicas: identifi- cação do direito com a lei escrita; exclusividade da lei escrita como critério de orientação discursiva; e suficiência da lei escrita para simbolizar a unida- de e a totalidade do direito15. 13 Cf. TARELLO, Giovani. Storia della cultura giuridica moderna: assolutismo e codifi- cazione dei diritto. Bologna: 11 Mulino, 1976. p. 47 e 221. 14 Trata-se do art. 40 do Code civil: que tem a regra do non liquet. XXX citar o art. Quarto no orginal. is Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 183. 17 36 Rafael Lazzarotto Simioni A identificação do direito com a lei escrita tinha o sentido de afir- mar, ao mesmo tempo, que não havia direito além daquele escrito nas leis. E esse sentido é importante para se entender os vetores discursivos da Escola da Exegese. Ao afirmar que não há direito além da lei escrita, essa justifica- ção diz, ao mesmo tempo, que não há outro direito possível. E se porventura existirem outras normas importantes — éticas, morais, religiosas, culturais etc. — já estava claro que essas outras normas não eram jurídicas, não eram direito. Como lidar então com a questão da justiça em um bontexto teórico como esse? Como responder a um eventual reclamo de injustiça da decisão, que deve seguir fielmente a operação lógica de subsunção do caso ao texto legal e que, exatamente por isso, corre o risco de apresentar-se injusta em determinadas situações?.O interessante, é que a resposta para essas questões _ ,._• já está dada pela justificação teórico-científica da Escola da EXegese-: o t'exto, da lei já está fundamentado tanto na política daquele modelo de Estada_libe, ral, quanto na ideia jusfilosófica do direito natural-racional do AUMinigT10. E assim a Escola da Exegese torna indiscutível essa justificação:, o di- reito é a lei escrita, porque somente a lei escrita tem a legitimidade política e a correção jusfilosófica necessária para cumprir com os ideais do Iluminismo. E nessas condições, questionar o texto legal já significaria questionar a própria legitimidade política ou a própria correção jusfilosófica do texto legal. Natu- ralmente, uma argumentação jurídica que pretendesse ir contra todos os ideais iluministas que pululavam sobre esses dois fundamentos, seria tão dificil de ser realizada quanto incoerente com o próprio contexto político da decisão jurídica. Ao lado dessa identificação do direito com a lei escrita, a Escola da Exegese disponibilizou também um outro argumento prévio importante para a prática das decisões jurídicas: a exclusividade da lei escrita como o único critério de orientação discursiva. Sob esse postulado, afirmava-se que todos os critérios para a tomada de decisões jurídicas já estavam dados na lei es- crita, de modo exclusivo. Quer dizer: somente no texto legal a decisão: jurídi- ca poderia encontrar os critérios necessários para julgar questões práticas. Veja-se que enquanto o postulado da identificação do direito com a lei es- crita afirma que não existe outro direito além da lei escrita, esse postulado da exclusividade da lei escrita como o único critério decisório afirma que o juiz não pode recorrer critérios normativos complementares para a decisão, como .. são as cláusulas gerais, o bem Comum e outros conceitos normativos inde- terminados. Para Castanheira Neves, na Escola da Exegese "a lei é não só a única fonte do direito como ainda o critério normativo-jurídico exclusivo"16: 16 Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 184. Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 37 O problema da diferença entre aplicação pura do direito e aplicação realizadora, que hoje tanto se discute, não existia na época. A decisão jurídi- ca sempre seria uma pura aplièação déé direito escrito, sem nenhum conteúdo inovador ou realizador. E eventual pergunta pela justiça da decisão já estaria previamente respondida pela fundamentação teórica dessa concepção de di- reito: o dever de fidelidade da decisão ao texto da lei, à lettre de la loil7 , já se encontrava fortemente justificado pela fundamentação do princípio da sepa- ração dos poderes, que exigia doJudiciário apenas la bouche qui prononce lês paroles de la loi' 1 . E a força desse argumento era tanta que inclusive jus- tificou a criação dos tribunais de cassação mais como protetores das leis do que como juiz dos cidadãos. , - ' 1 tOPLai Obviamente, um estilo de direito no qual as decisões jurídicas de- veriam não apenas seguir uma lógica puramente dedutiva de subsunção dos casos nos textos legais, mas também orientar seus processos argumentativos- decisórios exclusivamente com base na abstração (histórica e contextual) dos textos legais, só poderia supor a suficiência da lei escrita como símbolo da unidade e da totalidade do direito. Todas as respostas jurídicas e procedi- mentos decisórios estão na lei escrita. Logo: a lei escrita só pode ser infali- velmente completa, suficiente e consistente, na sua sistematicidade lógico- analítica. Em outras palavras, a Escola da Exegese sustentava a inexistência de lacunas no direito para a decisão dos casos. E se eventualmente ocorresse um caso sem resposta no direito, a resposta já estaria previamente dada: um MONTESQUIEU. De l'esprit des bis. Paris: Librairie Garnier Frères, 1927. p. 74 [Livre VI, Chapitre III]: "Dans le gouvernement républicain il est de la nature de la constitution que les juges suivent la lettre de la loi. 11 nY a point de citroyen contre qui on puisse in- terpréter une loi, quand ii s'agit de ses biens, de son honneur, ou de sa vie". 18 MONTESQUIEU. De l'esprit des bis. Paris: Librairie Garnier Frères, 1927, p. 154 [Livre XI, Chapitre VI]: "si les tribunaux ne doivent pas être fixes, les jugements doivent I 'être à un tel pointe, qu'ils ne soiente jamais qu'un texte precis de la loi". E desse modo, "II pourroit arriver que la loi, qui est eu même temps clairvoyante et aveugle, seroit, en de certains cas, trop rigoureuse. Mais les juges de la nation ne sont, comme nous avons dit, que la bouche que prononce les paroles de la loi; des étres inanimés qui n'en peuvent modérer ni la force ni la rigueur". (Ibidem, p. 159). Essa concepção está na própria fun- damentação moral e política da Revolução Francesa. Em um de seus relatórios, Robespierre escreveu que "o magistrado é obrigado a imolar seu interesse ao interesse do povo, e o orgulho do poder à igualdade. É preciso que a lei fale sobretudo com autoridade àquele que é seu órgão. É preciso que o governo exerça um controle sobre si mesmo, para con- vservar todas as suas partes em harmonia com a ler (ROBESPIERRE, Maximilien de. Sobre os princípios de moral política que devem guiar a Convenção Nacional na adminis- tração interna da República. Relatório apresentado em nome do Comitê de Salvação Pú- blica, 05.02.1794. In: . Discursos e relatório na Convenção. Tradução de Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Eduerj e Contraponto, 1999. [p. 141-162], p. 148). ." j•-• 38 Rafael Lazzarotto Simioni pedido sem resposta na lei é um pedido sem fundamento jurídico, que deve,,, portanto, conduzir à improcedência dãe-deiriarida19.,_ _ E assim a Escola da Exegese orientava a interpretação, a argu- mentação e a decisão jurídica. Disponibilizando essas três categorias de argumentos prévios — argumentos autologicamente já argumentados — esse estilo de pensamento jurídico permitiu uma simplificação radical da deci- são jurídica. Pois de uma complexa pesquisa, de um lado histórico-cultural dos costumes e, de outro, metafísica do direito natural aplicável, a Escola da Exegese reduziu a decisão jurídica a apenas duas variáveis: qual é o fato, de um lado, e qual é o direito, de outro. Entre o fato e o direito torna- -se então suficiente uma simples operação lógica de subsunção dedutiva. Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 39 1.3 INTERPRETAÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E DECISÃO JURÍDICA Depois de explicitarmos os motivos, as razões teóricas e justifica- ções práticas da Escola da Exegese, fica fácil compreender as suas recomen- dações quanto à interpretação, à argumentação e a decisão jurídica. No que tange à interpretação, a recomendação era: fica proibido interpretar o texto da lei. Difícil seria ter espaço, na época, para uma per- gunta do tipo: como interpretar uma proibição de interpretar? Uma pergunta como essa já apareceria como uma ingenuidade. Porque já se deveria saber previamente que a interpretação do texto legal significava uma calúnia à própria pretensão de racionalidade dos fundamentos políticos, jusfilosóficos e culturais daquela concepção de direito — fundamentos esses que, como acima demonstrado, já se encontravam previamente argumentados pela dou- trina da Escola da Exegese. A estrutura argumentativa desse tipo de construção teórica é circular: a) é proibido interpretar, porque não é essa a função do judiciário; b) não é essa a função do judiciário porque o direito tem seu fundamento político no Estado; c) o Estado tem seu fundamento político na separação dos poderes; d) a separação dos poderes afirma que o judiciário é responsável somente pela aplicação da lei; e) a aplicação da lei exige fidelidade ao texto da lei; f) porque \interpretar a lei seria já violar a separação dos poderes; logo 1: g) é proibido interpretar sob pena de violar a separação dos poderes; h) a separação dos po- 1 deres tem fundamento no iluminismo jusfilosófico; logo 2: é proibido inter- pretar sob pena de violar também a própria concepção do iluminismo jusfflo- sófico. Conclusão geral: interpretar a lei viola tanto o fundamento político quanto o fundamento filosófico do direito, já previamente argumentados, am- bos, no nível das justificações teóricas da doutrina da Escola da Exegese. Tratava-se, assim, de um positivismo exegético, um positivismo hermenêutico bastante estrito, concentrado apenas na dimensão intátisa-)do texto da lei. Uma "incondicional fidelidade aos textos legais"20 . f r 1.3.1 Interpretação A interpretação do direito recomendada pela Escola da Exegese partia de duas estratégias teóricas distintas: a) a observação do texto legal como o único objeto da interpretação, na forma de um objetivismo her- 20 Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 187. i. 5 Á-It.' 0, ) C •is rL.:1 2:5 5- 19 Assim sustentavam importantes pensadores da Escola da Exegese, como Demolombe, Bonnecase, Blondeau e Huc. Vale a pena transcrever as palavras Blondeau: "il aura des motifs aussi puissants pour s 'abstenir que pour agir, et devra considérer ces bis comme n 'existant pas, et rejeter la demande" (apud GÉNY, François. Méthode d'interprétation et sources en droit prive positif: essai critique. 2. ed. Paris: Librairie- Générale de Droit & de Jurisprudence, 1919. t. I, p. 25). Uma resposta da Escola da Exesese às críticas da Escola Científica de Gény pode ser lida em: BONNECASE, Julien. L'Ecole de l'Exégèse en Droit Civil: les traits distinctifs de sa doctrine et de ses méthodes d'après la profession de foi de ses plus illustres représentants. 10. ed. Paris: E. De Boccard, 1924, especial- mente p. 244-279. Bonnecase, contudo, já admite a falibilidade do legislador quando re- conhece que há um ideal em relação ao qual a lei pode se apresentar inadequada: "por una parte, la persona humana es quien concibe el Derecho y, por otra, únicamente lo concibe bafo la imperiosa presión de la necesidad que a cada instante siente, de asegurar el cam- po de acción que corresponda a su actividad innata. Si el legislador se niega a compren- der Ias aspiraciones ideales dei alma humana, la familia zozobrará con el Derecho, en- cargado de asegurar su existencia, en el materialismo más brutal, en la negación, a la vez, de los datos de la naturaleza y de la razón" (BONNECASE, Julien. La filosofia dei có- digo de Napoleon aplicada al derecho de familia. Tradução de Lic. Jose M. Cajica Jr. Puebla, México: José M. Cajica Jr, 1945, p. 24). Em uma de suas obras mais maduras, Bon- necase chega a afirmar,referindo-se ao espírito da lei ou à vontade do legislador na inter- pretação jurídica, que "Asilo habia determinado la escuela de la exegesis, que durante todo el sigla XIX agrupá en su seno y vinculó a sus dogmas la mayor parte de los civilistas fran- ceses, especialmente los más ilustres de ellos. Con facilidad se comprende que semejante concepción de la enseiíanza dei derecho producia en el espiritu de los oyentes un ejecto en- teramente destructor dei pasado, frente al cual nada era la célebre imagen del rio Leteo que arrastra en sus aguas el ovido" (BONNECASE, Julien. Introducción al estudio del dere- cho. 2. ed. Tradução de Jorge Guerrero R. Bogotá: Temis Libreria, 1982, p. XIV-XV). As- sim também Demolombe, que parecendo prenunciar a insufiência dos métodos da Escola da Exegese, inicia o prefácio do seu gigantesco Cours de Code Napoléon com a seguinte per- gunta: "A quelles conditions un cours de Code Napoléon doit-il aujourd'hui satisfaire?" (DEMOLOMBE, C. Cours de Code Napoléon: Traité de la publication des effets et de l'application des bis en général. 3. ed. Paris: Auguste Durand e L. Hachette Et Cia., 1886. t. I, p. I). xxxWieacker, Gesetz und richterkunts, 6; e Privatrechtgechichchte der Neuzeit, 399. Savigny, Uber Gesetzgebung und rechtwissenschaft in unserer Zeit, einf. xxx 40 Rafael Lazzarotto Simioni Curso de Hermenêutica Jurídicàtontemporânea 41 menêutico que apresentava-se como uma boa solução para o problema do subjetivismo histórico-cultural que potencialmente influenciava a interpreta- ção; e b) a combinação desse objetivismo hermenêutico com uma metodolo- gia de pura dedução lógica do sentido literal do texto da lei. Naturalmente, a combinação do formalismo da lógica dedutiva com o igualmente formal conteúdo sintático do texto legal não era suficiente para guiar a interpretação jurídica de modo infalível em todos os casos. Às vezes surgiam dúvidas sobre qual a dedução lógica correta do texto da lei. E apesar da Escola da Exegese ter o texto legal como o único objeto de inter- pretação jurídica possível (os fatos, por exemplo, não representavam pro- blemas de interpretação), às vezes ocorriam dúvidas. Para os casos de dúvida sobre a interpretação correta — e somente no caso de dúvida — admitia-se a necessidade do recurso a um valor excep- cionalmente utilizado na interpretação jurídica, que era o recurso à vontade do legislador21. Essa vontade não poderia ser, contudo, suposta ou argu- mentada simplesmente como razoável ou justa ou qualquer outro argu- mento. A vontade do legislador deveria ser comprovada sobretudo através da pesquisa dos trabalhos preparatórios à edição da lei. Essa vontade do legislador .era entendida como uma vontade racional a priori, já justificada no âmbito da política. De modo que a vontade do legislador figurava como um elemento de valor decisivo para complementar a técnica da interpreta- ção dos textos legais nos casos de dúvida. E,. essa vontade do legislador não poderia ser discutida, pois tratava-se de uma razão política contra a qual ,o judiciário não poderia questionar. Importante destacar, contudo, que a pesquisa da vontade do le- gislador também necessitava de interpretação. A leitura dos trabalhos pre- paratórios à edição das leis também exigia interpretação. E essa interpreta- çãO da vontade do legislador seguia a mesma metodologia recomendada j. 21 Cf. GÉNY, François. Méthode d'interprétation et sources en droit prive positif: essai critique. 2. ed. Paris: Librairie Générale de Droit & de Jurisprudence, 1919. t. I, p. 32: "Mais, souvent, la pensée du législateur, qui contient seule la reg-1e impérative pour I 'interprète, n'est pas exactement traduite par la formule employée. Celle-ci reste obscure ou incomplète, en tout cas, manifestement insuffisante, à elle seu/e, pour révéler la soluti- on demandée. Alors, intervient, afim de suppleer à l'impuissance de l'interprétation grammaticale, 1 'interprétation improprement appelée logique, dont l'essence, comme l'a montré R. Von Jhering, consiste, en passam' au-dessas des mots, à chercher la pensée de la oi justqu'en l'âme de son auteur", ou seja, a vontade do legislador. Assim também BONNECASE, Julien. L'École de l'Exégése en Droit Civil: les traits distinctifs de sa doctrine et de ses méthodes d'après la profession de foi de ses plus illustres représentants. 10. ed. Paris: E. De Boccard, 1924. p. 131, fala em: "La prédominance de l'intention da législateur dans l'interprétation da texte de lor para a interpretação dos textos legais: uma analítica puramente formal da vontade do legislador para determinar, dedutivamente, o sentido do texto da lei por ele editada. Quer dizer, a vontade do legislador devia ser inter- pretada através da mesma combinação de um objetivismo hermenêutico com uma dedução lógica do sentido da sua vontade, para deduzir dela, lo- gicamente, o sentido do texto legal. Observam-se duas operações de interpretação ou dois níveis ana- líticos de interpretação.: no primeiro, a interpretação do texto da lei; on se- gundo, a interpretação da vontade do legislador para, depois, realizar uma dedução lógica dessa interpretação para interpretar o texto da lei. Para a primeira operação, a Escola da Exegese atribuiu o nome de gramatical. Para a segunda operação, atribuiu o nome de ,inteweta.Ao ló- gica. A interpretação gramatical também era lógica, mas estava restrita à —aiiáliíse lógica dos elementos sintáticos do texto legal. O sistema de refe- rência utilizado para essa operação de subsunção lógica do fato à norma era apenas o texto da lei. Já a interpretação lógica possuía outro sistema de re- ferência. A referência comunicativa apontava para fora do texto legal, para a vontade do legislador, para posteriormente deduzir logicamente dela o sentido da lei. Assim, a recomendação da Escola da Exegese a respeito da inter- pretação jurídica era bastante simples: interpreta-se apenas o sentido grama- tical do texto da lei, sem considerar todo o restante da realidade que interfere nesse ato de conhecimento. Sem considerar as tradições históricas, culturais, sociais, políticas e também ideológicas diante das quais a interpretação sem- pre está submetida. E essa desconsideração não era apenas uma omissão in- gênua do método de interpretação jurídica. Pelo contrário, essa desconside- ração era expressamente recomendada. Os juízes estavam proibidos de sair dos limites estritamente gramaticais do texto da lei, para buscar em elemen- tos exteriores ao texto os suplementos necessários para uma interpretação mais sofisticada. A interpretação gramatical não era apenas o método de in- terpretação possível na época, era também o método de interpretação reco- mendado dogmaticamente. O único suplemento admitido era o recurso à vontade do legislador, por meio da chamada interpretação lógica. A referência à lógica, aqui, está no sentido da lógica de dedução da vontade do legislador para suplementar a insuficiência dos elementos gramaticais do texto legal. Um formalismo bas- tante seguro em termos de controle dos argumentos e das decisões possíveis, mas exageradamente reducionista em termos de capacidade intelectiva e de abrangência normativa do direito. A redução de todo o direito ao texto da lei, na sombra da vontade do legislador, simplificava bastante a interpretação 42 Rafael Lazzarotto Sinnioni jurídica. Hoje nós podemos criticar essa simplificação demonstrando os gra- ves déficits de compreensão do direito como um importante instrumento de transformação social. Mas na época, essa simplificação era necessária para um direito capaz de servir aos motivos do Iluminismo: romper com o passa- do, com a multijurisdicionalidade e com a fragmentação dos vários direitos costumeiros. Importante sinalizar também que não havia contradição entre os fundamentos da Escola da Exegese e a utilização excepcional do recurso à vontade do legislador. Isso porque entre a interpretaçãogramatical (a refe- rência somente ao texto da lei) e a interpretação lógica (a referência à vonta- de do legislador para interpretar o texto da lei), não havia nenhuma mediação normativa. Quer dizer, tratava-se de pura lógica dedutiva. A fonte do direito continuava sendo, portanto, o suficiente e exclusivo texto da lei. Somente na interpretação desse texto é que se tornava possível suplementar o seu sentido gramatical com a vontade do legislador. Essa técnica de interpretação não se distancia muito das práticas contemporâneas de interpretação restritiva, como acontece especialmente no campo do direito tributário e do direito penal. Entretanto se sabe que toda essa construção teórica da Escola da Exegese não é apenas inconveniente para uma pretensão de compreensão mais sofisticada e abrangente do direito, mas sobretudo impossível de ser realizada. Isso porque simplesmente não há interpretação que parta de um grau zero de compreensão. Como nos ensinou a filosofia hermenêutica de Heidegger, toda interpretação pressupõe pré- -compreensões que são sempre históricas22. Esse tipo de interpretação gramatical e lógica recomendado pela Escola da Exegese só pôde ser sustentado sob a forma exageradamente dog- mática — no sentido forte da expressão. Nesse tipo de metodologia interpre- tativa não tinha lugar para princípios morais, valores éticos, orientações a consequências etc. Mas não se pode perder de vista que, na época, essa dog- maticidade era conveniente para assentar os ideais pós-revolucionários do Iluminismo. O problema, portanto, está na ingênua utilização desse método de interpretação no contexto da sociedade contemporânea. Pois apesar da sua sedutora simplicidade e segurança, as questões jurídicas do mundo contem- porâneo exigem muito mais da interpretação jurídica do que apenas a expli- citação do sentido gramatical das leis escritas. 22 Cf. HODEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 14. ed. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Universidade de São Francisco, 2005. especial- mente p. 229 e ss. Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 43 1.3.2 Argumentação Se a interpretação jurídica recomendada pela Escola da Exegese só admitia a análise dos elementos sintáticos do texto da lei, sob a sombra da vontade do legislador, pode-se já ter uma ideia da simplificação drástica que essa metodologia proporciona sobre a argumentação jurídica. A argumenta- ção jurídica, nesse contexto, torna-se tão simplificada a ponto de dispensar qualquer tipo de análise mais sofisticada das questões submetidas à decisão jurídica. Toda a complexidade que qualquer acontecimento social sempre carrega consigo fica filtrada pela suficiência e exclusividade do texto da lei para a resposta correta do direito. Todos os motivos, que podem ser tanto de ordem antropo-psico-fisiológica, quanto de ordem econômica, política, reli- giosa, moral, ética, cultural etc., ficam simplesmente dispensados de compa- recer à argumentação jurídica da Escola da Exegese, porque a única justifi- cação necessária já está previamente dada, de modo suficiente e exclusivo, no texto da lei. Em termos pragmáticos, uma argumentação jurídica desse estilo de concepção teórica acontece nestes termos: a solução é x porque o art. x da lei f, x diz que a solução é x e não outra. Uma argumentação, portanto, exagera- damente simples e, ao mesmo tempo, muito potente em termos de conven- cimento. Isso porque o caráter circular e tautológico do procedimento lógico- -argumentativo garante que não haverá necessidade de justificar motivos ou razões superiores à própria circularidade e tautologicidade estabelecida pelo próprio argumento. Em outras palavras, a força desse estilo de argumentação está exatamente na circularidade dos fundamentos, cuja relação é estabeleci- da na forma de uma justificação recíproca, onde a solução é x porque a lei diz que a solução é x e não outra. A única saída argumentativa seria pergun- tar pelo fundamento da lei que diz que a solução é x e não outra. Mas essa saída já está previamente trancada pela própria fundamentação teórica da Escola da Exegese: o fundamento da lei vem, como antes observado, tanto da política quanto da filosofia jusnaturalista do iluminismo. Quer dizer, os argumentos já estão argumentados. E exatamente nessa tautologia está a for- ça e a simplicidade desse estilo de argumentação. Entretanto a argumentação sempre pode ser muito criativa, sempre pode surpreender. E podemos supor, diante da ausência de comprovação história, que ao mesmo tempo em que se sufocava a argumentação jurídica dentro dos limites da prisão sintática do texto legal, também se a oxigenava no lado da questão da definição dos fatos. Isso porque a diferença entre questões de fato e questões de direito, sempre presentes em todas as teorias que trabalham com lógicas de subsunção, permite um isolamento lógico das 44 Rafael Lazzarotto Simioni Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 45 questões de direito, mas não permite esse mesmo isolamento sobre as ques- tões de fato. A definição dos fatos sempre pode ser transbordada pela argu- mentação jurídica. Sempre pode ser narrada, argumentativamente, de modo a explicitar alguns aspectos, silenciando outros. E isso permite supor que a .argumentação jurídica na Escola da Exegese era uma argumentação que ex- plorava bastante a configuração fática dos acontecimentos, de modo a indu- zir a subsunção em uma ou noutra norma jurídica. Como ilustração, pode-se considerar que um fato pode ser definido como o conjunto dos elementos "a", "b", "c", "d", "e" e "f", enquanto que os elementos sintáticos do texto da lei são "b", "c" e "e". A argumentação pode então desenvolver-se na forma de uma fundamentação que procura justificar a convicção de que aquele fato pode ser entendido como um fato que se sub- sume ou que não se subsume nos elementos sintáticos do texto legal. Como acima destacado, trata-se de uma argumentação bastante comum no campo do direito tributário e no do direito penal dos dias de hoje. Podemos denominar esse estilo de argumentação de argumentação de subsunção, quer dizer, uma argumentação que, diante da simplicidade e força da tautologia no lado da descrição sintática do texto legal, procura complicar e enfraquecer a linearidade no lado da descrição dos fatos. Se o direito é inquestionável, a argumentação então questiona os fatos. Quando o direito já está previamente argumentado com suficiência e exclusividade, então não resta outro espaço para a argumentação jurídica senão construir e justificar uma determinada narrativa — e não outra — a respeito dos fatos. Importante chamar a atenção para o fato de que esse estilo de ar- gumentação se encontra bastante presente tanto fundamentação das lides na práxis forense quanto na justificação das respostas às avaliações nos cursos de direito: de um lado, a simplificação técnica do isso é assim porque o arti- go tal diz que é assim, e do outro, a complexificação fática do mas e se o agente que praticou o ato estivesse sob outra motivação. Uma combinação de simplicidade gramatical-legal e complexidade fática cujo arranjo lógico, que se chama subsunção, passa a constituir a dinâmica e o sentido da argumenta- ção jurídica. Nesse estilo de argumentação jurídica ficam de fora, portanto, ar- gumentos importantes como a força ou o peso — que sempre precisam ser argumentados — de princípios morais, valores éticos, coerências e consistên- cias em relação às exigências sistêmicas de outros contextos normativos como a religião, a cultura, as tradições históricas e também as fmalidades projetadas para o futuro. Essa ordem de valores argumentativos torna-se su- pérflua no estilo da argumentação jurídica da Escola da Exegese. E nova- mente aqui é importante destacar que esse estilo de argumentação era neces- sário diante dos ideais do Iluminismo pós-revolucionário. Mas é evidente- mente insuficiente para osdias de hoje. 1.3.3 Decisão Se a interpretação na Escola da Exegese se restringia ao sentido lógi- co-sintático do texto legal, na sombra da vontade do legislador, com um estilo de argumentação jurídica que se desenvolvia apenas na justificação da confi- guração dos fatos para uma adequada subsunção, logo se pode perceber que a decisão jurídica, nesse contexto, encontrava-se tão somente sob a alternativa entre considerar provada uma ou outra narrativa possível da situação fática. Toda a problematicidade da decisão se restringia, portanto, à questão da subsunção do fato à norma. E isso significa, em termos pragmáticos, um problema de decisão sobre apenas duas variáveis reciprocamente lineares: a variável "narrativa do fato" e a variável "texto legal aplicável". Em outras pa- lavras, a decisão jurídica tinha como problema de decisão apenas a escolha — e a respectiva justificação — entre a narrativa x ou a narrativa y do fato litigioso, pois a justificação argumentativa da escolha de uma dessas narrativas já justi- ficava, logicamente, também a escolha do texto legal aplicável. Por isso que a decisão jurídica, nesse contexto teorético, poderia ser simplesmente explicada através daquele antigo silogismo aristotélico da pre- missa maior, premissa menor e conclusão. A premissa maior era a lei, a pre- missa menor a narrativa do fato e a conclusão logo aparecia como a pura apli- cação da lei ao caso concreto, pois a justificação da validade ou adequação da lei (a premissa maior) já estava justificada politicamente e filosoficamente pela própria fundamentação teórica da Escola da Exegese, diante da qual só sobra- va uma margem de argumentação para a justificativa da narrativa adequada e verdadeira a respeito do fato (premissa menor). E esse tipo de explicaçãnpode ser encontrado até hoje em alguns manuais e cursos de direito processual23. Entretanto, a decisão jurídica poderia ser surpreendida por casos — leia-se: argumentações que justificavam determinadas narrativas a respeito de fatos — que não se subsumiam perfeitamente nos elementos sintáticos dos textos legais. Com efeito,-a argumentação jurídica poderia surpreender a lógica da subsunção com a apresentação narrativa de uma premissa me- nor potencialmente comprometedora da operação silogística. Em termos lógicos, esse problema da decisão jurídica poderia ser denominado, como hoje, de casos difíceis. Mas na época não havia essa compreensão do di- 23 Por uma questão de polidez, preferimos não citar os autores que continuam a utilizar esse método de explicação da decisão jurídica do Século XIX. i 46 Rafael Lazzarotto Simioni reito. E por esse motivo, esse tipo de problema de decisão não era visto propriamente como um problema de decisão, mas sim como um problema de lacunas no direito. Eventuais lacunas, contudo, eram consideradas apenas como lacu- nas aparentes, pois a justificação dogmática da completude, suficiência e exclusividade da lei escrita para responder a todas as questões jurídicas res- pondia também ao problema das lacunas: diante de uma aparente lacuna — ou, em nossa perspectiva, diante de uma dificuldade na lógica de subsunção da narrativa à sintaxe da lei ou no silogismo entre a premissa maior e a me- nor — a decisão poderia recorrer a métodos de integração igualmente lógicos e dogmatizados, como a analogia, em um primeiro momento, e os princípios gerais, em último caso — ou, em nossa perspectiva, a decisão poderia recorrer a suplementos lógicos (analogia) ou a suplementos ontológicos (os princípios gerais), transcendentes ao sistema de referência que era o texto da lei. A analogia era chamada de analogia legis e sua utilização era reali- zada através da justificação, por meio da argumentação, da existência de si- milaridades entre o caso em questão e o caso previsto na lei — entre a narrati- va provada e narrativa esperada pelos elementos sintáticos do texto legal. Já a referência a princípios gerais, que era denominada analogia iuris, somente poderia ser utilizada em último caso, quando não era possível justificar a uti- lização da analogia legis. Uma última hipótese possível era a situação da decisão constatar la- cunas e não conseguir justificar nem o uso da analogia legis, tampouco o recur- so à analogia iuris. Nessa hipótese, a recomendação da Escola da Exegese era a de declarar a inexistência de fundamento jurídico para a pretensão. Com efeito, se o direito era a lei escrita, "um caso que não estivesse directa ou indirecta- mente regulado nela seria um caso que carecia de tutela juridica"24 . Julgava-se então improcedente a demanda, justificando essa improcedência na própria falta de direito, quer dizer, uma falta de pretensão jurídica prevista em lei. 1.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Hoje nós podemos observar que nesse estilo de decisão jurídica da Escola da Exegese a incapacidade de justificação argumentativa de uma de- terminada subsunção era resolvida com a improcedência da ação. Quer dizer, nós podemos identificar uma certa tendência à simplificação drástica das 24 Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 189. 25 Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 47 formas de interpretação, argumentação e decisão. Qualquer complicação já poderia ser vista como uma carência de direito. E pode-se supor também que, por incapacidade de justificar, argumentativamente, uma resposta do direito, tornava-se mais fácil justificar a falta de direito, para um juízo, então, de improcedência da demanda. Trata-se de um estilo bastante conservador de decisão jurídica25. Apesar de estar no contexto pós-revolucionário francês, a orientação da deci- são ao texto da lei impede que a argumentação possa produzir justificações baseadas em exigências teleológicas, finalistas, de orientação àquilo que se quer para o futuro. A única orientação possível era o passado do texto da lei, na sombra da vontade do legislador que editou a lei. Argumentos de princi- pio, como são aqueles necessários de justificação com base na moral, nos valores éticos, nas tradições culturais e etc., não tinham lugar nesse estilo de decisão jurídica. Como também não tinham lugar os argumentos de conse- quências, orientados para um prognóstico jurídico dos possíveis efeitos co- laterais da decisão. Entretanto, é importante reconhecer e admirar o esforço de cientifi- cidade da Escola da Exegese. Especialmente porque a decisão jurídica não poderia não decidir (non liquet) — art. 40 do Código Civil de Napoleão. Diante da proibição do diferimento da decisão, as decisões jurídicas às vezes colo- cam-se diante de situações nas quais é necessário criar o direito. Portanto, era bem mais fácil para a Escola do Direito Livre — uma corrente crítica à Escola da Exegese — resolver esse problema, porque para ela se poderia de- cidir qualquer coisa, segundo a consciência do juiz. Mas a Escola da Exegese procurou constituir critérios lógicos, fortemente dogmatizados, de modo a evitar qualquer decisão construtiva do direito. E cumprir assim com um dos lemas da Revolução, segundo o qual o juiz é tão somente a boca da lei. Utilizando a distinção aristotélica — a forma é a essência imaterial, enquanto a matéria é a essência substancia126 — e firmada por Kant entre ra- zão teórica e razão prática, podemos ver que as decisões da Escola da Exege- se tinham muito de razão teórica e nada de razão prática. Uma concepção Importante considerar também que essa concepção positivista-legalista do direito produ- ziu influência tanto nos países capitalistas quanto nos socialistas, inclusive aqueles com tendências comunistas (Cf. GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 4. ed. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaista Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 417) 26 Embora Aristóteles admita uma matéria inteligível quandose trata da explicação dos entes matemáticos (cf. ARISTOTELES. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tra- dução e comentários de Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. v. III, p. 29 (A 5/6, 987b 15). 48 Rafael Lazzarotto Simioni estritamente formal do direito, diante da qual a materialidade da justiça ou da correção moral ficavam afastadas. E assim a Escola da Exegese conseguiu construir um sistema fechado do direito, capaz de garantir graus bastante altos de segurança formal e simplicidade cognitiva, cujo efeito colateral foi a produção de graus igualmente altos de insegurança material e de complexi- dade silenciada. Quanto mais segurança formal, mais insegurança material se pro- duz. E quanto mais simplicidade cognitiva, mais complexidade fica silencia- da, sufocada pela forma estritamente sintática do texto da lei. Com efeito, o formalismo desse estilo de decisão desempenhava satisfatória segurança e simplicidade formal do direito, mas exatamente em razão disso, produzia também muita complexidade e insegurança material. Isso porque, diante da simples regra do texto legal, qualquer um já poderia planejar estrategica- mente seu comportamento de modo a evitar a incidência da lei, fazendo as- sim crescer a tomplexidade na dimensão prática, silenciada pelo formalismo teorético do direito. Nos dias atuais, pode-se constatar a presença do estilo de interpre- tação, de argumentação e também de decisão da Escola da Exegese. A justi- ficação jurídica da segurança e da simplicidade das súmulas vinculantes é apenas uma das ilustrações possíveis. E exatamente por isso que a súmula vinculante, como um texto que é, também fica sujeita à interpretação, a ponto de logo ser necessária, no lado do silogismo jurídico, uma súmula das súmulas, e no lado dos fatos, recursos à argumentação jurídica necessária para justificar narrativas que complicam a simplicidade e segurança daquele silogismo. Ao contrário de uma grande parte de importantes juristas, nós não podemos concluir que a Escola da Exegese teve seu fim com a escola cientí- fica de Gény e Saleilles em 1899. Claro que ela teve seu declínio (entre 1880 e 1890), especialmente diante das exigências da sociedade industrial — que exigia um direito modificável para adaptar-se às constantes transformações sociais — e do início da política daquele modelo de Estado que hoje nós cha- mamos de Estado de Bem-estar Socia122. Esses motivos tomaram obsoleta a 27 Para Saleilles e Gény, contudo, os motivos desse declínio estavam associados ao progres- so científico e social, que já ultrapassavam os ideais da codificação "qui puisse embrasser et prévoir tout l'ensemble des rapports juridiques — mais que la jurisprudence, et égale- ment la doctrine, en interprétant la loi, ne se plaçaient qu 'au pont de vue d 'une recherche de volonté, et qu 'elles ne faisaient que tirer les solutions logiques qu 'eút acceptées le lé- gislateur; non pas le législateur moderne, mais I 'auteur nême de la loi, quel que fút I 'intervalle à jeter en bloc entre le passé et le présent" (SALEILLES, Rymond. Préface. In: GÉNY, François. Méthode d'interprétation et sources en droit prive positif: essai Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 49 pretensão de suficiência e exclusividade dos textos legais, tornando não só conveniente, mas sobretudo necessária, a introdução teórica de uma distinção entre o direito e o texto da lei, a partir da qual o direito seria muito mais am- plo do que os restritos elementos sintáticos do texto lega128. Mas ela subsiste„ até os nossos dias, naturalmente em menor grau, e ainda produz fortes in- fluências nas expectativas práticas de segurança e simplicidade nas opera- ções de interpretação, argumentação e decisão. Com o declínio da Escola da Exegese, pelos motivos acima salien- tados, foi assim aberta a porta para a Escola do Direito Livre, na qual o texto da lei era a fonte principal do direito, mas não mais a fonte exclusiva e sufi- ciente, pois agora, a interpretação, a argumentação e a decisão jurídica pode- riam utilizar referências externas em suas operações, que apontavam para os mais variados elementos possíveis (tradições históricas, princípios morais, valores éticos, costumes culturais, finalidades etc.), introduzidos argumenta- tivamente na decisão sob o nome de "consciência". E essa exagerada liber- dade decisória só seria corrigida posteriormente, pelas Escolas Histórica e da Jurisprudência dos Interesses, até chegarmos à teoria pura do direito de Kel- sen e à atual diversidade de perspectivas contemporâneas que se convencio- nou chamar de pós-positivismo. critique. 2. ed. Paris: Librairie Générale de Droit & de Jurisprudence, 1919. t. I, [p. XIII- XXV], p. XVI. Saleilles considerou o estudo do direito comparado como a causa dos maio- res avanços e progressos no Direito. Em um prefácio de 01.10.1889, escreveu: "c 'est le mérite des études de droit comparé de fournir à cette marche du progres juridique les éléments d 'observation qui lui sont indispensables. 11 n 'est pas une seule des conceptions scientifiques imaginées en France ou ailleurs, pas un seul des usagens inspirés par la pratique du monde civilisé, qui ne puisse répondre à une intention possible des individus qui entrem en rapports d 'affaires, et donner satisfaction, aujourd 'hui ou plus tard, à un besoin de la vie juridique" (SALEILLES, Rymond. Étude sur la théorie générale de l'obligation d'après le premier projet de Code Civil pour l'empire allemand. 3. ed. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1925, p. VII). Assim também em: SALEILLES, Raymond. De la déclaration de volonté: contribution a l'étude de l'acte ju- ridique dans le code civil allemand. Paris: Librairie Générale de Droit & de Jurisprudence, 1929, p. IX: "i/ s'agit de savoir aujourd'hui si, en face de certames diées vers lesquelles toutes les législations paraissent s 'orienter, le droit français saura garder son rôle à la tête du progrès juridique universel, ou s passera I 'hégémonie à d'autres". 28 Cf. SALEILLES, Raymundo. La posesión: elementos que la constituyen y su sistema en el código civil de imperio alemán. Rad. J. M. Navarro de Palencia. Madrid: Libreria Ge- neral de Victoriano Suárez, 1909. p. 397: "todo acto útil y pacificamente realizado con- forme en la apariencia con el orden social, es ya un derecho naciente, y no puede ceder sino ante un derecho anterior, más enérgico y más integralizado". 52 Rafael Lazzarotto Simioni desenvolvimentos tecnológicos da modernidade são prova disso deixou muito a desejar em termos de razão prática, quer dizer, em termos de, huma-: - _ nidade. No Iluminismo sobrou razão teórica na mesma proporção que faltou razão prática. E o direito tem a ver mais com a razão prática do que com a razão teórica. O direito não é apenas uma técnica, uma ferramenta, um instru- mento, uma engrenagem da máquina "sociedade", pois é também, e sobre- tudo, uma forma de orientação dos juízos práticos. O direito tem a ver, portanto, com normas, com princípios morais, com valores éticos, com cultura e com história. De modo que, entender o direito apenas como mais , uma tecnologia da sociedade - que funciona como uma máquina, com in- dependência dos contextos históricos e culturais da sociedade - não seria correto. Uma máquina precisa só de combustível para funcionar. E para se entendê-la, basta- ler o manual de instruções e saber para que serve cada componente. Mas o direito não é uma máquina. O seu funcionamento pre- cisa de combustíveis diferentes, que são os conflitos de interesses históri- cos e culturais. E para entendê-lo, não bastam manuais de instrução, não bastam textos legais, pois é necessário compreendê-lo como- acontecimento histórico e cultural de um povo. Utilizando uma ilustração baseada no conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa30, tal como o personagem permaneceu com as baga- gens da sua vida, enquanto todo o restante dasua família ia embora, também o direito tem as suas bagagens históricas, que exigem sua permanência na sua morada prática. Exatamente o contrário da pretensão iluminista de negar a história para negar, assim, o seu passado de trevas. A Escola Histórica precisava reagir contra essa a-historicidade do racionalismo iluminista. E por isso ela vai firmar sua identidade exata- mente na afirmação da natureza histórica da constituição do direito e da realidade humana31. Contra o racionalismo mecanicista daquele iluminis- mo da época, a Escola História advogava a favor _de uma compreensão do direito como um dos resultados do próprio espírito do povo, cuja forma- __ çao, cujo processo evolutivo, sempre é histórico e cultural, nunca cons- truído como se fosse uma máquina, como se fosse uma engrenagem que_ funciona sem depender de toda ,a história cultural que constitui o espírito 4o povo. Cf. ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: . Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 32. 31 Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 203. Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 53 2.1.2 A Necessidade de uma Compreensão Histórica e Cultural do Direito Com influências teóricas do contexto geral do Romantismo Ale mão da época, Wolf, Wieacker e Dahm sinalizam também as influências do Idealismo Filosófico, do Historicismo e também do Classisismo do assim chamado "segundo humanismo"32. Mas se é possível identificar uma influên cia unívoca na Escola Histórica do jitisa influência está na utilização. de uma fuedWeiitação teórica,_para justificar sacionalmente.Q seu.modo de - lsacIimento do direito, com um. endereço bastante_certo: evidenciação _ dos ciclo-s-liistóricos da cultura humana por Giambattista Vico33. Vico foi o filósofo que desenvolveu uma dimensão histórica do entendimento no século XVI. Em 1725 ele publicou o seu Principi di uma scienza nuova in torno alia commune natura delle nazione, no qual realizou uma análise dos desenvolvimentos históricos da cultura ocidental a partir da simbologia dos mitos gregos34. A respeito do direito, do mesmo modo, Vico demonstrou que "as leis devem ser interpretadas de acordo com os estágios das repúblicas, a partir de princípios que tais de governo romano formulam- se outros princípios para a jurisprudência romana"35 Esse mesmo estilo de investigação histórica, só que sob uma perspec- tiva diferente, mais empírica, foi desenvolvido na França tanto por Rousseau36, 32 Cf. WOLF, Erik. El carácter problemático y necesario de ia ciencia dei derecbo. Tra- dução de Eduardo A. Vásquez. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1962, p. 16; WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tradução de A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 411. " Cf. WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tradução de A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 405. 34 Vico justifica esse tipo de análise hístórica nos seguintes termos: "Devemos, ademais, destacar que na presente obra, com uma nova arte crítica, de que até agora carecíamos, ingressando na pesquisa da efetiva realidade acerca dos fundadores das mesmas nações (nas quais certamente terão decorrido mais de mil anos para se chegar aos escritores de que se ocupou a crítica até hoje), por isso mesmo há de aqui a filosofia haver-se com a filologia, que é a doutrina de todas as coisas que dependem do humano arbítrio, quais, por exemplo, todas as histórias das águas, dos costumes e dos fatos pacíficos ou bélicos dos povos". (VICO, Giambattista. Princípios de (uma) ciência nova (acerca da nature- za comum das nações). Tradução de Antônio Lázaro de Almeida Prado. São Paulo: Nova Cultural, 2005. p. 11-12) 35 VICO, Giambattista. Princípios de (uma) ciência nova (acerca da natureza comum das nações). Tradução de Antônio Lázaro de Almeida Prado. São Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 28. 36 Ver-se: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Frammenti politici. In: . Scritti politici. Roma: Laterza & Figli, 1994. v. 2, p. 227-316. 30 Partia do pressuposto de que as normas jurídicas seriam o resultado de uma evolução histórica e que a essência delas seria encontrada nos costumes e nas crenças dos grupos sociais 55 37 54 Rafael Lazzarotto Simioni em meados do século XVIII, quanto por Montesquieu em 1748, por ocasião da publicação do seu De l'esprit des bis (livros XIV-XIX). Também na Alemanha essa compreensão histórica foi aplicado para a investigação do sentido geral da cultura por Burke37 e por Herder38, os quais exerceram forte influência no pen- samento de Savigny. Burke tornou-se famoso por suas importantes críticas ao Iluminis- mo racionalista e à Revolução Francesa, nas quais destacou a inconveniência de se negar a história das instituições, já que se estaria negando também uma importante experiência histórica, cultural e política das instituições39. Para Burke, as instituições jurídicas, políticas e culturais podem ser reformadas, melhoradas, mas nunca substituídas por novos modelos criados de modo im- prudente. Já para Herder, "Ia gloria de Europa se basa en ia actividad e in- ventiva, ias ciencias y el esfuerzo competidor realizado en comim"" . Para ele, o que diferencia o progresso da Europa em relação a outros lugares é, exatamente, o apreço pela ciência41. A conclusão geral dessa perspectivação histórica da cultura foi a de que a essência das instituições políticas, do direito, da língua, da poesia, da cultura, da arte e tudo mais, só pode ser encontrada na alma ou espírito dos povos, cuja constituição é sempre histórica. Também é importante destacar a influência de Kant, Schelling e Hegel no pensamento de Savigny, que sem dúvida foi um dos principais re- presentantes desse estilo de concepção do direito'''. Cf. BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. Tradução de Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura. Brasília: UnB, 1982. 38 Cf. HERDER. Ideas para una filosofia de la historia de Ia humanidad. Tradução de J. Rovira Armengol. Buenos Aires: Losada, 1959. 39 Burke utiliza argumentos históricos para recomendar prudência nas mudanças das institui- ções e afirma: "não rejeito as mudanças; mas gostaria que as mudanças fossem feitas sempre com o intuito de conservar". (BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. Tradução de Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura. Brasília: UnB, 1982, p. 221) 40 HERDER. Ideas para una filosofia- de Ia historia de Ia humanidad. Tradução de J. Rovira Armengol. Buenos Aires: Losada, 1959. p. 692. 41 HERDER. Ideas para una filosofia de Ia historia de Ia humanidad. Tradução de J. Rovira Armengol. Buenos Aires: Losada, 1959. p. 693. 42 Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 205; e WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tradução de A. M. Botelho Hespa- nha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 401-402. Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea I Mas é importante ter presente que Savigny possui duas fases bem í ,/ distintas em seu pensamento. A primeira fase, da sua juventude, era caracte- ' I rizada por um legalismo estrito, muito próximo à Escola da Exegese,- na qual i Savigny equiparava o direito ao direito legislado". Nessa primeira fase, o I aspecto histórico do direito fica restrito à história do Estado e dos povos, já st que, para ele, a legislação é uma atividade do Estado". Somente depois, em uma fase mais madura, Savigny abandonou essa concepção de direito legis- lado para colocar o primado dos costumes comunitários do povo. É nesta 1 fase madura do seu pensamento que se encontram as bases da Escola Histó-rica do Direito45. De Kant Savigny justificou a sua concepção do direito dentro daquela Perspectiva institucional da ética não mais com urna ética mater-i- _ al, mas sim cánici tim- a ética de autonomia e de liberdade formalmente universalizáveis". 0 resultado dessa influência kantiana é a dimensão liberal e a justificação da sua pretensão de universalidade na compreen- são do direito como um sistema normativo autônomo em relação à mo- ral'''. De Schelling, Savigny justiilWii—al coil-ó---liWtófic-a— e org-áiric---o- -:--é-NUu—iiva dos institutos jurídicos e também a síntese histórica entre a necessidade e a liberdade na formação da identidade histórica e cultural do direito costumeiro". E de Hegel, Savigny buscou a fundamentação da compreensão da história como uma manifestação do espírito de cada 45 Importante considerar que existem pesquisadores, como WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tradução de A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 423, que afirmam encontrar essas bases históricas da com- preensão do direito em toda a obra de Savigny. 47 Cf. WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tradução de A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 492: "A fundamenta- ção ética desta convicção foi extraída por Savigny e pelos seus contemporâneos da teoria jurídica de Kant, segundo a qual a ordem jurídica nao constitui uma ordem ética, mas apenas a possibilita, tendo portanto, uma 'existência independente "'. Nesse sentido, tam- bém: NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídi- co, da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 205. Em Savigny isso está no System, 1, §§ 8 e 15, 52. 48 Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 205. 43 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 10. 44 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 10. 46 KANT. Crítica da razão prática. E Metafísica dos costumos. E fundamentação da meta- física dos costumes. Xxx. Em Savigny isso está no System dês heutigen rõmischen Rechts, I, § 3 e SS. § 3, I, s.) 2.2 FUNDAMENTOS 2.2.1 Justificações Teóricas ) 53 54 Tomamos essa metáfora do parasita de SERRES, Michel. Le parasite.xxx. Cf. WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tradução de A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenlcian, 1993. p. 403. 52 Cf. SAVIGNY, Friedrich Carl Von. Sistema do direito romano atual. Tradução de Ciro Mioranza. Ijui: Unijuí, 2004. v. VIII, p. 32 [§ 344]: "as doutrinas dos autores modernos e a jurisprudência que a elas se ligam são em grande parte baseadas nas decisões dos ro- manos, muitas vezes mal compreendidas. Desse modo, a compreensão e a crítica da teo- ria e da prática modernas não são possíveis senão por meio de um estudo aprofundado dos princípios do direito romano nessa matéria". sã ; Rafael Lazzarátto Simioni • ' povo (Volksgeist)49 — diante do qual esse espírito vai ser colocado como o próprio fundamento do direito. À Essa referência ao espírito do povo, contudo, não era considerada ; com a pretensão de universalidade. Pelo contrário, a referência ao valor "espi-rito do povo" era entendida de modo contextual e histórico, quer dizer, a Es- cola Histórica do Direito pretendia um entendimento do direito como resultado , de um processo não só histórico de uma determinada cultura, mas também como um processo ligado às especificidades históricas e culturais de cada povo. 4 referência a um "espirito do povo" (rolksgeist — a espiritual consciên- cia comunitária ou, conforme a tradução francesa, o "espirito nacionaP'55 não significava, portanto, um absolutismo metafísico ou uma pretensão de univer- salização homogeneizante, porque a compreensão do direito como um aconte- cimento histórico e cultural de cada povo significava, ao mesmo tempo, que cada povo poderia ter um espírito histórico-cultural diferente. Exatamente por esse motivo, a recomendação 'da Escola Histórica do Direito vai colocar o direito costumeiro, e não a lei escrita, como o prin- cipal vetor de racionalidade à interpretação, à argumentação e- à decisão jurí- dica". Os costumes históricos e culturais de cada povo vão ser, para a Escola 49 51 Cf. SAVIGNY. Citação da consuetude. Xxx. 50 noux. Paris: Librarie de Firmin Didot Frères, 1855. t. I, [§ VII], p. 15. Cf. SAVIGNY, Friedrich Carl Von. Traité de Droit Romain. Tradução de M. Ch. Gue- Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 57 Histórica do Direito, o principal eixo de compreensão, o principal valor de orientação à interpretação, argumentação e decisão jurídica. Daí o grande interesse de Savigny e dos demais representantes des- sa Escola Histórica do Direito em pesquisar pão só as_manife.stações çultuT rais do direito costumeiro, mas _também as_ origens do direito_e da_c.iência do _ direito nos textos romanos52. — C: Como se pode observar, a fundamentação teórica da Escola Histó- rica do Direito procurava combinar esses aportes filosóficos da investigação histórica, com críticas parasitárias ao movimento do Iluminismo racionalista da época. Uma combinação, portanto, de justificações racionais e de críticas para demonstrar a insuficiência de se compreender o direito apenas a partir do texto da lei. Entendemos por crítica de estilo parasitário aquele tipo de crítica que combate uma determinada concepção teórica que, quando vencida, acaba \\ por extinguir a própria crítica". Nesse sentido, a Escola Histórica do Direito viveu como um parasita do positivismo legalista pregado no contexto do Ilurninismo. Qualificamos de parasita esse estilo de crítica porque, uma vez ..\\ encerrado o sistema parasitado, fatalmente o seu parasita crítico também se ; encerra, perde o sentido. Assim, a Escola Histórica justificava a sua pretensão de racionali- dade (teórica) na necessidade da compreensão histórica do acontecimento do direito e nas insuficiências que essa mesma necessidade desvelava na con- cepção Iluminista do direito, que reduzia todo o fenômeno jurídico apenas ao texto da lei54. E assim a Escola Histórica do Direito justificava, em termos de fundamentação teórica (racional), a proposta de conceber o direito como r•a4- 1 Especialmente porque, para Hegel, pode "acontecer que a lei seja, em seu conteúdo, dife- rente do que o direito é em si" (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filoso- fia do direito. Tradução de Norberto de Paula Lima. São Paulo: ícone, 1997. p. 184 [§ 212]). E "il diritto e ia legge si annunciano come due entità distinte" porque "il terreno delle leggi destinate all'uomo, delle leggi dei diritto, è diverso da quello delle leggi della natura. 11 terreno di questa legislazione é il regno dello spirito, considerato nel suo com- plesso, e il diritto si addice solo alio spirito [..] solo il mondo spirituale contiene rapporti giuridicr (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Frammento dei corso di filosofia dei diritto 1831-1832. In: . Scritti storici e politici. Tradução de Giovanni Bonacina. Roma: Laterza, 1997. [p. 287-293], p. 289. Naturalmente, nos §§ 215 e seguintes dos seus Princí- pios da filosofia do Direito, Hegel demonstra acreditar na suficiência da razão para cons- tituir um código perfeito de leis positivas, o contraria a proposta da Escola Histórica: "a obrigação para com a lei inclui a necessidade de que a lei seja universalmente conhecida. ,¢ 216 -.Pode-se, por uni lado, exigir de um código público regras gerais simples, mas, por outro lado, a natureza de matéria finita conduz a determinações sem-fim. De um lado, o volume das leis deve constituir um todo fechado e acabado; de outro lado, há uma con- tínua
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