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1 IDEIAS GERAIS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL ■ 1.1. AS VÁRIAS ACEPÇÕES DA RESPONSABILIDADE A palavra responsabilidade tem sua origem na raiz latina spondeo, pela qual se vinculava o devedor, solenemente, nos contratos verbais do direito romano. Dentre as várias acepções existentes, algumas fundadas na doutrina do livre-arbítrio, outras em motivações psicológicas, destaca-se a noção de responsabilidade como aspecto da realidade social. Toda atividade que acarreta prejuízo traz em seu bojo, como fato social, o problema da responsabilidade. Destina-se ela a restaurar o equilíbrio moral e patrimonial provocado pelo autor do dano. Exatamente o interesse em restabelecer a harmonia e o equilíbrio violados pelo dano constitui a fonte geradora da responsabilidade civil. Pode-se afirmar, portanto, que responsabilidade exprime ideia de restauração de equilíbrio, de contraprestação, de reparação de dano. Sendo múltiplas as atividades humanas, inúmeras são também as espécies de responsabilidade, que abrangem todos os ramos do direito e extravasam os limites da vida jurídica, para se ligar a todos os domínios da vida social. Coloca-se, assim, o responsável na situação de quem, por ter violado determinada norma, vê-se exposto às consequências não desejadas decorrentes de sua conduta danosa, podendo ser compelido a restaurar o statu quo ante. ■ 1.2. DISTINÇÃO ENTRE OBRIGAÇÃO E RESPONSABILIDADE ■ Obrigação É o vínculo jurídico que confere ao credor (sujeito ativo) o direito de exigir do devedor (sujeito passivo) o cumprimento de determinada prestação. Corresponde a uma relação de natureza pessoal, de crédito e débito, de caráter transitório (extingue-se pelo cumprimento), cujo objeto consiste numa prestação economicamente aferível. A obrigação nasce de diversas fontes e deve ser cumprida livre e espontaneamente. ■ Responsabilidade Quando tal não ocorre e sobrevém o inadimplemento, surge a responsabilidade. Não se confundem, pois, obrigação e responsabilidade. Esta só surge se o devedor não cumpre espontaneamente a primeira. A responsabilidade é, pois, a consequência jurídica patrimonial do descumprimento da relação obrigacional. Obrigação “é sempre um dever jurídico originário; responsabilidade é um dever jurídico sucessivo, consequente à violação do primeiro. Se alguém se compromete a prestar serviços profissionais a outrem, assume uma obrigação, um dever jurídico originário. Se não cumprir a obrigação (deixar de prestar os serviços), violará o dever jurídico originário, surgindo daí a responsabilidade, o dever de compor o prejuízo causado pelo não cumprimento da obrigação” 1. A distinção entre obrigação e responsabilidade começou a ser feita na Alemanha, discriminando-se, na relação obrigacional, dois momentos distintos: ■ o do débito (Schuld), consistindo na obrigação de realizar a prestação e dependente de ação ou omissão do devedor, e ■ o da responsabilidade (Haftung), em que se faculta ao credor atacar e executar o patrimônio do devedor a fim de obter o pagamento devido ou indenização pelos prejuízos causados em virtude do inadimplemento da obrigação originária na forma previamente estabelecida. ■ 1.3. A IMPORTÂNCIA DO TEMA A tendência de não deixar irressarcida a vítima de atos ilícitos sobrecarrega os nossos pretórios de ações de indenização das mais variadas espécies. O tema é, pois, de grande atualidade e de enorme importância para o estudioso e para o profissional do direito. O instituto da responsabilidade civil é parte integrante do direito obrigacional, pois a principal consequência da prática de um ato ilícito é a obrigação que acarreta, para o seu autor, de reparar o dano, obrigação esta de natureza pessoal, que se resolve em perdas e danos. As fontes das obrigações previstas no Código Civil são: ■ a vontade humana (os contratos, as declarações unilaterais da vontade e os atos ilícitos); ■ a vontade do Estado (a lei). As obrigações derivadas dos atos ilícitos são as que se constituem por meio de ações ou omissões culposas ou dolosas do agente, praticadas com infração a um dever de conduta e das quais resulta dano para outrem. A obrigação que, em consequência, surge é a de indenizar ou ressarcir o prejuízo causado. O Código Civil de 2002 dedicou poucos dispositivos à responsabilidade civil. Na Parte Geral, nos arts. 186, 187 e 188, consignou a regra geral da responsabilidade aquiliana e algumas excludentes. Na Parte Especial estabeleceu a regra básica da responsabilidade contratual no art. 389 e dedicou dois capítulos à “obrigação de indenizar” e à “indenização”, sob o título “Da Responsabilidade Civil”. Repetiu, em grande parte, ipsis litteris, alguns dispositivos do diploma de 1916, corrigindo a redação de outros, trazendo, porém, poucas inovações. No campo da responsabilidade civil encontra-se a indagação sobre se o prejuízo experimentado pela vítima deve ou não ser reparado por quem o causou e em que condições e de que maneira deve ser estimado e ressarcido. Quem pratica um ato, ou incorre numa omissão de que resulte dano, deve suportar as consequências do seu procedimento. Trata-se de uma regra elementar de equilíbrio social, na qual se resume, em verdade, o problema da responsabilidade. Vê-se, portanto, que a responsabilidade é um fenômeno social 2. O dano, ou prejuízo, que acarreta a responsabilidade não é apenas o material. O direito não deve deixar sem proteção as vítimas de ofensas morais. ■ 1.4. DEVER JURÍDICO ORIGINÁRIO E SUCESSIVO Todo aquele que violar direito e causar dano a outrem comete ato ilícito (CC, art. 186). Complementa esse artigo o disposto no art. 927, que diz: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. A responsabilidade civil tem, pois, como um de seus pressupostos a violação do dever jurídico e o dano. Há um dever jurídico originário, cuja violação gera um dever jurídico sucessivo ou secundário, que é o de indenizar o prejuízo. Responsabilidade civil é, assim, um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário. Destarte, toda conduta humana que, violando dever jurídico originário, causa prejuízo a outrem é fonte geradora de responsabilidade civil 3. ■ 1.5. A RESPONSABILIDADE CIVIL NOS PRIMEIROS TEMPOS E SEU DESENVOLVIMENTO ■ 1.5.1. Direito romano A responsabilidade civil se assenta, segundo a teoria clássica, em três pressupostos: ■ um dano; ■ a culpa do autor; e ■ a relação de causalidade entre o fato culposo e o mesmo dano 4. Nos primórdios da humanidade, entretanto, não se cogitava do fator culpa. O dano provocava a reação imediata, instintiva e brutal do ofendido. Não havia regras nem limitações. Não imperava, ainda, o direito. Dominava, então, “a vingança privada” 5. Sucede esse período o da composição. O prejudicado passa a perceber as vantagens e conveniências da substituição da vindita, que gera a vindita, pela compensação econômica. Aí, informa Alvino Lima, a vingança é substituída pela composição a critério da vítima, mas subsiste como fundamento ou forma de reintegração do dano sofrido 6. Ainda não se cogitava da culpa. Num estágio mais avançado, quando já existe uma soberana autoridade, o legislador veda à vítima fazer justiça pelas próprias mãos. A composição econômica, de voluntária que era, passa a ser obrigatória, e, ao demais disso, tarifada. É quando, então, o ofensor paga um tanto por membro roto, por morte de um homem livre ou de um escravo, surgindo, em consequência, as mais esdrúxulas tarifações, antecedentes históricos das nossas tábuas de indenizações preestabelecidaspor acidentes do trabalho 7. É a época do Código de Ur-Nammu, do Código de Manu e da Lei das XII Tábuas. A diferenciação entre a “pena” e a “reparação”, entretanto, somente começou a ser esboçada ao tempo dos romanos, com a distinção entre os delitos públicos (ofensas mais graves, de caráter perturbador da ordem) e os delitos privados. Nos delitos públicos, a pena econômica imposta ao réu deveria ser recolhida aos cofres públicos, e, nos delitos privados, a pena em dinheiro cabia à vítima. O Estado assumiu assim, ele só, a função de punir. Quando a ação repressiva passou para o Estado, surgiu a ação de indenização. A responsabilidade civil tomou lugar ao lado da responsabilidade penal 8. É na Lei Aquília que se esboça, afinal, um princípio geral regulador da reparação do dano. Embora se reconheça que não continha ainda “uma regra de conjunto, nos moldes do direito moderno”, era, sem nenhuma dúvida, o germe da jurisprudência clássica com relação à injúria, e “fonte direta da moderna concepção da culpa aquiliana, que tomou da Lei Aquília o seu nome característico” 9. ■ 1.5.2. Direito francês O direito francês, aos poucos, estabeleceu certos princípios, que exerceram sensível influência nos outros povos, promovendo a generalização do princípio aquiliano: in lege Aquilia et levíssima culpa venit 10, ou seja, o de que a culpa, ainda que levíssima, obriga a indenizar. A noção da culpa in abstracto e a distinção entre culpa delitual e culpa contratual foram inseridas no Código Napoleão, inspirando a redação dos arts. 1.382 e 1.383. A responsabilidade civil se funda na culpa — foi a definição que partiu daí para inserir-se na legislação de todo o mundo 11. Daí por diante observou-se a extraordinária tarefa dos tribunais franceses, atualizando os textos e estabelecendo uma jurisprudência digna dos maiores encômios. ■ 1.5.3. Direito brasileiro O Código Civil de 1916 filiou-se à teoria subjetiva, que exige prova de culpa ou dolo do causador do dano para que seja obrigado a repará-lo. Em alguns poucos casos, porém, presumia a culpa do lesante (arts. 1.527, 1.528, 1.529, dentre outros). Nos últimos tempos ganhou terreno a chamada teoria do risco, que, sem substituir a teoria da culpa, cobre muitas hipóteses em que o apelo às concepções tradicionais se revela insuficiente para a proteção da vítima 12. A responsabilidade é encarada sob o aspecto objetivo: o operário, vítima de acidente do trabalho, tem sempre direito à indenização, haja ou não culpa do patrão ou do acidentado. O patrão indeniza, não porque tenha culpa, mas porque é o dono da maquinaria ou dos instrumentos de trabalho que provocaram o infortúnio 13. A responsabilidade objetiva funda-se num princípio de equidade, existente desde o direito romano: aquele que lucra com uma situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes (ubi emolumentum, ibi onus; ubi commoda, ibi incommoda). Quem aufere os cômodos (ou lucros) deve suportar os incômodos (ou riscos). Conforme assinala Ripert, mencionado por Washington de Barros Monteiro, a tendência atual do direito manifesta-se no sentido de substituir a ideia da responsabilidade pela ideia da reparação, a ideia da culpa pela ideia do risco, a responsabilidade subjetiva pela responsabilidade objetiva 14. A realidade, entretanto, é que se tem procurado fundamentar a responsabilidade na ideia de culpa, mas, sendo esta insuficiente para atender às imposições do progresso, tem o legislador fixado os casos especiais em que deve ocorrer a obrigação de reparar, independentemente daquela noção. É o que acontece no direito brasileiro, que se manteve fiel à teoria subjetiva nos arts. 186 e 927 do Código Civil. Para que haja responsabilidade, é preciso que haja culpa. A reparação do dano tem como pressuposto a prática de um ato ilícito. Sem prova de culpa, inexiste a obrigação de reparar o dano. Entretanto, em outros dispositivos e mesmo em leis esparsas, adotaram-se os princípios da responsabilidade objetiva, como nos arts. 936 e 937, que tratam, respectivamente, de responsabilidade do dono do animal e do dono do edifício em ruína; como nos arts. 938, 927, parágrafo único, 933 e 1.299, que assim responsabilizam, respectivamente, o habitante da casa de onde caírem ou forem lançadas coisas em lugar indevido, aquele que assume o risco do exercício de atividade potencialmente perigosa, os pais, empregadores e outros, e os proprietários em geral por danos causados a vizinhos. A par disso, temos o Código Brasileiro de Aeronáutica, a Lei de Acidentes do Trabalho e outros diplomas em que se mostra nítida a adoção, pelo legislador, da responsabilidade objetiva. O Código Civil de 2002 mantém o princípio da responsabilidade com base na culpa (art. 927), definindo o ato ilícito no art. 186, verbis: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. No art. 927, depois de estabelecer, no caput, que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, é obrigado a repará-lo”, dispõe, refletindo a moderna tendência, no parágrafo único, verbis: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. Adota, assim, solução mais avançada e mais rigorosa que a do direito italiano, que lhe serviu de modelo, também acolhendo a teoria do exercício de atividade perigosa e o princípio da responsabilidade independentemente de culpa nos casos especificados em lei, a par da responsabilidade subjetiva como regra geral, não prevendo, porém, a possibilidade de o agente, mediante a inversão do ônus da prova, exonerar-se da responsabilidade se provar que adotou todas as medidas aptas a evitar o dano. Na busca dos fundamentos da responsabilidade civil, fala-se, hoje, em responsabilidade decorrente do risco-proveito, do risco criado, do risco profissional, do risco da empresa e de se recorrer à mão de obra alheia etc. Quem cria os riscos deve responder pelos eventuais danos aos usuários ou consumidores. Tal posicionamento mostra uma mudança de ótica: da preocupação em julgar a conduta do agente passou-se à preocupação em julgar o dano em si mesmo, em sua ilicitude ou injustiça. A propósito, enfatiza Jorge Mosset Iturraspe que “a última década do século XX nos mostra, juntamente com o avanço dos critérios objetivos, o desenvolvimento de fórmulas modernas de cobertura do risco, através da garantia coletiva do seguro obrigatório, com ou sem limites máximos de indenização” 15. ■ 1.6. CULPA E RESPONSABILIDADE O Código Civil francês, em que se inspirou o legislador pátrio na elaboração dos arts. 159 e 1.518 do nosso diploma civil de 1916, correspondentes, respectivamente, aos arts. 186 e 942 do atual, alude à faute como fundamento do dever de reparar o dano (art. 1.382: “Tout fait quelconque de l’homme qui cause à autrui un dommage oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer”). Devido à sua ambiguidade, o termo faute (falta ou erro) gerou muita discussão entre os franceses. Em geral, adota-se o critério objetivo na definição da culpa, comparando o comportamento do agente a um tipo abstrato, o bonus paterfamilias. Se, da comparação entre a conduta do agente causador do dano e o comportamento de um homem médio, fixado como padrão (que seria normal), resultar que o dano derivou de uma imprudência, imperícia ou negligência do primeiro — nos quais não incorreriao homem-padrão, criado in abstracto pelo julgador —, caracteriza-se a culpa 16. O legislador pátrio, contornando a discussão sobre o vocábulo faute, preferiu valer-se da noção de ato ilícito como causa da responsabilidade civil. Assim, o art. 186 do Código Civil brasileiro define o que se entende por comportamento culposo do agente causador do dano: “ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência”. Em consequência, fica o agente obrigado a reparar o dano. É consenso geral de que não se pode prescindir, para a correta conceituação de culpa, dos elementos “previsibilidade” e comportamento do homo medius. Só se pode, com efeito, cogitar de culpa quando o evento é previsível. Se, ao contrário, é imprevisível, não há cogitar de culpa. O art. 186 do Código Civil pressupõe sempre a existência de culpa lato sensu, que abrange o dolo (pleno conhecimento do mal e perfeita intenção de praticá-lo), e a culpa stricto sensu ou aquiliana (violação de um dever que o agente podia conhecer e observar, segundo os padrões de comportamento médio) 17. Veja-se: A imprevidência do agente, que dá origem ao resultado lesivo, pode apresentar-se, com efeito, sob as seguintes formas: imprudência, negligência ou imperícia. ■ Imprudência — A conduta imprudente consiste em agir o sujeito sem as cautelas necessárias, com açodamento e arrojo, e implica sempre pequena consideração pelos interesses alheios. ■ Negligência — O termo “negligência”, usado no art. 186, é amplo e abrange a ideia de imperícia, pois possui um sentido lato de omissão ao cumprimento de um dever. É a falta de atenção, a ausência de reflexão necessária, uma espécie de preguiça psíquica, em virtude da qual deixa o agente de prever o resultado que podia e devia ser previsto. ■ Imperícia — Consiste sobretudo na inaptidão técnica, na ausência de conhecimentos para a prática de um ato, ou omissão de providência que se fazia necessária; é, em suma, a culpa profissional 18. O previsível da culpa se mede pelo grau de atenção exigível do homo medius. A obligatio ad diligentiam é aferida pelo padrão médio de comportamento, um grau de diligência considerado normal, de acordo com a sensibilidade ético-social. Impossível, pois, estabelecer um critério apriorístico geral válido. Na verdade, a culpa não se presume e deve ser apurada no exame de cada caso concreto. ■ 1.7. IMPUTABILIDADE E RESPONSABILIDADE Pressupõe o art. 186 do Código Civil o elemento imputabilidade, ou seja, a existência, no agente, da livre-determinação de vontade. Para que alguém pratique um ato ilícito e seja obrigado a reparar o dano causado, é necessário que tenha capacidade de discernimento. Em outras palavras, aquele que não pode querer e entender não incorre em culpa e, ipso facto, não pratica ato ilícito. Já lembrava Savatier 19 que quem diz culpa diz imputabilidade. E que um dano previsível e evitável para uma pessoa pode não ser para outra, sendo iníquo considerar de maneira idêntica a culpabilidade do menino e a do adulto, do ignorante e do homem instruído, do leigo e do especialista, do homem são e do enfermo, da pessoa normal e da privada da razão. ■ 1.7.1. A responsabilidade dos incapazes A concepção clássica considera que, sendo o incapaz um inimputável, não é ele responsável civilmente. Se vier a causar dano a alguém, o ato se equipara à força maior ou ao caso fortuito. Se a responsabilidade não puder ser atribuída ao encarregado de sua guarda, a vítima ficará irressarcida. Para alguns, a solução é injusta, principalmente nos casos em que o incapaz é abastado e a vítima fica ao desamparo. O Código de 1916 silenciava a respeito. Na doutrina, entendiam alguns, como Clóvis Beviláqua e Spencer Vampré, que o incapaz devia ser responsabilizado, porque o art. 159 do referido diploma não fazia nenhuma distinção: “Aquele que... causar prejuízo... fica obrigado a reparar o dano”. Acabou prevalecendo, entretanto, a opinião expendida por Alvino Lima: “Quando no art. 159 [correspondente ao art. 186 do atual diploma] se fala em ação ou omissão voluntária, ou quando se refere à negligência ou imprudência, está clara e implicitamente exigido o uso da razão, da vontade esclarecida. Há, aí, positivamente, a exigência de que na origem do ato ilícito esteja a vontade esclarecida do agente” 20. Entretanto, pessoas desprovidas de discernimento geralmente têm um curador, incumbido de sua guarda ou vigilância. E o art. 1.521, II, do Código Civil de 1916 responsabilizava o curador pelos atos dos curatelados que estivessem sob sua guarda, salvo se provasse que não houve negligência de sua parte (art. 1.523). Se a responsabilidade, entretanto, não pudesse ser atribuída à pessoa incumbida de sua guarda ou vigilância, ficaria a vítima irressarcida, da mesma maneira que ocorria na hipótese de caso fortuito. Aguiar Dias, entretanto, chegou a afirmar que, “se a pessoa privada de discernimento não está sob o poder de ninguém, responderão seus próprios bens pela reparação, como já fizemos sentir. A reparação do dano causado por pessoas nessas condições se há de resolver fora dos quadros da culpa” 21. Assimilando a melhor orientação já vigente nos diplomas civis de diversos países, o Código Civil de 2002 substituiu o princípio da irresponsabilidade absoluta da pessoa privada de discernimento pelo princípio da responsabilidade mitigada e subsidiária, dispondo no art. 928: “O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem”. Desse modo, se a vítima não conseguir receber a indenização da pessoa encarregada de sua guarda, poderá o juiz, mas somente se o incapaz for abastado, condená-lo ao pagamento de uma indenização equitativa. Observe-se que, pelo sistema do Código Civil de 2002, a vítima somente não será indenizada pelo curador se este não tiver patrimônio suficiente para responder pela obrigação. Não se admite, mais, que dela se exonere, provando que não houve negligência de sua parte. O art. 933 do novo diploma prescreve, com efeito, que as pessoas indicadas nos incs. I a V do artigo antecedente (pais, tutores, curadores, empregadores, donos de hotéis e os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime) responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos, “ainda que não haja culpa de sua parte”. A afirmação de que o incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis “não tiverem obrigação de fazê-lo”, tornou-se inócua em razão da modificação da redação do art. 928, caput, retrotranscrito, ocorrida na fase final da tramitação do Projeto do atual Código Civil no Congresso Nacional. O texto original responsabilizava tais pessoas por culpa presumida, como também o fazia o diploma de 1916, permitindo que se exonerassem da responsabilidade, provando que foram diligentes. A inserção, na última hora, da responsabilidade objetiva, independentemente de culpa, no art. 933 do novo Código, não mais permite tal exoneração. Desse modo, como dito anteriormente, a vítima somente não será indenizada pelo curador se este não tiver patrimônio suficiente para responder pela obrigação. O referido sistema sofreu profunda alteração, introduzida pela Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015, denominada “Estatuto da Pessoa com Deficiência”, considerando o deficiente, o enfermo ou o excepcional pessoas plenamente capazes. A referida lei revogou expressamente os incs. II e III do art. 3º do Código Civil, que consideravam absolutamenteincapazes os que, “por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos” e os que, “mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”. Revogou também a parte final do inc. II do art. 4º, que definia como relativamente incapazes os que, “por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido” e deu nova redação ao inc. III, afastando “os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo” da condição de incapazes. As pessoas mencionadas nos dispositivos revogados, sendo agora “capazes”, salvo se não puderem exprimir a sua vontade (CC, art. 4º, III, como causa permanente), responderão pela indenização com os seus próprios bens, afastada a responsabilidade subsidiária prevista no mencionado art. 928 do Código Civil. Mesmo que, “quando necessário”, sejam interditadas e tenham um curador, como o permite o art. 84, § 1º, da retromencionada Lei n. 13.146/2015. ■ 1.7.2. A responsabilidade dos menores O atual Código estabelece o limite da menoridade em 18 anos completos, permitindo que os pais emancipem os filhos menores que completarem 16 anos de idade. No art. 928, retrotranscrito, refere-se ao “incapaz” de forma geral, abrangendo tanto “aqueles que, por causa transitória ou permanente não puderem exprimir sua vontade” como os “menores de 18 anos” (CC, arts. 3º e 4º), que passam a ter agora, por força da mencionada Lei n. 13.146/2015, responsabilidade mitigada e solidária, como já se afirmou. Em primeiro lugar, a obrigação de indenizar cabe às pessoas responsáveis pelo incapaz (amental ou menor de 18 anos). Este só será responsabilizado se aquelas não dispuserem de meios suficientes para o pagamento. Mas a indenização, nesse caso, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz, ou as pessoas que dele dependem. Não mais se admite que os responsáveis pelo menor, pais e tutores, exonerem-se da obrigação de indenizar, provando que não foram negligentes na guarda, porque, como já mencionado, o art. 933 do novo diploma dispõe que a responsabilidade dessas pessoas independe de culpa. Se os pais emancipam o filho, voluntariamente, a emancipação produz todos os efeitos naturais do ato, menos o de isentar os primeiros da responsabilidade pelos atos ilícitos praticados pelo segundo, como proclama a jurisprudência. Tal não acontece quando a emancipação decorre do casamento ou das outras causas previstas no art. 5º, parágrafo único, do Código Civil. ■ 1.8. RESUMO IDEIAS GERAIS SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL INTRODUÇÃO ■ A teoria da responsabilidade civil integra o direito obrigacional, pois a principal consequência da prática de um ato ilícito é a obrigação que acarreta, para seu autor, de reparar o dano, obrigação esta de natureza pessoal, que se resolve em perdas e danos. CULPA E RESPONSABILIDADE ■ A responsabilidade civil, tradicionalmente, baseia-se na ideia de culpa. O art. 186 do CC define o que entende por comportamento culposo: “ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência”. Em consequência, fica o agente obrigado a reparar o dano (art. 927). ■ Nos últimos tempos vem ganhando terreno a chamada teoria do risco, que, sem substituir a teoria da culpa, cobre muitas hipóteses em que esta se revela insuficiente para a proteção da vítima. A responsabilidade seria encarada sob o aspecto objetivo: o agente indeniza não porque tenha culpa, mas porque é o proprietário do bem ou o responsável pela atividade que provocou o dano. IMPUTABILIDADE E RESPONSABILIDADE ■ A responsabilidade dos incapazes O CC/2002 substituiu o princípio da irresponsabilidade absoluta da pessoa privada de discernimento pelo princípio da responsabilidade mitigada e subsidiária (art. 928). Se a vítima não conseguir receber a indenização do curador (art. 932, II), poderá o juiz, mas somente se o incapaz for abastado, condená-lo ao pagamento de uma indenização equitativa. ■ A responsabilidade dos menores A obrigação de indenizar cabe às pessoas responsáveis pelo menor (art. 932, I e II). Este só será responsabilizado se aquelas não dispuserem de meios suficientes para o pagamento. Mas a indenização, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar o menor do necessário (art. 928).
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