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A OMS – Organização Mundial de Saúde – define violência como o uso intencional da força física ou do poder contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade cujo resultado possa ser lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. Compreender este conceito e quais as formas de intervir tem sido alvo de discussão dentro da Psicologia, desde o que caracteriza o agente da violência até quais os impactos causados por ela. Há outra compreensão sobre este termo, dessa vez referindo-se a um processo menos “ativo” de violação. Schraiber, D'Oliveira e Couto (2006) destacam o entendimento da violência também a partir da omissão e negligência que priva grupos, pessoas e instituições de cuidados e direitos. Desse modo, é importante destacar que a prática violenta também pode ser cometida por instituições e pelo Estado. Em outra perspectiva, cabe ao Estado garantir a proteção da sociedade, disponibilizando mecanismos legais e políticas públicas de acolhimento às vítimas e combate à violência. A violência contra a mulher possui raiz histórica. Na contemporaneidade, ao passo que a mulher conquista o espaço público por meio do trabalho, a violência que se encerrava no contexto privado ganha novas formas e expande-se para as relações sociais extrafamiliares. Essa perversidade acontece bastante devido às posições de poder distintas entre homens e mulheres na sociedade patriarcal, no que diz respeito às hierarquias mantidas pela sensação masculina de posse e do direito sobre o corpo e vida das mulheres. Por conta dessa violação de direitos, foram criadas em todo o mundo leis e políticas que buscam resguardar a dignidade dessas mulheres. No Brasil, em 1985 foram criadas as Delegacias especializadas de Atenção à mulher (DEAMs). E, além dessa questão de segurança, há dispositivos da rede de saúde e assistência social que se voltam à proteção das mulheres nessas condições. Os psicólogos devem sempre usar a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006) como referência em situações de violência contra a mulher. São definidas com a Lei alguns tipos de violência: • Violência física: qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal. • Violência psicológica: qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento, visando degradas ou controlar ações, REFERÊNCIA: Apostila “Direitos Humanos, violência no contexto das instituições de saúde e educação e vulnerabilidade social”, da disciplina Temas Contemporâneos em Psicologia. UNIFACS. comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insulto, chantagem, violação de intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir. • Violência sexual: qualquer conduta que constranja a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante intimação, ameaça, coação ou uso da força; que induza à comercialização ou utilização, de qualquer modo da sua sexualidade; que impeça o uso de qualquer método contraceptivo ou que force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. • Violência patrimonial: qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos. • Violência moral: qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Ter esse referencial demonstra a complexidade do fenômeno da violência e valida queixas não centradas nas violências física e sexual, cujos demarcadores corporais são mais evidentes. Mulheres que passaram por quaisquer situações de violência podem ser encaminhadas para serviços privados de saúde ou assistência social, especializados ou não. Além disso, de acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2012), a(o) psicóloga(o), ao entrar em contato com uma mulher nessa condição, pode desenvolver algumas ações, como: • Acionamento da rede de políticas públicas: o psicólogo deve saber quando acionar os serviços de saúde, centros e núcleos de referência para a mulher em situação de violência, DEAMs, abrigos Qual o primeiro passo para se proteger contra a violência doméstica e familiar? Buscar ajuda! A mulher vítima de violência doméstica e familiar deve, para a sua proteção e de seus familiares, ir a qualquer Delegacia ou a uma Delegacia da Mulher (DEAM) para o registro do Boletim de Ocorrência (BO) contra seu agressor, em qualquer dia da semana ou horário do dia ou da noite. Ela poderá fazer o BO sozinha ou acompanhada de pessoas de sua confiança. Quais os órgãos que têm por obrigação legal atender as mulheres vítimas de violência doméstica, familiar e sexual? A Delegacia de Polícia ou Delegacia da Mulher (DEAM) faz o registro do BO e apura todas as informações e provas necessárias ao inquérito policial como estabelecido pela Lei Maria da Penha. Todas essas informações devem ser levadas ao Ministério Público ou Juizado. Nenhuma autoridade policial pode se negar a registrar o Boletim de Ocorrência. O Ministério Público apresenta a denúncia à Justiça. A Defensoria Pública defende gratuitamente a mulher. O Juizado da Violência Doméstica / Varas de Violência Doméstica e Varas Criminais julgam os casos que lhes são encaminhados e determinam as medidas de proteção e a execução da sentença. Os Hospitais Públicos atendem mulheres vítimas de violência sexual e garantem o acesso aos serviços de contracepção de emergência (pílula do dia seguinte), ISTs e aborto legal. REFERÊNCIA: Apostila “Direitos Humanos, violência no contexto das instituições de saúde e educação e vulnerabilidade social”, da disciplina Temas Contemporâneos em Psicologia. UNIFACS. para esse público, serviços socioassistenciais, como Centros de Referência em Assistência Social e Centros de Referência Especializados em Assistência Social, serviços do Poder Judiciário e Organizações Não Governamentais. • Acolhimento: refere-se à escuta inicial. É importante manter uma escuta empática, em ambiente de confiança, com destaque à confidencialidade e sigilo profissional. Deve-se evitar posturas que revitimizem a mulher ou duvidem da sua argumentação. O momento de acolhimento é determinante, pois o vínculo estabelecido nessa etapa pode garantir a permanência ou distanciamento da mulher ao serviço. • Planejamento da atuação/atendimento: com base em avaliação detalhada de cada caso, o psicólogo pode utilizar diferentes estratégias de atuação optando por atuações mais breves ou projetos psicoterapêuticos regulares; identificar quais outros profissionais farão parte das intervenções e elaborar formas de atendimento que permitam a adesão da mulher ao serviço. Não há receita para o atendimento a ser realizado, contanto que sejam seguidos os princípios de garantia de defesa dos Direitos Humanos e fundamentações éticas da profissão. • Encaminhamento: refere-se ao direcionamento da mulher em situação de violência para serviços que atinjam demandas não abarcáveis pelo contexto de inserção do psicólogo que a recebeu. Pauta-se no princípio da atuação integral, pois, muitas vezes, haverá demandas que não são resolvidas apenas pelo atendimento psicológico. • Acompanhamento: o encaminhamento não deve representar uma transferência de responsabilidade. Sendo assim, o profissional que atende uma mulher em situação de violência deve acompanhar o caso durante o período necessário. • Estudo de caso: a Psicologia pode realizar estudos de caso com as equipes profissionais que atuam em conjunto para desenvolver soluções com base na interdisciplinaridade. • Trabalho com grupo de mulheres: poderão ser desenvolvidosgrupos com mulheres em situação de violência ou preventivos. Cada política pública desenvolverá grupos com base em seus objetivos, e a Psicologia pode propor temáticas e modos de intervenção grupal. • Trabalho com o agressor: menos comum, porém, essencial. Há propostas de intervenção psicológica com o homem autor de violência contra a mulher. Essa intervenção costuma ter por objetivo fazer com que o agressor ressignifique suas ações e desenvolva outras estratégias comportamentais não violentas para serem adotadas nas suas relações interpessoais. É importante compreender que, às vezes, a convivência da mulher com o autor da violência ocorre por fatores como a dependência econômica, a existência de afeto ou vínculos familiares, como os filhos. Desse modo, é fundamental que, junto à responsabilização do sujeito autor da violência, REFERÊNCIA: Apostila “Direitos Humanos, violência no contexto das instituições de saúde e educação e vulnerabilidade social”, da disciplina Temas Contemporâneos em Psicologia. UNIFACS. busque-se estratégias para que esse ciclo não se repita com a mulher violentada e outras que possam com ele se relacionar. Todo psicólogo que trabalha com crianças e adolescentes deve ter como base o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um documento fundamental por estabelecer no Brasil a Doutrina da Proteção Integral, colocando esse público como prioridade nas ações do Estado. Assim como a violência contra a mulher, a contra crianças e adolescentes também tem uma raiz histórica. A categoria “infância” passou a ganhar uma nova configuração na Modernidade, pois até então era pouco delimitada. Assim, a criança começa a ser compreendida como alvo de proteção e disciplina, sendo obrigação da família garantir essas condições. Assim, as relações de poder estabelecidas historicamente entre crianças e adultos podem ser manifestadas de modo violento que, por vezes, não é reconhecido no ordenamento legal vigente – as formas de correção dos pais para com os filhos, como surras, por exemplo, por muito tempo não foram vistas como violência. A violência contra criança desperta impactos na autoestima, associados à ridicularização, humilhação, rejeições e abusos, além de desordens psíquicas severas, como depressão e distúrbios alimentares, os quais podem gerar efeitos duradouros na saúde mental de quem sofre. A Psicologia deve orientar sua prática na análise de fatores intrínsecos e extrínsecos, por meio dos quais é possível traçar uma linha de ação centrada nos múltiplos determinantes que envolvem a ocorrência da violência e os seus efeitos. • Fatores intrínsecos: envolvem resiliência, estratégia de coping (recursos cognitivos, emocionais e comportamentais que o indivíduo emprega na tentativa de lidar com situações estressoras), idade da criança e percepções sobre a violência. • Fatores extrínsecos: envolvem as relações familiares, aspectos socioeconômicos, intensidade e característica da violência etc. No campo da violência sexual há algumas orientações sobre a entrevista clínica que ajuda no entendimento do fenômeno, bem como nas intervenções perante a criança ou adolescente que passou por esse tipo de situação. • Características da revelação: a interação e o vínculo entre criança e adulto interferem no que será contado pela criança, tanto em quantidade quanto em qualidade das informações. Inclusive, é comum que a situação seja mantida em segredo em um primeiro momento. Fora do contexto REFERÊNCIA: Apostila “Direitos Humanos, violência no contexto das instituições de saúde e educação e vulnerabilidade social”, da disciplina Temas Contemporâneos em Psicologia. UNIFACS. clínico, as situações de violência geralmente também são reveladas após questionamentos, e não espontaneamente. • Atitude dos entrevistadores: espera-se cordialidade e empatia do profissional que trabalha nesses casos. Mesmo em situações cuja violência já esteja instaurada, é possível que o diálogo o aberto sobre a temática não ocorra no primeiro contato. Desse modo, o psicólogo não deve apressar a narrativa do violentado, nem questionar como dúvida aquilo que está sendo falado. Também devem ser atitudes dos entrevistadores realizar adequações no vocabulário de acordo com a idade dos entrevistados, além de evitar perguntas repetidas e informar ao sujeito que o profissional não sabe sobre o fato a ser contado. É extremamente importante a observação também dos sinais não verbais expressados pela criança ou adolescente. • Conhecimento dos fatores de risco e proteção: deve-se realizar um levantamento dos fatores de risco (como problemas de saúde mental dos pais; abuso de drogas; violência conjugal; pobreza; morte dos cuidadores etc.) e de proteção (conhecimento sobre o desenvolvimento infantil; habilidades parentais desenvolvidas; existência de rede de apoio social para a família e um sistema de garantia de direitos eficiente) envolvidos no contexto. Na política pública de saúde, os determinantes sociais podem envolver acesso à educação, condições de trabalho, acesso ao saneamento básico, dentre outros fatores, como econômicos, culturais e psicológicos. A violência é apresentada como um problema de saúde pública. Os determinantes sociais sustentam a saúde e a violência. Psicologia e racismo na saúde: O Racismo é um comportamento social. Ninguém nasce racista, mas desenvolve tal comportamento na interação em sociedade, com seus pares, na família, no grupo religioso etc. O CFP (Conselho Federal de Psicologia) apresenta três dimensões para a compreensão desse tema: • Dimensão individual: corresponde às emoções vivenciadas por quem sofre racismo, bem como por que reproduz tais práticas. • Dimensão sociorrelacional: representada pelas relações interpessoais permeadas pela discriminação racial, como os atos de injúria e exclusão. • Dimensão institucional: o racismo institucional é um mecanismo estrutural que garante a exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados. Por conta das atitudes de violência interpessoal e até violência de Estado, é nítido que o racismo também é uma questão de saúde pública. Em documento do Ministério da Saúde, intitulado “Política REFERÊNCIA: Apostila “Direitos Humanos, violência no contexto das instituições de saúde e educação e vulnerabilidade social”, da disciplina Temas Contemporâneos em Psicologia. UNIFACS. Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS” (BRASIL, 2017), há o reconhecimento da existência de discriminação nos serviços de saúde. A interseção entre raça, classe social economicamente mais pobre e menor acesso à educação foi apontada como correlacionada às experiências de discriminação por parte de médicos e outros profissionais de saúde. Cabe ao profissional de Psicologia incluir os determinantes étnico-raciais nas suas análises, de modo a compreender as especificidades das experiências demarcadas por essa característica. Em 2002, foi publicada a Resolução CFP nº 018, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial (CFP, 2002). O documento reafirma o compromisso da profissão em não cometer qualquer ato discriminatório com base nos preconceitos de raça ou etnia e reforça a necessidade de não conivência ou omissão perante esses atos. Violência obstétrica: A violência obstétrica é definida pela OMS como “apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um tratamento desumanizado, medicação abusiva ou patologização dos processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade de tomar suas próprias decisões livremente sobre seu corpo e sua sexualidade, o que tem consequências negativas em sua qualidade de vida”. Cabe aos profissionais de Psicologia analisar e intervir sobre práticas profissionais que reproduzem violência obstétrica. Essesdiscursos frequentemente se referem à desvalorização da dor sentida pelas mulheres no momento do parto, desconfiança e preconceito voltado às mulheres passando por abortamento ou reproduções de falas violentas no acompanhamento às mulheres durante o período gestacional. A intervenção perante situações de violência obstétrica, ou sua prevenção, deve envolver: formação dos recursos humanos durante a graduação e educação continuada; intervenções informativas que fortaleçam as usuárias e famílias desde o planejamento familiar, pré-natal até cuidados subsequentes; visibilização e responsabilização daqueles que cometeram a violência. Educação é um direito fundamental garantido na Constituição Federal de 1988. Todas as políticas públicas voltadas à infância e adolescência fortalecem a necessidade de promover recursos educacionais, compreendendo que essa é uma via fundamental para o rompimento de ciclos de violação de direitos e vulnerabilidade. REFERÊNCIA: Apostila “Direitos Humanos, violência no contexto das instituições de saúde e educação e vulnerabilidade social”, da disciplina Temas Contemporâneos em Psicologia. UNIFACS. A Psicologia tem papel fundamental ao compreender também quais são os impactos da escolarização no desenvolvimento de crianças e adolescentes. Experiências vivenciadas no contexto escolar são determinantes objetiva e subjetivamente para os indivíduos. A escola é um espaço de relações sociais e uma instituição atravessada pelas condições sociais e históricas que a cercam. O clima escolar não é um construto posse de nenhum indivíduo, mas do contexto complexo que envolve os agentes da comunidade escolar, famílias, comunidade externa, além de fatores sociais, legais, históricos e institucionais. A escola pode acabar reproduzindo violações advindas do cenário externo, porém, produz suas próprias, alinhadas ao modo de funcionamento institucional. • Microviolências: são aqueles atos que não contradizem a lei e os regimentos, mas geram impacto nas relações e nos sujeitos pertencentes à comunidade escolar. • Violência simbólica: remete às relações de poder que orientam a instituição escolar e é cometida com base nessa hierarquização relacional. • Violência dura: envolve as contravenções penais e crimes codificados. Concretamente, as violências podem se manifestar como agressão verbal, bullying, ameaças, violência física e discriminações de distintas ordens. De acordo com o Conselho Federal de Psicologia, o compromisso do psicólogo envolve a construção de uma escola plural e democrática, e as ocorrências de violência vão de encontro a esse objetivo. Entendendo a violência como determinante nos processos de ensino-aprendizagem e no desenvolvimento dos estudantes, esta deve compor a linha de ação nas instituições de ensino. Para tanto, o profissional pode desenvolver intervenções de nível individual e grupal, que podem incluir acolhimento e escuta de estudantes e professores, realização de ações coletivas, palestras e assembleias. Entretanto, considerando as ações institucionais, o papel da Psicologia na gestão é fundamental e sua contribuição na construção do planejamento escolar, incluindo o Projeto Político Pedagógico, pode ser crucial para evidenciar as intervenções educacionais perante situações de violência. REFERÊNCIA: Apostila “Direitos Humanos, violência no contexto das instituições de saúde e educação e vulnerabilidade social”, da disciplina Temas Contemporâneos em Psicologia. UNIFACS.
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