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Indaial – 2020 História da Música Brasileira Prof. Andrey Garcia Batista Prof. Darlan Carlos Dias 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2020 Elaboração: Prof. Andrey Garcia Batista Prof. Darlan Carlos Dias Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: B333h Batista, Andrey Garcia História da música brasileira. / Andrey Garcia Batista; Darlan Carlos Dias. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 276 p.; il. ISBN 978-65-5663-328-2 ISBN Digital 978-65-5663-324-4 1. Música popular brasileira - História. - Brasil. I. Dias, Darlan Carlos. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci. CDD 780.981 apresentação Caro acadêmico, seja muito bem-vindo à disciplina de História da Música Brasileira! Este livro traz uma introdução a este instigante e vasto tema. Nosso propósito é fornecer uma base de conhecimento sobre a trajetória histórica da música brasileira em linhas gerais, desde as suas origens, nos tempos do descobrimento e colonização, até o contexto mais recente da cultura urbana moderna. Também observaremos, de modo breve, pontos na história do Brasil relevantes para o entendimento da história de nossa música. O livro está dividido em três unidades de conteúdo. A Unidade 1 trata da música erudita brasileira, cujo surgimento está ligado à vida musical dos primórdios do Brasil. Discorreremos sobre as origens da nossa música, abordando antigos registros históricos sobre a música indígena e a cultura musical trazida da Europa pelos padres jesuítas. Na sequência, discutiremos aspectos gerais da atividade musical do período colonial e, chegando ao século XIX, examinaremos a música erudita durante uma fase em que ocorreram eventos históricos importantes, como a Independência e a República. Assim, chegaremos ao Brasil do século XX e à moderna música de concerto, observando transformações que ocorreram na música dessa fase e conhecendo suas principais personalidades. Nas unidades seguintes, entraremos especificamente no tema da música popular. A Unidade 2 aborda as origens da música popular no Brasil, em que conheceremos fatores históricos e socioculturais que estimularam o surgimento dos primeiros gêneros musicais populares. Nesta unidade, veremos mudanças fundamentais ocorridas na cultura musical brasileira entre os séculos XIX e XX. Você poderá aprofundar seu entendimento sobre o processo de formação e ascensão da música popular urbana no Brasil. Por fim, a Unidade 3 apresenta a música popular em sua fase de consolidação e maturidade, já na conjuntura da vida urbana moderna, a partir de meados do século XX. Você percorrerá a história observando o contexto em que novos gêneros musicais nasceram e se desenvolveram. Relacionando esse estudo com fatores que influenciaram a música brasileira o período, discorreremos a respeito dos personagens e dos movimentos musicais historicamente representativos. Para que possa fazer estudos complementares, estão distribuídas diversas dicas ao longo do livro. São recomendações de bibliografia, vídeos, filmes etc. E o mais importante: fique atento às dicas com indicações de audição das obras musicais mencionadas no livro. São exemplos representativos de cada época, a fim de lhe auxiliar na assimilação do conteúdo e fazer correlações com o texto. Faça o download das partituras indicadas; ouça as músicas com atenção, observando-as como objetos de estudo; e procure evitar quaisquer juízos de valor ou condicionamentos prévios, por conta do gosto pessoal. Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! Os textos a seguir consistem em um material conciso e, como mencionado, possuem caráter introdutório. Considerando a extensão e a complexidade do assunto, não há aqui a intenção de esgotarmos os temas tratados. Ainda assim, este livro — fundamentado em estudos científicos de pesquisadores renomados — pretende possibilitar que você, acadêmico, adquira um embasamento preliminar consistente sobre a história da música no Brasil, algo tão importante para a formação do estudante de Música. Espero que seus estudos, com a ajuda deste material, sejam esclarecedores. Desejo que isso sirva como um convite para se aprofundar no que mais lhe interessar, agora ou em suas pesquisas futuras. Bons estudos! Prof. Andrey Garcia Batista Prof. Darlan Carlos Dias NOTA Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE suMário UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO SÉCULO XX ................................... 1 TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL ......... 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 MUSICOLOGIA: O ESTUDO ACADÊMICO DA MÚSICA ...................................................... 4 3 ORIGENS: PERÍODO COLONIAL – PRIMEIRA METADE (c.1500-c.1650) ............................ 5 3.1 AS ORIGENS DAS TRADIÇÕES NÃO ESCRITA E ESCRITA DA MÚSICA BRASILEIRA ................................................................................................................................... 6 3.2 MÚSICA DOS POVOS INDÍGENAS ........................................................................................... 8 3.3 OS PRIMEIROS REGISTROS ...................................................................................................... 11 4 OS JESUÍTAS NO BRASIL .............................................................................................................. 16 4.1 MÚSICA NAS AMÉRICAS PORTUGUESA E ESPANHOLA ............................................... 19 5 CRONOLOGIA .................................................................................................................................. 23 RESUMO DO TÓPICO 1.....................................................................................................................24 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 27 TÓPICO 2 —A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX ......... 29 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 29 2 PERÍODO COLONIAL – SEGUNDA METADE (c.1650-c.1800) ............................................... 29 2.1 PRIMEIROS CENTROS DE PRODUÇÃO MUSICAL ............................................................. 30 2.1.1 Pernambuco .......................................................................................................................... 31 2.1.2 Bahia ...................................................................................................................................... 32 2.1.3 São Paulo .............................................................................................................................. 34 2.2 O CENÁRIO MUSICAL MINEIRO NO SÉCULO XVIII ........................................................ 37 2.3 CRONOLOGIA ............................................................................................................................. 43 3 O SÉCULO XIX ................................................................................................................................... 44 3.1 PERÍODO JOANINO (1808-1821): A CORTE PORTUGUESA NO BRASIL ........................ 44 3.2 INDEPENDÊNCIA E PERÍODO IMPERIAL (1822 – 1889) .................................................... 50 3.3 CRONOLOGIA ............................................................................................................................. 58 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 60 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 63 TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX ............................................. 65 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 65 2 A TRANSIÇÃO ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX ....................................................................... 65 2.1 ROMANTISMO NO BRASIL ...................................................................................................... 65 2.2 PRIMEIROS REFLEXOS DA CULTURA POPULAR .............................................................. 69 2.3 CRONOLOGIA ............................................................................................................................. 73 3 INÍCIO DO SÉCULO XX: O MODERNISMO ............................................................................. 73 3.1 O NACIONALISMO E A IDENTIDADE MUSICAL DO BRASIL ........................................ 76 3.1.1 Heitor Villa-Lobos ............................................................................................................... 77 3.1.2 Outros nomes da escola nacionalista ................................................................................ 81 3.2 CRONOLOGIA ............................................................................................................................. 83 4 NOVAS TENDÊNCIAS NO SÉCULO XX .................................................................................... 83 4.1 O MOVIMENTO MÚSICA VIVA ................................................................................................ 84 4.2 COMPOSITORES INDEPENDENTES ....................................................................................... 85 4.3 VANGUARDA NO BRASIL ....................................................................................................... 89 4.3.1 O movimento Música Nova ................................................................................................. 90 4.4 CRONOLOGIA ............................................................................................................................. 92 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 93 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 98 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 100 UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO ......................................................................................................... 101 TÓPICO 1 — PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL ...................................... 103 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 103 2 CONTEXTO HISTÓRICO ............................................................................................................. 103 2.1 A CONTRIBUIÇÃO AFRICANA ............................................................................................. 105 3 AS ORIGENS DA MÚSICA POPULAR EM IMAGENS ......................................................... 108 3.1 INSTRUMENTOS MUSICAIS .................................................................................................. 108 3.2 MÚSICA NO COTIDIANO ....................................................................................................... 111 3.3 DANÇAS ...................................................................................................................................... 113 3.3.1 Os batuques ....................................................................................................................... 114 3.3.2 Os fandangos ...................................................................................................................... 117 4 CRONOLOGIA ................................................................................................................................ 119 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 120 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 122 TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX ..................... 125 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 125 2 ABORDAGEM HISTÓRICA ......................................................................................................... 125 3 LUNDU ............................................................................................................................................. 127 3.1 O LUNDU NA ICONOGRAFIA .............................................................................................. 128 4 MODINHA ....................................................................................................................................... 130 5 A MÚSICA DE BARBEIROS ......................................................................................................... 135 6 A MÚSICA DE SALÃO E A INFLUÊNCIA EUROPEIA .......................................................... 138 6.1 A NOVIDADE DAS DANÇAS EUROPEIAS ......................................................................... 139 6.2 FUSÕES COM ELEMENTOS AFRO-BRASILEIROS ............................................................. 141 7 CRONOLOGIA ................................................................................................................................ 146 RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................147 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 149 TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950 ............................................. 151 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 151 2 A TRANSIÇÃO ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX .................................................................... 153 3 O CHORO ......................................................................................................................................... 155 3.1 O MAXIXE ................................................................................................................................... 156 3.2 PRIMEIROS CHORÕES ............................................................................................................. 158 4 NOVO SÉCULO, NOVAS TENDÊNCIAS ................................................................................. 166 4.1 O SAMBA ..................................................................................................................................... 170 4.1.1 Origens do samba urbano ................................................................................................ 170 4.1.2 Subgêneros do samba ........................................................................................................ 173 4.2 A MÚSICA E O RÁDIO ............................................................................................................ 175 4.3 REGIONALISMOS ..................................................................................................................... 178 5 CRONOLOGIA ................................................................................................................................ 183 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 186 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 191 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 193 UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO ................................................................................................ 195 TÓPICO 1 — MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL: GRANDES TENDÊNCIAS E GÊNEROS MUSICAIS (1950-1960) ..................................................................... 197 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 197 2 BOSSA NOVA .................................................................................................................................. 198 3 MPB .................................................................................................................................................... 206 4 JOVEM GUARDA ........................................................................................................................... 213 5 TROPICÁLIA .................................................................................................................................... 217 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 225 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 226 TÓPICO 2 — A DÉCADA DE 1970 ................................................................................................. 227 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 227 2 A MPB MODERNA ......................................................................................................................... 228 2.1 RIO-SÃO PAULO ........................................................................................................................ 229 2.2 MINAS GERAIS: CLUBE DA ESQUINA ................................................................................ 230 2.3 NORDESTE .................................................................................................................................. 232 3 MOVIMENTO BLACK RIO .......................................................................................................... 235 4 MÚSICA INSTRUMENTAL E FUSÕES JAZZÍSTICAS .......................................................... 236 5 ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 1970 ....................................................................................... 238 6 OUTRAS TENDÊNCIAS RELEVANTES .................................................................................... 241 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 242 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 243 TÓPICO 3 — DAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XX AOS DIAS ATUAIS ............... 245 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 245 2 ANOS 1980 ........................................................................................................................................ 246 2.1 INFLUÊNCIAS DA MÚSICA POP NO BRASIL .................................................................... 246 2.2 BROCK: NOVA FASE DO ROCK BRASILEIRO .................................................................... 247 2.3 OUTRAS TENDÊNCIAS ........................................................................................................... 251 3 ANOS 1990 ........................................................................................................................................ 252 3.1 MÍDIA, INDÚSTRIA FONOGRÁFICA E INTERNET .......................................................... 253 3.2 FUSÕES E NOVAS VERTENTES ............................................................................................. 254 4 ATUALIDADE .................................................................................................................................. 255 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 257 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 261 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 262 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 263 1 UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO SÉCULO XX OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • conhecer o panorama da história da música erudita no Brasil; • conhecer aspectos gerais sobre a musicologia no contexto brasileiro; • compreender o contexto das origens da música no Brasil; • contextualizar a trajetória da música no Brasil colonial; • identificar os principais aspectos e contrastes entre a cultura musical das Américas Portuguesa e Espanhola, relacionados com a atuação dos jesuítas; • entender a importância dos primeiros centros de produção musical do Brasil no período colonial, bem como do cenário musical de Minas Gerais no século XVIII; • identificar o contexto histórico e as características da música erudita brasileira ao longo do século XIX;• compreender a discussão em torno da busca por uma identidade nacional na música erudita brasileira; • conhecer as principais correntes estéticas da música erudita brasileira do século XX. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL TÓPICO 2 – A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX TÓPICO 3 – MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 — UNIDADE 1 INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO Ao longo desta unidade, estudaremos a história da música erudita, ou tradição de música escrita. Em nosso estudo, vamos discorrer sobre os assuntos de maior importância no panorama desta tradição musical seguindo etapas cronológicas, em uma divisão que se aproxima dos períodos históricos do Brasil. Vejamos quais: • Período colonial – primeira metade: 1500-c.1650. • Período colonial – segunda metade: c.1650-c.1800. • Período joanino: 1808-1821. • Império: 1822-1889. • República: a partir de 1889. FIGURA 1 – PERÍODOS DA HISTÓRIA DO BRASIL FONTE: O autor Neste tópico, abordaremos as origens da música no Brasil e seus primeiros registros até a primeira metade do período colonial. Antes, todavia, veremos uma breve introdução sobre o campo do saber humano que estuda a música e sua história: a musicologia. UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO 4 2 MUSICOLOGIA: O ESTUDO ACADÊMICO DA MÚSICA Como a música e a vida humana se relacionam? Quais fatores — sociais, culturais, econômicos, filosóficos, políticos — influenciaram a música nos diferentes tempos? Quais forças históricas agem sobre a música e que transformações ela sofre? Questões como essas são debatidas pela musicologia, área das ciências humanas que se dedica ao estudo sistemático da música, bem como sua inserção no contexto histórico e sociocultural como uma atividade humana multifacetada. Fundamentada cientificamente e buscando compreender a música como um “fenômeno estético e cultural”, a musicologia, “enquanto ciência, obviamente distingue-se da prática musical, que é uma manifestação artística” (CASTAGNA, 2008a, p. 9-10). Tradicionalmente, seu maior interesse é a música erudita ocidental, mas nas últimas décadas seu escopo e métodos vêm se abrindo para novos objetos de estudo e de investigação. A musicologia também aborda assuntos como teoria e análise musical, estética e teoria crítica, psicologia, cognição musical, semiótica, acústica e psicoacústica, organologia, entre outros. (CASTAGNA, 2008a; HARPER-SCOTT; SAMSON, 2009). NOTA A musicologia histórica trata da música do passado e se vincula à história, empregando teorias e métodos científicos semelhantes aos usados por historiadores (CASTAGNA, 2008a; HARPER-SCOTT; SAMSON, 2009). Tendo por base a pesquisa documental, a musicologia histórica dialoga com áreas da museologia, pesquisa arquivística, paleografia, filologia, iconografia, história da arte e outras. No estudo da música produzida no Brasil em outras épocas (BIASON, 2008; CASTAGNA, 2008a), são frequentes procedimentos: • A pesquisa em papéis antigos contendo notação musical. Uma fonte musical pode ser um documento impresso ou manuscrito; este, por sua vez, pode ser um manuscrito autógrafo (produzido pela mão do próprio autor) ou uma cópia feita por terceiros. • A recuperação de obras por meio da análise, transcrição e edição do texto musical (mesmo fragmentos que foram perdidos podem ser reconstruídos por meio do estudo do estilo da época, da lógica musical da obra, ou das técnicas e do sistema musical usados pelo compositor), o que possibilita a posterior publicação e gravação de obras restauradas. TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 5 • Estudos que vão além da partitura, envolvendo o exame de fontes textuais e iconográficas que contenham informações sobre a música de determinada época. • Organização e catalogação de acervos, incluindo digitalização de fontes para acesso on-line. Na musicologia histórica brasileira, a divulgação dos resultados das pesquisas (artigos, periódicos, eventos acadêmicos, concertos, edições de obras etc.) tem sido essencial para promover a produção de conhecimento sobre música e estimular a reflexão sobre ela — e, assim, buscar respostas para perguntas como aquelas que vimos no início deste item. Grande parte da atividade musicológica depende do acesso a documentos em museus, bibliotecas, arquivos públicos, instituições religiosas ou mesmo em coleções particulares, além de alguns acervos digitais acessíveis na web. No Brasil, fontes primárias para pesquisa quase sempre estão sob risco por conta do descaso da sociedade com o patrimônio histórico e da falta de financiamento e recursos para sua conservação, sendo frequentes o dano ou a perda permanente de documentação (BIASON, 2008; CARDOSO, 2004; CASTAGNA, 2008b; COTTA, 2001). Portanto, os esforços dos musicólogos brasileiros são essenciais para a preservação da memória musical do nosso país. Procure conhecer e valorizar o trabalho de pesquisadores desta área (vários serão citados neste livro). NOTA 3 ORIGENS: PERÍODO COLONIAL – PRIMEIRA METADE (c.1500-c.1650) O período de 1500 a meados do século XVII foi marcado pelo início do processo de ocupação e exploração econômica do território brasileiro, sob domínio de Portugal (a América Portuguesa). Nessa fase, dois ciclos econômicos — o pau- brasil e, mais tarde, a cana-de-açúcar — davam início à exploração da mão de obra escrava de índios e africanos, enquanto chegavam à colônia os primeiros padres jesuítas e o projeto de cristianização. As origens da música no Brasil remontam a esse cenário, ou seja, iniciava-se um longo e intrincado processo histórico envolvendo a interação de elementos das culturas indígena, africana e europeia. Das misturas entre esses mundos tão diferentes surgiriam práticas musicais diversificadas, resultantes das complexas fricções e hibridações que este encontro causou. Nos séculos seguintes, por meio da contínua aculturação, assimilação e ressignificação de elementos culturais, construíram-se no país ricas manifestações musicais que constituem um traço preponderante da identidade cultural UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO 6 brasileira (CALDAS, 2010; WISNIK, 2000). “Pode-se ver que o longo processo de colonização europeia da América acarretou transformações profundas nos povos envolvidos, que transformaram-se mutuamente, sob influências multirraciais e multiculturais, cuja complexidade nos fascina” (COTTA, 2001, p. 73). Não obstante, cada um dos variados tipos de música surgidos ao longo dos mais de 500 anos da história brasileira sofreu diferentes graus de mistura, assim como suas derivações (gêneros, estilos, tendências, repertórios, ritmos etc.), pois a parcela de contribuição cultural de cada etnia variou em diferentes momentos da história. Influências ocorreram de forma desigual, assimétrica, e os limites entre as diferentes culturas não são claros, pois, ao longo da história, o convívio e a fusão entre seus elementos deixaram suas fronteiras menos nítidas (BÉHAGUE, 1999). 3.1 AS ORIGENS DAS TRADIÇÕES NÃO ESCRITA E ESCRITA DA MÚSICA BRASILEIRA Percorreremos a história da música no Brasil adotando uma classificação temática respaldada por Castagna (2010) e Wisnik (2000), seguindo duas linhas de estudo baseadas em duas grandes tradições musicais: a tradição não escrita e a tradição escrita. Esta classificação pode auxiliar no entendimento sobre como ocorreu a continuidade de cada uma das tradições e, ao mesmo tempo, das transformações pelas quais cada uma passou. Para compreendê-las, é necessário observar queambas surgiram no período colonial, quando o país iniciava seu processo de formação sociocultural e identitária, e que produziram marcas duradouras na cultura brasileira, fundamentais para entendermos as origens de nossa música. Nesse sentido, as duas tradições musicais possuem raízes em duas grandes categorias que coexistiram na música do Brasil colonial, classificadas por Castagna (2010) da seguinte forma: • A música tradicional, ligada à tradição oral dos povos indígenas, africanos e europeus que viveram no país. Ao seu surgimento estão vinculados processos de aculturação, ocorridos nos tempos da colônia, entre as três culturas. Essa grande tradição musical também é chamada de tradição não escrita (WISNIK, 2000). Incluindo até mesmo as culturas musicais anteriores ao descobrimento do Brasil, a categoria se caracteriza pela espontaneidade com que a música era produzida: era a partir das interações sociais e da miscigenação entre diferentes grupos étnicos (incluindo comunidades iletradas) que acontecia sua difusão, assimilação e transformação, por meio da transmissão oral. Outro traço importante era o caráter não profissional da sua produção. A partir do fim do século XIX, esta categoria passou a ser definida como música folclórica e/ou música popular. TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 7 • A música profissional, que envolveu o uso da notação musical em sua criação e produção. Portanto, pode-se denominar essa cultura musical de tradição escrita (WISNIK, 2000), na qual o texto musical escrito (a partitura) desempenha uma função essencial. Também são importantes o aspecto técnico e o estudo formal. Sua inserção no Brasil foi gradual, condicionada, sobretudo, por sua demanda e uso para fins religiosos. No período colonial, a música era produzida em espaços em que a atuação dos músicos geralmente era profissional (ou semiprofissional) — como igrejas —, o que exigia financiamento das atividades (por exemplo, contratações, compra de instrumentos, partituras etc.), sofrendo maior influência de fatores econômicos e políticos. Mais tarde, no início do século XX, esse tipo de música passou a ser chamado pelo termo música erudita. São também utilizados termos como música clássica, música de concerto, música artística, música histórica, música culta, música séria etc. (alguns dos quais são imprecisos e geram controvérsia, mas são recorrentes). Nesta tradição também podemos incluir as práticas da música coral e da música de câmara. As tradições escrita e não escrita “apresentam desenvolvimentos próprios e, como também acontece em muitos outros países, cruzam-se em certos momentos” (WISNIK, 2000, s.p.). Assim, é um equívoco imaginar a música popular e a música erudita como duas linhas paralelas e separadas. Ao contrário disso, ambas exerceram influência mútua em diferentes momentos da história, e os cruzamentos e mesclas entre elas têm “uma importância específica”, o que é “uma das marcas singulares da produção musical brasileira” (WISNIK, 2000, s.p.). Vamos voltar à tradição não escrita nas Unidades seguintes. Por ora, veremos somente um breve comentário nos próximos itens sobre música indígena nos primeiros registros históricos. ESTUDOS FU TUROS Quanto à segunda tradição, objeto de interesse desta unidade, em termos gerais, podemos dizer que a prática de escrever música foi trazida para o Brasil em meados do século XVI, e também absorveu certa dose de traços multiculturais, embora tenha seguido os rígidos padrões europeus durante quase quatro séculos (BÉHAGUE, 1999; BIASON, 2008; CASTAGNA, 2003). “A música erudita no Brasil foi um fenômeno de transplantação. Por isso, até na primeira década do século XX, ela mostrou sobretudo um espírito subserviente de colônia” (ANDRADE, 2015, s.p.). Durante esse período, houve na tradição escrita uma predominância de música vocal religiosa: UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO 8 Sendo raras as obras profanas ou as composições exclusivamente instrumentais. Esse fenômeno decorreu do fato de ter sido a devoção religiosa, no caso católica, a principal forma de agregação e manifestação social imposta no ambiente colonial (CASTAGNA, 2003, v. 5, p. 1). O estudo histórico da música escrita depende, no entanto, da existência de documentação. Fontes musicais datadas entre 1500 e 1700 são quase inexistentes, visto que a maior parte da produção musical brasileira anterior a 1800 está desaparecida. O que se sabe a respeito da música do período colonial brasileiro vem de informações contidas majoritariamente em fontes textuais (BIASON, 2008; CASTAGNA, 2003). Vale lembrar que, no Brasil, a tradição da música escrita percorreu um caminho que não coincide com os períodos da história da música na Europa; por isso, para nos referirmos a estilos ou tendências estéticas, é preciso cautela com termos como “barroco”, “clássico” ou “romântico”, cujo significado no contexto brasileiro é apenas aproximado (CASTAGNA, 2003). Isso decorre da óbvia diferença entre os dois contextos históricos, além de outros fatores, tais como: • a sociedade brasileira foi formada por culturas e etnias diferentes, e as condições econômicas para a produção de música no Brasil e na Europa eram distintas; • ainda que a música erudita do Brasil tenha absorvido elementos de outros lugares da Europa, inicialmente, a maior influência foi Portugal (de lá vinham repertórios, partituras, instrumentos, livros, músicos), e o contexto era muito diferente de outros países que foram centrais no desenvolvimento desse tipo de música, como França, Alemanha ou Itália. NOTA Nas fontes históricas das origens do Brasil vemos esboçados os primeiros traços da nossa vida musical. Isso nos leva a temas específicos: as culturas indígenas e africanas, a atuação musical dos padres jesuítas e o início da tradição de música escrita vinda da Europa. No contexto da colonização da América, estes elementos estão todos interligados, como veremos a seguir. 3.2 MÚSICA DOS POVOS INDÍGENAS A música tem enorme importância na vida tradicional das sociedades indígenas. Ela aparece em muitas ocasiões, podendo ser tocada ou cantada diariamente durante horas, por meses a fio; [...] é parte fundamental da vida, não simplesmente uma de suas opções. O que nós relegamos a um segundo plano como optativo, ou ‘lazer’, ocupa um lugar mais central na percepção dos grupos: formador da experiência social, parte integral das atividades de subsistência, garantia da continuidade social e cosmológica (SEEGER apud MORAES, 2001, p. 86). TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 9 Na história ocidental, um dos fatores que marcaram a fase de transição entre os séculos XV e XVI foi a série de missões de navegação com fins mercantis promovidas por reinos ibéricos, como as comandadas por Cristóvão Colombo, em 1492, e em 1500, por Vicente Pinzón e Pedro Álvares Cabral. No momento em que ocorreu aquilo que, sob a ótica europeia, foi chamado de “descoberta do Novo Mundo”, havia uma grande quantidade de grupos humanos nativos vivendo nestes territórios. Nessas comunidades, a música esteve presente por milênios, intimamente ligada à vida cotidiana das pessoas. Os povos ameríndios teriam se originado de populações ancestrais vindas da Ásia, as quais, estabelecidas na América, espalharam-se por todo o continente e formaram, gradualmente, grande variedade de culturas (AMADO; FIGUEIREDO, 2001; BUENO, 2016; CASTAGNA, 2003; SCHWARCZ; STARLING, 2018; SILVA; SILVA, 2009). De acordo com as teorias científicas mais aceitas, fluxos migratórios teriam cruzado o estreito de Bering em um longo processo, iniciado entre 10.000 e 15.000 anos atrás. Contudo, evidências recentemente descobertas indicam presença humana nas Américas entre 45.000 e 100.000 anos, incluindo vestígios de outros povos, além dos asiáticos (ROMERO, 2014; SILVA; SILVA, 2009). NOTA Assim, as práticasmusicais na América podem ter sido tão diversificadas quanto os grupos étnicos aos quais pertenciam. Todo o extenso continente americano era caracterizado pela diversidade. Cada povo era único, ainda que muitas sociedades indígenas tivessem traços culturais comuns (RAMOS, 1988; SILVA; SILVA, 2009). A multiplicidade cultural foi se diluindo à medida em que a vida dos nativos passou pelas mais violentas mudanças durante o processo de ocupação europeia. Especialmente na ampla região das terras baixas sul- americanas, as quais abrangem o atual território brasileiro, populações inteiras sofreram rápida extinção devido a doenças, perseguição ou extermínio. Por volta de 1570, o primeiro grupo contatado por Cabral na região de Porto Seguro, da etnia Tupiniquim, já estava extinto. Ao término dos primeiros 100 anos de colonização, a população ameríndia estava reduzida em cerca de 80%. Os povos que sobreviviam foram submetidos à diminuição territorial, escravidão, crise identitária e deculturação. Grande parte da música indígena desapareceu, igualmente ao que ocorreu com outros elementos da cultura destas etnias: suas formas de organização social e política, sua cosmologia, seus hábitos alimentares e habitacionais, seus rituais, sua arte (AMADO; FIGUEIREDO, 2001; CASTAGNA, 2003; 2012; SCHWARCZ; STARLING, 2018). UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO 10 A invasão europeia teve o efeito de erradicar muitas das diferenças sociopolíticas que existiam antes do século XVI. [...] Tudo indica, pois, que a conquista europeia produziu uma certa uniformização cultural, destruindo, embora parcialmente, a grande diversidade que há quinhentos anos existia na América do Sul (RAMOS, 1988, p. 9-10). Pouco se sabe sobre a música dos povos pré-cabralinos. Considerando que não possuíam escrita e sua música transmitida oralmente, além do fato de que a maioria da população desapareceu, reconstruir sua história é uma tarefa que beira o impossível. Há poucos registros que possam evidenciar como era vida musical; não existem informações anteriores a 1500, e as informações sobre períodos posteriores são escassas. Ainda assim, é possível constatar a existência dessa música nos primeiros testemunhos feitos em épocas subsequentes ao descobrimento. Em um primeiro momento, a música dos índios causou estranheza e curiosidade nos europeus, o que pode ter motivado estes relatos (a seguir, veremos exemplos). Não obstante, ainda que a música nativa tenha participado da formação de nossa cultura musical — pois a contribuição do indígena na formação da sociedade brasileira é evidente —, é muito difícil definir o grau de influência que exerceu: Música indígena já existia há milênios na costa leste da América do Sul. [...], Contudo, apesar da curiosidade europeia, a música indígena foi objeto de proibições, por parte da Igreja e do governo português, durante todo o período colonial, contribuindo pouco para a prática musical das demais etnias do país (CASTAGNA, 2003, v. 1, p. 1). No presente, o pouco que se sabe sobre a música indígena é resultado da observação da música que sobreviveu pela transmissão oral entre os povos ainda existentes, e de pesquisas e estudos iniciados no século XIX, e realizados até hoje. A etnomusicologia estuda a música não europeia (ou não ocidental) de diferentes etnias e/ou culturas (sociedades nativas, culturas tradicionais, música folclórica, música popular etc.), analisando a música na cultura e as funções sociais que ela possui, ou “não exatamente a música, mas sim o homem que a produz” (CASTAGNA, 2008a, p. 10). É uma ciência distinta que se aproxima da antropologia e da sociologia, mas que dialoga com a musicologia. A Associação Brasileira de Etnomusicologia — ABET disponibiliza textos científicos gratuitos sobre música indígena, (além de outros temas, como música folclórica e a música popular). Basta acessar: <abet.mus.br>. NOTA TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 11 3.3 OS PRIMEIROS REGISTROS Evidências da presença da música no início do período colonial do Brasil estão na documentação histórica produzida nos séculos XVI e XVII. Entre as fontes estão textos, como documentos oficiais, cartas, manuscritos, literatura e imagens. Documentos antigos podem conter imprecisões, informações fragmentadas, e até casos em que a descrição de fatos foi misturada à ficção. Isso exige do pesquisador uma postura cuidadosa, sendo necessário articular vários tipos de informação de diversas fontes, em um processo investigativo complexo, antes de chegar a conclusões. De qualquer forma, essas fontes fornecem elementos relevantes para o estudo da música do passado. NOTA Entre as fontes mais remotas, há um particular tipo de registro textual: os relatos de viagem. O mais antigo relato é a Carta a El Rei D. Manuel, de 1º de maio de 1500, redigida pelo escrivão Pero Vaz de Caminha, que comunicava a chegada da frota de Cabral à costa brasileira. No famoso documento, Caminha reportou os dias em que a tripulação permaneceu no litoral em contato com os nativos, descrevendo brevemente suas danças e o uso de instrumentos. Também narrou uma ocasião em que portugueses e indígenas dançaram juntos ao som de uma “gaita”: E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam- no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito (CAMINHA, 2018 [1500], s.p.). Segundo a bibliografia, o nome gaita pode se referir à gaita de foles, instrumento comum na Europa Ocidental; ou a um tipo de aerofone de palheta dupla (semelhante a um oboé); ou, ainda, a uma espécie de flauta (POCHÉ; SCHECHTER, 2001; SADIE, 1994). NOTA UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO 12 Os descobrimentos ocorridos em 1492 e 1500 encorajaram a vinda de viajantes para a América. “No século XVI, estiveram em moda os relatos de viagens e centenas de livros foram produzidos para atender ao público que os apreciava” (CASTAGNA, 2003, v. 2 p. 2-3). Contando aventuras e descrevendo (do ponto de vista europeu) os atributos exóticos do Novo Mundo, as publicações dos aventureiros se tornaram uma febre na Europa. Notícias sobre música estão em alguns desses escritos e, ainda que muito breves, têm grande importância. Encontros em áreas litorâneas fizeram com que europeus tivessem contato com grupos indígenas como o Tupinambá; algumas etnias tiveram sua música comentada ou descrita, e episódios musicais foram relatados. Vejamos exemplos que tratam da música indígena, a qual costumava ser noticiada em razão da proximidade entre viajantes e índios (CASTAGNA, 2010). • 1542: o missionário espanhol Gaspar de Carvajal passa pela foz do rio Amazonas. Posteriormente, escrevera sobre alguns dos instrumentos musicais que viu: “muitas trombetas e tambores, órgãos que tocam com a boca (flautas de pã) e arrabéis de três cordas” (CARVAJAL apud CASTAGNA, 2010, p. 6). • 1548: o aventureiro e mercenário alemão Hans Staden parte para o Novo Mundo e, mais tarde, em 1557, ao retornar à Europa, publica um relato de viagens ao Brasil. No livro, o estrangeiro narra um período de nove meses em que foi feito prisioneiro pelos Tupinambás, e menciona rituais indígenas envolvendo danças, cantos e instrumentos sagrados, como o maracá (CASTAGNA, 2010; LIMA, 2015). • 1557: o missionário francês Jean de Léry chega a uma colônia da França estabelecida no litoral do atual Rio de Janeiro. Mais tarde, em 1578, publicará a História de uma viagem feita à terra do Brasil, contendo descrições da música indígena; a terceira edição do livro (LÉRY,1585) inclui trechos transcritos de cinco cantos nativos. Léry relata uma cerimônia que teria durado horas: “durante este tempo os quinhentos ou seiscentos selvagens não cessaram de dançar e cantar de um modo tão harmonioso que ninguém diria não conhecerem música” (LÉRY apud KIEFER, 1997, p. 10). FIGURA 2 – TRECHOS DE MÚSICA INDÍGENA TRANSCRITOS, POR JEAN DE LÉRY FONTE: Léry (1585, p. 159-285) TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 13 As transcrições de Jean de Léry são os únicos exemplos conhecidos de notação da música tradicional da etnia Tupinambá. No entanto, devido à grande diferença entre as culturas musicais indígenas e europeias, e às próprias limitações do sistema de notação musical europeu, tais transcrições são consideradas apenas aproximações, devido à impossibilidade de se registrar a maior parte dos detalhes e características daquela música (LIMA, 2015). NOTA Há documentos citando a música tradicional africana no Brasil. Passada a fase inicial do descobrimento, os primeiros grupos de africanos escravizados começaram ser trazidos para o Brasil na década de 1530. Por volta de 1549, a colonização portuguesa começou a ganhar maior vulto. Com a maior exploração da mão de obra escrava, crescia a quantidade de africanos trazidos para o Brasil, sobretudo depois que Portugal começou a obter resultados no cultivo da cana-de-açúcar (AMADO; FIGUEIREDO, 2001; CASTAGNA, 2003; SCHWARCZ; STARLING, 2018). O lucrativo tráfico de escravos foi abolido no final do século XIX. Relatos posteriores à fase inicial da colonização, portanto, já mencionam a presença das populações negras e sua música no cotidiano da colônia. Contudo, são poucas as fontes que noticiam a música africana, a qual não despertava nos brancos a mesma curiosidade que a indígena. Ao mesmo tempo, devemos considerar o contexto da escravidão: os autores da época deram pouca atenção a essa música, pois somente a força braçal dos africanos importava, havendo desprezo por sua cultura. Portanto, as menções nos documentos costumam ser infrequentes e superficiais até final do século XVIII (CASTAGNA, 2003, 2010). Além disso, também aparecem na documentação notícias de índios e negros executando música europeia, e não a sua própria música. Analisemos um exemplo do início do século XVII: • 1610: o aventureiro francês Pyrard de Laval, após passar cerca de dez anos em viagens, visita o litoral do Brasil por dois meses. Em livro publicado em 1611 (LAVAL, 1858), o viajante conta sobre momentos em que se divertiu ao presenciar a música e a dança dos negros, as quais ocorriam nas ruas, durante os poucos momentos de lazer permitidos aos escravos africanos nos domingos e nos dias santos. Laval ainda menciona um grupo de músicos orientado por outro francês, natural de Provença, que ele conhecera na Bahia. Um rico senhor de engenho da região tinha um grupo em sua propriedade, e “este francês, que estava em sua casa, era músico e tangedor de instrumentos; e servia-lhe para ensinar música a vinte ou trinta escravos, que todos juntos formavam uma consonância de vozes e instrumentos, que tangiam sem cessar” (LAVAL, 1858, p. 279). Quanto aos escravos músicos citados nessa passagem, não fica claro se eram africanos, podendo igualmente ser uma referência a um grupo de indígenas escravizados. UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO 14 Além dos relatos escritos, há as imagens. Adiante, veremos fontes iconográficas representativas do período mostrando traços da cultura indígena na América Portuguesa dos séculos XVI e XVII (BIBLIOTECA NACIONAL, 1974; KIEFER, 1997; LIMA, 2015; MAGALHÃES-CASTRO, 2012). A iconografia é o estudo das imagens (CASTAGNA, 2008a). Pinturas, esculturas, desenhos, xilogravuras, litogravuras, iluminuras etc., são documentos históricos importantes para os estudos musicológicos. Associada às fontes textuais e musicais, a iconografia pode ajudar a completar eventuais lacunas de informação. São de interesse para a musicologia as fontes visuais que contêm informações como: • Dimensões de um instrumento musical antigo, e detalhes sobre construção e materiais. • Indicações sobre determinada técnica de execução instrumental vistas em cenas retratando músicos tocando; pistas sobre ritmo e andamento, que podem ser detectados a partir de gestos e movimentos coreográficos representados em cenas de dança. • Aspectos sobre o contexto em que a música estava presente, como grupos de músicos e/ou cantores, sua quantidade, disposição física e a maneira como a música era apresentada no espaço físico (igrejas, teatros, ar livre, ambientes domésticos etc.). Conheça estudos sobre iconografia musical na base de dados do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil — RIdIM. O material está disponível em: <ridim-br.mus.ufba.br>. NOTA A imagem a seguir, produzida pelo francês Theodor de Bry em c.1590, é uma gravura que ilustra uma reedição de relatos de viajantes como Staden e Léry, tendo também como base textos e outras gravuras da época. FIGURA 3 – ÍNDIOS DANÇANDO E USANDO O CHOCALHO MARACÁ (c.1590), POR THEODOR DE BRY FONTE: <bit.ly/3dlyc3U>. Acesso em: 22 mar. 2020. TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 15 Como veremos nas próximas figuras, ao longo do período colonial, a música nativa atraía a atenção de artistas europeus que vinham para o Brasil. Um exemplo é a pintura Dança dos Tarairiú (c.1645), de Albert Eckhout, artista que esteve no Nordeste durante o período da ocupação holandesa (1630-54) e retratou o cotidiano da colônia em suas obras. FIGURA 4 – DANÇA DOS TARAIRIÚ (c.1645), POR ALBERT ECKHOUT FONTE: <bit.ly/2Z3Uyi2>. Acesso em: 22 mar. 2020. A imagem seguinte — mais tardia, datada do séc. XVIII —, é um desenho do naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira, que retrata um indígena com um instrumento de sopro. FIGURA 5 – USO DE BUZINA POR ÍNDIO DA AMAZÔNIA, (c.1790), POR ALEXANDRE R. FERREIRA FONTE: <bit.ly/3dioXBP>. Acesso em: 22 mar. 2020. UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO 16 Mais tarde, no século XIX, artistas como Jean-Baptiste Debret e Johann Rugendas também se interessaram pela vida musical do Brasil, e mais imagens como estas foram produzidas. Na Unidade 2, continuaremos examinando a tradição da música não escrita. Logo, veremos mais exemplos de iconografia musical, em especial sobre a música afro-brasileira. ESTUDOS FU TUROS 4 OS JESUÍTAS NO BRASIL Um dos tópicos mais relevantes e complexos no estudo das origens da música brasileira é o período de cerca de dois séculos (1549-1759) que delimitou a atuação da Companhia de Jesus no Brasil colonial. Nas primeiras décadas do século XVI, a colonização começou muito lentamente. Em 1532, ocorreu a fundação de São Vicente e, dois anos depois, a criação do sistema de capitanias hereditárias. No entanto, foi somente em 1549 que a colônia se firmaria de vez com a implantação do Governo-Geral (com Tomé de Souza no cargo), com a fundação de Salvador e outros eventos. Nesse ano, o padre Manuel da Nóbrega e os primeiros clérigos da Companhia de Jesus — os chamados padres inacianos ou jesuítas —chegaram ao Brasil (BIASON, 2008; HOLLER, 2006a; SCHWARCZ; STARLING, 2018). Esta é uma data importante na tradição da música escrita, pois marca “o início de uma atividade musical de feições europeias” no Brasil (CASTAGNA, 2003, v. 1, p. 1). A Companhia de Jesus é uma das várias ordens religiosas católicas que atuaram (e ainda atuam) no Brasil. Fundada em 1534, por Inácio de Loyola, para “cristianizar o mundo antes que os protestantes o fizessem” (CASTAGNA, 2010, p. 9), sua criação foi uma das medidas tomadas pela Igreja Romana na era da Contrarreforma (AMADO; FIGUEIREDO, 2001; HOLLER, 2006a; SCHWARCZ; STARLING, 2018). NOTA TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 17 A principal incumbência dada aos padres jesuítas foi a catequização e conversão dos índios,o que envolvia o uso da música religiosa europeia como um dos principais recursos para atração e persuasão dos nativos. Outras ordens religiosas também mantinham atividades semelhantes, mas a atuação dos inacianos foi mais influente (BÉHAGUE, 2001a; HOLLER, 2006a). Padres da Companhia de Jesus estabeleciam aldeias, onde reuniam índios convertidos, chamadas missões ou reduções. Em muitos desses assentamentos — sobretudo nos mais prósperos e duradouros, como as missões dos territórios guaraníticos —, a vida era organizada, igualitária e pacífica (MIRANDA NETO, 2012; PAIM, 2012). A prática musical atendia às necessidades da catequização e era parte do cotidiano. Além do ensino de música, o trabalho dos inacianos também envolvia esforços como estudar as línguas nativas (e os padres rapidamente aprenderam), para as quais os cantos católicos eram traduzidos (CASTAGNA, 2010). Inicialmente, religião e música foram estratégicas para os planos de exploração comercial, tendo em vista que a aproximação era uma forma de aprender sobre os costumes, o comportamento e a dinâmica social das comunidades indígenas. O poder de atração da música contribuía para um convívio pacífico, e assim a dominação muitas vezes ocorria de maneira não violenta (CASTAGNA, 2003, 2010, 2014; CALDAS, 2010; HOLLER, 2006a; TINHORÃO, 2004). A resistência dos nativos à aproximação do branco era diminuída, por exemplo, por meio do ensino de música aos curumins (crianças indígenas), sendo estes “interlocutores entre os padres e os [índios] adultos [...], normalmente arredios à presença dos europeus” (AGUILAR, 2018, p. 189). Em 1554 já havia índios músicos e, em 1580, a música feita por eles teria alcançado um nível significativo de desenvolvimento (CASTAGNA, 2010). No século seguinte, fontes indicam a prática de música sacra com a participação de índios músicos bem treinados: por volta de 1600, os nheengaribas ou nheengaraíbas (“músicos da terra”), eram “índios capazes de reproduzir todas as manifestações musicais básicas do culto cristão e que normalmente viajavam de aldeia em aldeia levando seus instrumentos musicais, normalmente charamelas” (CASTAGNA, 2003, v. 3, p. 2). Os índios também participavam de encenações teatrais religiosas, os chamados autos, que foram trazidos pelos jesuítas e possuem suas raízes em dramas sacros da Era Medieval. No Brasil, os autos estão ligados à origem de festas e danças populares ainda existentes no interior do país (CASTAGNA, 2003; TINHORÃO, 2004; WISNIK, 2000). NOTA UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO 18 Ainda que fontes musicais desse cenário não tenham sobrevivido, estudos em fontes textuais a respeito dos jesuítas (AGUILAR, 2018; HOLLER, 2006a, 2006b; CASTAGNA, 2003, 2010, 2012, 2014) vêm expondo características deste universo musical: • Havia predomínio da prática de música vocal sacra, com textos em latim (língua da liturgia católica). • Os inacianos ensinavam aos nativos o cantochão e o canto de órgão (nomes da época para o canto gregoriano e a música vocal polifônica, respectivamente), que eram os principais tipos de música religiosa executados por índios nas cerimônias. • A música também era parte das festas, procissões e comemorações do calendário católico. • Os textos das orações e cantos eram traduzidos para línguas nativas como o tupi. • Eram usados instrumentos — flautas doces, charamelas, violas, rabecas, órgãos, entre outros — quase sempre construídos pelos próprios índios com materiais disponíveis na região. • Na música polifônica (canto de órgão), os cantores eram acompanhados por pequenos conjuntos instrumentais, como grupos de flautas doces; no entanto, peças polifônicas vocais também podiam ser tocadas somente com instrumentos. • Para os curumins eram ensinados flauta doce e canto. • Em menor número, o repertório abrangia canções de origem ibérica em português e espanhol, e cantos adaptados pelos jesuítas usando melodias indígenas com texto cristão (no entanto, a música indígena foi logo abandonada e proibida). O jesuíta José de Anchieta (1534-1597) é conhecido por sua obra literária e por ter compilado a gramática da língua tupi, entre outros feitos. Anchieta costumava adaptar versos religiosos à melodias de canções profanas trazidas da cultura ibérica; essa prática é conhecida como divinização (BUDASZ, 1994, 1996; TINHORÃO, 2004). Venid a sospirar com Jesu amado é uma versão de José de Anchieta para Venid a sospirar al verde prado, de um anônimo europeu do século XVI. Ouça em: <bit.ly/394QinC>. DICAS TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 19 FIGURA 6 – RETRATO DE ANCHIETA FONTE: <bit.ly/2WBAne0>. Acesso em: 22 mar. 2020. A seguir, vamos discorrer sobre a música no contexto das Américas Portuguesa e Espanhola, buscando ampliar a compreensão acerca das origens da música no Brasil e das questões indígena e jesuítica. 4.1 MÚSICA NAS AMÉRICAS PORTUGUESA E ESPANHOLA Considerando a vasta extensão territorial das Américas, as diferentes experiências de ocupação, povoamento e exploração econômica implantadas nas colônias mantidas por Portugal e Espanha pressupõem que as condições em que a música era produzida eram muito variadas. No que diz respeito à exploração das riquezas naturais e à maneira (muitas vezes violenta) como as ocupações aconteciam, a colonização espanhola guarda semelhanças com a portuguesa. No entanto, a Espanha iniciou precocemente o povoamento, adotando um modelo político que dava certa autonomia às colônias; enquanto na América Portuguesa, a ocupação foi lenta e tardia, e o poder era mais centralizado. O Brasil demorou a tornar-se português [...], em parte porque os índios o dominavam de fato — a presença lusitana restringindo-se a pequenos pontos isolados na costa — em parte porque Portugal, concentrado nos ‘fumos da Índia’, não se interessou inicialmente em explorá-la (AMADO; FIGUEIREDO, 2001, p. 43) No início do século XVI, “a exploração dos recursos naturais era um pressuposto e uma motivação de primeira ordem” para Portugal (COTTA, 2001, p. 73), e o comércio marítimo a ela associado era prioridade. A expansão territorial envolvia riscos: no exemplo do Brasil, o vasto litoral era vulnerável e passou a ser UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO 20 disputado por outros reinos, como França e Holanda. “Portugal só se decidiu pela colonização onde e quando esteve à beira de perder largas terras, caso típico do Brasil” (AMADO; FIGUEIREDO, 2001, p. 19). Assim, em termos gerais, com o comércio sendo o principal objetivo da Coroa portuguesa, parece não ter havido preocupação com o desenvolvimento cultural e civilizacional em suas colônias — ao passo que em áreas hispânicas, como México e Peru, existiam universidades já na década de 1550. Nestes lugares, desde muito cedo, existiam oficinas de impressão musical, por exemplo. No México se imprimia música em 1539; no Peru, partituras de música polifônica a quatro vozes eram impressas na década de 1630. No Brasil, a tipografia foi proibida até 1808, e a atividade de impressão musical surgiu somente na década de 1830, no Rio de Janeiro (BANEGAS, 1998; BIASON, 2008; BINDER; CASTAGNA, 1998; CASTAGNA, 2010; VEIGA, 2004). Na música jesuítica também são vistas diferenças importantes entre os dois contextos (o contexto da América Portuguesa e o contexto da América Espanhola), sobretudo quando se trata da documentação histórica conhecida na atualidade. Embora a Companhia de Jesus tivesse princípios que guiassem a sua ação enquanto ordem religiosa, sua atuação junto às populações indígenas aconteceu de forma desigual nas duas Américas (HOLLER, 2006b). Mesmo depois de alcançar algum êxito, as aldeias brasileiras eram mais efêmeras, e muitas sofreram decadência a partir do século XVII, “quando o número de índios aldeados começou a diminuir sensivelmente” (CASTAGNA, 2003, v. 3, p. 2), o que pode ter prejudicado suasatividades musicais. [Os jesuítas] tiveram que encarar duas tarefas de realização extremamente complexa: na segunda metade do século XVI e primeiras décadas do século XVII lutaram contra a resistência dos índios a esse processo, enquanto nos períodos subsequentes lutaram contra o desaparecimento dos mesmos índios, devido aos avanços da colonização. Por outro lado, os indígenas brasileiros se viram entre a deculturação promovida pelos jesuítas em nome do ideal cristão, e a submissão à colonização branca, por escravidão, morte ou, no mínimo, expulsão de seus territórios nativos (CASTAGNA, 2003, v. 3, p. 1). Os jesuítas procuravam evitar o contato dos índios convertidos com o homem branco, a violência e as doenças. Apesar disso, aldeias jesuíticas próximas à costa foram extintas pelo crescimento dos primeiros centros urbanos, ocasionando maior e mais frequente contato dos indígenas com populações brancas (CASTAGNA, 2010; HOLLER 2006a, 2006b). A crescente proximidade aumentou a perseguição e escravização. Entre 1580 e 1640, durante um período de junção dos reinos de Portugal e Espanha (União Ibérica), as fronteiras firmadas pelo antigo tratado de Tordesilhas (1494) se tornaram indistintas e confusas, o que estimulou exploradores paulistas (os bandeirantes) a adentrarem terras espanholas. No Nordeste, aumentava a demanda por mão de obra escrava nos canaviais, e os bandeirantes que supriam TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 21 mercados de escravos (como São Paulo) viam as aldeias jesuíticas mais próximas (por exemplo, no Paraná) como uma atraente fonte de lucro. “Caçados como animais nas áreas de onde eram originários ou para onde haviam se mudado desde o litoral”, os índios fugiam para regiões cada vez mais distantes (AMADO; FIGUEIREDO, 2001, p. 48) e a escravidão resultava em morte e doenças. Tudo isso afastava os índios das atividades mantidas pelos padres — e, portanto, da prática musical, “não lhes restando tempo e energia para se dedicarem às tarefas religiosas, entre elas a confecção e a execução de instrumentos, o estudo, a cópia e a composição de música” (CASTAGNA, 2010, p. 12). Além disso, mesmo que os nativos fossem protegidos pelos padres, havia “indícios de que os regulamentos não eram obedecidos” e suspeitas de exploração dos indígenas por parte dos próprios jesuítas: “notórios defensores da liberdade dos índios, eram acusados de utilizá-los para seus propósitos” (HOLLER, 2006a, p. 38). No Brasil, mesmo após esse declínio, os inacianos permaneceriam atuando e, algumas reduções se conservaram até o século XVIII. A Companhia de Jesus tinha boa situação econômica, acumulando terras, rebanhos e bens materiais (HOLLER, 2006a, 2006b; SCHWARCZ; STARLING, 2018). Contudo, o que antes servia aos interesses da Coroa passou a ser visto como uma ameaça. Após uma complexa trama de eventos e fatores políticos. Isso resultou, em 1759, na expulsão dos jesuítas do Brasil e do reino de Portugal — e, posteriormente, de outros países. Com isso, quase toda a documentação sobre a música dos ambientes jesuíticos da América Portuguesa desapareceu, ou seja, aproximadamente 200 anos de manuscritos e documentos, possivelmente contendo materiais musicais, foram destruídos ou confiscados (e parte atualmente está em arquivos na Europa). Não restaram fontes musicais. A atuação musical dos jesuítas certamente influenciou a formação da cultura brasileira ou de identidades culturais regionais; porém, é difícil determinar até que ponto isso ocorreu, devido à interrupção desse processo com a expulsão (HOLLER, 2006a, p. 2). Na América Espanhola, até o século XVIII, missões ainda se mantinham e prosperavam, mesmo após o fim de muitas das aldeias situadas no Brasil. Muitas reduções espanholas ficavam em regiões interioranas, mais afastadas da movimentação urbana e de possíveis riscos à população indígena (CASTAGNA, 2010; HOLLER, 2006a). Isso possibilitou maior autonomia às comunidades, e seus membros podiam se envolver mais nas atividades musicais —como a construção de instrumentos, até os mais sofisticados como o órgão (BANEGAS, 1998). Além da música, há exemplos notáveis de arte sacra feita nas aldeias espanholas, ainda preservados. Entre as reduções que desfrutaram de maior independência estiveram as fundadas nos territórios guaranis — atualmente, regiões da Bolívia, do Paraguai, da Argentina e partes do Sudeste e Sul do Brasil. As missões “alcançaram um estágio extraordinário de desenvolvimento, construindo seus próprios instrumentos e executando música europeia de relativa complexidade técnica” (CASTAGNA, 1994, p. 1). UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO 22 Para você se ambientar com o século XVIII e as reduções jesuíticas, assista A Missão, com Jeremy Irons e Robert De Niro nos papéis principais. Embora seja ficcional, o filme foi inspirado na história de missões no contexto das Guerras Guaraníticas e do declínio jesuítico na década de 1750. DICAS FONTE: <https://bit.ly/2xKNTRQ>. Acesso em: 24 abr. 2020. Mais tarde, cerca de oito anos depois da expulsão do reino português, os inacianos foram igualmente banidos das colônias espanholas. No entanto, a perda de documentos não foi tão drástica quanto a que ocorreu em muitos lugares no Brasil: muitas reduções espanholas, por serem afastadas, foram simplesmente abandonadas. Parte da documentação pode ter sobrevivido devido a isso. “Várias partituras passaram de mão em mão entre os índios até serem redescobertas no século XX” (HOLLER, 2006b, p. 352). Outro fato importante é que, nos territórios hispânicos, a cultura musical nascida nas missões se manteve e “várias comunidades locais continuaram a praticar, até hoje, muitas das obras utilizadas nos séculos XVII e XVIII, sendo responsáveis por sua preservação” (CASTAGNA, 2003, v. 5, p. 1). É notória a abundância de informações sobre a prática musical nas reduções jesuíticas da América Espanhola, desde a chegada dos primeiros jesuítas, em 1610, até sua expulsão em 1767 [...]. O legado desta atuação é rico, não obstante seu estado de conservação e, além de instrumentos musicais, foram descobertas partituras, muitas já publicadas e gravadas (HOLLER, 2006b, p. 344). Vários nomes de músicos que atuaram no ambiente jesuítico espanhol são conhecidos. Um deles é o compositor e organista italiano Domenico Zipoli (1688- 1726), o qual veio para a América do Sul em 1717 e se estabeleceu em Córdoba (atual região central da Argentina). Muitas de suas obras foram compostas na TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 23 América, sendo executadas e incorporadas ao repertório das reduções espanholas. A produção de Zipoli é, portanto, um indicativo do nível de desenvolvimento musical alcançado naquelas comunidades (CASTAGNA, 2012; HOLLER, 2006b; STEVENSON, 2001). Fique por dentro do assunto! Ouça Misa San Ignacio, de Domenico Zipoli, em: <youtu.be/VXUDs5FEvEo>. DICAS 5 CRONOLOGIA Dessa forma, finalizando o Tópico 1, como principais eventos ocorridos durante a primeira metade do período colonial brasileiro, podemos destacar: QUADRO 1 – SINOPSE DOS EVENTOS HISTÓRICOS DO TÓPICO 1 ANO EVENTO 1492 Viagem de Colombo. 1494 Tratado de Tordesilhas. 1500 Viagens de Pinzón e Cabral. 1500 Carta de Caminha. c.1530-40 Primeiros africanos escravizados são trazidos para o Brasil. 1532 Fundação de São Vicente. 1534 Capitanias hereditárias. 1539 América Espanhola: impressão musical no México. 1542 Viagem de Gaspar de Carvajal. 1548 Viagem de Hans Staden. 1549 Governo Geral e fundação de Salvador. 1549 Chegada dos jesuítas c.1550 América Espanhola: universidades no México e no Peru. c.1554 Prática de música sacra entre índios. 1557 Viagem de Jean de Léry. 1580-1640 União Ibérica. c.1600 Nheengaribas (índios músicos) 1610 Pyrard de Laval relata conjunto de escravos músicos na Bahia. 1630-1654 Holandeses em Pernambuco. c.1640 Música em imagens de artistascomo Albert Eckhout. 1717 América Espanhola: Domenico Zipoli. 1759 Expulsão dos jesuítas. FONTE: O autor 24 Neste tópico, você aprendeu que: • A musicologia é o campo da ciência que se dedica ao estudo sistemático da música como um fenômeno multifacetado e inserido no contexto histórico e sociocultural. • A musicologia histórica pesquisa especificamente a música de tempos anteriores, e envolve o estudo de manuscritos mantidos em acervos, a restauração de obras e a edição, gravação e publicação de repertório antigo, além da produção de textos científicos sobre história da música. • A música no Brasil se originou por meio da interação entre elementos culturais ameríndios, africanos e europeus, com processos de aculturação, assimilação e ressignificação iniciados no século XVI. • Ao longo dos mais de 500 anos, complexas fricções e hibridações deram origem a diferentes tipos de música, e cada um deles sofreu graus de mistura cultural, pois a contribuição dada por cada etnia se deu de forma desigual, em diferentes momentos da história do Brasil. • Na história da música brasileira estão presentes duas grandes tradições: a tradição de música escrita — a música erudita — e a tradição de música não escrita — a música de transmissão oral (tradicional, folclórica e popular). • No Brasil, a tradição de música escrita possui uma história peculiar, e sua trajetória não coincide com os períodos da história da música europeia. • A música da maioria dos povos ameríndios pré-cabralinos é desconhecida, apesar de sua existência ser relatada em documentos históricos da época do descobrimento e da colonização. • Apesar da grande contribuição das culturas indígenas na formação da sociedade brasileira, a influência da música indígena na música brasileira é menos percebida. • A primeira metade do período colonial brasileiro é pouco documentada e, entre os registros existentes do início do período, destacam-se os relatos de viajantes e as imagens retratando prática musical. • O mais antigo relato sobre música no Brasil é a carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500. RESUMO DO TÓPICO 1 25 • No século XVI, viajantes como Gaspar de Carvajal e Hans Staden noticiaram a presença da música e o uso de instrumentos nas culturas indígenas. • O missionário Jean de Léry deixou relatos sobre música indígena, incluindo tentativas de transcrição de cantos que ouviu dos índios tupinambás. • O aventureiro francês Pyrard de Laval registrou um grupo musical formado por escravos músicos na Bahia, em 1610. • A iconografia é o estudo de fontes visuais visando à obtenção de informações sobre a música por meio de imagens. • Em 1549, inicia-se no Brasil a cultura musical que seguia padrões europeus (tradição de música escrita), influenciada pela atuação dos padres da Companhia de Jesus. • A música sacra europeia foi utilizada pelos jesuítas como ferramenta para cristianização de povos nativos, e as missões ou reduções possuíam atividades musicais. • No século XVII, índios músicos treinados — chamados de nheengariba — eram conhecedores das práticas musicais da igreja católica. • Os índios participavam dos autos, uma espécie de peça teatral religiosa de origem medieval. Os autos jesuíticos estão ligados às origens de várias festas e danças populares do interior do Brasil. • Na música jesuítica havia um predomínio de música sacra vocal, com textos em latim, mas comumente cantos e orações eram traduzidos para línguas indígenas. • Os jesuítas ensinavam aos indígenas o canto gregoriano e a música vocal polifônica, chamados na época de cantochão e canto de órgão, respectivamente. • O repertório jesuítico também possuía canções ibéricas em português e espanhol, bem como melodias indígenas recebiam versões com texto cristão. • A prática da divinização consistia em adaptar um texto religioso à melodia de canções profanas, como fazia o jesuíta José de Anchieta. • Os instrumentos musicais usados pelos jesuítas incluíam flauta, charamela, órgão, viola, rabeca. Era comum que a música polifônica vocal fosse executada com instrumentos. • O canto e a flauta doce faziam parte do ensino de música para as crianças indígenas. 26 • Os jesuítas foram expulsos da América Portuguesa em 1759, e praticamente toda a documentação sobre a música jesuítica desapareceu. • Nas colônias hispânicas, a impressão musical fora iniciada no século XVI, e as reduções jesuíticas atingiram maior desenvolvimento da música e de atividades a ela ligadas — como a construção de instrumentos —, sendo parte significativa do repertório da época conhecido, devido às fontes musicais que sobreviveram em maior número. • O italiano Domenico Zipoli, compositor do contexto jesuítico espanhol, veio para a América do Sul em 1717, e suas obras fizeram parte do repertório musical das missões. 27 1 Analise as afirmativas a seguir sobre a música no Brasil durante a primeira metade do período colonial: I- É possível reconstruir a música tupinambá com grande precisão, devido ao alto grau de detalhamento das transcrições feitas por Jean de Léry, no século XVI. II- A vinda dos jesuítas está ligada ao início da prática musical nos moldes europeus. III- A música europeia teve rápida disseminação no Brasil, pois Portugal tinha como prioridade amplo projeto de desenvolvimento civilizatório e cultural nas colônias. IV- O uso de instrumentos musicais pelos índios aparece em fontes iconográficas. Agora, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Somente as afirmativas I, II e IV estão corretas. b) ( ) Somente as afirmativas I e III estão corretas. c) ( ) Somente as afirmativas II e IV estão corretas. d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas. 2 Sobre a música no contexto jesuítico, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) A maior parte do repertório jesuítico era formada por música vocal profana. b) ( ) Nheengaribas era o nome dado pelos índios aos padres europeus que ensinavam música. c) ( ) Muitas fontes musicais do cenário jesuítico colonial brasileiro são conhecidas atualmente. d) ( ) O ensino de música para crianças indígenas era baseado no canto e na flauta doce. 3 (FUNDAÇÃO UNIVERSA, 2015) Considerando a história da música brasileira e a catequese, prática utilizada pelos colonizadores para incutir nos indígenas a cultura, a música e a religião europeias, assinale a alternativa CORRETA: FONTE: <qconcursos.com/questoes-de-concursos/questoes/0b116923-ad>. Acesso em: 22 mar. 2020. a) ( ) Vítimas de epidemias e massacres constantes, os indígenas se afastaram dos colonizadores, passando a viver em regiões mais remotas. Por esse motivo, a contribuição indígena na formação da música brasileira é considerada pequena pelos historiadores. b) ( ) Os indígenas brasileiros contribuíram maciçamente para a música brasileira contemporânea. AUTOATIVIDADE 28 c) ( ) A catequese pautava-se pela valorização das expressões artísticas e musicais ameríndias. Nesse contexto, podem ser destacados as interpretações e os estudos de músicas indígenas feitos por padres jesuítas. d) ( ) No período colonial brasileiro, os índios, após assimilarem rapidamente a tradição musical europeia, tornaram-se peritos em compor trovas e canções de amor. 29 TÓPICO 2 — UNIDADE 1 A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX 1 INTRODUÇÃO Este tópico trata da ascensão da música de matriz europeia — a tradição escrita. Continuaremos abordando o processo de desenvolvimento desta tradição musical, a qual teve estreita relação com fatos que impactaram a história brasileira, como os ciclos do açúcar e do ouro e, mais tarde, a vinda da corte portuguesa ao Brasil e a independência. Veremos aspectos específicos da música no Brasil colonial, entre meados do século XVII o período final do século XVIII. Também vamos tratar sobre a documentação existente e as fontes musicais mais antigas do Brasil, bem como os primeiros exemplos
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