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2013 História da FilosoFia i Prof. Fernando Lopes de Aquino Copyright © UNIASSELVI 2013 Elaboração: Prof. Fernando Lopes de Aquino Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: 109 A657h Aquino, Fernando Lopes de História da filosofia I/ Fernando Lopes de Aquino. Indaial : Uniasselvi, 2013. 197 p. : il ISBN 978-85-7830- 718-9 1. Filosofia – História. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci. III apresentação Caro(a) acadêmico(a)! Iniciamos os estudos de História da Filosofia I. Composta por mais de dois mil e quinhentos anos de tradição, a filosofia é uma esfera do conhecimento humano que desperta grande fascínio, sobretudo por atravessar a história e manter-se como um dos elementos mais importantes de nossa cultura. Contudo, é por conta dessa mesma fascinação que ela é repleta de nuances, interlocutores e outros elementos que a tornam complexa. Perpassar os seus períodos históricos, principais pensadores e os elementos que a especificam é, portanto, uma tarefa árdua e exige muito esforço. Ao longo desta disciplina proporcionaremos a você um conjunto de unidades que ajudam nessa tarefa. As unidades abordarão os principais elementos históricos e conceituais da filosofia, além de referenciais que lhe permitam dar sequência a uma reflexão própria, pois, para além da recepção passiva de conteúdos, a filosofia exige envolvimento e ação. Na condição de acadêmicos(as), este deve ser o princípio norteador de nossas investigações, e é isto que estará presente ao longo desta disciplina, ou seja, a consciência da complexidade do pensamento filosófico, que exige a superação de preconceitos e a análise dos fatos com máxima dedicação. Começando por uma contextualização do mundo grego e dos elementos culturais que possibilitaram a origem da filosofia, estudaremos o seu período clássico, os seus principais problemas e os destaques conceituais desse momento. A fim de problematizarmos a especificidade filosófica, a Unidade 1 também possibilitará a você uma análise de alguns dos principais campos de investigação filosófica. A Unidade 2, dando sequência à análise histórica, possibilitará a você considerar três momentos fundamentais da reflexão filosófica, a saber: o contexto helenista, a filosofia patrística e o período medieval ou escolástico. Nesta unidade você também terá contato com a filosofia de importantes correntes de pensamento e com as ideias de filósofos de destaque na tradição, como Agostinho e Tomás de Aquino, por exemplo. Na terceira unidade, você compreenderá como a tradição foi transformada pela modernidade e como isso se desdobrou em reflexões que até hoje repercutem no campo da ciência e da política, por exemplo. Também IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA compreenderá a especificidade do contexto contemporâneo e as principais críticas estabelecidas pelos filósofos e correntes filosóficas que o compõem. Por fim, possibilitaremos a você uma análise do contexto e do modo como a filosofia foi assimilada no Brasil. Bons estudos! Prof. Fernando Lopes de Aquino V VI VII UNIDADE 1 – ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA ................................................... 1 TÓPICO 1 – A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA .................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 CONTEXTO HISTÓRICO: O “MILAGRE GREGO” .................................................................... 4 2.1 FORMAÇÃO DO POVO GREGO ................................................................................................. 5 3 A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA ........................................................................................ 7 3.1 O MITO .............................................................................................................................................. 9 4 OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS ............................................................................................... 13 4.1 O PENSAMENTO JÔNICO ............................................................................................................ 14 4.2 ANAXIMANDRO ............................................................................................................................ 15 4.3 ANAXÍMENES ................................................................................................................................. 16 4.4 HERÁCLITO DE ÉFESO ................................................................................................................. 17 4.5 PITÁGORAS DE SAMOS ............................................................................................................... 18 4.6 XENÓFANES .................................................................................................................................... 19 4.7 PARMÊNIDES .................................................................................................................................. 19 4.8 EMPÉDOCLES ................................................................................................................................. 21 4.9 OS ATOMISTAS: LEUCIPO E DEMÓCRITO .............................................................................. 22 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 23 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 24 TÓPICO 2 – A SINGULARIDADE DO SABER FILOSÓFICO ...................................................... 25 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 25 2 O QUE É A FILOSOFIA? ..................................................................................................................... 25 3 A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO CIENTÍFICO ................................................................... 29 4 A FILOSOFIA E OUTRAS FORMAS DE SABER ..........................................................................31 5 O CONHECIMENTO MÍTICO E RELIGIOSO .............................................................................. 31 6 CONHECIMENTO DO SENSO COMUM OU EMPÍRICO ......................................................... 33 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 34 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 35 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 36 TÓPICO 3 – OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA .......................... 37 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 37 2 ÉTICA, MORAL E POLÍTICA ........................................................................................................... 37 2.1 ÉTICA E MORAL ............................................................................................................................. 38 2.2 POLÍTICA ......................................................................................................................................... 40 3 ESTÉTICA .............................................................................................................................................. 41 4 EPISTEMOLOGIA ............................................................................................................................... 44 4.1 DESCARTES E O RACIONALISMO MODERNO ...................................................................... 45 4.2 HUME E O EMPIRISMO ................................................................................................................ 48 5 LÓGICA E LINGUAGEM ................................................................................................................... 51 5.1 LÓGICA E LINGUAGEM EM PLATÃO E ARISTÓTELES ....................................................... 52 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 56 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 57 sumário VIII UNIDADE 2 – DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA ................................ 59 TÓPICO 1 – O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA .................................................................. 61 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 61 2 SÓCRATES E OS SOFISTAS: UMA MUDANÇA DE PERSPECTIVA ...................................... 61 2.1 OS SOFISTAS E A SUA TÉCNICA: PANORAMA GERAL ....................................................... 65 2.2 SÓCRATES ........................................................................................................................................ 68 3 PLATÃO E A TEORIA DAS IDEIAS ................................................................................................ 74 3.1 TEORIA DAS IDEIAS...................................................................................................................... 76 4 O SISTEMA ARISTOTÉLICO ........................................................................................................... 79 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 85 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 86 TÓPICO 2 – FILOSOFIA HELENISTA ............................................................................................... 87 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 87 2 CONTEXTO HISTÓRICO E CARACTERÍSTICAS GERAIS ...................................................... 87 3 EPICURISMO ........................................................................................................................................ 90 4 ESTOICISMO ........................................................................................................................................ 92 5 CETICISMO ........................................................................................................................................... 94 6 O NEOPLATONISMO ......................................................................................................................... 96 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 99 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................100 TÓPICO 3 – FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA ...................................101 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................101 2 A FILOSOFIA PATRÍSTICA .............................................................................................................101 2.1 JUSTINO, O MÁRTIR ...................................................................................................................103 2.2 CLEMENTE DE ALEXANDRIA..................................................................................................104 2.3 ORÍGENES ......................................................................................................................................105 2.4 TERTULIANO ................................................................................................................................105 2.5 AGOSTINHO DE HIPONA .........................................................................................................107 2.6 BOÉCIO ...........................................................................................................................................109 3 O DESENVOLVIMENTO DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA ....................................................110 3.1 TOMÁS DE AQUINO ...................................................................................................................114 3.2 SABER E FÉ EM TOMÁS DE AQUINO .....................................................................................115 3.3 AS CINCO PROVAS SOBRE A EXISTÊNCIA DE DEUS EM TOMÁS DE AQUINO .........116 4 O DECLÍNIO DA ESCOLÁSTICA ..................................................................................................118 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................120 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................122 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................123 UNIDADE 3 – FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA ...............................................125 TÓPICO 1 – FILOSOFIA MODERNA ...............................................................................................127 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................127 2 CONTEXTO DE TRANSFORMAÇÕES E O FLORESCER DA “MODERNIDADE” ..........127 3 A EPISTEMOLOGIA MODERNA ..................................................................................................131 3.1 EPISTEMOLOGIA RACIONALISTA .........................................................................................1313.2 O EMPIRISMO INGLÊS...............................................................................................................134 IX 4 A MODERNIDADE E A POLÍTICA ..............................................................................................136 4.1 MAQUIAVEL .................................................................................................................................136 4.2 HOBBES E O CONTRATO SOCIAL ...........................................................................................139 4.3 ROUSSEAU E O ESTADO DE NATUREZA ..............................................................................147 5 TRADIÇÃO ILUMINISTA ...............................................................................................................149 5.1 TRADIÇÃO ILUMINISTA FRANCESA .....................................................................................150 5.2 TRADIÇÃO ILUMINISTA ALEMÃ ............................................................................................152 6 IDEALISMO ALEMÃO E A CRISE DA MODERNIDADE .......................................................154 7 MARX E O MATERIALISMO HISTÓRICO .................................................................................159 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................161 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................163 TÓPICO 2 – FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA ..............................................................................165 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................165 2 FILOSOFIA ANALÍTICA ..................................................................................................................165 3 FENOMENOLOGIA ..........................................................................................................................166 4 EXISTENCIALISMO ..........................................................................................................................169 5 A ESCOLA DE FRANKFURT ...........................................................................................................170 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................173 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................174 TÓPICO 3 – FILOSOFIA NO BRASIL ..............................................................................................175 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................175 2 FILOSOFIA NO BRASIL: HERANÇAS EUROPEIAS ................................................................175 3 FILOSOFIA LATINO-AMERICANA E A ÉTICA DA LIBERTAÇÃO .....................................178 4 FILOSOFIA, POLÍTICA E EDUCAÇÃO NO BRASIL ................................................................180 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................183 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................187 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................188 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................189 X 1 UNIDADE 1 ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • identificar os principais elementos históricos e culturais que possibilita- ram o surgimento da filosofia no contexto grego; • distinguir os temas e problemas da investigação filosófica no contexto pré- -socrático; • relacionar a filosofia com as outras formas de conhecimento e especificar as suas principais características; • analisar os principais campos de investigação filosófica. Esta unidade está dividida em três tópicos e em cada um deles você encontrará atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados. TÓPICO 1 – A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA TÓPICO 2 – A SINGULARIDADE DO SABER FILOSÓFICO TÓPICO 3 – OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA 1 INTRODUÇÃO O surgimento da filosofia define uma nova relação entre o homem e o seu meio. Há um consenso entre os historiadores de que, apesar de todos os povos tentarem compreender os mistérios da realidade através de seus mitos, somente os gregos foram capazes de passar da interpretação mítica para uma perspectiva fundamentalmente racional, originando assim a filosofia. Evidentemente, há uma série de nuances entre a passagem do mito para a filosofia, e a delimitação precisa de onde começa um ponto e termina o outro não é tão clara. Explicitar estes elementos é uma forma de romper com alguns pressupostos nem sempre legítimos academicamente, além de carregados de juízos no mínimo anacrônicos. Considerando toda esta complexidade, o objetivo deste tópico é levar você, caro(a) acadêmico(a), a trilhar o percurso histórico, político e econômico que possibilitou à Grécia criar esta forma de conhecimento, caracterizando os principais filósofos desse período e distinguindo os seus pensamentos das interpretações que os precediam. DICAS Para aprofundar os seus conhecimentos sobre o contexto de formação da Grécia e de sua cultura, leia o livro: VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: DIFEL, 2004. UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA 4 2 CONTEXTO HISTÓRICO: O “MILAGRE GREGO” No século III, um importante compilador dos ditos e fatos ligados aos filósofos gregos, Diôgenes Laêrtios, defendeu com absoluta convicção que o nascimento da filosofia havia ocorrido entre os gregos. Para ele, esta informação não continha nada de absurdo, pois, segundo a sua interpretação, “a própria raça humana” começou entre os helenos (LAÊRTIOS, 2008, p. 13). O interessante é que antes de ser tão categórico sobre este ponto, Diôgenes expõe uma série de argumentos, atribuindo aos bárbaros o registro de paternidade sobre a filosofia. Embora ele faça isso para imediatamente rechaçar essa ideia, ainda assim expõe alguns elementos que sinalizam para problemas inerentes à análise histórica, como, por exemplo, a desmedida exaltação de um único responsável pela origem da filosofia, desconsiderando o seu desenvolvimento como algo decorrente de várias interações culturais, cuja contribuição de outros povos, possivelmente, também fora essencial. Para além de leituras autorreferenciadas, em que os gregos são tomados como um gênio especial, cuja singularidade se relaciona não apenas com o nascimento da reflexão filosófica, mas também com o da própria cultura ocidental, essa descrição nos adverte sobre dificuldades que certamente estão incluídas na investigação sobre a origem da filosofia. É evidente que não podemos excluir a atribuição outorgada com pleno direito à inteligência grega pelo papel fundamental que ela desempenhou na aurora da filosofia, mas nos cabe, enquanto estudiosos, ponderar sobre os seus limites e sobre os problemas que envolvem esta questão. Supostamente, uma das alternativas mais eficazes para superarmos essa individuação cultural tem sido considerar o contexto e os acontecimentos que sublinharam a origem da filosofia. E neste sentido, há um aspecto particular que parece gerar uma conformidade de opiniões curiosas, dado que nem sempre encontramos pontos de tamanha convergência teórica entre os filósofos.Pontualmente, a segurança desse procedimento seria pressuposta através da ideia de que existiu um “rompimento” entre o pensamento mítico e o pensamento racional. Para os que adotam essa perspectiva, os gregos inauguraram uma forma de pensar que gradualmente elevou-se em relação ao saber mítico até então predominante, transformando o modo como os homens deveriam entender e interpretar os fenômenos da natureza e a sua relação com a realidade. Visto dessa maneira, esse novo período pode ser concebido como algo diametralmente distinto, permitindo-nos apontar quando e onde surgiu a filosofia. O final do século VII a.C. e início do século VI a.C. delimitariam o “quando”, sendo tomados como marco para essa transformação. Por sua vez, as colônias gregas da Ásia Menor indicariam “onde” essa nova maneira de ver o mundo começou, além de especificar um grupo de personagens e temas para as primeiras reflexões filosóficas. Antes de especificar essas reflexões, talvez seja importante contextualizar um pouco mais estes aspectos. TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA 5 DICAS Para melhor assimilação do conteúdo sobre o contexto histórico e de formação da Grécia, assista ao filme “Troia”. Sinopse: Na Grécia antiga, a paixão de um dos casais mais lendários da História, Páris, príncipe de Troia, e Helena, rainha de Esparta, desencadeia uma guerra que irá devastar uma civilização. Páris rouba Helena de seu marido, o rei Menelau, e este é um insulto que não pode ser tolerado. A honra da família determina que uma afronta a Menelau seja considerada uma afronta a seu irmão Agamenon, o poderoso rei de Micenas, que logo une todas as tribos da Grécia para trazer Helena de volta, em defesa da honra do irmão. Na verdade, a busca de Agamenon por honra é suplantada por sua ganância – ele precisa controlar Troia para garantir a supremacia de seu vasto império. A cidade cercada de muralhas, comandada pelo rei Príamo e defendida pelo poderoso príncipe Heitor, é uma fortaleza que nenhum exército jamais conseguiu invadir. A chave da derrota ou da vitória sobre Troia é um único homem: Aquiles, tido como o maior guerreiro vivo. Direção: Wolfgang Petersen País de origem: EUA Gênero: Épico Duração: 2h43min. Distribuidora: Warner Bros Ano de lançamento: 2004 FONTE: Disponível em:<http://www.cinemaemcena.com.br/plus/modulos/filme/ver.php? cdfilme=1916>. 2.1 FORMAÇÃO DO POVO GREGO Por volta de 2000 a 1900 anos a.C., uma série de povos indo-europeus fixou-se na Grécia continental e, paulatinamente, passaram a colonizar a região, até então habitada por grupos neolíticos originários ou influenciados pelo Oriente Próximo. Entre os povos indo-europeus estavam os cretenses, habitantes da Ilha de Creta, e os aqueus, um grupo que, ao conquistar as ilhas da Ásia Menor, deu origem à chamada civilização micênica, marcada, sobretudo, pelo poder de sua realeza e de seu sistema palaciano. Para Vernant (2004, p. 25), este período ainda pode ser caracterizado pelo intercâmbio de relações entre Ocidente e Oriente, em que parte da cultura grega pôde se espalhar, mas também sofrer influências orientais. Igualmente importante é o fato de ter havido, neste período, uma constituição social que nos permite compará-la com os grandes estados orientais próximos, justamente por ser: UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA 6 Centralizado em torno do palácio cujo papel é ao mesmo tempo religioso, político, militar, administrativo e econômico. Neste sistema de economia, que se denominou palaciana, o rei concentra e unifica em sua pessoa todos os elementos do poder, todos os aspectos da soberania (VERNANT, 2004, p. 24). Constituída por uma alta burocracia, centrada nos palácios e no forte poder desempenhado pelo rei, cada aspecto da vida micênica era controlado, desde as produções técnicas, passando pela vida rural e econômica. Tudo era devidamente registrado pelas classes sacerdotais e pelos funcionários da corte. Essa organização social se destitui apenas no século XII a.C., pelo ímpeto das tribos dóricas, que mediante suas armas de ferro marcharam em direção ao sul da Península Balcânica e arrasaram as colônias micênicas, já bastante desenvolvidas. Ao se estabelecerem no Peloponeso, os dórios causaram um forte terror na região e uma dispersão dos povos que ali estavam, marcando assim o fim de uma era e o início da civilização helênica. UNI A civilização micênica já conhecia a escrita, possuía armas e instrumentos de bronze e era bastante desenvolvida na agricultura, no artesanato e no comércio. De certa forma, todo conjunto estrutural da sociedade se desfez após essas invasões, e é a derrocada desse sistema que causará uma “reconsideração” fundamental do universo espiritual grego, gerando uma nova estrutura social, política e econômica. O rei e sua classe de administradores e servos, que até então exerciam um controle rigoroso sobre uma ampla dimensão da vida, ao entrarem em declínio, concederam margens para que novas formas sociais viessem à tona. O período que sucede essas invasões dóricas (1100 a.C. – 800 a.C.) é bastante obscuro, mas o certo é que as colônias reconsideraram estes fatos e iniciaram algo que transformou radicalmente a região. Até então centrada em uma condição histórica que se baseava fundamentalmente na economia agrária, na centralidade do palácio e nas relações ainda tribais, os gregos viram surgir uma nova organização, menos hierárquica e instituída por uma forma particular de razão. Aos poucos, a região voltou a se desenvolver economicamente, tornando as colônias mais prósperas. Consequentemente, o desmantelamento da sociedade agrária foi sentido com mais intensidade e a aristocracia acabou perdendo o seu espaço para uma nova classe de comerciantes e artesãos, o que fez com que aos poucos a estrutura urbana fosse se tornando o centro das relações. TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA 7 Rotas comerciais começaram a ser criadas e a navegação e o comércio, nesse momento, transformaram-se em uma forma bastante profícua de restabelecer os laços com o Oriente. Todavia, para além dos contratos econômicos com estes povos, culturalmente os gregos vislumbram um pouco de seu próprio passado e a distância em que agora se encontrava. Em plena renovação orientalizante, o Helenismo afirma-se como tal em face da Ásia, como se, pelo contato reatado com o Oriente, tomasse melhor consciência de si próprio. A Grécia se reconhece numa certa forma de vida social, num tipo de reflexão que definem aos seus próprios olhos sua originalidade, sua superioridade sobre o mundo bárbaro: no lugar do rei cuja onipotência se exerce sem controle, sem limite, no recesso de seu palácio, a vida política grega pretende ser o objeto de um debate público, em plena luz do sol na Ágora, da parte de cidadãos definidos como iguais e de quem o Estado é a questão comum (VERNANT, 2004, p. 6). As novas expressões que acabaram surgindo como resultado dessas interações também desencadearam uma verdadeira transformação cultural. Com a falta de prestígio hereditário, os comerciantes, que também buscavam legitimar a sua ascensão, começaram a financiar a vida intelectual na região, patrocinando as artes e construindo uma série de monumentos. No caso da religião e da política, um contínuo processo de laicização se desenvolveu. As formulações míticas perderam a sua força e, consequentemente, já não eram tão essenciais para determinar a vida pública. O discurso (logos) racional passou a ser preponderante na organização do Estado, que também requisitou uma reflexão moral e política. Tudo isto acabou contribuindo para o nascimento da razão filosófica. 3 A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA Concebemos as reflexões de Tales, Anaxímenes ou Heráclito como algo particularmente característico de uma nova forma de pensar, não apenas distinta, mas dotada de uma racionalidade superior aos poemas de Homero, às teogonias de Hesíodo ou, ainda, às concepções de sábios do Oriente. Estaleitura da história, na verdade bastante corrente, tende a compreender o nascimento da filosofia como uma forte ruptura com a tradição religiosa e mítica ou, ainda, como uma espécie de “resposta” à incapacidade dessas expressões de continuar sustentando certas explicações sobre a realidade. “O problema, porém, já assinalado por alguns historiadores é que não é tão fácil delimitar a fronteira temporal do momento em que surge o pensamento racional e termina a interpretação mítica” (JAEGER, 2003, p. 191). Por isso, este que parece ser um ponto não tão polêmico assim, na realidade ainda requer certos esclarecimentos. UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA 8 O pensamento grego no período clássico experimentou uma série de inter- relações envolvendo a vida política, econômica e religiosa, cujos personagens exerceram e sofreram influências mútuas. O nascimento da filosofia, gerado neste contexto, é fruto de uma dinâmica muito mais complexa, e se o pensamento jônico é visto como algo “novo”, não é porque antes dele a realidade não havia sido interrogada ou que o espanto (thambos) e a admiração diante do espetáculo do cosmos não constavam no discurso religioso, mas, sim, porque a própria dinâmica e transformação da sociedade requisitou uma nova perspectiva. Um dos primeiros a consolidar uma leitura contraposta à ênfase dada à ruptura entre o pensamento mítico e a filosofia foi o historiador Werner Jaeger. Para ele, ao contrário de vermos a racionalidade como um elemento marcando as distinções entre estes dois campos, devemos perceber que é justamente isto que fornece um elo entre eles, mesmo que no interior da epopeia homérica e dos poemas de Hesíodo seja “tão estreita a interpenetração do elemento racional e do ‘pensamento mítico’ que mal se pode separá-los” (JAEGER, 2003, p. 191). Sob essa ótica, a filosofia não seria propriamente a origem do pensamento racional, na medida em que este já podia ser observado nas concepções míticas, mas a progressão dessa racionalidade. NOTA Paideia é o termo usado para caracterizar a educação grega, no sentido de uma formação integral do homem, regulada por um ideal de excelência, que em grego denomina-se areté. Para Jaeger, (2003, p. 192) a paideia grega era constituída por uma arquitetura unitária entre mito e filosofia, por isso podemos ver estes elementos se interpenetrarem no período clássico: Não é fácil definir se a ideia dos poemas homéricos, segundo a qual o Oceano é a origem de todas as coisas, difere da concepção de Tales, que considera a água o princípio original do mundo; seja como for, é evidente que a representação do mar inesgotável colaborou para a sua expressão. Em todas as partes da Teogonia de Hesíodo reina a vontade expressa de uma compreensão construtiva e uma perfeita coerência na ordem racional e na formulação dos problemas. Esta é uma perspectiva bastante importante para reconsiderarmos a história da filosofia, e certamente nos fornece uma chave de leitura contraposta à acentuação de rupturas mais marcantes. Contudo, ainda permanece imposta a necessidade de precisarmos melhor o que caracteriza e distingue a filosofia do TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA 9 mito. Em outros termos, superados os possíveis preconceitos que nos levam, do ponto de vista de uma racionalidade, a ver no mito algo de inferior, o fundamental seria tentar apreender o que há de inovador na reflexão filosófica. DICAS Para melhor assimilação do conteúdo sobre o contexto histórico da Grécia e de seus elementos culturais e míticos, assista ao filme “A Odisseia”. Sinopse: A epopeia de Ulisses/Odisseu, que deixa sua terra, Ática, para ir lutar na Guerra de Troia. Mas, por desafiar os deuses, passa anos vagando por estranhos lugares, enquanto a esposa Penélope tenta lhe esperar fielmente. Direção: Andrey Konchalovsky País de origem: EUA Gênero: Épico Duração:176min. Distribuidora: Warner Bros Ano de lançamento: 1997 FONTE: Disponível em: <www.filmesraros.com.br/Detalhes.asp?CodProd=6341>. 3.1 O MITO De modo geral, é uma característica do mito narrar o princípio das coisas, como elas se originaram e receberam a sua ordem (cosmos). Preponderantemente, as narrativas míticas nos mostram que tudo teria ocorrido por meio da ação de alguma divindade ou, no caso do panteão olímpico, de várias divindades. Na Teogonia de Hesíodo, por exemplo, lemos a seguinte gênesis do cosmos: Sim, bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre Deuses imortais, solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente vontade. Do Caos Érebos e Noite negra nasceram. Da noite, aliás, Éter e Dia nasceram, gerou-os fecundada unida a Érebos em amor. Terra primeiro pariu igual a si mesma Céu constelado, para cercá-la toda ao redor e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre. Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas ninfas que moram nas montanhas frondosas. E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu do coito com Céu: UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA 10 Oceano de fundos remoinhos e Coios e Crios e Hipérion e Jápeto e Teia e Reia e Têmis e Memória e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa (HESÍODO, 1995, p. 121). Em Hesíodo, a explicação para a origem e funcionamento da realidade ocorre através daquilo que os gregos chamaram de cosmogonia ou teogonia, isto é, uma genealogia de deuses que personificavam elementos como a água e a terra, por exemplo. Dessas mitologias, os gregos tentavam extrair explicações para uma série de questões, e muitas respostas também advinham das relações sexuais entre os deuses, ou ainda, por meio de suas guerras ou alianças, como no caso da guerra de Troia. NOTA Segundo Homero, em A Ilíada, a guerra teria começado com uma disputa entre as deusas Afrodite, Hera e Atena para saber quem entre elas era a mais bela. Como juiz, as divindades estabeleceram o príncipe troiano Páris, filho do rei Príamo. Afrodite conseguiu convencê-lo a julgar a favor dela, prometendo a ele a mulher mais bela entre os homens, a rainha de Esparta, Helena. Depois de vencer a disputa entre as deusas, Afrodite ajudou Páris a raptar Helena, fato que enfureceu o seu marido, o rei Menelau, que organizou um poderoso exército para lutar contra troianos e resgatar Helena. De modo geral, as divindades eram vistas como muito próximas da vida cotidiana, presentes na chuva, na colheita, nos negócios, na guerra, na viagem, no mar etc. Por esta razão, o povo acreditava que os deuses poderiam conceder favores, retribuir os cultos a eles devotados ou se enfurecer caso alguma ordem fosse contrariada, manifestando, assim, ira, poder e autoridade (como no caso dos raios e trovões, materializando a fúria de Zeus). Num contexto em que as cidades possuíam costumes tão diversos entre si, o mito acabava consolidando-se como um fator de unidade cultural, formando a visão de mundo do povo e explicitando o modo como se relacionavam com a natureza, como concebiam as suas ocupações, quais os seus costumes, valores, sentimentos e assim por diante. Parte significativa do desenvolvimento intelectual grego foi consolidada primordialmente por poetas que contavam esses mitos, e mesmo depois do surgimento da filosofia, estes poemas continuaram a ser reverenciados como parte fundamental da cultura grega. TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA 11 UNI Além desse aspecto, a religião também desempenhava um papel de unificação cultural através das Olimpíadas, celebradas em honra a Zeus a cada quatro anos, na cidade de Olímpia. Apesar de narrativas fantásticas, com apelo ao misterioso e ao mágico, os gregos depositavam plenamente a sua fé nessas histórias e as viam como confiáveis, seja porque elas eram efetuadas por poetas quediziam ter recebido autoridade direta de alguma divindade, especialmente as deusas ligadas à memória, ou porque se tratavam de histórias que remontavam os seus antepassados e o que eles vivenciaram. De todo modo, isto ajudava a legitimar os mitos e os tornavam sagrados e inquestionáveis, orientando as ações humanas, segundo os preceitos revelados pelos deuses. UNI Neste caso, a oralidade desempenhava um papel fundamental, sendo responsável por transmitir de geração a geração as narrativas. A força que caracterizava a aceitação do mito persistiu por séculos, mas, devido a uma série de transformações políticas e comerciais, o seu papel foi paulatinamente se reduzindo. Sua voz deixou de ser preponderante na explicação e organização do mundo. E aquilo que poderia ser considerado um aspecto especulativo e racional no próprio mito já não era mais suficiente para responder às novas demandas que os gregos viram surgir após as migrações das tribos dóricas. A estrutura palaciana, por exemplo, que acabou ruindo, fez com que, junto com ela, a classe sacerdotal fosse enfraquecida. A aristocracia perdeu espaço e grupos de comerciantes e artesãos floresceram, fortalecendo a economia a partir de relações estabelecidas com países bastante avançados em termos de conhecimentos (especialmente com relação à geometria, à astronomia e à escrita). UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA 12 O grande número de transações econômicas por volta dos séculos VII e VI a.C. levou as cidades a instituir algumas rotas comerciais, o que inicialmente ocorreu com as colônias jônicas, especialmente Mileto. Assim, estas cidades se consolidaram economicamente, e isto possibilitou à população gozar de certa prosperidade e tempo ocioso para refletir sobre os diversos conhecimentos que estavam adquirindo do contato com os povos de grande erudição, como os egípcios e sua matemática, por exemplo. Entretanto, é principalmente com o surgimento e organização das chamadas Cidades-Estados, e com elas uma maior participação política dos cidadãos, que a religião terá o seu papel drasticamente reduzido e o discurso filosófico exaltado. Neste contexto, a política acaba se efetivando a partir do direito dos cidadãos e não da determinação divina revelada pelo mito. Com isso, a expressão pública das opiniões, sua discussão e ajuizamento, ganharam a forma de deliberação sobre os assuntos comuns, calcada em uma estrutura lógica e não na autoridade. A partir das especulações de milesianos, como Tales, Anaximandro e Anaxímenes, o século VI a.C. marca então um novo estilo de pensamento, favorecido por essas condições históricas e pela convicção de que o próprio homem poderia compreender e explicar a ordem e funcionamento do mundo. Estes pensadores seguiram o mesmo mote das cosmogonias, considerando a origem da realidade como um problema fundamental, mas tentaram fornecer explicações sem se remeter ao mito, buscando as causas para a realidade nos objetos e substâncias naturais que a compunham, por isso esses filósofos também foram considerados physiólogos, isto é, teóricos da natureza (physis). Essas explicações seguiram princípios nem sempre presentes no mito, como, por exemplo, a formulação de um discurso lógico e coerente, regido por um rigor conceitual bastante distinto. As formulações apresentadas não eram revestidas de dogmatismo e nem pretendiam ser absolutas. Ao contrário, assim como ocorria no contexto político da polis, estavam sujeitas aos debates e propostas alternativas. Tudo isso acabou transformando a cosmogonia em cosmologia, descaracterizando a realidade de sua forma divina e tratando-a como forças naturais ordenadas por um princípio racional. Compreender este princípio e como ele era capaz de se transformar e ordenar o mundo foi o que levou os primeiros filósofos a formular algumas hipóteses, seguindo não mais a autoridade e a tradição mitológica, mas exclusivamente a razão (logos). E porque eles compreendiam que tanto o mundo quanto o homem compartilhavam deste mesmo logos, postularam que a realidade poderia ser apreendida pelo pensamento e transmitida pelo discurso. Nesse sentido, conforme assinala Chauí (2002, p. 40), a capacidade de generalização e abstração do pensamento também se tornou um elemento preponderante para TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA 13 a filosofia nascente, isto é, ajudou a fornecer “explicações de alcance geral (e mesmo universal), percebendo, sob a variação e multiplicidade das coisas e fatos singulares, normas e regras ou leis gerais da realidade (logos)”. Esta dinâmica estava atrelada a dois dos principais termos da filosofia nascente, a physis (o mundo natural, do qual deriva o nosso conceito de natureza) e a arché (considerado o elemento primordial de todas as coisas). A physis seria aquilo que abarca toda a realidade, sendo a sua manifestação, e por isso pode ser percebida por nós pelos órgãos dos sentidos. Por sua vez, a arché representaria o princípio capaz de fornecer unidade e ordem (cosmos) a esta natureza tão vasta, e, por ser oculta aos nossos sentidos, seria apreendida apenas pelo pensamento. 4 OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS DICAS Para conhecer os textos dos filósofos pré-socráticos, recomendamos a leitura fundamental da obra de G. Bornheim. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 2003. A designação do termo “pré-socrático” é bastante artificial e reflete apenas a distinção entre os temas abordados por estes pensadores e os temas refletidos por Sócrates (470-399 a.C.). Como veremos adiante, Sócrates é considerado um marco na história da filosofia clássica por introduzir novos problemas, não mais centrados na physis, mas no próprio homem (anthropos). A primeira grande dificuldade envolvendo a leitura dos pensadores pré- socráticos está no fato de que suas obras estão quase todas perdidas. O que restou de seus pensamentos são fragmentos ou doxografias compiladas por filósofos que viveram em períodos posteriores a eles, como Aristóteles (IV a.C.) ou Simplício (século VI d.C.), por exemplo. O problema tende a ser ainda maior, na medida em que estes compiladores nem sempre descreviam literalmente o texto original, mas os interpretavam ou os parafraseavam intencionalmente. As doxografias, na verdade, são uma síntese com alguns comentários, algo que jamais poderia substituir as obras destes filósofos. Por se tratar de um resumo em época e contexto distantes, muitas vezes estes textos tendem a expressar os interesses de quem os resumiu, ou então, serem interpretados segundo categorias de pensamento já bastante distintas do autor original. UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA 14 [Aristóteles] Era um filósofo interessado no valor filosófico de certa tese e completamente indiferente a preocupações com a precisão e o cuidado historiográficos. Até os fragmentos, que deveriam devolver os ipsissima verba do autor citado, devem ser considerados com extrema prudência, porque as supostas citações são extrapoladas de um contexto para serem inseridas noutro, muitas vezes diferente em medida considerável. Deste modo, eles correm o risco de perder o seu significado originário e de assumir um significado novo (DONINI; FERRARI, 2012, p. 14). De modo geral, a recolha e a difusão de todo o material relativo aos escritos dos pré-socráticos se devem a este filósofo e à sua escola, especialmente ao seu discípulo Teofrasto, o que situa a compilação doxográfica em um período bastante posterior ao momento de sua composição original e com todos os problemas já assinalados. Apesar disso, este é o único material que nos permite reconstruir o pensamento pré-socrático. Portanto, o ponto fundamental é estarmos conscientes de todos os problemas que isso implica e da importância desse trabalho. 4.1 O PENSAMENTO JÔNICO Tales é reconhecido pela tradição como o mais antigo dos filósofos. Sua origem parece ser fenícia, mas viveu na cidade de Mileto, na Jônia (Ásia Menor), no século VI a.C.Há muitos mitos e anedotas relacionados à figura de Tales, que, conforme Diôgenes Laêrtios, foi o primeiro dos Sete Sábios da Grécia arcaica. Apesar de ter recebido a fama de teórico absoluto em seus pensamentos, Tales também realizou coisas muito práticas, como prever o tempo e fazer fortuna com olivas, dividir um rio e, principalmente, atuar como político, tentando unificar as cidades da Jônia. Quanto ao seu pensamento filosófico, a ele se credita a hipótese de que foi o primeiro a afirmar que tudo havia se originado de um único princípio, a arché, embora o termo não seja efetivamente de Tales. Foi Aristóteles, em sua exposição sobre o pensamento de Tales, que cunhou e interpretou esse termo de maneira tão técnica: A maior parte dos primeiros filósofos considerava que os princípios de todas as coisas reduziam-se aos princípios materiais. A partir destes, todas as coisas foram constituídas, o termo primeiro de sua geração e o termo final de sua corrupção – enquanto a substância permanece, apenas seus estados mudam – é isso que eles têm para o elemento e o princípio das coisas: também consideram que nada se cria e que nada se destrói, pois essa natureza é sempre conservada [...]. Para Tales, fundador dessa concepção filosófica, este princípio é a água (ARISTÓTELES, 2002, p. 165). TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA 15 O que fica sublinhado na consideração aristotélica é que originalmente a filosofia está interessada em indagar a origem de todas as coisas, o princípio a partir do qual todas as coisas se originaram. Tales teria sido o primeiro a explicitar essa concepção, identificando este princípio com a água. Há, certamente, na concepção de Tales, uma alusão ao mito homérico, que sustentava que Oceano e Tétis eram, respectivamente, o pai e a mãe de todas as coisas. Todavia, há também muita distinção, pois a hipótese de Tales é sustentada pelo raciocínio (logos) e não pela imaginação mítica, como já expomos anteriormente. Nas palavras de Vernant (2004, p. 76), “o filósofo não se contenta em repetir em termos de physis o que o teólogo tinha expressado em termos de poder divino”. Há uma mudança profunda de vocabulário, agora “profano”, que corresponde a uma nova atitude de espírito, um clima intelectual totalmente diferente. 4.2 ANAXIMANDRO Assim como Tales, Anaximandro também viveu em Mileto no século VI a.C. Foi discípulo de Tales, mas, graças à liberdade e ao caráter antidogmático da filosofia nascente, ele pôde contestar as ideias de seu mestre. Para a tradição, Anaximandro foi o primeiro a escrever um livro de filosofia, um tratado Sobre a Natureza, que se perdeu completamente, restando apenas alguns fragmentos e doxografias feitas por outros filósofos. Segundo as informações doxográficas, Anaximandro também foi o primeiro a usar o termo arché (princípio), afirmando que este era o apeíron (o ilimitado ou indeterminado). A privação de limites externos e internos – quantitativa e qualitativamente – seria aquilo que torna o apeíron o princípio de todas as coisas (limitadas quantitativa e qualitativamente), pois pode circundar e sustentar a tudo. Nas palavras de Laêrtios (2008, p. 47), Anaximandro “afirmou que o princípio e o elemento eram o infinito, sem defini-lo como ar, ou água, ou qualquer outra coisa”. Para Simplício (apud BORNHEIM, 2003, p. 25), “é evidente que Anaximandro, ao observar a transformação recíproca dos quatro elementos, não quis tomar um destes como substrato, mas um outro diferente”. Isto demonstra a grande novidade do pensamento de Anaximandro, identificando a arché como algo que não se confunde com nenhum elemento da natureza e que só pode ser alcançado pela abstração do pensamento. De fato, as ideias propostas por Anaximandro impressionam por sua lógica, conforme exemplifica a doxografia a seguir: UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA 16 Diz ainda que, no princípio, o homem nasceu de animais de outra espécie, porque, enquanto os outros animais logo aprendem a nutrir- se por si mesmos, o homem necessita de um longo período de lactação; por esta razão, não teria podido sobreviver em sua origem, tivesse sido assim como é agora. (BORNHEIM, 2003, p. 27). Embora se contraponha às doutrinas de seu predecessor, Anaximandro ainda concede grande valor à água, chegando mesmo a afirmar que ela cobria toda a terra no início e que todos os seres vivos surgiram do mar, algo bastante avançado em termos de uma teoria evolucionista das espécies. 4.3 ANAXÍMENES Também em Mileto, no século VI a.C., nasceu Anaxímenes. Segundo a tradição, “ele foi discípulo de Anaximandro, atuando na segunda metade do século VI a.C. Como seu mestre, escreveu um livro em prosa também intitulado Sobre a Natureza, do qual conhecemos apenas um fragmento” (BORNHEIM, 2003, p. 28). Para Simplício (apud BORNHEIM, 2003, p. 29), sua concepção sobre a physis difere de Anaximandro nos seguintes termos: ele afirma “uma única matéria ilimitada como substrato; não indeterminada, mas determinada, chamando-a de ar (pneuma): diferencia-se pela rarefação ou pela condensação, segundo a substância”. Anaxímenes segue o mesmo mote de seu mestre, pensando a arché como infinita e ilimitada, mas, como bem notou Marilena Chauí (2002, p. 63), ele considerava o “apeíron de Anaximandro ainda muito próximo do caos descrito pelo mito”. Com isso, Anaxímenes compreendeu que, apesar de ilimitada, incorruptível e imortal, a physis deveria ser concebida a partir de um princípio melhor qualificado, no sentido de que “o pensamento só pode pensar o que possui determinações”. Anaxímenes (apud BORNHEIM, 2003, p. 28) concebeu o ar como origem de todas as coisas, fazendo a seguinte analogia, descrita no único fragmento associado a ele: “Como a nossa alma, que é ar, nos governa e sustém, assim também o sopro e o ar abraçam todo o cosmos”. Além disso, sua doxografia o mostra apreendendo a grande capacidade de variação do ar, mais do que qualquer outro elemento, e, por isso, prestando-se a fazer nascerem as demais coisas. Segundo Anaxímenes, o processo pelo qual as coisas se transformam ocorre pela condensação e rarefação do ar: “Quando o ar se rarefaz, torna-se fogo; e quando se condensa, vento; com maior condensação, nuvem; se for mais forte, água; se mais forte ainda, terra; e com sua extrema condensação, transforma-se o ar em pedra”. (ANAXÍMENES apud BORNHEIM, 2003, p. 29). Assim, é a tensão da realidade originária que permitiria a variação de todas as coisas, e é esse processo dinâmico dos elementos físicos que fará do pensamento de Anaxímenes um paradigma para as gerações posteriores. TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA 17 4.4 HERÁCLITO DE ÉFESO Também na Jônia, mas não mais em Mileto, viveu Heráclito. Sua cidade de origem era Éfeso, e sua atuação ocorreu entre os séculos VI e V a.C. Sobre o seu pensamento, dispomos de mais de cem fragmentos, máximas com um tom oracular e difíceis de serem interpretadas (na realidade, desde a antiguidade, Heráclito leva o título de “O obscuro”). No entanto, nem por isso estes textos deixaram de ser bastante comentados, tanto na antiguidade quanto na modernidade. Um dos aspectos mais valorizados por Heráclito no pensamento de seus antecessores foi a dinâmica pela qual as coisas se transformam. A mudança de perspectiva de Heráclito (mas também de Parmênides, como veremos) envolve, portanto, a ideia de “movimento” (kinesis). Nas palavras de Chauí (2002, p. 48), esta questão ganha a seguinte dimensão: “Partindo do uno (a physis), pergunta-se como o múltiplo é possível; ou partindo do múltiplo (o cosmos), pergunta-se como o uno é possível”. Enquanto Tales, Anaximandro e Anaxímenes buscavam desvelar o princípio das coisas, Heráclito refletirá sobre a dinâmica do devir e sobre o lugar do homem no interior desse processo. É o início de uma característica que paulatinamente irá se impor nos vários ramos da vida humana (como a ética, a política, a linguagem, a estética e assimpor diante). A preocupação com o devir ou vir a ser levará, pouco a pouco, os filósofos a distinguir entre a aparência do mundo (os seres percebidos diretamente por nossos sentidos na experiência sensorial) e a verdade ou essência do mundo (o ser, alcançado exclusivamente pelo pensamento e, portanto, invisível como o antigo invisível dos poetas e adivinhos, mas um invisível racional e lógico) (CHAUÍ, 2002, p. 49). Em um de seus fragmentos, “Heráclito diz que é sábio escutá-lo não porque ele fala por si, mas porque o logos o dirige” (BORNHEIM, 1971, p. 39), isto é, a presença da razão no cosmos e em nós transmitiria alguns sinais da verdade, sendo estes apreendidos pelo pensamento e pelo discurso. A principal característica do pensamento de Heráclito será, portanto, tomar a ideia de princípio (arché) como movimento (kinesis). Para Heráclito, tudo se move, nada permanece fixo. É o que prescreve o seu mais famoso fragmento: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa- se e reúne-se; avança e se retira” (BORNHEIM, 2003, p. 41). Há uma mudança contínua de todas as coisas (do rio, de nós mesmos, de tudo), e compreender que o mundo é esse movimento perpétuo é apreender a verdade da realidade. Desse princípio se desdobra outra tese fundamental, de que no devir tudo está destinado a uma passagem de um contrário ao outro: “Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia” (BORNHEIM, 2003, p. 36). O que é úmido e seco, as coisas frias esquentam, o que é jovem envelhece e o que é vivo morre. UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA 18 Há uma guerra perpétua entre os contrários, mas é precisamente isto que produz a harmonia, “a harmonia invisível, mais forte que a visível” (BORNHEIM, 2003, p. 39). A verdade consistiria em captar, para além dessa contradição aparente e que notamos através de nossos sentidos, a razão (logos) que tudo governa. 4.5 PITÁGORAS DE SAMOS Pitágoras é uma das figuras mais populares do pensamento antigo. Viveu no fim do séc. VI a.C. e morreu no início do século V a.C. Nascido na Jônia (em Samos), foi obrigado a emigrar para o sul da Itália, em Crotona, depois que as tropas persas ocuparam a sua ilha. Pitágoras não deixou nada escrito e sua vida foi desde cedo envolta em uma série de mitos, como, por exemplo, que era filho de Apolo e que recebeu por revelação divina a sua filosofia. Na cidade de Crotona, Pitágoras fundou uma comunidade cercada por mistérios. Além de compartilhar uma perspectiva filosófica, seus membros também adotavam as mesmas convicções religiosas. Da reunião deste grupo surgiu o pitagorismo, conhecido por seu misticismo e por sua concepção filosófica proeminentemente matemática. Os escritos que assinalam este fato são tardios, e apenas nos fornecem algumas orientações sobre aquilo que Pitágoras realmente pensou. Para Pitágoras, a physis também foi um problema fundamental, cuja resposta foi dada afirmando que todas as coisas seriam números. Tradicionalmente, essa afirmação remete aos exercícios espirituais da comunidade, que eram realizados ao som da lira órfica. Pitágoras teria observado que a diferença entre o tom de duas notas numa escala harmônica obedecia a princípios e regras que podiam ser expressos de forma numérica. Observando também as relações e leis dos números com as harmonias musicais, parece-lhes, por outro lado, que toda a natureza modelada, segundo os números, sendo estes os princípios da natureza, supôs que os elementos dos números são os elementos de todas as coisas e que todo o universo é harmonia e número (ARISTÓTELES apud BORNHEIM, 2003, p. 50). Com esse argumento foi possível a Pitágoras estabelecer uma analogia entre o som, na verdade número, e toda a realidade, vista da mesma forma como um sistema ordenado de proporções, portanto uma realidade que também seria numérica. TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA 19 4.6 XENÓFANES Xenófanes nasceu na Jônia no século VI a.C., mas se dirigiu para a Magna Grécia, no sul da Itália, e por isso é considerado o precursor do pensamento dos eleatas. Sua contribuição também está em ter introduzido uma concepção do “Ser”, bastante atrelada a uma certa visão teológica e que será retomada por Parmênides sob uma perspectiva ontológica. Não sabemos quase nada sobre a sua vida, a não ser que atacou duramente a visão religiosa de seu tempo e a concepção antropomórfica dos deuses. Enfatizou que os deuses são sempre caracterizados pelos homens a partir da imagem que eles possuem de si mesmos. Em duas sátiras atribuídas a ele, lemos que: Os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz e forma semelhantes a eles. Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem, com elas, pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, cada (espécie animal) reproduzindo a sua própria forma (BORNHEIM, 2003, p. 32). Embora tenha aceitado as ideias naturalistas dos primeiros filósofos, Xenófanes não se preocupou em buscar respostas para o que seria essa substância primordial que adquire tantas formas, mas, sim, o que a faz mudar. Além disso, diante da multiplicidade do universo, concebia a unidade como um deus (divindade única, não gerada, que a tudo governa mediante o puro pensamento). 4.7 PARMÊNIDES Parmênides de Eleia nasceu no fim do século VI a.C. e morreu em meados do século V a.C. Possivelmente influenciado por Xenófanes, aceitou a tese de uma natureza absoluta da realidade, mas transformou o seu postulado religioso em algo estritamente filosófico ou ontológico. Parmênides foi um grande contraste em relação a Heráclito, expondo sua principal tese a partir de dois postulados, expressos em seu mais célebre fragmento: Vou dizer-te dos únicos caminhos de investigação concebíveis. O primeiro (diz) que (o ser) é e que o não ser não é; este é o caminho da convicção, pois conduz à verdade. O segundo, que não é, e que o não ser é necessário; esta via, digo-te, é imperscrutável, pois não podes conhecer aquilo que não é – isto é impossível –, nem expressá-lo em palavra (BORNHEIM, 2003, p. 55). Esta é uma clara estratégia para refutar as teses heraclitianas, cuja concepção propunha que a existência de algo implica necessariamente a existência de seu contrário. Por sua vez, para Parmênides, se algo existe, ele não pode ser outra coisa, sobretudo o seu contrário. UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA 20 Portanto, o Não Ser não é, simplesmente não pode existir e, consequentemente, não pode ser pensado ou conhecido. Conforme Chauí (2002, p. 91), “pela primeira vez é afirmada a identidade entre ser, pensar e dizer, ou entre mundo, pensamento e linguagem”. Estas considerações colocam outro problema, também relacionado com o que propunha Heráclito, a saber, tentar responder ao que seriam as constantes variações e mudanças no mundo. Para Parmênides, tratam-se de ilusões, próprias de opiniões geradas a partir dos sentidos e não da razão (logos). Não podemos confiar nelas porque são instáveis e não fornecem um conhecimento verdadeiro do Ser, que é, que não muda. Se os sentidos nos enganam, se são condicionados e limitados, então, dirá Parmênides, devemos nos afastar da aparência sensorial para apreender o que há de essencial por detrás deles. Por conseguinte, o conhecimento da verdade se dará apenas mediante o uso de nossa razão, que, ao contrário, é capaz de produzir por meios lógicos e dedutivos um conhecimento verdadeiro das coisas. Estas teses serão levadas ao extremo pelo discípulo de Parmênides, Zenão, também de Eleia. Nota-se que, ao afastar o pensamento puro da realidade sensorial, Parmênides obtém premissas que contrariam a própria realidade observável. Por exemplo, apesar de vermos a mudança no mundo: sementes se transformando em árvores, crianças crescendo, seres vivos morrendo etc., Parmênides dirá que pela razão podemos saber que o ser éna verdade imutável. Questões como essas foram problematizadas ainda mais por Zenão, em seus famosos paradoxos. Para Zenão, se aceitamos que só há um ser, único e imóvel, o movimento é uma mera ilusão. Pensemos no movimento de uma flecha, diz Zenão: para que ela alcance um alvo, precisaria ocupar a cada movimento um espaço igual a si mesma, estando, consequentemente, sempre parada. A ideia de movimento, portanto, submetida à lógica do pensamento seria um absurdo. Temos então que, após essas reflexões, a filosofia terá que lidar com o impasse de conciliar a ideia de um Ser, único e imóvel, com aquilo que nossos sentidos nos fornecem. Se é verdade que os pitagóricos foram em busca da estrutura invisível das coisas e que Heráclito contrapôs o pensamento e a experiência sensorial, também é verdade que somente com os eleatas a filosofia chega à compreensão de que o pensamento não só difere da experiência sensorial, mas possui leis próprias de operação e tem o poder para refutar o testemunho dos sentidos (CHAUÍ, 2002, p. 101). TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA 21 4.8 EMPÉDOCLES Os argumentos colocados por Heráclito, Parmênides e Zenão impuseram à filosofia ter que pensar a physis a partir de uma perspectiva metodologicamente diferente daquela usada pelos primeiros naturalistas. Nas palavras de Donini e Ferrari (2012, p. 39), era necessária: Uma mudança que fosse capaz de defender a pesquisa naturalista dos erros lógicos evidenciados pelos eleatas, garantindo ao mesmo tempo direito de cidadania às duas características constitutivas da natureza: a multiplicidade e o movimento. Em outros termos, a questão agora era ter que conciliar a ideia de que o ser é, devido à sua permanente identidade, sempre igual a si mesma, mas também a multiplicidade da experiência e a transformação das coisas. O primeiro a tentar realizar esta conciliação foi Empédocles. Nascido no início do século V a.C., em Agriento, na Sicília, Empédocles era descendente de uma família bastante influente na região. Por se envolver com a política da cidade, foi desterrado depois que uma tirania se instalou no lugar. Além de filósofo, atuou como poeta, dramaturgo e médico. Seu pensamento sofreu a influência de tudo o que havia sido proposto nos 100 anos anteriores a ele, desde o pensamento jônico até o eleatismo. Deste último, valorizou o vínculo dado à pesquisa sobre a physis com novas exigências lógicas. Sua concepção parte do mesmo princípio de Parmênides, vendo como impossível a concepção do Ser e o Não Ser simultaneamente. A vida e a morte, por exemplo, são interpretadas equivocadamente, diria Empédocles. O que ocorre, na verdade, é um processo de composição e dissociação daquilo que ele chamou de “raízes de todas as coisas”, quatro substâncias eternamente iguais e indestrutíveis. Nas palavras de Aristóteles (apud BORNHEIM, 2003, p. 82): Empédocles admite como princípio quatro (elementos), acrescentando (à água, ao ar e ao fogo) a terra como quarto. Estes, diz ele, são eternos e não foram gerados, mas se unem em quantidade maior ou menor à unidade e dela separam-se novamente. Ao contrário dos jônios, Empédocles é mais pluralista e, portanto, não prioriza somente um dos elementos, mas vê os quatro como um só “princípio”, transformando-se nas demais coisas. Como força capaz de unir ou separar tais elementos, Empédocles introduziu a ideia de Amor e Ódio, ou ainda, Amizade e Discórdia. Quando há o predomínio do Amor, há também união, e, por sua vez, quando prevalece o Ódio, há a separação. UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA 22 4.9 OS ATOMISTAS: LEUCIPO E DEMÓCRITO O primeiro a desenvolver uma teoria atomista, última tentativa de resolver os problemas advindos dos eleatas, foi Leucipo, no final do século V a.C. Leucipo era provavelmente de Mileto, mas foi para a Itália e ali conheceu a filosofia eleata. De Eleia foi para Abdera, onde fundou uma escola que, por meio do seu discípulo mais ilustre, Demócrito, alcançou grande difusão. Demócrito chegou a ser contemporâneo de Sócrates, vivendo no século IV a.C. Os atomistas aceitavam parte da visão de Parmênides sobre a natureza do Ser, afirmavam também a impossibilidade do Não Ser e viam o nascer e morrer como Empédocles, isto é, como um agregar e um desagregar de coisas já existentes. A isto eles acrescentaram a ideia de um número infinito de entidades, chamadas de átomos (não divisível ou indivisível). Estes átomos são concebidos como diferentes em tamanho e forma, movimentando-se constantemente. Ao se chocar, eles produziriam as combinações das quais resultariam as coisas e, como são infinitos os números de átomos, também são infinitas as possibilidades de combinações entre eles. A ordem para essas combinações estaria em certa relação mecânica entre os átomos, não sendo, portanto, possível estabelecer uma ordem final para elas. O que permitiria o movimento destes átomos é o vazio entre eles, mas, ao mesmo tempo, este vazio é a sua negação. Assim, átomo (Ser) e vazio (Não Ser) representariam o princípio explicativo do universo. Para além disso, só existiria a mera opinião, pois os atomistas não aceitavam que a aparência do mundo poderia levar o filósofo a conhecer a verdade. Em um de seus escritos, Demócrito (apud BORNHEIM, 2003, p. 107) diz que: Há duas formas de conhecimento, uma autêntica e a outra obscura (inautêntica). À obscura pertencem todos os seguintes: a vista, o ouvido, o olfato, o gosto, o tato; a outra é autêntica, daquela completamente separada. Para além dessas observações, o pensamento de Demócrito e Empédocles também introduziu vários problemas relacionados à vida do homem, como as questões em torno da técnica e suas consequências éticas. Como assinala Chauí (2002), estes pensadores fizeram vários elogios às técnicas como aquilo que possibilitou ao homem inventar a si mesmo, responsabilizando-se por sua própria organização. Abandonando as respostas míticas sobre a origem do homem e da sociedade, eles acabaram afirmando que “no princípio, o mundo humano não tinha ordem nem lei” (CHAUÍ, 2002, p. 127), por isso começaram a se reunir em grupo e a construir instrumentos para sobreviver. Estes elementos fizeram destes pensadores “filósofos de transição”, preocupados com as questões cosmológicas, típicas dos pré-socráticos, mas também atentos às questões antropológicas que marcaram o período socrático. 23 Neste tópico você estudou: • O contexto histórico de formação da Grécia e as especificidades da cultura helênica permitiram o desenvolvimento progressivo do pensamento filosófico. • A complexidade e as inter-relações culturais, políticas e econômicas possibilitaram ao pensamento grego a crítica filosófica e suas primeiras investigações sobre a physis. • A ideia de que a distinção entre mito e filosofia possui certa nuance e é difícil de determinar com clareza os seus limites. • A ideia de que a interpenetração entre mito e filosofia é algo considerável neste momento histórico. • Os filósofos pré-socráticos são caracterizados assim não porque simplesmente viveram antes de Sócrates, mas por conta da especificidade temática de suas investigações. • Os filósofos pré-socráticos são aqueles que, investigando a physis, procuraram determinar a sua arché. • Os principais pensadores deste período são aqueles que compuseram a escola jônica (Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Xenófanes e Heráclito); a escola pitagórica (cujo fundador e principal pensador foi Pitágoras de Samos); a escola eleata (Parmênides e Zenão); e a escola atomista (Leucipo e Demócrito). RESUMO DO TÓPICO 1 24 1 Considerando a ideia de “milagre grego”, assinale com um “X” quais elementos históricos contribuíram para o desenvolvimento do pensamento filosófico: a) ( ) A derrocada da civilização micênica após as invasões dóricas e a descentralização do poder aristocrático. b) ( ) O florescimento comercial e o contato com povos e culturas mais desenvolvidos. c) ( ) A intervençãoe inspiração divina sobre o desenvolvimento técnico. d) ( ) A laicização da religião e da política. e) ( ) A imigração de povos orientais. 2 A partir da doxografia a seguir, situe a reflexão entre os autores pré- socráticos e explicite a distinção entre o pensamento filosófico deste período e o conhecimento mítico: Dizem que a água é o princípio. As aparências sensíveis os conduziram a esta conclusão; porque aquilo que é quente necessita de umidade para viver, e o que é morto seca, e todos os germes são úmidos, e todo alimento é cheio de suco; ora, é natural que cada coisa se nutra daquilo de que provém; a água é o princípio da natureza úmida, que mantém todas as coisas; e assim concluíram que a água é o princípio de tudo e declararam que a terra repousa sobre a água. (SIMPLICIUS apud BORNHEIM, 2003). AUTOATIVIDADE 25 TÓPICO 2 A SINGULARIDADE DO SABER FILOSÓFICO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Perguntas como “O que é a filosofia?”, apesar de paradigmáticas, podem ser respondidas de diferentes maneiras, sobretudo se olharmos para a história da filosofia, que desde a sua origem tem gerado não uma, mas várias tradições que ora dialogam entre si, ora se contrapõem. A explicitação desse embate é na verdade uma forma de compreender que as respostas dadas a perguntas como estas implicam um exercício tipicamente filosófico, uma reflexão que seja capaz de problematizar os saberes estabelecidos e não apenas reproduzi-los. Além de caracterizar como alguns filósofos interpretaram a identidade da filosofia, o objetivo deste tópico é tentar especificar os seus principiais campos de atuação e a sua singularidade com relação a outras formas de conhecimento, oferecendo a você, acadêmico(a), algumas chaves de leitura para pensar problemas como este. 2 O QUE É A FILOSOFIA? Tentar responder à questão “O que é a filosofia?” não é uma tarefa fácil, dada a particularidade desse saber e da própria questão. Ao longo da história, este problema foi enfrentado por vários pensadores, e por isso temos um acervo com incontáveis alternativas. Perspectivas e modelos que variam não apenas de uma época longínqua para outra, mas entre filósofos que foram contemporâneos entre si, o que nos adverte desde já a não presumir que só existe uma resposta realmente válida. É este o papel fundamental da história da filosofia, ou seja, permitir-nos transitar de uma perspectiva para outra e perceber que ao longo dos séculos a própria filosofia foi compreendida de modos diferentes. Esta é também a particularidade da pergunta, isto é, o desafio filosófico que se impõe a nós em apreender e atualizar a história. Não se trata de tomarmos a filosofia apenas como um conjunto de respostas, algo que pudéssemos escolher à la carte, mas de constituir os nossos próprios caminhos, de filosofar. UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA 26 Há duas histórias clássicas que podemos tomar como modelo para refletir sobre esta afirmação. A primeira história nos ajuda a caracterizar melhor aquele que faz filosofia, o filósofo. A segunda, o sentido desse fazer. Cícero, célebre orador do século I a.C., ao apresentar a filosofia aos romanos, narrou um episódio bastante interessante envolvendo Pitágoras. Diz ele que todos os que se aplicaram ao estudo contemplativo das coisas divinas e humanas receberam o título de sábios (sophos), mas esta definição teria persistido apenas até Pitágoras, e ele explica por quê. Diz Cícero que, certo dia, Pitágoras dialogava com um príncipe e, em determinado momento, admirado com os seus conhecimentos, o príncipe o teria interrogado sobre qual ciência lhe parecia melhor. Pitágoras então afirmou que desconhecia uma ciência nesses termos, dizendo que era apenas um amigo (philo) da sabedoria (sophia), portanto, um filósofo (philo-sophos). A novidade do termo teria levado o príncipe a querer saber mais sobre o que viria a ser isto, ao que Pitágoras lhe respondeu com uma analogia: Compare a vida do homem ao comércio que se fazia diante da Grécia reunida durante a solenidade dos jogos públicos. Assim como uns se vendem para brilhar nos exercícios do corpo e merecer a honra de uma coroa, outros vão para lá somente para obter algum lucro, vendendo ou comprando, enquanto existe uma terceira classe, e a mais nobre, que lá não procura nem os aplausos nem o lucro, que lá comparece somente para observar atentamente o que se faz e como as coisas se passam; da mesma forma, nós viemos de uma outra vida, de uma outra existência, como se vai de uma cidade a uma grande feira: uns, para procurar a glória; outros, dinheiro; um pequeno número somente desdenha todo o resto e aplica-se a bem estudar a natureza das coisas. São esses os homens que chamamos amigos da sabedoria, isto é, filósofos; e como nos jogos a posição mais nobre é a de assistir sem espírito de lucro, da mesma forma, na vida, o estudo e o conhecimento das coisas são preferíveis a todo o resto (CÍCERO apud DUMONT, 2004, p. 35). Esta história nos conduz à origem da palavra “filosofia” e apresenta o seu significado como o amor ou a amizade pela sabedoria. No entanto, ao fazer isto, também nos fornece alguma explicação sobre a especificidade daquele que é o amante do saber. Para Pitágoras, o filósofo é alguém que consegue se maravilhar com as coisas e faz isso porque nem mesmo a glória entre os seus pares (atletas olímpicos) ou a riqueza do mundo (interesses comerciais) lhe é preferível quando comparadas com o conhecimento. “Em outra passagem, na qual Pitágoras também é descrito como o criador do termo, suas palavras assinalam para o fato de que a verdadeira sabedoria só cabe aos deuses, enquanto que para o filósofo, amante desse saber, restaria apenas desejá-la”. (LAÊRTIOS, 2008, p. 15). Seguindo esta mesma perspectiva, a constante busca e a falta do objeto desejado são interpretadas por Perine (2007, p. 23) da seguinte forma: TÓPICO 2 | A SINGULARIDADE DO SABER FILOSÓFICO 27 [O filósofo maravilha-se com a realidade sob um duplo aspecto] Por um lado, aquele que admira não sabe tudo daquilo que admira e, mais ainda, sabe que não sabe; por outro, sabendo disso, põe-se a caminho do saber, porque deseja a ciência. Esse é o verdadeiro sentido da admiração como atitude originante do filosofar, que justifica a palavra filo-sofia. Esta contemplação de algum modo nos tornaria melhores, colocaria-nos em uma posição mais “nobre”, mas não porque possuímos a sabedoria, já que esta pertence aos deuses, e sim porque o filósofo reconhece o que de fato importa, dedicando-se a perseguir este objeto de desejo, mesmo que para isso tenha que se contrapor ao seu mundo. Infelizmente, esta imagem também tende a gerar uma interpretação não tão positiva do filósofo, que é caracterizado como alguém distante e absorto em seus próprios pensamentos, contemplando de longe o que se passa na vida. Ora, este ponto nos dá margem para apresentar a nossa segunda história. UNI “Diríamos aristocratas, no sentido de “melhores”, “mais bravos”, “excelentes”. A palavra aristocrático possui como raiz a palavra grega aristói, que significa exatamente o que foi destacado acima” (CHAUÍ, 2002, p. 495). Em Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, de Diôgenes Laêrtios, há uma passagem no mínimo caricata a respeito de Tales, mas não menos significativa. Conta-se que, conduzido para fora de uma casa para observar as estrelas, aquele que é considerado um dos sete sábios gregos e o primeiro dos filósofos não conseguiu enxergar um buraco à sua frente e nele caiu, por manter o olhar fixo nelas. Vendo isso, uma escrava que o acompanhava disse, zombando dele: “Como pretendes, Tales, tu, que não podes sequer ver o que está à tua frente, conhecer tudo acerca do céu?” (LAÊRTIOS, 2008, p. 21). A anedota também é muito próxima às críticas que geralmente são feitas aos filósofos. Postos em seu mundo particular, eles desejam conhecer tudo o que há de elevado, não enxergando, entretanto, os buracos à sua frente, não percebendo a realidade
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