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Crítica da Ideologia e Emancipação Marx, o direito e a democracia Rúrion Melo Introdução Karl Marx se tornou mundialmente conhecido por suas críticas à economia capitalista e pela perspectiva revolucionária que seu pensamento legou para os movimentos socialistas e as teorias marxistas que o sucederam. No entanto, Marx não se limitou a denunciar a lógica de funcionamento do modo de produção capitalista e a diagnosticar os seus limites. Ele também criticou a ordem institucional que estruturava a organização política e jurídica da sociedade de seu tempo. Ao desmascarar o ideal do Estado de direito e a configuração histórica da república democrática, Marx expôs as contradições sociais, as injustiças materiais e os interesses de classe em jogo nas sociedades capitalistas modernas. Essa perspectiva crítica o levou a duas conclusões cheias de consequências tanto teóricas como práticas: primeiro, a emancipação social não seria possível sob as condições capitalistas existentes, de modo que a possibilidade efetiva de realização da liberdade e da igualdade passava a depender de uma transformação revolucionária do capitalismo; segundo, caberia ao direito e à democracia um papel sensivelmente reduzido e meramente funcional no processo revolucionário, cristalizando no imaginário marxista uma rígida separação entre condições emancipatórias, de um lado, e Estado democrático de direito, de outro. Certamente, há uma relação tensa e complexa entre a crítica de Marx ao Estado democrático de direito e sua perspectiva revolucionária. Afinal, até que ponto uma crítica às formas existentes de democracia significa uma crítica ao ideal do Estado democrático de direito por excelência? Criticar a democracia não poderia implicar antes o desmascaramento de suas insuficiências atuais em nome de tudo o que a democracia ainda poderia potencialmente realizar? Marx não estaria criticando a democracia burguesa para defender a verdadeira democracia, aquela que só poderia ser plenamente realizada no comunismo? Ou seria o pensamento de Marx essencialmente antidemocrático, negando de uma vez por todas qualquer institucionalização da liberdade – e correndo o risco de assumir as consequências totalitárias que, por exemplo, decorreram posteriormente da experiência histórica do socialismo realmente existente? Essas questões apontadas introdutoriamente já foram direcionadas muitas vezes não apenas para a teoria de Marx, mas para toda a tradição marxista (LICHTHEIM, 1961; MEDEIROS, 2012). Respondê-las não é tarefa fácil. Tudo se complica ainda mais ao admitirmos que, no caso de Marx, os temas da política, do direito e da democracia receberam um tratamento muito variado no percurso de sua obra, com implicações que, dependendo do estatuto dos textos, foram ora mais positivas, ora mais negativas – veja-se, por exemplo, a mudança considerável ocorrida entre os textos do jovem Marx e sua obra madura (COHEN, 1982; LÖWY, 2002). Por ser inviável abordar de modo tão abrangente todas essas questões no espaço do presente capítulo, optamos por circunscrever nossa apresentação às críticas que, na recepção histórica de sua teoria, tornaram-se as mais conhecidas e difundidas. Estamos nos referindo às críticas de Marx ao direito e à democracia como formas ideológicas de dominação, as quais são estabelecidas a partir de uma distinção entre base econômica e superestrutura político-jurídica. É importante já ressaltar também que nossa exposição foi animada por duas considerações gerais e complementares a respeito do tema do direito e da democracia na obra de Marx. Embora pudéssemos afirmar que existe na teoria crítica de Marx uma compreensão funcionalista do Estado democrático de direito que acabaria se mostrando muito limitada, não seria correto atribuir a Marx uma posição essencialmente antidemocrática. Na verdade, o ideal da república democrática foi encoberto pelo ideal da república do trabalho: uma sociedade emancipada, segundo Marx, teria de ser configurada pelo modelo produtivista de uma comunidade de cooperação baseada na divisão igualitária do trabalho (MELO, 2011a). Nesse sentido, a concepção de uma plena realização da liberdade e da igualdade vinculada à utopia da sociedade do trabalho não poderia nos ajudar a entender a postura negativa de Marx diante do potencial emancipatório do direito e da democracia? Acreditamos que sim, e que essa ideia é um ponto de partida adequado para avaliar a atitude crítica de Marx sobre o tema. Iniciaremos nossa exposição mostrando como o modelo da base/superestrutura surge no quadro de uma crítica da economia política (1.1). Em seguida, apresentaremos a interpretação que Marx faz do Estado como uma forma de dominação burguesa (1.2) e analisaremos a estrutura normativa da sociedade civil sob a perspectiva de uma crítica da ideologia (1.3). Por fim, procuraremos mostrar que o papel reduzido do direito e da democracia no processo revolucionário e na constituição do ideal comunista de uma sociedade plenamente emancipada depende do primado do paradigma da produção e da utopia de uma sociedade do trabalho (1.4). 1.1. Base e superestrutura na crítica da economia política As considerações de Marx a respeito do direito e da democracia dependem de uma mudança de perspectiva crucial inaugurada pelo surgimento da economia política. Economistas políticos, tais como Adam Smith e David Ricardo, conceberam um novo tipo de abordagem para os estudos de teoria social. Eles tornaram possível uma análise da sociedade civil não mais centrada nas categorias do direito racional, mas sim em uma esfera de comércio e de trabalho social que seria dominada por leis autônomas. Se o direito racional forneceu o modelo normativo de construção de uma organização política, a economia política, por seu turno, teria o objetivo de descrever a sociedade civil com base nas relações de trabalho social organizado pela economia de mercado. Na passagem da filosofia político- jurídica moderna para a economia política, os processos de socialização, representados na forma de um contrato social estabelecido entre pessoas consideradas livres e iguais, foram substituídos pelo sistema de relações constituído pela troca de mercadorias e pelo trabalho, ou seja, pelo modo de produção da vida material em seu conjunto (MARX, 2000). Para Marx, tal substituição provocada pelo ponto de vista da economia política traz ganhos teóricos importantes. Em primeiro lugar, permite entender que os homens entram em relações sociais que são plenamente independentes de sua própria vontade, ou seja, que em vez de se organizarem segundo mecanismos normativos de integração social (tal como aqueles presentes no direito racional moderno), os homens estão submetidos a um processo anônimo de socialização. Isso significa que o ideal normativo de cidadania livre e igual será radicalmente substituído por uma perspectiva pretensamente mais realista, em que não haverá mais espaço para uma atividade política autônoma por parte da sociedade civil: os indivíduos só poderão agir de forma heterônoma. E para poder explicitar tais leis heterônomas responsáveis pela organização política das sociedades modernas, a tarefa de Marx consistirá assim em dar continuidade àquilo que a economia política iniciou, ou seja, realizar uma anatomia da sociedade civil. Ele descobrirá que “as relações jurídicas – assim como as formas de Estado – não podem ser compreendidas por si mesmas [...], inserindo-se pelo contrário nas condições materiais de existência [...] designadas como ‘sociedade civil’; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política” (MARX, 2003, p. 4-5). Em segundo lugar, Marx retira consequências críticas do fato de não serem mais as relações baseadas no direito, mas sim as relações de produção que formam o esqueleto que mantém coeso o organismo social. “Na produção social de sua existência”, diz Marx, “os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade. [...] O conjunto destas relações de produção constitui a estruturaeconômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social” (MARX, 2003, p. 5). Marx descobrirá, portanto, que o processo anônimo de socialização é, na verdade, um processo de subordinação às leis que regem o modo de produção da vida material. Não podemos analisar aqui a lógica de desenvolvimento de tais leis (o que nos remeteria a discutir a lógica de reprodução do capital); precisamos entender apenas como as constrições econômicas serão determinantes para criar uma relação de subordinação entre base material e superestrutura jurídica e política. Se a economia política forneceu um ponto de partida adequado para a teoria social de Marx, é verdade também que se mostrou incapaz de unificar com uma postura crítica seu olhar pretensamente mais realista. A economia política ainda assumia acriticamente a existência de uma suposta organização normativa que, embora não pudesse mais ser derivada do direito racional, estaria fundamentada agora na economia de mercado: por serem proprietários nas relações de apropriação de mercadorias, reconhecemos os indivíduos como pessoas portadoras de direitos, atribuindo-lhes seja igualdade nesse processo de troca de equivalentes, seja liberdade de perseguirem seus próprios interesses em relação ao bem trocado ou ao seu próprio trabalho empregado na produção. Nesse caso, o modelo do contrato social poderia se apoiar na evidência de que a sociedade moderna estabelecida sobre as relações de troca garantiria a cada pessoa a autonomia e a igualdade por meio da participação nesse intercâmbio meramente econômico. O reconhecimento mútuo e a aceitação das relações contratuais juridicamente asseguradas, pelas quais cada um reconhece o outro como proprietário, têm a pretensão de constituir cada um como uma pessoa livre e igual. Contrariamente, a “anatomia da sociedade civil” precisaria ser compreendida como contendo um efeito desmascarador diante das concepções que compunham os princípios burgueses modernos de organização social, efeito que se encontra explicitado justamente na relação entre base e superestrutura. Logo, não seria mais suficiente seguir os economistas políticos, mas sim necessário realizar uma crítica da economia política. A implicação mais profunda da anatomia elaborada por Marx consistiria no fato de que sua análise desmistificaria a sociedade civil demonstrando, principalmente, que esta sociedade repousa sobre um sistema de exploração que perpassaria suas principais instituições e atingiria justamente o núcleo de sua organização normativa. Os aspectos normativos da troca de equivalentes implicavam que, na relação de troca, pressupuséssemos um princípio de reciprocidade, ou seja, um momento de igualdade recíproca por parte daqueles que participavam do processo de troca. Entretanto, em vez de uma sociedade civil constituída por pequenos produtores de mercadorias, a economia de mercado formou uma sociedade de classes caracterizada pelos que possuem propriedade e controlam a produção e os que, com o seu trabalho, criam a riqueza da sociedade (e a riqueza dos capitalistas), e que na maioria dos casos precisam vender sua força de trabalho para sobreviver (MARX, 2002). Marx teria reconhecido, portanto, que a sociedade civil estaria estruturada de modo a produzir formas cada vez mais drásticas de desigualdade social. Ele denuncia o sistema econômico capitalista não somente por se organizar com base na produção de bens como produção de valores de troca, mas por fundar todo o conjunto de leis e princípios normativos do Estado de direito em torno do trabalho assalariado. As relações sociais desiguais do mercado de trabalho acabam sendo cristalizadas e encobertas pelo medium juridicamente institucionalizado das relações de troca da base material. Na verdade, a base material real que condiciona a superestrutura (isto é, todas as formas pelas quais uma sociedade não apenas se representa, mas também se regula, tais como a política, o direito, a cultura, a religião etc.) faz com que praticamente todos os modos de atividade não econômica sejam entendidos como reflexos das relações de produção. Como diz Marx, “o modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral” (MARX, 2003, p. 5). No tema em questão, as formas jurídico-políticas da sociedade civil moderna e as normas que a constituem seriam criticadas como expressão necessária das relações de troca, vale dizer, como reflexo jurídico de uma esfera de intercâmbio em que os compradores e vendedores, pretensamente livres e iguais, trocam suas mercadorias por equivalentes. A estrutura da sociedade civil revelaria o poder de um sistema que modela segundo sua própria imagem e forma a totalidade do entorno institucional. 1.2. O Estado como dominação burguesa Se as instituições que compõem a política burguesa não são determinantes das leis do sistema econômico, mas sim determinadas por elas, então o próprio Estado surge da necessidade de organizar e integrar a sociedade de modo que esta pudesse perseguir seus interesses econômicos. Na verdade, todas as instituições políticas que se encontram mediadas pelo Estado moderno estariam comprometidas com a manutenção e reprodução do sistema capitalista, com a administração dos “negócios comuns de toda a classe burguesa” (ENGELS e MARX, 2002, p. 42). “À medida que os progressos da moderna indústria desenvolviam, ampliavam e aprofundavam o antagonismo de classe entre o capital e o trabalho”, segundo Marx, “o poder do Estado foi adquirindo cada vez mais o caráter de poder nacional do capital sobre o trabalho, de força pública organizada para a escravidão social, de máquina do despotismo de classe” (MARX, 1977a, p. 195). Afirmar que o Estado deve administrar os negócios da classe burguesa significa que a própria relação entre trabalho assalariado e capital só se manteria caso o Estado pudesse assegurar certos pressupostos gerais para a continuidade da produção capitalista. A institucionalização do mercado de trabalho mostra que o Estado não seria outra coisa senão a forma de organização que a classe burguesa assume para garantir sua propriedade e seus interesses. Nas palavras de Marx e Engels: “Uma vez que o Estado é a forma sob a qual os indivíduos da classe dominante fazem valer seus interesses comuns, e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, deduz-se daí que todas as instituições comuns se objetivam através do Estado e adquirem a forma política através dele. Daí, também, a ilusão de que a lei se fundamenta na vontade e, ademais, na vontade desgarrada de sua base real, na vontade livre” (ENGELS e MARX, 2007, p. 89). Uma vontade livre que adotasse uma forma política mediada pelo Estado se separaria do interesse social efetivo dos indivíduos e se tornaria uma comunidade política ilusória, pois “todas as lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito ao voto, etc. não são mais do que formas ilusórias nas quais as lutas reais das diferentes classes são conduzidas” (ENGELS e MARX, 2007, p. 56). “Ilusórias” porque o discurso pretensamente universal em nome de uma vontade livre capaz de representar a todos os indivíduos por igual encontrar-se-ia comprometido com uma base concreta, em que as instituições políticas e as leis do Estado seriam parciais por apoiar sempre a autovalorização do capital. A política, nesse sentido, adotaria uma forma por meio da qual os interesses dos proprietários privados se imporiam sobre os interesses de toda a sociedade. O ideal universalista seria denunciado por esconder o seu verdadeiro caráter de máscara do interesse de classe burguês. Esse, segundo Marx e Engels, seria o dilema do universal vivido pelos indivíduos em uma democracia, ou seja, a própria democracia seria interpretada como uma forma ilusória de comu- nidade, pois o interesse universal se encontraria independente e alienado dos interesses efetivos de cadaum (ENGELS e MARX, 2007, p. 56). Essa crítica de Marx ao Estado se dirige à ideia de uma sociedade civil que diz realizar igualmente todos os interesses e necessidades dos indivíduos. Sobretudo porque, em primeiro lugar, faltariam exatamente os pressupostos sociais para a efetivação da igualdade nessa sociedade, a saber, o status de proprietário. E como na sociedade capitalista as chances de ascensão social de assalariado para proprietário se tornam cada vez menores, a república democrática contradiz o seu próprio princípio de acessibilidade universal. O Estado não representaria algo como a “vontade geral” do povo, mas favoreceria antes a vontade particular de uma parcela da sociedade interessada em reforçar a dominação de classe. Como afirma Ernest Mandel, “o governo de um Estado capitalista, por mais democrático que pareça ser, está atado à burguesia” (MANDEL, 1977, p. 23). Assim, de forma alguma o Estado poderia ser um órgão de reconciliação dos conflitos de classe, porque serviria, na verdade, aos interesses dos proprietários privados, e não aos interesses da sociedade em seu todo, permanecendo, assim, uma forma ideológica de dominação (AVINERI, 1968). 1.3. Crítica da ideologia Compreender e decifrar as formas de dominação é tarefa daquilo que Marx entendeu como crítica da ideologia. Esse tipo de crítica percorre toda a anatomia da sociedade civil elaborada em sua teoria. Mas o que significa dizer que algo domina ideologicamente? O que haveria de específico nessa forma de dominação que já não estivesse presente em outras formas históricas de dominação sociais, políticas e econômicas? Ela reside no fato de se expressar como algo verdadeiro, justo e legítimo, algo que é comumente seguido e adotado como padrão aceito de estabelecimento de regras, costumes, visões de mundo e princípios; algo que é considerado socialmente natural, necessário e também inevitável, mas que, apesar de estruturar a realidade e ser socialmente compartilhado, possui uma efetividade apenas aparente (GEUSS, 1981). A crítica da ideologia, por sua vez, precisa desmascarar a dominação ideológica como uma ilusão socialmente necessária, isto é, decifrar os pretensos dados sociais, suspeitando do modo como são socialmente induzidos. Ou seja, a crítica da ideologia esclarece como a dominação ideológica, real e efetiva, é sempre ao mesmo tempo verdadeira e falsa: “Ideologias são simultaneamente ‘verdadeiras e falsas’ na medida em que face à ‘realidade’ [...] sejam ao mesmo tempo adequadas e inadequadas, apropriadas e inapropriadas. Como induzidas socialmente, elas não são simplesmente uma ilusão ou um equívoco cognitivo, mas um equívoco com um sentido claramente fundamentado, porque fundado na constituição da realidade. Ideologias, além disso, são ‘simultaneamente verdadeiras e falsas’ na medida em que as normas às quais elas estão vinculadas têm um conteúdo de verdade não realizado” (JAEGGI, 2008, p. 145-146). Em relação às questões de legitimação das instituições sociais, Marx não acredita que seu desmascaramento possa ser explicado abstratamente, sem que se considere a situação histórica existente. Seu intuito é explicitar justamente a base real das ideologias, isto é, a ligação do Estado e do direito com as formas de propriedade e de interesses de classe que compõem as relações de produção. Os interesses da sociedade civil (e seu modo de ação como Estado) devem explicar os diferentes produtos teóricos e formas de consciência (a religião, a filosofia, a moral, o direito etc.), e isso significa explicar “as formações ideológicas sobre a base da prática material” (ENGELS e MARX, 2007, p. 61-62). Assim, a crítica da ideologia revela a prática das relações sociais reais que fundam o poder espiritual e ideológico dominante em cada época. Sempre, a classe que tem à sua disposição os meios para a produção material poderá dispor dos meios de produção espiritual: “As ideias dominantes não são outra coisa a não ser a expressão ideal das relações materiais dominantes, as mesmas relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, as relações que fazem de uma determinada classe a classe dominante, ou seja, as ideias de sua dominação” (ENGELS e MARX, 2007, p. 71). O vínculo entre a base social real e as ideias dominantes se manifesta historicamente de modos diversos. Na época em que predominou a aristocracia, imperaram as ideias de honra, de lealdade etc. Já no período de dominação da burguesia (instituído pela república democrática e pelo Estado de direito), imperaram as ideias da liberdade, da igualdade e da propriedade. Mas estas são ideias que aparecem na superfície da sociedade capitalista. A crítica da ideologia permite analisar o processo histórico segundo a composição profunda que sustenta a superfície ideológica. Por essa razão, altera-se o significado da estrutura normativa da sociedade civil (jurídica, moral e política), na medida em que a liberdade, a igualdade e a propriedade são comparadas com a realidade das relações sociais em que estão ancoradas. Marx torna aparente, portanto, a discrepância entre ideal e realidade. A estrutura normativa da sociedade é confrontada com as relações sociais existentes, sem que para isso Marx tenha de apelar para algum conjunto de normas que não seja aquele imanente à própria sociedade civil e à sua expressão jurídico-política no Estado de direito burguês. Uma crítica imanente da ideologia parte assim do pressuposto de que, em determinados momentos do desenvolvimento das forças produtivas, passa a ser historicamente necessário um tipo de dominação em que o poder é distribuído desigualmente. É justamente isso o que a dominação burguesa permite realizar por meio do Estado e do direito. É inegável que os princípios normativos da sociedade burguesa funcionam como elemento estruturador legítimo. O mercado de trabalho é, de fato, firmado entre pessoas juridicamente livres e iguais. Mas, para Marx, é falso afirmar que nas sociedades capitalistas – dependentes dos princípios da liberdade e da igualdade – a liberdade e a igualdade já se encontram realizadas. “A própria ideologia da liberdade e da igualdade”, afirma Rahel Jaeggi, “é um fator no surgimento da compulsão e da igualdade. Isto é, ela é produtivamente eficaz no sentido de, em seu efeito, ela própria cooperar para a inversão das ideias nela incorporadas. Por conseguinte, não que os ideais normativos apenas ainda não estivessem totalmente realizados, eles estão invertidos em sua realização” (JAEGGI, 2008, p. 144). É preciso então explicitar uma contradição existente entre as ideias e as práticas sociais na medida em que toda a dominação ideológica impõe uma estrutura normativa falsa, mas que, por ser necessária para a reprodução das próprias relações sociais existentes, deve ser também assumida como necessária. 1.4. O ideal emancipatório de uma associação de homens livres Procuramos mostrar nas seções anteriores que, sob as condições do modo de produção capitalista, a economia surgiria como um sistema que penetra todos os aspectos da sociedade e remodela todas as relações sociais segundo sua própria imagem e forma. A primazia da esfera econômica, a centralidade da produção, o modelo da base/superestrutura e a discrepância entre ideal e realidade compõem um sistema que tende a subordinar e integrar as instituições políticas, jurídicas e sociais de acordo com seu próprio esquema reprodutivo. Por essa razão, a perspectiva revolucionária desacreditou radicalmente da superestrutura, ou seja, do conjunto das instituições democráticas. Embora as formas políticas que efetuariam a transformação revolucionária da sociedade burguesa em uma sociedade comunista ainda pudessem convergir, em algum momento, com tais instituições democráticas (TEXIER, 2005; DRAPER, 1977), a verdadeira democracia seria caracterizada fundamentalmente em função da transformação revolucionária das relações materiais da vida, ou seja, das relações sociais entre capital e trabalho (MARX, 2002). Se a emancipação não pode ocorrer a partir da superestrutura,então para Marx apenas a transformação revolucionária da base material, ou seja, o próprio âmbito do trabalho e do desenvolvimento das forças produtivas, poderia levar à emancipação. Mas o que estaria em jogo nessa transformação da base econômica? Segundo Marx, a superação das condições de opressão do proletariado sobre o trabalho heterônomo, isso é, a transformação revolucionária teria de levar em direção à realização da utopia de uma sociedade do trabalho autônomo. Marx definiria a autonomia como a possibilidade de dispor novamente dos processos sociais que reproduzem a vida dos indivíduos, a capacidade de se reapropriar da produção e reprodução material que configuraria a base real da sociedade. O princípio democrático da autonomia seria traduzido ou mesmo substituído pela ideia de uma organização social baseada no paradigma produtivista e as expectativas utópicas se dirigiriam à esfera da produção, ou seja, à emancipação do trabalho. Ora, a verdadeira democracia, portanto, teria de realizar a libertação do trabalho heterônomo e possibilitar a disposição comunitária das condições materiais da vida e de um novo modo de distribuição, justo e racionalmente regulado. Marx supunha que somente as relações equitativas na base econômica gerariam princípios verdadeiramente democráticos para a auto- organização dos trabalhadores. Mas, assim, uma reflexão sobre e democracia seria duplamente enfraquecida. Primeiro, devido à anatomia da sociedade civil que, como vimos anteriormente, apresentava uma subordinação da superestrutura aos imperativos do capital, justificando as críticas de Marx ao direito e à democracia existentes. Segundo, a realização da liberdade e a organização coletiva decorreriam imediatamente das condições do trabalho autônomo conquistadas na base material transformada. Salta aos olhos o fato de que, com a emergência de uma sociedade organizada por produtores associados, que passariam a se socializar de forma transparente, imediata e direta, Marx poderia inclusive abrir mão da necessidade de mediações jurídico-políticas como formas de organização da liberdade e da igualdade. O conceito de liberdade significaria apenas libertação em relação aos fetiches do capital (ou libertação das forças produtivas) e não seria formulado fundamentalmente em termos de liberdade política ou jurídica. Com essa atitude instrumental diante das instituições políticas da república democrática, parece desaparecer da análise de Marx justamente o problema de uma auto-organização social entre pessoas livres e iguais. Preocupado em esclarecer as condições sociais e políticas a serem preenchidas para a realização da emancipação proletária, Marx refuta veementemente todos os elementos presos ao vocabulário jurídico-político burguês que ainda pudessem constar nos programas revolucionários. Os ideais do Estado de direito e da democracia constituiriam exigências políticas que não contêm nada além da “velha e surrada ladainha democrática: sufrágio universal, legislação direta, direito popular, milícia do povo etc. Elas são um mero eco dos partidos populares burgueses, das coligações pela paz e pela liberdade” (MARX, 1977b, p. 239). Em oposição à república democrática considerada vulgar, Marx defende a tese de que a sociedade comunista seria a única forma de realização da verdadeira democracia. Mas, na verdadeira democracia, os direitos pretensamente iguais e universais tenderiam então a desaparecer com o desenvolvimento material da sociedade em direção à consolidação do comunismo? Marx é explícito nesse ponto: “Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar- se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” (MARX, 1977b, p. 232-233). Isso significaria que o princípio normativo “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” se justificaria a partir das forças produtivas plenamente desenvolvidas de uma sociedade transformada, que se encontraria em condições de satisfazer materialmente as necessidades de todos e assegurar, finalmente, a liberdade e a igualdade com base na disposição coletiva da produção. Substituindo as relações jurídico- políticas que caracterizariam o direito burguês, a realização histórica do trabalho autônomo seria a condição fundamental da emancipação e do critério de justiça, ou seja, a emergência do trabalho e das forças produtivas como a base da vida social e da riqueza. Marx reconhece que alguns poucos elementos ligados ao Estado de direito burguês ainda poderiam ser necessários para a transição do capitalismo para o comunismo: “Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o período de transformação revolucionária da primeira para a segunda. A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado” (MARX, 1977b, p. 239). Mas caberia ao Estado nesse período uma função meramente instrumental, pois as condições futuras de uma sociedade emancipada parecem não incluir quaisquer traços das instituições político- jurídicas que organizavam a república democrática, circunscrevendo-se à imagem produtivista de auto-organização (DRAPER, 1986, 1987). No primeiro estágio do comunismo (justamente nesse período caracterizado pela “ditadura do proletariado”), o aparelho do Estado seria usado para o estabelecimento de um novo poder político. O proletariado poderia organizar a produção, a distribuição, o crédito, a comunicação, o transporte etc. Não se trata de forma alguma de uma abolição do trabalho, pois esse Estado comunista imporia o trabalho a todos. O importante é que, estando o proletariado com o poder nas mãos, o Estado serviria apenas como um meio para o objetivo da luta revolucionária, o qual consistiria na reapropriação coletiva dos meios de produção (MARX, 1977b, p. 239-240). Tal reapropriação não apenas definiria a principal característica de uma sociedade que se autodetermina e se emancipa das condições do trabalho heterônomo, mas que também, no final das contas, exige a supressão desse mesmo Estado para sua efetivação. Se a estrutura econômica na base da sociedade sempre tem predominância na determinação da constituição social, então o uso de instituições políticas do Estado como um instrumento no período de transição tem o intuito de torná-lo, no fim das contas, sem uso. Em outros termos, a superestrutura política seria dissolvida nas relações socioeconômicas emancipadas da base, e assim, vale dizer, com a abolição da propriedade privada nos meios de produção e de todas as classes em nome de um interesse geral, decorreria a dissolução futura da estrutura normativa anterior. Se admitirmos, então, que as normas e instituições sociais não econômicas possuem sua “verdade” nas relações econômicas, não é difícil concluir pela rejeição dos princípios da democracia, forçando igualmente à abolição conjunta do próprio Estado de direito (DRAPER, 1977). De acordo com o modelo de uma auto-organização espontânea dos trabalhadores, provavelmente a função social de controle e de regulação dos conflitos na sociedade socialista passaria a não mais depender de formas políticas burguesas porque provavelmente se esperaria que as leis e normas fossem internalizadas e se tornassem hábitos. Prescindindo das condições de institucionalização da liberdade e de uma formação igualitária da vontade, a sociedade comunista estaria limitada à representação holista de uma sociedade do trabalho associada livremente e que,após se apropriar dos meios de produção, encontraria por si mesma os meios de sua convivência. O nexo funcional entre estrutura de classe e sistema do direito implicaria, assim, pensar uma sociedade política de uma nova perspectiva, ou seja, de uma perspectiva não regulada pelas instituições políticas burguesas e que precisa, porém, organizar-se socialmente por outros meios. No caso, prescinde-se do Estado em função de uma organização política determinada como uma associação livre de trabalhadores, em que o nexo de solidariedade seria suficiente para a integração social em seu conjunto, para a manutenção não mais de uma sociedade constituída por fábricas, mas de uma única “fábrica da sociedade”. Nessa sociedade, como mostra Marx no primeiro capítulo de O capital, os homens trabalham com meios de produção comuns e empregam suas forças individuais de trabalho de forma consciente como uma força coletiva de trabalho social (MARX, 2002, p. 100). Essa imagem comunista de uma sociedade emancipada marcou também a interpretação feita por Marx da Comuna de Paris como uma forma de associação livre que prescinde de uma institucionalização burguesa. Segundo tal interpretação, a referência à organização política e social de uma associação de trabalhadores livres prescindia de uma compreensão mais aprofundada dos modos de funcionamento, das formas de comunicação e das condições de institucionalização da vida coletiva. Ainda assim, a Comuna de Paris representaria uma alternativa radical ao Estado burguês, pois possibilitaria a abolição do aparato estatal e, além disso, poderia ser pensada inclusive como um modelo democrático de participação direta. O desmantelamento do exército, do aparato administrativo da burocracia, da polícia e do judiciário e sua substituição pela milícia popular, um corpo eleito de protetores da comuna etc., eram algumas das medidas que seriam realizadas pela Comuna de Paris. Sua intenção era reestruturar a sociedade civil burguesa com uma organização que visava assegurar a participação dos cidadãos na vida política. Contudo, a sociedade emancipada ainda assim seria apresentada como a totalidade de uma sociedade de produtores, como a tão esperada república do trabalho: embora ocorresse a emancipação do trabalho heterônomo e a abolição das classes, em condições emancipadas, lembra Marx, “todo homem se converte em trabalhador” (MARX, 1977a, p. 200). Vemos assim que Marx parece pressupor que a regulação jurídica do Estado poderia ser substituída por formas de convivência entre trabalhadores associados livremente. O sentido dessa substituição fica claro, por exemplo, no conhecido texto de Lênin sobre o papel do Estado na revolução proletária: uma vez asseguradas as bases de reprodução material da sociedade, a extinção do Estado poderá finalmente ocorrer com a superação das formas parlamentares e a supressão da democracia (LÊNIN, 1988). Ora, o tratamento instrumental do Estado não significaria mais do que apenas a dissolução de seus órgãos administrativos, mas sim da própria política? Não podemos avançar aqui nessa questão, apesar de ela ser aparentemente inevitável para quem enfrenta o tema do direito e da democracia no pensamento de Marx. De qualquer modo, a separação entre emancipação e democracia resvala na desconsideração de formas fundamentais de interação política com as quais toda teoria social crítica teria de se preocupar. Considerações finais De acordo com a interpretação crítica de Marx sobre o direito e a democracia exposta no presente texto, o processo de produção e reprodução do sistema econômico é responsável por submeter a estrutura normativa da ordem jurídica e política à sua própria lógica. As instituições da sociedade civil, consideradas como uma superestrutura que reflete o jogo de forças das práticas sociais reais da base econômica e material, são desmascaradas ao serem criticadas como meros reflexos do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, e essa crítica inviabilizaria em grande medida uma consideração futura do direito e da democracia na qual fosse possível lhes atribuir ainda algum potencial emancipatório legítimo. A crítica formulada por Marx, ao denunciar as condições sociais e institucionais de manutenção do trabalho heterônomo, explicita também o ponto de vista de seu ideal emancipatório segundo a reapropriação coletiva das forças produtivas por uma associação de trabalhadores plenamente livres. Mas Marx não estaria reduzindo a institucionalização da liberdade a um papel meramente funcionalista no processo de transformação social e de efetivação de uma sociedade do trabalho autônoma? Não estaria também legando uma perspectiva emancipatória limitada à solução das contradições entre capital e trabalho, deixando em segundo plano a possibilidade de pensarmos formas plurais de emancipação ligadas às pautas das lutas jurídicas e políticas contemporâneas, tais como aquelas surgidas pela desigualdade de gênero, pelo racismo, pela exclusão de minorias etc.? É verdade que as críticas de Marx à política moderna escondem muitos enigmas sobre sua concepção abrangente do que possa ser o “político” (POGREBINSCHI, 2009). No entanto, é igualmente verdadeiro que a recepção do tema do direito e da democracia na teoria crítica contemporânea apontou para a necessidade de ampliação do conceito do político em Marx (MELO, 2009, 2011b). Bibliografia AVINERI, S. The social and political thought of Karl Marx. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 1968. COHEN, J. Class and civil society: the limits of Marxian critical theory. Amherst: University of Massachusetts Press, 1982. DRAPER, H. Karl Marx’s theory of revolution. New York/London: Monthly Review Press, 1977. v. I: State and bureaucracy. ______. Karl Marx’s theory of revolution. New York/London: Monthly Review Press, 1986. v. III: State and bureaucracy. ______. The dictatorship of the proletariat from Marx to Lenin. New York/London: Monthly Review Press, 1987. ENGELS, F.; MARX, K. 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