Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
; -- - \' . ' . . - '";'~;. _,... ~ ' -, - ~--~ 1 -• - . ·' : ,. ' > . --. ! . , _.__ ,.·_ . _- . . . . ' ,~ Dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea "Não é preciso ser médico para falar de medicina, o I jóquei para falar de hipismo. Mas não se pode falar de intelectuais sem fazer o que habitualmente fazt1m os intelectuais, e, portanto_, sem ser, ao menos naquele momento, um intelectual, mesmo que não consciente de sê-lo. Só esta inconsciente /t,plicação permite a um iutelectual falar tão mal dos outros intelectuais." ISBN 85-7139-144-0 9 78857'1 391444 Dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea Um novo liYro de Norberto Bobbio sempre cativa os que apreciam a reflexão política e filosófica sofisticada, as polêmicas apaixona- das e os embates críticos. Mais ainda se traz à tona um tema que, além de freqüentar com insistência a produção de Bobbio e de ser mesmo um de seus prediletos, ocupa lugar de destaque na realidade política e cultural do país. A questão das relações entre os intelectuais e a política - e, mais ainda, entre os intelec- tuais e o poder - jamais deixou de estar no centro das atenções. Com o que ficar: com a verdade do conhecimento ou com os fatos do poder, com as convicções ou com as respon- sabilidades, com as dúvidas "pessimistas" da razão crítica ou com as certezas inquebran- táveis e quase sempre "otimistas" da vontade política? Como combinar e equilibrar esses . dois tipos de apelos? O que esperar do intelec- tual que chega ao poder ou dele se aproxima? Uma ruptura com as exigências da política e do governo? Ou o abandono da condição mes- ma de intelectual? Nos artigos aqui reunidos, escritos ao longo de mais de quarenta anos de ativa participa- ção no debate político italiano e na análise das vicissitudes da história contemporânea, Bobbio deseja reafirmar uma convicção: entre intelectuais e políticos existe um hiato difícil de superar. Por isso, acredita que não há por que nutrir ilusões a respeito da função ime- diatamente política dos intelectuais, tanto no que diz respeito às suas denúncias quanto aos seus projetos de sociedade. A "política da cul- tura" e a "política dos políticos" devem ser mantidas bem separadas, imersas em suas ló- gicas próprias. Bobbio acompanha as polêmicas que dividi- ram os intelectuais em relação a essa delicada questão. Que os opuseram uns aos outros, fa- zendo que se atirassem em um interminável debate a respeito de si mesmos, de seus "si- lêncios" ou "traições", de sua "decadência" ou "morte", de suas "culpas" ou responsabilida- . des, de sua crise, de suas atribuições. Recu- pera e dá novo tratamento aos pontos de vista clássicos com que se buscou equacionar o problema (Julien Benda, Karl Mannheim, Ortega y Gasset, Benedetto Croce, entre ou- tros). Mas não deseja fazer uma sociologia ou uma história dos intelectuais. Sua intenção é OS INTELECTUAIS E O PODER FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Antonio Manoel dos Santos Silva Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Assessor Editorial Jézio Hemani Bomfim Gutierre Conselho Editorial Aaulbnico Antonio Celso Wagner Zanin Antonio de Pádua Pithon Cyrino Benedito Antunes Carlos Erivany Fantinati Isabel Maria F. R. Loureiro José Roberto Ferreira Lfgia M. Vettorato Trevisan Maria Sueli Parreira de Arruda Raul Borges Guimarães Roberto I<raenkel Rosa Maria Feiteiro Cavalari Editora Executiva Christine Rõhrig Editoras Assistenta Maria Apparedda F. M. Bussolotti Maria Dolores Prades NORBERTO BOBBIO OS INTELECTUAIS E O PODER DÚVIDAS E OPÇÕES DOS HOMENS DE CULTURA NA SOCIEDADE ( CONTEMPORÂNEA · Tradução de Marco Aurélio Nogueira 21 Reimpressão FUNDAÇÃO Titulo original em Italiano: li dubbio e la scelta, Intelletuali • e potere nella società contemporanea. Edição em lingua portuguesa efetuada com a intermediação da Agência Uterária Eulama. Copyright © 1996 da tradução brasileira: FnnrlQran J:A; .. ,... .. - ...1- ' l'\,, ,r.i"n ,_ .. , úados tntemacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Càmara Brasileira do Uvro, SP, Brasil) Bobbio Norberto, 1909 Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporànea / Norberto Bóbbio; tradu- ção de Marco Aurélio Nogueira. - São Paulo: Editora UNESP, 1997. - (Biblioteca básica) Titulo original: II dubbio e la scelta. Intellettuali e potere nella società contemporanea. ISBN 85-7139-1440 · 1. Filosofia politica 2. Intelectuais 3. Poder (Ciências sociais) I. Titulo II. Série. 97-1266 CDD-305.552 Índice para catálogo sistemático: J.1 Intelectuais e poder: Sociologia 305.552 S:UAC Aloclad6n de Edltor1alea UntverllWtu de Amertca Latlnay el Cartbe Editora afiliada: l■■I Aaloclllçto Brullelra dé Edltoru Unlva11HArlaa ' SUMÁRIO 7 Introdução 21 A "força não-politica" 22 Dois paradoxos históricos e uma escolha moral 31 Intelectuais e classe politica 37 Julien Benda 57 Considerações sobre os manifestos dos homens de cultura dirigidos às autoridades polidcas 67 Intelectuais_ e poder 91 Da presença da cultura e da responsabilidade dos intelectuais 109 Intelectuais 141 Grandeza e decadência da ideologia européia 157 A Europa da cultura 175 Nem com eles, nem sem eles pedro Realce pedro Realce pedro Realce INTRODUÇÃO O _debate entre intelectt1ais a respeito dos intelectuais, isto é, a respeitn de ai ptópri~t;"mttégiia, ~sciê qua~do, por uma gentil sugestão de Franco Sbarberi, que também me auxiliou durante a com- posição do livro, comecei a reunir e ordenar esses meus escritos, somente no ano de 1992 foram publicados tantos livros sobre os intelectuais que nem bem eu começava a ler um já surgia outro.1 Nos dias em que estava Refiro-me aos livros saldos em 1992: Z. Bauman, La dmulenta degli intelteuwali. Da legislatorl a lnterpreti. Torino, Bollati Boringhieri, 1992 (ed. original: Legislators and lnterpreters. On Modemlty, Post-modemlty and lnteltectuals, 1987); D. S. Schlffer, li discredito degli intelteuwali. Storia critica di una vocazione da Emil Zola a Vaclav Havei. Camago (Varese), Sugarco, 1992; W. Lepenles, Ascesa e declino degli fntelte- uwali ln Europa, Roma-Bari, Latena, 1992; M. Serra, La (erittJ delta modemfiâ. lntellettuali, totalitarismo e lmmaglne dei nemlco, Bologna, li Mulino1 1992; 8.-H. Uvy, Le awentwre delta liberta, Milano, Rizzoli, 1992 (ed. original: Les adwntwres de la libertl!, Paris, Grasset, 1991). Do mesmo autor, Eloge des intellectwels (ed. italiana Milano, Spirali, 1987); J.-P. Same, Difesa deWfntelleuw- ale, Roma-Napoli, Theorla, 1992 (trata-se de três confer~ni:las publicadas sob o titulo Plaidoyer powr les intellectwels, proferidas no Japão no outono de 1965 e Inseridas na IV seção de Si1wa1fons Vlll, Paris, Gallimard, 1972), Sobre alguns destes livros e, também, sobre L l.õwenthal, L'integrild degii intellettwali, Chled, Solfanelli, 1991 (ed. original 1984), ver a Interessante resenha de R. Monteleone ln L'Jndice, n.3, março 1993, p.36-7. 8 NORBERTO BOBBIO escrevendo esta Introdução, nosso pequeno mundo foi agitado pelo artigo de um conhecido e prestigioso historiador da literatura, homem politica- mente engajado, que lamentava o "silêncio dos intelectuais" (naturalmen- te sobre um episódio ·especifico). A acusação desencadeou sua loquacidade, tanto que o debate sobre o assunto permaneceu durante alguns dias nos jornais. O silêncio era renegado apenas pelo fato de que dele se falava. 2 Não deve surpreender que apareçam tantos escritos sobre os intelec- tuais. ~~ _d~~j_o-tek_<;tuais descm_p_~nh_ª, pelo fato mesmo de assim ~gil, ':1f!l_:t_f~1~5..ã~_gl!~_h:i_~itualme~_gtbe aos intelectuais; torna-se.,_-~~ menos naql!~la oçasião, um_ i1:tte.!~tl,!aL Q!Jando os intelectuais fal~~ d~~ intelectuais es~C? f.tlang(), na r~;tlldaçl~, <l~óprio~.- mesmo ·s;·wi uma c~riosa dup~c_ação da ~_r_sonalid!lde acabam por falarda pré>pEi~ <:_onfrarta, como se a ela não pertencessept, Não é preciso ser médico para falar de medicina, ou jóquei para falar de hipismo. ~ãose .pode.falar d,t intelectuais ..5fflÚI!.~~-º. IDH:.h1tblti!ª.lrr1~nte _ fazem os J_t:1tele~l!tais, e, PQ~!}to_._~m se.r ... ao.JJ1eno&...naquele.momento, um intele<:tu.al mesmo qu~ _não consciente de sê-lo. ~ -~!~ incol_l_!C~ente duplicação ;~mJte a um •~t«:l~ctual fal1tr tão mal dos outros intel~l!is. Prova disso é que, dos ltvros que tenho diante de mim enquanto escrevo, há um que fala da "decadência", outro do "descrédito", outro aind~ do "decllnio" dos intelectuais. O inaugurador dessa longa série de conteatações Ôs acusou até mesmo de traição. Porém, quem se ócupou um pouco da história do problema viu-se diante de outras representações não menos destrutivas a respeito da natureza e da sorte dos co-irmãos, como a "falência", a "d d " " 1· " " · 1 " " erroca a , o ec tpse , o crepuscu o , ou o desconforto", a "desori- Dos livros publicados no ano anterior, menciono L'intellettuale milirante, de Michael Walzcr, que traz, como subtltulo, Cridca sociale e lmpegno polidco nel Novecento, Bologna, li Mulino, 1991 (ed, original: The Comj>an:, of Cri1icism, and Poli1ical Commi1men1 in the Twentieth Cen1u,,, Ncw York, Basic Boob, 1988). 2 O tema do silêncio dos Intelectuais é velho e recorrente. Recordo no presente livro (cf. infra, p.92) que mui1aa llrcas cobraram os intelectuais italianos por terem silenciado demaia durante o seqüestro de Aldo Moro, Mas 1ambém é freqüente a ~brança Inversa, Os_ Intelectuais são repreendidos por falarem demais a respeico de s1 próprios: Lepenies observa no Inicio de seu livro que ós diversos intelectllais desconsideraram "com freq0ência e com grande e sempre crescente vontade" a máxima "de nobis ipsis silemus" (op. cit., 1992, p.S). 9 entação", o "transformismo", a "metamorfose". Chegou-se mesmo a "d · " " · çã " "6 " d i tel · prognosticar o esaparectmento , a exttn o , o m os n ectuats. Recentemente, alguém nos comparou aos dinossauros, espécie .ex- tinta. E solenemente proclamou: "Intelectuais, ~s es~ roonoa!". E ele? "E ele", pergunto-me, pois quem fazia tal comparação revelava-se, naquele momento, a quintessência do intelectual. Que seja ele o único ainda vivo, com a única tarefa de proclamar que, à exceção dele, nós outros estejamos todos mortos? A maior parte destes discursos está viciada por um erro lógico bastante conhecido, do qual um intelectual deveria prevenir-se: a falsa generalização. Muito freqüente na excessiva linguagem polêmica cotidia- na, que não se pauta pela sutileza na análise dos fatos e no uso das distinções ou das subdistinções, pois seu objetivo é antes de tudo o de persuadir ou de dissuadir, não o de conhecer ou fazer conhecer, a falsa generalização é desaprovada no discurso racional. ~~l!l. àJiJJ&YISm. wlgar, fabricada ~~ ~~tereóti~s, segundo a qual II>dos os pc:,llticos são com.Íp~;, togQLQ~ .. médiC9s são inco~ten~• . e •. claro. ~Qs os intelectu~is são ~2!.!~!':~m~nte arrogantes~ido8'.3s, _crêem ser S!l~SC lá 9~em é assim por_ ~~9:.nte!. o~ ~~t.. ~~'? _fo.!,_9!~-~~te. "lamênfusos"": ~alar dos intelectuais como se eles pertencessem a uma ca~;1;· ·hÕmogênea e constitulssem uma .. massa indistinta é uma ins;~"z;-ãumããflrmaçãÕ ~~e~_p~rj,a -~mo ~s in_tç)&ç~~i~..!mPl"' ci;;~-;-~edi~tâmêni:e -~iJiintar; "Pr~cisam~nte tos{Q~? ~-s~ _nãQ,jQ®S, q~;1sr"; lYs,..dercs1\ d~_ql!~ fulara.Bel)da, eram uma particular espécie de es'"critores, · qu; haviam adquirido um peso especifico na formação da opinião pública francesa na era dos nacionalismos exasperados. Mas Benda se considerava ele próprio um "clerc". Se a proclamação de que os clérigos haviam traido era uma intencional falsa generalização, o objetivo era puramente.polêmico. Se se tratava de um erro lógico, era assim porque Benda tinha um motivo prático bem preciso e não muito diffcil de descobrir. Diga-se o mesmo de outras acusações freqüentes, como a do oportunismo ou, no extremo oposto, a do dellrio de potência. Seja qual for o modo em que venham a ser deAnidas a natureza é a ~nção do intelectual (deAnição que normalmente é dada como pres~upoata), não é posslvel algmçn.umiuk6nJçã<> ~stri~va o-•~ l)JIIIJQtoar pl~111. jyj~g. d~ ab.•Qlyj~Q oy_ c!e_ cot1~en!lÇio....~l. TQdgs inocentes, todos culpados. "Os intelectuais são transf<>rmtflJS • M.aa_ alt mesmo quem prqnµncia esse severo veredito_, não será tam~m ele um 10 NORBERTO BOBBIO ll!telectual? Sobre os intelectuais. abateu-se hoje em dia um descrédito geral. Mas se quem afirma isso é um intelectual, ou acredita ser ele uma exceção, e portanto não é verdade que o descrédito golpeie a todos, ou também ele está em descrédito, e assim nenhum valor pode ser dado ao seu juízo. De resto, há uma prova irrefutável da superficialidade dessas assertivas peremptórias: a sua contraditoriedade segundo a parte de que provém. ~s intelectuais 4~~~saprovad~ J?°.~u~-~ão sempre "contra". Mas. iss~y dito, pdos _ poderoso~ia. Não, os intelectu~!s ~~~- s~~f!ª-.®.S..PQ!.9Y.«....§ª2_ÇQr:tformistu, Ma:i il~Q ~-dJto pelo~_~e pretendem se _tomar os poderosqs do futuro. Falam demais, são grilos fa~, ... m:ontos aresponder __ a to~l!s __ ª.S. pergunta~-de tnQcl<>a_§!_er ap_ar~~~ I}~!!l~O,ÜQm..?,i,s. QU, .P.!Qt~ a serem chamado~~!paajç!_par de ~l!l-deba~ ~Q~.Não, dizem os que não querem se ~lll(Jro~ter demais com as questões dificeis. Es~o ~e_l!l_pre _quietos, não. st:_ cmn}!rq- m~_EQrgy.e__não(lllere.m d~s1,1grn.cJ.~.t._njri~é~..z..<:!!~~!!L~s _gue andam em busca de COJl.§.Cll&O.§~ s!!j~1E-_e~~-~!!!'1.sta_s2u .P!.8~'?!~.h,em-suce~T~s. São incorrigíveis e inoportunos enf ants teTTibles. Não, são os "cães de guarda" do poder constituído. Seria possível continuar. Em segundo lugar, deve-se observar que a maior parte desses juízos ressente-se dos humores <;lo momento ou de situações particulares, tanto que quem os lê alguns anos depois geralmente os considera exagerados ou mesmo equivocados. Com essa segunda observa~o, refiro-me não tanto aos juízos sobre a natureza do intelectual e sobre a sua função na sociedad~, quanto àqueles sobre a maior ou menor relevãncia que têm os intelectuais na sociedade em que operam, vale dizer, àqu~les juízos que decretam com absoluta certeza o seu declínio, eclipse ou decadência, e prognosticam a sua morte próxima. Nesse caso, o erro depende não de uma falsa generalização, mas da ausência, também ela condenável, de distanciamento histórico, característica de quem está excessivamente colado aos acontecimentos para formular, a respeito deles, avaliações que estejam além do consumo imediato dos ouvintes a que se dirigem, satisfazendo-se mais em desempenhar o papel de oráculos do que em conduzir uma análise detalhada a respeito de um arco de tempo mais longo do que o que cobre a contemporaneidade. O erro depende também do caráter restrito, nesse caso não de natureza lógica, mas de origem histórica, com que é usada a categoria dos intelectuai~mo ,ae ela oãa tivesse sempr~ .. eJ<tstido, emQgr~ .. ~IJl QUtr(?U.l..Q!!l~§., e ~"lº se el.it~é>gv~ise nai;cido qµando. no.linalda.__século.XJX..como affoi.ire OS INTELECTUAIS E O PODER li Dreyfus, 3 difundi~~e o uso da palavra, primei!<> na Frar:iça e.deP.Qis em todo O mundo dvi!iz_ad<?,_. Hoje; ~lu1mam:11e i,ntelectuais aq1:1eles QUj;.cµ\ outros tem~~~.:!...'!!.~hamado!.~L~~• do~~hlftl!2s..~hes.Jitm,tos, g~~~Jifü!l....m.L~i.s .!impl~!111çp.~, ~.scritot~e...DU.$QÇied.td~!. i1omi- nada.~,,p<>r .~':°. f?rte PQd.çr ~!i&ioao. s,açemotes. dt1:i~sj_tl]Jo ~r a~, as~im os .. çhamQu.Benda ,para _p<:>der lhes atribuir a função nobre de cu~toc:litll'. . .a -verda~e. acima das facç~se"n, luí:ãpela coriquista"cfo"pÕéfer lll~~danqJ · · ------~,___,,) Embora com nomes diversos, os in re existiram is sempre existiu em todas as soei ª~-~-d9 .. P$~l~!.~.s.onõmico e do po~er_po]t,ico, º--~-e~- i~!<;'>gjc.Q._.QU~ _s~.J~1'~I~..Dã~LS9P.~. P~-~~s co~_?-~. ~~r ~li!!~,.jamais se~~~9_gg.l)D.det...militar, nã2 sobre a pos~.~~_be~!_fll_a,t,~ri?is, ~os quai~ __ se .m:ç~ss!ta par_a viver e sobreviver, como o _poder econômico,. mas sobre as mentcLtida.PIOO.\I~º e tra~missão de idéi~s, de sirobolos, de :ci~do roundo, de _ensi~~ll!<:!1· ro.s_~!.ª!i..ÇQ§, mC:~~~~~- °..'!~<?..dª. p~la~ (o pqgeJ'Jd~l(>gj~ !,_çmç_m~- men.QL~nds:.nte..dll .n~za g9_hçmwn..s;gD1Q..i!!Ullªlfa~.!l~). Toda sociedade tem os seus derentores do(PC>der ideológico, cuja função muda de sociedade para sociedade, de época para época, cambianres sendo também as relações, ora de contraposição, ora de aliança, que eles mantêm com os demais poderes. Existem sociedades em que o poder ideológico é monopólio de uma casta, e outras em que ele é difundido por diversos centros de irradiação, muitas vezes concorrentes entre si. Como de resto acontece com os outros dois poderes. Existem sociedades monocráticas e sociedades policráticas. Nas democracias modernas, que são sociedades pluralistas, o poder ideológico está fragmentado e se exerce nas mais diversas direções, algumas vezes até mesmo contrastanres entre si. E essa é uma outra razão pela qual todo juízo global a respeito dos intelectuais é sempre inadequado, desviante, além de objetivamente falso. 3 Sobre o tema, menciono a coletânea de ensaios vários, li Principe e il Filosofo. lntellcttuali e porere ln Francla. Dai "philosophes" àll'"afíaire Dreyfus", organizada por L Sozzi, Napoll, Guida, 1988. Sobre a história dos intelectuais na França, os dois volumes de Arlane Chabal d' Apollonia, Histoire f>olitique des intellec1uels en France: v.l, Du lendcmains qui dtchantent; v.11, l..e temps de l' éngagement, Brwcdles, 1991. Para uma história completa dos intelectuais, no sentido mais vasto da palavra aqui acolhido, cf. A. M. Jacobclli lsoldi, L'intelleuuale a Delfi. Alia rlcerca della proprla idcndtà, Roma, Bulzoni, 1976. 12 NORBERTO BOBBIO Em..Y.llllU..ocied~ pluralis~ o desaparecimento dos intelectuais, sobre o qual tanto se fabula, é improvável: fechado um canal através do qy_;µ passava um fluxo de p~d~~Td~~lógt~~~ ~bre-se imedi~ta~e~te ~m outro. D(.f~s~Q,jainEíém em uma sodeaaae móriõcrática, como foi a Uriião Soyiétka, mesmo no poder ideológico jamais deixou de existir a veia êfo di_!.s_sri_s_~~a11ifesta pela constituição de redes de comunicação não-oficiais, clandestinas, que tiv~~m _grande eficácia, em~ra em um circulo restrito. É.ainda mais improvável a l!lOrt~~-ºs im:~J~s~11is hoj~,n~_C>_!_Ó eormie aum~,!!.,~!-ªI!lJI.,; sociedades pluralistas.mas t,mbém porque aumentaram deimedidamente os. meios. com os .quais o .. poder ,ideológico l)Qde. s~ • manifestar e se expandir.Assim~mo o meio do poder QOlftico é sem_p_re em lllti~_:_du.armu_~_ o meio do ooder. econômicQJ a ª~-•~mla~Q, de bens roateriais.,o princip~l_meio d.o_poder id~!~g!co é a p_a_l~~•-.<?4. rntJh2f_,_íL~P~ssão,~t: idéiasJ>oi:~eio da ealavra, e com a p~la~!B•. 9:gora e ~mpre mais, a ima~m. · · Atente-se ao menos por um instante para a enorme diferença que existe, com respeito ao poder de difusão da palavra, entre uma sociedade em que o poder ideológico se exprime 'principalmente por um sermão na igreja ou por um comido na praça e uma sociedade em que a cada dia s~em centenas de jornais, de opúsculos, de livros, organizam-se centenas de conferências e debates, e em que a todo instante se pode ligar o rádio ou a televisão e ouvir alguém que procura, pelo discurso, influenciar o comportamento de quem lê ou escuta, para induzi-lo a agir mais de um modo que de outro. Será passivei discutir o quanto se queira a respeito da efetiva influência das comunicações de massa sobre o comportamento dos indivíduos em uma sociedade tecnologicamente avançada, na qual, se é verdade que o individuo vive e é obrigado a sobreviver a cada hora do dia em um mundo de palavras, é também verdade que ele se torna menos ingênuo e aprende a se defender. Pode-se sustentar que o pluralismo dos centros de poder já é, por si só, uma defesa, pois permite que se façam escolhas, mas não se pode negar a superficialidade tendenciosa e malévola dos que apregoam aos quatro ventos que os intelectuais estão mortos. Viveowaemsociedades nas quais cre~~-°-. enormemente o espaço a elCIS concedido para se fazerem ou~r -~ m~ltipÍiéarâm,se Ô~ tneios de difusão das pr~uções intelectuais. Com isso_ r1_ão qµero_ di~r que aumentou o seu poder. Trata-se de um outro p;6blema: é o pr<>blema qµe diz respeito ao nexo, ao qual me refiro freqüentemente em meus textos, e~tre pod~ ideológico e poder politico, OS INTELECTUAIS E O PODER 13 rel~!t!º não-si_m~Uic.ll. e de.stinada a se alterar SC:_8'-'~~C>_!s_~!:V~~ tãn~as. Se se considera que em uma sociedade economicamente avança- da, tecnologicamente desenvolvida, ao lado daqueles que chamei de "intelectuais ideológicos", crescem em número e peso os intelectuais que chamei de "expertos'', os "técnicos do saber humano", para usar uma expressão de Sartre, então deve-se concluir que não há detentor do poder econômico ou do poder polltico que possa desconsiderá-los. Aliás, é previsível que estes estejam destinados a aumentar com respeito àqueles. Demonstra-se assim que os julzos sumários sobre o desaparecimento dos intelectuais são apenas o efeito da unilateralidade da análise, que deveria ser examinada e depurada antes de se proferir qualquer sentença peremptória de condenação, e da passionalidade com que tal gênero de discurso é geralmente conduzido. . Uma terceira razão de confus!º1..~_lv~_8:_!!)!iS.&!!l~-~ i!JlJ>«:.~Q.~I, í é a incapacidade de distinguir, nQ.9i.~YJllP§Qh~.O.l! intelectuais, o plano do. ~r do plano do dever ser, a postura descritiva. da pos~ra p;~critiva, o ·momento da análise ~o mom_e~to✓,da proposlll, Uma coisa é deli~itar a-~-~~ na qual é corretQ usar o tertno "intelectual", jaro;1i~ ~8_9.1:l~!O.c!<?. que outros termps equivalentes foram usados em outros tempos, outra coisa .. é .acreacef\tBF qual deva ser su~ função na sociedade segundç, este ou,aquele pontx> de vista. _A passagem de um plano a outro ocorre muitas vezes de modo inconsciente, tanto que o juízo negativo sobre a inreira categoria depende unicamente da constatação de que, de fato, os intelec- tuais de quem observamos o comportamento não desempenham a função que deveriam desempenhar segundo o modelo ideal que temos em mente e com o qual nos identificamos. Mas apenas por isso deixam de ser intelectuais? A melhor prova dessa confusão é a distinção que Sartre (cito propositalmente um autor ao qual é impossível não se referir quando se discute o nosso tema) introduz entre "verdadeiros" e "falsos" intelectuais. 4 4 "GIi intelle11uali", em J.-P. Same, L'unlwrJale Jingolare. Saggi fllosofld e politicl dopo la "Critique", organizado por F. Fergnanl e P. A. Rovatti, Milano, li Saggiatore, 1980, p.47ss. "Falsos" intelectuais slo para Sartre os que na guerra da AfFlla puseram no mesmo plano a violência argelina e a violência francesa. Compreende-se que apenas partindo de uma definição persuasiva de intelectual é po11lvcl distinguir 01 verdade!• ros dos falsos, definição persuasiva que pouco depois é apresentada asslm1 •o papel do intelecrual é o de viver as próprias contradições e o de superá-las através do radicalismo" (p.60). 14 NORBERTO 808810 Falsos são os que cle&empeobarn uma fimção Q.~ra S11rtre é ne~tiva, e tn~!iv.ª-.Y.Di@neote porque oão de§s:.m~!!_ham !' Íilnção q~e-se~riifo e!~ q~~!ªm desempenhar, AssiJD,_KJ:.1tverdadeiro intelectual o revolu- ci~!!io; falso o. _re,a,c!QP.áf!Qi..V~rdadeim .s_~-~-ªqueÍe q1:1e se engaja; fa(~, aguele que ~~e en~~rmanece fech!ld.Q..mL~!'~ _ge ma,_r.f!!E• Todos podem ver a que distorção se chega na compreensão e, portanto, na possibilidade de se resolver o problema quando se substitui arbitrariamente uma definição analítica por uma definição propositiva ou persuasiva. Fica a suspeita de que juízos sumários como aqueles sobre a decadência ou sobre a morte do intelectual dependemunicámente do fato de que, uma vez definido o intelectual segundo o modelo que · assumimos, a decadência ou a morte digam respeito não tanto à categoria em geral mas àquela espécie de integrante da categoria à qual, em nossa hierarquia de valores, atribuímos um posto preeminente, àqueles que Sartr~ c~a~a de "v~rdadeiros" intelectuais. ~s,~suPQnd~ ~.QLla:1- dadetros .!.n~!~ats estejam mortosot1 e~am,__morrenqo, tem ~esapa- rec-.!_d~!-na -~_ioo~cie,-,:__ª3.'.fol'!!'a-de ~~_! __ idC?lt?gico? Desde qu~ as tare~s_ a,~~uíqa~-ªº-.lmmul~mPQ aos intelectuais são diversas, senão o~~tas -:. pe_nse-~ em ,c;lisp\l~'- CQffi<>.Ji9.~~Ji12_~~ 0 g~r:4~ ê~~a- mento oo d<> desengajamentDL!lO.ÇC,Ql~~ C?,U_ fu~ ~~_comba~., nas praças co!!19..P.OVº comumo_u_rn~ to~ de~m !l~o.u_ç<>m os_sem~lh~s, to.do de_ uma parte.au_.mediadoreq~ f! "ªria_s partes, protetor dos valores da tr?,çljção ou oµsadamen~ inpyadar -, a q1.1aldessas figttras está se refe~_ndo -~-u~~ .d_~creta a rn~m; ~os inte~~ais? Ó~!,g!liu em,~é- dit:Q, Q intelec:JYaL ~.O.ILO intelectual desenmiiado? Quem está m<_>~.2!-1 d~~!P.~~-~Jg!), O iQ.~.!!Lmediadar 011 D revoluáonári~? E assim por diante. Se a categoria não é homogênea do ponto de vista descritivo, menos ainda o é do ponto de vista prescritivo. É bastante irritante ver-se diante de textos que não fazem tais distinções elementares. Dessa confusão mental só se pode dar uma explicação psicológica, interpretando-a como o produtx> de um estado de ânimo, tão freqüente no intelectual que se auto-avalia, que oscila entre a vocação para a autoflagelação e a vocação para a autocomiseràção. Em termos realistas, porém, é lícito supor que, se, admitamos, caiu em descrédito o intelectual utopista, que gostaria de mudar o mund~ imagem e semelhança, passou a ter mais crédito o intelectual com os s ~g.;-ê-~IIi_a o político a dãf:ümpãsso âe cada.vez. xistem ou não existem, simultaneamente, intelectuais extremistas e ;-oderados, OS INTELECTUAIS E O PODER 15 otimistas e pessimistas, progressistas e conservadores? Quando um intelectual fala da morte de seus consortes, é improvável que se refira à morte de uns e de outros. A derrocada da utopia comunista anunciou a morte do intelectual idealista. Mas ao mesmo tempo não fez nascer o intelectual realista? E como é possível deixar de levar em consideração as circunstâncias históricas que influenciam seja a preeminência desta ou daquela figura de intelectual, seja a maior ou menor expressão do seu poder? Enquanto, na Itália, em um período de política não só sem ideais mas também sem projetos, do qual talvez estejamos saindo, os intelectuais contavam cada vez menos e suas polêmicas apareciam e desapareciam sem deixar marcas e sem que os homens do poder sequer se preocupassem minimamente com elas, em -um grande país como a União Soviética, dominado por uma impiedosa e obtusa ditadura, alguns poucos escritores, poetas e cientistas, com seus textos de protesto, obtiveram vasta ressonância em todo o mundo e tiveram enorme importância na dissolução de um poder que parecia destinado a durar uma ~nidade. Deu-se o mesmo em períodos semelhantes na Itália. Basta recordar o magistério de Croce, intelectual não-político, durante o fascismo, o fervor dos espíritos logo após a queda do regime e durante os anos da reconstrução; e, ao contmrio, a_. escassa incisividade dos debates culturais após a consolidação do poder democrata-cristão e de uma fórmula de governo que permaneceu quase intocada e sem variações substanciais por decênios. De que criatividade cultural deram provas partidos como o Democrata-Cristão e o Socialista ou como o Partido liberal, que tivera Croce e Einaudi entre seus pais fundadores, nos anos que precederam à queda do Muro de Berlim? Mas então um novo livro sobre os intelectuais? Sim e não. As páginas aqui reunidas, nascidas em grande parte da minha ativa participação na Sociedade Européia de Cultura, ao longo de um período de 40 anos, que se estende dos primeiros textos reunidos no livro Política e cultura, de 1955, a Pro/ilo ideologico del Ncwecento, cuja última edição atualizada está para sair em tradução inglesa, são em sua maior parte variações sobre o tema. Mas o tema é visto de diversos ângulos: para retomar a distinção à qual me referi anteriormente, é tratado do ponto de vista descritivo - "quem são os intelectuais?" - e fenomenológico - "quantx>s são os tipos de intelectuais?" -, distinto do ponto de vista prescritivo e optativo - " qual é meu ideal de intelectual?". - 16 NORBERTO BOBBIO Com relação ao primeiro aspecto, os dois textos principais são "Intelectuais e poder", de 1977, e o imediatamente posterior "Intelectu- ais", verbete escrito para a Enciclopedia dei Ncwecento: em ambos propo- nho uma tipologia, mas com critérios diversos em cada um deles. Outras tipologias, conhecidas e menos conhecidas, são ilustradas ao longo do livro (Geiger, Coser, Aron). Em um dos escritos mais antigos ("Intelec- tuais e classe política", de 1954 ), apresento algumas das mais conhecidas teorias sobre os intelectuais (Benda, Mannheim, Croce e Gramsci); mas o principal inspirador foi Benda, ao qual é dedicado um ensaio inteiro e ao qual retorno nas mais diversas ocasiões. Com relação ao segundo aspecto, mantenho-me fiel às conclusões alcançadas em "Polftica e cultura", publicado em 1955. jamais me distanciei do tipo ideal do intelectual mediador, cujo método de ação é o diálogo racional, no qual os dois interlocutores discutem, apresentando, um ao outro, argumentos raciocinados, e cuja virtude essencial é a tolerância. Dai a minha desconfiança para com os apelos e manifestos que buscam reunir homens de cultura para que exprimam unilateralmen- te, e muitas vezes fazendo largo uso da moção dos afetos, uma opinião ou um conselho, endereçados a interlocutores que não escutam: o texto composto há muitos anos sobre o tema, havia ficado até hoje sepultado nas memórias da revista Comprendre. A outra firme convicção que me orientou em todos esses anos, e que se foi reforçando pela continua• e monótona lição da história e pela participação no debate político desde a queda do fascismo, é que entre intelectuais e políticos existe um hiato difícil de eliminar, só em tempos excepcionais está destinado a diminuir ou a desaparecer. Este hiato me induziu a não me iludir com a função imediatamente política dos primeiros, tanto no que diz respeito às suas recriminações e denúncias como no que diz respeito às suas propostas ou aos seus projetos de uma sociedade justa. Não sei se à guisa de consolação ou como máxima de experiência em que desejo acreditar e na qual vejo com alegria que alguns outros também acreditam, retorna sempre a idéia de que polltica da cultura e política dos políticos são esferas que devem ser mantidas bem distintas; m.!~.~s~.!~_!!h.C:!r!..4~~<:>-~~~~-~~ 1.:u.ltura fuz pgllti~! ele_°" faz_ (}o)~~º prazo, tão lo~~ qu~ osJll~J1tUIÍS imedia~~ão dev~iantperturJ?.H~_nem desviá-lo.de sua es~d~. Tive~ oportunidade de repetir com freqüência a seguinte idéia, que ~e ser considerada a OS INTELECTUAIS E O PODER 17 · conclusão de meu Perfil ideológico: a história das idéias e a história das a~ sobre trilhos paralelos que raramente se encontram. _,,, Disse: sim e não. Ao laao dos textos sobre a natureza e a função dos intelectuais, republico dois ensaios não muito conhecidos sobre a grandeza e a miséria da ideologia européia que, operando com base em uma secular tradição de eurocentrismo, hoje em extinção, vê a Europa como pátria da liberdade. Gostaria, por fim, de chamar a atenção do leitor, posto que chegue ao final do livro (embora não seja necessário ler os ensaios aqui reunidos um após o outro) para o texto autobiográfico que fecha o volume e que foi o último a ser escrito. Trata-se de um texto algo extravagante mas não estranho ao esplrito do conjunto. Relata episódios de uma viagem à China, realizada no Anal de 1955, nos mesmos dias em que Politica e culturachegava às livrarias. Destaca um ~blema incandescente, que não encontrou ainda uma resposta equilibrada: por que tantos integran- tes da intelligentsia européia acreditaram cegamente no comunismo. Nessas páginas não proponho uma solução, limito-me apenas a oferecer um testemunho. Páscoa, 1993. Sobre os textoss "A 'força não-política'". Publicado em II Ponte, ano IX, n.3, março de 1953, p.271-2, na seção "Osservatorio". No mesmo período, eu havia escrito o artigo "Croce e la politica della cultura", em Rivista di Filosofia, ano XLIV, n.3, julho de 1953, p.24 7-65, republicado em Politica e cultura, Torino, Einaudi, 1955, p.100-20. "Dois paradoxos históricos e uma escolha moral". Publicado em II Ponte, ano X, n.6, junho de 1954, p.965-8. Resposta a um questiontrio, proposto pela revista, a propósito do caso do flsico norte-americano Julius 5 Por exigências contratuais, a presente edição braiileira deixa de publicar ot ensalot - "Polltica e cultura" (1963), "Cultura e fascismo" (1937), •sobre a existência de uma cultura fascista" (197 5) e "Tolerância e verdade" (1987), que integram a edição italiana original. (N. E.) 18 NORBERTO BOBBIO Robert Oppenheimer, submetido a uma Comissão de Inquérito por ter hesitado em colaborar para o desenvolvimento das pesquisas, em razão de considerações morais e humanitárias, diante das assustadoras pers- pectivas das bombas termonucleares. As perguntas do questionário referiam-se ao tema das relações entre busca da verdade e liberdade de pesquisa e às possíveis conseqüências de uma e de outra. "Intelectuais e classe política". Estas páginas nasceram como intro- dução a uma investigação sobre a relação entre intelectuais e política - ou, mais concretamente, classe polltica -, promovida pela revista Occi- dente, surgida em Milão por iniciativa de Ernesto de Marchi e depois transformada, precisamente a partir do fasclculo que abrigou esta inves- tigação, como se lê no subtítulo do frontisplcio, em Rivista anglo-italiana di studi politici (ano X, n.1, 1954). Minha introdução era seguid~ pelos seguintes artigos: E. de Marchi, "Nota sugli intellettuali italiani e la politica"; A. Briggs, "Intellettuali e politica nel Regno Unito"; J. Joll, "Intellectuals and German Politics"; A. G. Nicholas, "lntellectuals and Politics in USA"; M. Beloff, "Intellectual Classes and Ruling Classes in France"; E. de Marchi, "Thought and Political Practice in Italy". "Julien Benda". Este ensaio foi escrito por ocasião da morte de Julien Benda e publicado em ll Ponte, ano XII, n.8-9, agosto-setembro de 1956, p.13 77-92. Retomei ao tema resenhando o livro de J. Niess, ]ulien Benda, Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1956, in Rivista di Filosofia, ano XLVIII, n.4, 1957, p.435-7, e numa intervenção radiofônica para o ciclo "I profeti della crisi europea: Julien Benda", depois publicada em Terzo Programma, n.3, 1967, p.156-60. "Considerações sobre os manifestos dos homens de cultura dirigidos às autoridades políticas". Discurso lido durante a X Assembléia Geral da Sociedade Européia de Cultura, realizada em Veneza, de 4 a 6 de outubro de 1965. Publicado em francês em Comprendre. Rewe de la politique de la culture, n.29-30, 1967, p.260-5. "Intelectuais e poder". Discurso introdutório ao Seminário sobre "Os partidos e a cultura na Itália", organizado pela seção cultural do Partido Socialista Italiano e pelo Club Turati, realizado em 28-29 de outubro de 1977 e pubhcado com o titulo "Os intelectuais e o poder", em Mondoperaio, Revista Mensal do Partido Socialista, ano XXX, n.11, novembro de 1977, p.63-72. OS INTELECTUAIS E O PODER 19 "Da presença da cultura e da responsabilidade dos intelectuais". Discurso apresentado à XIV Assembléia Geral da Sociedade Européia de Cultura, realizado em Siena entre 20 e 23 de outubro de 1978. Publicado primeiramente em Studi Senesi, ano XC, fasclculo 3, 1978, p.307-28, depois em francês em Comprendre. Revue de la politique de la culture, n.45-6, 1979-1980, p.216-27. "Intelectuais". Verbete da Enciclopedia dei Novecento, Roma, Istituto della Enciclopedia Italiana, v.111, p. 798-808. "Grandeza e decadência da ideologia européia". Discurso apresenta- do no seminário sobre o tema "Cultura e culturas européias", realizado pelo Istituto Universitario Europeo di Firenze, de 28 a 30 de maio de 1986, depois publicado em l.ettera lntemationale, ano Ili, n.9-1 O, julho- dezembro de 1986, p.1-5. "A Europa da cultura". Co~icação apresentada à Assembléia Geral da Sociedade Européia de Cultura, realizada em Mantova entre 26 e 28 de outubro de 1984, sobre o tema "A Europa: realidade de uma utopia". Parcialmente publicada em l.ettera lntemationale, ano II, n.3, inverno de 1985, p.8-10. "Nem com eles, nem sem eles". Publicado em Nut10le, ano li, n.3, março-abril de 1992, p.6-8. A "FORÇA NÃO-POLÍTICA" Q eroblema du n;leçõe• eottr PQ)ft;iru.~!~~ tem _si~~ a~i~~a- damente debatido ~~l.~!LúlQ."'9' 1mQS. Para indicar a imeorti.ncia dele, sirvo-me da seguinte antinomia: se o ho~ ae cultÜra participa ~aJuta política com tanta intensidade que acaba por se colocar a. aerviço. data ou daquela ideologia, diz:se que ele trai sua missão de clérigo. É a posição, bem clara e bem conhecida, de Julien Benda: · O cl6rlgo moderno deixou completamente de admitir que o laico desça sozinho à praça pública; ele considera ter-se imbuido de uma alma de cidadão e da necessidade de realizá-la com vigor; sua literatura está plena · de desprezo pór aquele que se fecha em sua arte e em sua ciência e se desinteressa das paixões da cidade. Entre Michelangelo, que repreende Leonardo por ser indiferente para com as desventuras de Florença, e Leo- nardo, que responde atlrmando que o estudo da beleza preenche na realidade todo o seu coração, ele se alinha violentamente ao lado do primeiro. (La trahison eles clen:s, 1946, p.128). Mas se, de outra arte, o homem de cultura se acima do com (al di sopra interessa das paixõeJ. 1 A expresdo Italiana,. emprepda dlvenu vae, por Bobbio ao longo do livro, ealll referida, como ficam claro em calJltuloa eubseqOenta (cf. eobretudo •0a presença da 22 NORBERTO 808810 da ~ade", diz-se que faz obra estéril, inútil, professoral. É a posição, para também mencionar um nome conhecido, de Antonio Gramsci: ,1. falta de vontade de se engajar a fi.mdo,_~Aisdn~~-entre o que deve fazer um jntele_gpili9,.~ lU!:ru(tiCQ (co.nMtf~." jnç~lCf!YfilJ}Jo fu~m.b.çm...um.politico,,.c.não..&ó.um.palida, ... ~'.lntdectualidadç,j e, ~<>_ -~nd~.!~.~ . .I! _clJ!'<:.~p~<>_ his1ºrlg_i.mç!ana,.~s~<> na orige~ .~'!~ta diÍllJ.iQ, V.~·J.ç Qll~ ser parti.diiri<> dia l\berq@~e em !ll?.•trnmJ1ão comit~a, t simplesmente !J!l\ll po,,içlo d~ .hqmein d,ç. eabinf'4gu, _estuda <>s, ~~~ ~'? pasSlldQ. inas não .de homero atu@l que partlclpaJl!IJJutas do se1J _ ~_mgo. (Passato e presente, p.27). E~_~: n~,_.!!'..~~J~.!L~'n .. 4~. faz _politi~1. o intelectu,l ~i_ a cultura, !!ª_m,egjda em que se recusa.a.f.li.er-se ~lltico, a inutiliza. Ou traidor ~u inutilizador, · ·•• Mas essa antinomia, atente-se bem, nasce do fato de que ambas são , '- posi~s extremas e unilaterais em seu extremismo. A primeira faz de cultura e PQlltica dois termos antitéticos; a -~gunda reduz a cultura à polltica como se se tratasse de um l'.anioo termo. Para dissolver a di&uklade valho-me de um pensamento de Croce (em um de seus últimos escritos): Cade um de nós pode contribuir, coddianamente, dos mais variados modos, para restaurar, para robustecer, para tomar mais operadvo e combativo o amor pela liberdade, e sem pretender ou esperar d absurdo, ou seja, que a politica modifique a sua natureza, contrapor a ela uma força ndo-polftica, uma força que a polfdca jamais pode suprimir radicalmente porque r.enasce sempre nova no peito do homem e com a qual dewrd sempre ajustar as contas (lndagini su Hegel, p.1S9. Grifos meus). Aqui, em Croce, portanto, não há nem antíte~ nem unidade i"!~sta, mas distinç_ãoe integração reciproca. Há uma força_ ~ca, e portanto_ ª pollt!ca não a~t"a,?J<?u. ll!q. ~l!(ogl!Q4º _e:> b.QroÇ.,m..1 Mas a cultura e da responsabilidade dos Intelectuais• e •A Europa da cultura•), à famosa frase de Romaln Rolland "caii-demcs de lo mll«•, pronunciada durante a Primeira Guerra Mundial para enfatizar a necessidade de independência do Intelectual. Tanto em italiano ("mischlCI") como em franc& ("mllá:"), a expressão remete-se sempre à idéia de um combate desordenado e violento, podendo ser traduzida, em portugu&, de diferenll!II maneiras, combate, peleja, tumulto, rixa, ~ntenda, briga. (N. T.) OS INTELECTUAIS E O PODER 23 politica_precisa d~.nta.Jk _gµ~_PQ§~Ui essa força, . .e. pgltanw .e&a ta~bém é um elementp vivo e vivifkador .da..~cidade". Força não_~l!!i~-~ quer dizer, para Croce, força moral.,t\qui está a missão do homem de cultura: aqui está, diria, a sua política. Na medida em que defe!lfie e al!fl!~~ta valores morais, ninguém pode acus~q~ser· escr.,a~Q-~!I J>,_aJlCões' partidárias. "po"rim;;9· inei~õ tempo, na_ t:,:l~i_Q!,_ e~ que adquire consciinêiâ bem clara de que estes valores não podem ~ desêõnsiderâd~~ po·r. ~~nhuma república,. sua obra de artista e de poeta, de filósofo e. de· crilie.~: ·tomâ~se eficai nà" s~iedade da qual é cic!ª~ã9. Faça-se pois o hQID~r1ule q.1l~J!l, conscientemente, sem reserv~s ne~ falsos tem(}res, portad<>,Lde_ssa._força .não-política: não será nem traictõr' nem inutilizador. · - DOIS PARADOXOS HISTÓRICOS E UMA ESCOLHA MORAL 1 Com respeito ao habitual modo de pôr o problema da "liberdade de pesquisa ciendfica", o caso do cientista que se recusa a desenvolver \~a pesquisa por razões morais apresenta dois aspectos paradoxais: Admitamos que por "liberdade de pesquisa ciendfica" entendam-se, na linguagem juridica, duas coisas: a) a pesquisa ciendfica é uma a.tividade lícita, quer dizer, é uma atividade que,não sendo .. neq1 com~ndad~ll~m proibida, é pçr111,itjd~ .. É pe~mitido o qu~ se l)O(iç_Jim~r .. ~ Q Q.\ltL~~ não éâzer; mais P.~!!tl}l~~te~· ~ê-s~ fa~r All m~ida em qu~ul!2~ é pn>~ido, poci~se _nã~ fazer na medida e~. qu~,n_~Q t s<?!!!!~~; b) a pesquisa ciendfica é uma atividade .~ut6noma. 9uer dizer, deve poder se desenvolver seguindo a própria lei de desenvolvimento e em conformidade com seu próprio fim essencial (~. é a descoberta da ffiade), sem. ser submetida a regras, diretivas ou controles por parte dos poderes &>úblicos. A distinção entre licitude ·e autonomia deve ser bem considerada, pois - para além do fato de que corresponde a dois distintos signi6cado, filosóficos de liberdade: liberdade como não-impedimento e liberdade como livre-escolha - uma atividade pode ser juridicamente lfdta sem ser autônoma (eu posso ser livre para realizá-la, mas, uma vez decidido a realizá-la, não ser livre para desenvolvê-la segundo minha vontade). Ora, no caso em questão, tanto no que se refere à licitude como à autonomia, oferecem-se 'à nossa atenção novas perspectivas que nos obrigam a colocar um pouco de ordem em nossas idéias tradicionais. 26 NORBERTO BOB81O 2 Quanto à licibJdP. não há dúvida de que, dizendo ser a pesquisa cientifica uma atividade licita, pretende-se habitualmente dizer que é uma atividade não-proibida e que pode ser legitimamente exercida. Historica- mente, as chamadas liberdades individuais são o resultado de uma luta vitoriosa conduzida contra os impedimentos colocados pelas instituições públicas (eclesiásticas e civis). Se, ao invés disso, um cientista se recusa a empreender uma determi- nada pesquisa, deve-se dizer que a pesquisa cientilica, neste caso, é licita na medida em que se pode não exercê-la, isto é, passa a ser considerada atividade licita não mais por ser não-proibida, mas por ser não-comandada. Desde que a permissão implica tanto o poder fazer como o poder não fazer, conclui-se que, do ponto de vista da legalidade, a licitude da pesquisa cientifica implica também a faculdade de não exercê-la. Porém, historica- . mente, é preciso reconhecer que o caso é novo, no sentido de que a liberdade da pesquisa cientifica, que foi conquistada e defendida como iberdade de uma proibição, aqui assume o valor de uma liberdade de comando, ou seja, não como liberdade de fazer aquilo que não é proibido, mas como liberdade de não fazer aquilo que não é comandado. Em outras palavras: n~? é __ mais o i~~!'1f:~uo q~~e p~~ ~~L~~~r a9,~il? <!~e.~! .. i~~~~!~~ÕeSJ>úb,li~!até 'i9,ra Ih'= er,oi~ira_m, ~ p11i:_a.~~o fazer ~q-~_il~.9':'e a~. ~l:!~as ins~~iÇ()es públi~~e_a~n,i i'!'~r_ ~~le. 3 OJJ,oro à wrooornia Ja pesqqisa .. cientl.tka. afitmQu.~11e .que. ela sigo.i&a..~.J.iêru;ia._.J1ão ,deve_ Q~~çer a ,QJJJJ.:o. 6m q.ue.~da ds~er:ta.das.erdade. Esse reconhecimento do valor da verdade é, também ele, um produto histórico de uma secular luta contra toda forma de Estado confessional, dogmático, pedagógico, ético, que pretende ter uma verdade própria para opor à verdade dos indivíduos. Ao contrário, no caso do cientista que se vê perturbado diante das conseqüências morais de uma descoberta cientifica, a tradicional relação entre verdade da ciência e verdade de Estado fica · invertida. O Estado aparece, paradoxalmente, como o promotor da verdade e, portanto, da autonomia da pesquisa cientifica, lá onde o cientista, submetendo a pesquisa cientifica a valores diversos daqueles da pura pesquisa, nega a autonomia dela. N ... aJu!Ji,t;tadicional.p_cla a~ru>mia da ~..foiJ> indiv!duo. QY.~. se i,◊& .. do lado do cfü~irc> ? verd~c;J~ _ÇQntra o Eatado,,.que ti~ha suas boas ~z_cjes para_ subotdlr..a, aJ,er.d!!d.~·a <>~trns.li..na e valores. E eis qúe agora no~ deparam_Q!!_com.o.confririo· é o Estade que pede o OS INTELECTUAIS E O PODER 27 exercido sem impedimentos da pesquisa e <> individuo a isso se o • em n~e de valores· su riore ' (O Estado está destinadó ll se encontra...r..pe.~ente.-:: . .e_feljw~nte - com o individuo raclbetÍnmte - /~, . '"-·••»•-··•·•--·-·---- ..., ' que lh.~hloquei.Ú.e!~~ll:~~~~-primeiro momento o inCilvfduo pretinde considerar a verdade acima da politlca; dêpõis;· qüàl'ido t> · Rstmo--pm::d,e q~e a verdad~ beneficia ~Jiq_ça, o JtÍ.diY@@JlÍ!!!.9.º-~~ry~r_ffi!!!..!. verdade não basta e que, para além "da verdade, existem os valo~s -~orais.) ....._,~ '<>•-~"-'•~-•-._ ✓..·-.,,.-,.;e,~,,,..,. ........ ~-"'·---~~ .. - •----h• e,~-"•••~ .,,,<'>••••e--~••••-• --••• •• ., . ..,,. 4 O problema jurldico de saber se o Estado tem ou não tem o direito de impor a um cidadão a obrigação de realizar uma detenninada pesquisa cientifica não pode ser deixado em abstrato, mas apenas quando relacio- nado a este ou aquele ordenamento. · Em geral, J?ode-se dizer que desde que todo ordenamento põe limites a qualquer esfera de licitude, no interesse da convivência com os outros e da conservação do Estado, as mesmas razões que valem para limitar o exercido de uma atividade licita valem também para limitar o não-exer• clcio. Não se vê que diferença existe entre o dano que pode ad~r para a ordem pública, ou para a segurança pública ou para os bons costumes, Yu para as supremas exigências do Estado, do exercido de uma atividade licita, e o dano que pode derivar de um exercido ausente. A única diferença está no fato de que as violações de limites derivadas do não-exe~clcio são mais dificilmente imagináveis. Diria, porém, que no campo da economia assiste-se a uma análoga mudança de perspectiva lá onde as mesmas garantias que o Estado havia reservado para si diante do exerclcio, digamos,· da liberdade do empreendedor, intervêm em alguns casos para proteger o Estado contra a interrupção do exercido daquela liberdade. Há, pois, também uma diferença formal: na medida em que se encontra impedindo o exercido nocivo de uma liberdade, o }½tado se apresenta na figura daauele gue erol~;_~~ida ere que se e~ontra im~~fü.120 O ~->_<~JS!çio, ap~sCnta-se na figura daquele que con~; e essa segunda figura é mais odiosa do que a primeira pelamesma razão que faz que o constringido seja mais compasslvel do que o impedido. P~, no conjunto; não veria no fato, de que o Estado faça valer um interesse da coletividade (da qual ele é em última instãncia, agrade ou não, o último juiz), quando este interesse é lesado não pelo exercido mas pelo não-exercido de uma atividade licita, nada que seja co~trário à lógica de um ordenamento juridico em geral. Dúvidas, perplexidades e 28 NORBERTO 808810 objeções podem surgir não de um julzo abstrato sobre o direito do Estado de intervir, mas do modo como intervém, que é uma questão de direito positivo ainda mais destacada do que a primeira e, como tal, está fora da presente discussão. 5 Ma.La problema dQ_~onflito entte_ºJndividuo que faz valer°' dirl:!!os da própria consciência e o_Estaclo ~e fiu: valer as exigências da p~ópria _çonser:Y.ação é, em úhii.niurrálise., um problema exclusivamente ~ Não existe regime tão absoluto que possa impedir a rebeklia~ uma consciência honesta; nem existe regime tão democrático que possa evitar o conformismo dos ânimos servis. O caso do cientista que se recusa a desenvolver uma pesquisa cientifica a ele imposta por razões de Estado é um caso tlpico de objeção de consciência. Como todos os casos de objeção de consciência, é bastante complexo e toda resposta rígida arrisca-se a ser aproximativa e banal. Os conflitos morais são conflitos de valores e,· portanto, de6nitiva- me!}_te, ~rerifüeiaªe. de_e~f()llias_ú1dmas, diante das quais qualquC:r a,r_&l!~~-~~çª-9-de.Ç!l_!á_ler puf.llme._nte racional (que nãcu.pele a situações emocionais),,.pí!~!:C tomAI:se.ri. Em nosso caso, o racioclnio nos ajuda na melhor das hipóteses a resolver o conflito em uma alternativa do seguinte gênero: a construção da bomba de hidrogênio deve ser condenada, pois tal dispositivo bélico é um mal em si mesmo, independentemente do fato de que venha a ser empregado- e do .uso que dele seja feito; ou melhor, a construção da bomba de hidrogênio é algo moralmente indiferente, pois o dispositivo bélico é apenas um instru- mento e como todos os instrumentos tanto pode servir ao bem como ao mal, em conformidade com o modo e o 6m em que é empregado. Pode ser um bem se servir para evitar uma guerra; também pode ser um bem se for empregado em uma guerra justa (defensi\ia), e será um mal se for empregado em uma guerra injusta (ofensiva)/ Mas basta enfocar a questão nestes termos para se dar conta de que tanto a primeira alternativa como a segunda remetem a ulteriores jufzos de valor: a primeira ao desvalor da violência e ao valor primordial da vida humana como condição de todos os valores; a segunda, ao valor do justo e do injusto com base no qual se avalia o próprio valor e desvalor da vida humana. ------i Diante dessa alternativa, assim como diante de toda alternativa moral, cada um deve fazer seu próprio exame de consciência e afirmar as próprias preferências. Não há outro conselho ou ensinamento a dar. OS INTELECTUAIS E O PODER 29 No que me diz respeito, há em meu ãnimo (não sei bem por qual fonte inspirada ou insuflada) uma natural inclinação em favor daquele que opõe uma objeção de consciência. Se, depois, busco as razões para me persuadir da validade dessa inclinação (mas sei que as razões são vãs e são absolutamente ineptas para convencer mesmo o mais intimo amigo que tenha um diverso sistema de valores), ocorre-me de dizer assim: é constatação comum que, no mundo de hoje, o progresso inrelectual (e portanto cientifico) deu passos giganrescos em comparação com o progresso moral; e o progresso inrelectual separado do progresso moral se resolve (resolveu-se) na mais abominável carnificina jamais havida. Por isso, dianre das duas ações seguintes - de um lado, a contribúição para um ulrerior avanço da ciência e da técnica; de outro, um ato de solidariedade com todos os inocenres do mundo ameaçados por esre avanço-, parece-me ser mais importanre, hoje, a segunda. Se o progresso moral da humanidade fosse tal que me assegurasse que a bomba de hidrogênio jamais seria empregada; ou se o progresso jurídico fosse tal que nos garantisse que seria empregada somente no caso de guerra justa, isto é, para punir os injustos (mas, nesre caso, seria necessário o super-Estado com seu supertribunal), então sim, a escolha poderia ser refeita sem inconvenienres. Mas, no primeiro caso, por que é que a bomba mortífera deveria ser construida? E, no segundo, o que faria com uma bomba assim parente e incômoda o tribunal universal? As forças policiais, como se sabe, em vez do gás asfixiante basta o gás lacrimogênio. Embora eu seja um admirador incondicional das grandes descober- tas no campo da ciência, admiro com mais devota reverência a nobreza de uma consciência moral. Na história da humanidade vejo resplandecer de luz mais pura o ato de solidariedade com os oprimidos - tapto mais se é realizado por um homem que também é um gênio cientifico - do que a descoberta de uma verdade, ou ao menos me parece que esta última adquira tanto mais valor quanto mais estiver a serviço daquele. De fato, não sei com segurança que benefício possa a humanidade obter com a descoberta da bomba de hidrogênio. O que sei. - e sei com certeza - é o grande benefício que podemos esperar, nesse nosso mundo dominado pela potência, do exemplo de um grande cientista que soube escutar, além da voz da potência, também aquela, mais discreta e menos percep- tivel, da consciência. E isto é, em meu modo de ver, uma aquisição positiva da humanidade, destinada a perdurar nos séculos. Acrescento que do fato de que esse valor venha a ser compreendido, aceito pelos 30 NORBERTO 808810 outros, incorporado, por assim dizer, à história da humanidade, depende essencialmente se a humanidade - no caso em que tivesse, por efeito daquela bomba, que recomeçar, como após o Dilúvio, desde o inicio - retomará o caminho rumo a novas formas de civilização ou se se perderá definitivamente na noite da barbárie. De forma mais drástica: não estou seguro de que a bomba de hidrogênio seja capaz de salvar o mundo; poderia destrui-lo. Estou seguro de que a consciência moral não só não o destrói como, se vier a ser destruído, o salvará. INTELECTUAIS E CLASSE POLÍTICA / J Para que o problema da relação entre intelecruajs e classe política faça sentido são ne~~as duas condições preliminares:' a) que os- intelectuais constituam ou creiam constituir, em um determinado país, u~ <:_1!._te.Bºria à parte; b) que essa categoria de pessoas tenha ou creia uma função política piópria, que se istinga a função de todas as outras catégorias ou classes componentes daquela determinada sociedade. I A julgar pelos artigos aqui reunidos com o propósito de lançar um primeiro 1olhar sobre a natureza dessas relações nos principais países do Ocidente, parece que os resultados a que chegam os diversos aulDres são bem diversos entre si, segundo se trate dos palses anglo-saxões ou dos palses continentais. Sobre os primeiros, dever-se-ia concluir que não existem as duas condições acima recordadas e que, portanto, o próprio problema ou não tem s~ntido ou ao menos está desfqcado./Diria, para tentar uma slntese, embora com alguma simplificação, que nos Estados Unidos, segundo Nicholas, não existe a primeira condição: os intelectuais americanos não têm coesão entre si, vivem além do mais no isolamento, são solitários em um país tipicamente "gregarious". Na Inglaterra, ao invés disso, seriamos tentados a dizer, seguindo Briggs, que existe, embora em forma de aspiração vaga e doentia (morbosa), nascida dos influxos estrangeiros na sociedade inglesa, a primeira, mas não a segunda: existem, · sim, intelectuais que tendem a se constituir como grupo homogêneo e diferenciado, mas, como tais, islD é, como têm a presunção de se 32 NORBERTO 808810 considerarem intelectuais puros, têm escasso crédito na sociedade e, portanto, seria fora de lugar falar de qualquer caracterização política deles. / 2 O problemaé, ao contrário, bastante vivo nos palses continentais. Para provar isso, bastaria o fato de que tanto na França como na Alemanha, na Itália como na Espanha, o tema foi objeto continuo de investigações e de apaixonadas discussões, e a ele se dedicaram conheci- dos pensadores com obras que tiveram, às vezes, grande ressonãncia. Desejo recordar ao menos um pensador para cada um dos quatro países mencionados, observando que as obras a que me refiro foram escritas mais ou menos nos me~mos anos, em tomo de 1930. A mais conhecida obra de Julien Benda, La trahison eles deres, que remonta a 192 7, é uma polêmica contra certo modo de apresentar as relações entre cultura e vida polltica, e uma resposta à pergunta: quais são os deveres e a função do homem de cultura na sociedade? É conhecida a resposta~s intelectuais tm, a missão de defender e promover os valores su re civiliza o, que são desintereasadoa e · • na medidã""" em Que subordinam sua advi e aos nteresses condngentes, às paixões irracionais da pollti91., ~em sua mi o. Essa condl!!nação-g~ B.e~a obteve nde · nte ra dar celebri utor --·- ..____ em todos oa. ambientes intelectuais da Europa, nos quais, mesmo e(!l_ anos mais ~ores, postedores & Sêgí,nda Oueaa Mundial, um dos temas prediletos foi o dos limites e da oablreza do engajamento pol!!içQ_ e social da baroero de culmra, Na Alemanha, também houve uma obra importante neste campo: ldeologie und Utopie, de Karl Mannheim, de 1929, ~ uma tese muito lisonjeira para os senhores do intelecto. Ao passo _que Benda escreve como moralistã,repreendend0<>Jmtefééruais, cha~- os ao senso das suas responsabilidades, ind~~nc:lo-lhes aesiiid~ sem recompensasmunãanas, Mariiihelmpropõe-lhes uma tarefa simul- taneamente· ·tool.'êãca e · pratica. A vida polldca de uma ca · ada I e ue nela ste i!,leologia&_a cada u~ elas quais_,rg,resentativa de um ponto de vi~~~o se deseja q~J:_eatae--ideoJp~~~~ si sem tréeua, deve-se tentar. a sín~isln.~~tar alcançar uma visão compreensiva (dinãrgi.ca t: não estática) dc:>s vários ppntos de vista em conflito. ~n- n_heim, esni sl~se só ~e ser~brãéle-~ma categoria que, diferenteme~ de todos os demais agrupamentos que ~oouzem ideologias sociais, ~ ~m.-~_COtl\Jl.(?!!Ção_de._classe e está desancorada da sociedade, desvio- OS INTELECTUAIS E O PODER 33 culada de ioteresses e funções especlAças• essa categoria, não classe, é a c\gs iotelecouais, ~ chama, sf'mdodo A, Weber, de Jreischwebende [livre-flutuante). Mais ainda· tndo o pensamento polltico de Orrega y Gaascr cal'! fundado sobre e distioção entre elttrs iotelecb1ais, às quais cabe a direção da sociedade,• snaHas, cujo destioo é deixar-se conduzir por uma minoria de esplritos clarividentes. Sobre os intelectuais, considerados como a P,!l!te viva, progress.i§ru_modema da nação em contraposição às mass_!§. proc!uzi41!.S.Pt;~_q~rq_~rnga_doente dos nossos teropos, Ortega deposita a;-próprias esperanças de uma regeneração não só da "Espanha inverte- brada", mas também da Europa. Em uma conferência pronunciada em 1914 (Yieja 'Y nuwa polltica), na qual expunha o programa de uma "Uga de educação polltica espanhola", ele afirmava que o primeiro objetivo do intelectual é "promover a organização de uma minoria encarregada da educação polltica das massas". Depois, tanto na obra em que examina a situação espanhola (Espana inm-tebrada, 1922), como na que estende a investigação à situação européia (La rebelión de las masas, 1930), a idéia dominante é a de que existem, de um lado, minorias intelectuais destinadas a elaborar a grande política da renovação, e, de outro, massas à espera de serem plasmadas por esplritos superiores. Talvez não tenha existido autor, na Europa, que tenha expressado, mais do que Ortega, o espírito de casta do intelectual e tenha contraposto, com mais desdenhosa e orgulhosa confiança, a obra iluminadora dos intelectuais às paixões do home~regário. Quanto à Itália, grande parte da obra de Benedetto Croce, sobretudo depois de 1925, pode ser interpretada como uma defesa dos "valores da cultura" contra a sua confusão com os "valores emplricos", e como uma constante e corajosa afirmação do dever que tem o homem de cultura de assumir tal defesa diante da incompreensão ou, pior, da deliberada vontade de pisoteá-los, própria dos pollticos. A politica de Croce foi, na realidade, sobretudo uma polltica da cultura. Com o amadurecimento de seu pensamento e de sua compreensão histórica, e com o agravamento na Itália da crise das instituições liberais, Croce foi consolidando vez mais s da uman!gade,..c de que dessutribuição de tarefas devia-se extrair a -dis~~etritével cA.t.rc a 6mção do ioreleco,al e a fungo do polki<:Q_ e, ao mesmo tempo,,a indicação da importinçja do bornero de culblra 34 NORBERTO BO8B1O n,a sociedadtr Nas últimas páginas de Storia d'Europa (que é de 1932), podemos recordar com que ênfase acurada ele se dirige à pequena e aristocrática respublica !iteraria de nobres intelectos que, apesar de dispersos no mundo, têm [é no ideal da liberdade, e nos quais deposita suas esperanças de uma renovação moral e polltica européia. 3 As posições delineadas representam quatro pontos de vista típicos a respeito do problema das relações entre intelectuais e classe polltica, e pressupõem as duas condições preliminares anteriomente mencionadas. Em todos eles faz-se referência continua aos intelectuais como grupo . homogêneo e diferenciado na sociedade e reconhece-se a existência de um problema particularmente vivo e urgente quanto às suas relações com a vida política. · Os posicionamentos a que esses pontos de vista dão lugar podem ser esquematicamente definidos do seguinte modo: 1.!-o intelectual não .tem nma tarefa pol(tica, roas uma tarefa eminentemente eseiritual (fü:E:_ da); 2. u.m:fa do iorelc:ctual é teórica mas rarobrro mediata~ r , - 12Qliw:a, pois a ele compete elaborar a slnfy:s das vári~ icfeoTÕgias gue dão passa&s;m a novas grienm~s polfticas (Mannheim); 3. a tarefa do il}tfkrn,a) é teótira mas também imedi11tamente política, pois apenl\§ a el~- compete a função de educar as massas (Ortega); 4. a tare~_ iQ.RleeftilBI t:amhém é poltti,;;a, lllJ.S a sua polftica oão.f: a or.:dinária dos_ gowmaotes, mas a da cultura, e é uma pnl(riça exttaordinária..,a.ci_~ aos t.eropos de câ1e (Croce). Pode-se observar que em cada um destes posicionamentos está contido, de forma aberta ou velada, um perigo de degeneração. Assim se explicam outros posicionamentos, igualmente típicos, que talvez sejam os mais difundidos. Mais que isso: s1;, ho~ fala co~ uma trta a reensão do problema das relações entre inte ectuats e c as~a, isso epen e o ato e que se ass ste com mais freqüência à carie ra de~;tro posicionamentos o que à sua genulJ!!..~!!~ --õa defesa da pureza do clérigo, afirmada por Benda, nasce a tentação à evasão e, portanto, o gosto pelo esotérico, pelo culto aos iniciados ou pela especialização irresponsável, o completo estranhamento [estraniati- one) da "fivitas", uma concepção hedonista da cultura e agnóstica da vida politica. · 1 !]a c~oce~ã6 própria de Manobeiro, que y!.os intelecmais coma !gdivlduos desvinculados das classes e. encarregados da síntese, pa~ OS INTELECTUAIS E O PODER 35 insensivelmente à proclama ão de ue os intelectuais, para falar ta aqui com uma órmula célebre, estão "acima do combate"; di11nte dos dQis contendores Ca sjtuação hodierna é mais do que nunca favorável. nesses últimos imos, a semelhante posicionamento), crê-se que a tarefa do intelectual seja a de não se comprometer com nenhum dos dojs. dt. não sujar as mãos, de observar com aristocrático desdém os cães que &e p<:gam a dentadas, e de continuar a especular, prognosticando desvenn,- rawohre a desfecho ela batalha. Um certo neutralismo hodierno deriva precisamente de uma exagerada consciência da própria posição não-clas- sista e da própria função conciliatória. A cnnsideração do. intelern,al roma eJU:e dirigente, expressapor ~ Ope.ga, gerafacHmaRte um senso de fastfdjo-02 politica rondenada como 1:9Ja.infuóoc, rãa 1oW> a extreroaroeore in~nua certeza de modificar o muodo coro as idéias da pmpria cabeça seja sublitimlda pela desilusão 1 d~nte da impraricável i:oalidado; a salvaçãa, entãa, acaha por ser h11scada. çwna aconrece habitnalroente com os aristocratas da cnJrura, na isola- mento e no recolhimento ioterlar, que é um modo de se lavar as roãos. - ····--·-··------- . Na política da cultura, tal como entendida por Croce, pode-se entrever uma outra desgraça.Jque me pare_ce difundida whreb1da entre os intelecn,ais italianos nesses úbiroos aoos)1 a que consiste em concen- trar-ª... polltica dos intelectuais em um partida das intelectuais <certos fenômenos como o Partida da Ação e a J Ioidade Pap11lat iodicam isso ÇQ!D clareza). Se os intelecruals - argumenta-se - tf:m uma 6 mçãa palfrica prQpri@:., fé válida que formem seu partido. Devemos recordar quantos esforços fez Croce depois da guerra para tentar demonstrar que o Partido Uberal, apesar de ser um partido polltico e não uma associação cultural, era um partido diferente dos démais porque era" o partido da cultura", no qual os intelectuais italianos deveriam sentir-se como em sua própria casa. 4 Nos artigos aqui publicados podem ser encontrados, se não me engano, de diversas maneiras e com diversos matizes, tanto os posicio- namentos degenerados como os genuínos, mas talvez mais os primeiros que os segundos. Em ambos, porém, o vicio fundamental é o mesmo. Os intelecmais neles aparecem, precisamente porque convencidos de s;;em um grupo autônomo acima das classes, desenraizadas da sociedade erri que vivem. e a diferença esrá, ºº máximo, em 11ma maior ou menor oslJ:otação deste isolameoro Todos os posiciaoamentos aqui examina- dos de fato mostram a trndêoda a eleY9r os intefoc1uais acima doll , ' ---- 36 NORBERTO 808810 d~mais grupos sociais, ou pelo primado dee 'ltiE>fee que ~u pela superioridadeJ~trlns~a à sua YOCQção (ou prn6ssão) d~ suscitadores ele idéias dir~tiva~; mostram tarobém a tendência a lhe§ atribuirlm}ã ta_;~fu ú~_d.inária. O~cilam entre o programa ~~~ rep(iiílica pl11t0oica grnltllfftada pelos sébios, que não~ta~<>_ seu fasclnio, e o programa mlnimo da função critica e estimuladora dos "philosophes" do século XVIII. Mas entre esses dois ideais a realidade é bem diversa: a realidade é com freqüência a angústia do conventículo, a inatividade forçada da solidão, a aridez da segregação. Crêem flutuar sobre as ondas como os senhores da tempestade e são impelidos, sem · que se dêem conta, a uma ilha desabitada. O pior é que essa situação gerou contragolpes, bem visíveis nos anos do pós-guerra, sobretudo na Itália e na França. Ao isolamento reagiu-se com o engagement, com um envolvimento tão prçfundo na politica que se passou a aceitá-la passivamente como guia. Ao ardor de uma estéril revolta individual, reagiu-se com a exaltação da obediência; ao desprezo pela massa, com a incorporação à massa; ao autonomizar-se acima das ideologias, com o fanatismo ideológico do militante; à fiibula de um não-classismo superior, com a mortificação da inrerioridade de classe. Cansados de estarem acima de todos os partidos, escolhem um para servir. Não ficam mais acima do combate, mas dentro dele. São clérigos não mais no sentido de portadores de valores espirituais, mas no sentido originário de ministros e Réis de uma igreja constituída. Nasce o novo principio do "partidarismo da cultura", que desafia, orgulhoso do escândalo, as inúteis vestais consagradas ao culto dos valores puros. JULIEN BENDA 1 Apesar de ter vivido quase 90 anos (1867-1956), Benda escreveu suas obras mais significativas - aquelas que realmente contam (e, para mim, contam e pesam bem mais do que os criticas até agora estão dispostos a admitir1) - em um espaço de tempo não superior a 25 anos, de Mon premier testament, de 191 O, publicado nos Cahiers de la Quin:i:aine, a Un régulier dans le siêcle, saldo em partes na Nouvelle Revue Française em 1936. Neste periodo, trava suas mais famosas batalhas intelectuai1: 1. contra o bergsonismo, com Le bergsonisme ou une philosophie de la mobilit([912) e Sur le succés du bergsonisme (1914); 2. contra o decaden- tismo na literatura, com Belphégor. Essai sur l'esthétique de la societé française dans la premiêTe moitié du XX siêcle (1918); 3. contra a traição dos intelectuais, com La trahison des clercs (1927) e La fin de l'étemel (1928). Encerrado o ciclo das polêmicas, elabora, à guisa de justificação teórica e moral da própria posição de "idealista abstrato" ou de "raciona- lista absoluto", em uma palavra, de "clérigo", um sistema metafisico in nuce (uma espécie de romance filosófico de grande força sugestiva), com 1 O melhor ensaio critico que éonheço, primeira tentativa de realizar ui:;ia avaliação abrangente da obra de Benda, 6 o de A. Dei Noce, "II dualismo dl Benda , em Rflliskl di Filosofia, ano XXXVII, 1946, p.1 S3-76 (agora em Noce, Fflosofi dell'esistent:ae cklla libe)1(}. Milão, Oiuffr~, 1992, p.241-6S). 38 NORBERTO BOBBIO o Essai d'un discours cohérent sur les rapports de Dieu et du monde (1931). Por fim, procura compreender a natureza e a trajetória terrena deste mesmo clérigo com dois escritos autobiográficos que estão entre as suas melhores coisas - verdadeiro modelo de exame de consciência de um literato: IA jeunesse d'un clerc (1936) e Un régulier dans le siêcle (1937). Antes de 191 O (ou seja, até por volta dos 40 anos), não havia escrito nada ou quase nada: recolhera-se silenciosamente no estudo das mais diversas disciplinas e artes, da filosofia à música, da.literatura clássica à moderna (sobretudo a francesa do século de ouro), da matemática (da qual realiza estudos regulares na École Polytechnique) às ciências ff sicas e biológicas. Apenas rompe o isolamento por ocasião do caso Dreyfus, escrevendo o primeiro artigo violentamente "dreyfusista" em 1898 na Revue Blanche, seguido de outros textos posteriormente reunidos no pequeno volume Dialogue d B,tance. Depois de 1937 escreve bastante, escreve sem trégua, como se ainda tivesse muitas coisas para dizer. Porém, nada mais faz do que repetir monotonamente, como um velho teimoso e obstinado, as velhas polêmicas, com nova documentação, mas com os mesmos argumentos já conhecidos. Sobretudo nos anos que passou na mais completa solidão em Carcassonne, durante a Guerra, para evitar perseguições, compôs diversos livros, que são publicados todos de uma só vez depois da Guerra (e ficam quase ignorados): excetuando-se um novo livro autobiográfico (bem menos incisivo que os anteriores), Exercice d'un enterré vif (1946), e um ensaio político, que é sua primeira tentativa de critica política (que acaba sendo inferior, em abundãncia e novidade de informação e argúcia, aos de critica filosófica e literária), IA grande épreuve des démocraties (1945), as outras obras são a continuação, ora da polêmica antidecadentista, como IA France lrytanthine (1945), ora da polêmica contra Bergson, que se prolonga na polêmica contra o existen- cia- !ismo e também (um pouco mais na surdina e com menor clareza de idéias) contra o materialismo histórico, com Trois idoles romantiques (1948), Du st:1le des idées (1948) e De quelques constantes de l'esprit humain (1950). 2 Benda é um escritor polêmico. Ele mesmo relata que suas obras nasciam costumeiramente de uma irritação, de um emoção ou- de um desprezo. Mais que para defender suas próprias teses, escreve para combater as teses alheias. Tem necessidade de ser excitado pela presença do adversário: os Bergson, os Barres, os Maurras, seus eternos antago- OS INTELECTUAIS E O PODER 39 nistas, são a razão mesma da sua existência como escritor. Seria possível dizer que sua vida interior foi continuamente agitada e mantida em fermentação por um interminável e emocionado rolóquio rom os detestados opositores. Ao realizar uma viagem aos Estados Unidos, em 1937,escreve algumas rápidas notas. A propósito de um episódio insignificante, exclama: "O intelectual aqui não salva o seu pais. Um salvador romo Maurras não existe. Que sentido de segurança!". 2 Afirmou em várias ocasiões que a sua posição moral fui sobretudo negativa: amoo a justiça, mas odiou, bem mais, a injustiça. Para exaltar o justo, talvez não tivesse escrito sequer uma página, mas o injusto o enchia de raiva, de furor, obrigando-o a se tomar escritor. Não sem um motivo, o seu primeiro artigo é uma resposta aos enfatuados defensores da furça e da nação, que pisoteiam a reconhecida inocência em nome da razão de Estado. Durante a grande crise da democracia na Europa, entre 1930 e 1940, ele está entre os mais enérgiros defensores das instituições democráticas; e explica que ele respeita, sim, a democracia acima de qualquer outra furma de governo, mas sobretudo odeia os seus inimigos. Não se pense, ele insiste, que condena a injustiça por um sentimento de piedade para com aqueles que a sofrem (seria então um sentimento positivo): condena-a por ódio doutrinário contra aqueles que a exercem. 3 A propósito da guerra da Etiópia, declara: "Eu era um clérigo, condenava a guerra não por amor sentimental aos mortos, mas por ódio doutrinário contra os matadores" .4 Quando escreve livros não-polêmicos, romances, . contos, ensaios literários, históricos, filosóficos, políticos, é um escritor menos feliz, com algo de \.diletantismo: algumas vezes, chega mesmo a ser decisivamente enfadonh6. Tratando-se de uma inteligência multiforme, seria possfvel dizer, diante destes livros, que ele havia desejado pôr à prova a sua brawra nos gêneros mais disparatados: a prova, porém, nem sempre é convin- cente. Salvaria apenas, entre estes, o Discours cohérent, que incluiria com muito boa vontade em uma história da filosofia contemporãnea no lugar de tantos outros sistemas professorais, e, ainda, os escritos autobiográfi- cos, nos quais, de resto, entre as páginas mais felizes estão aquelas que traçam retratos de contemporãneos, principalmente daqueles que não 2 Les cahiers d'uil clerc (1936-1949). Paris, Galllmard, 1949, p.20. 3 Exercice d'un enterTé vif. Paris, Gallimard, 1946, p.106. 4 Un régulier dans le siicle. Paris, Galllmatd, 1937, p.227. 40 NORBERTO 808810 lhe agradam e o induzem a uma acre maledicência: vejam-se, por exemplo, os retratos de Léon Blum, de Jaurês, de André Gide. Dos dois romances, o segundo, Les Amorandes (1922), conheceu um daqueles insucessos que não permitem benévolas interpretações nem revisões póstumas (e ele mesmo o abandonou, sem contrariedade, ao seu destino); o primeiro, L'ordination (1913), apesar de ter resvalado o Prêmio Goncourt, é a demonstração, um pouco a frio e convencional, de uma tese não muito apaixonante: que os intelectuais não devem se casar. A meio caminho entre o romance e o depoimento filosófico, entre o gênero moralizante e as recordações de viagem à Itália, Songe d'EleKt~re (1948) é um livro francamente detestável. Quanto à Histoire de., Français dans leKrs wlonté d'être Kne Nation (1932), espécie de filosofia da história ou história romanceada, fundada sobre uma tese artificiosa, daquelas que se elabo- ram em mesa de bar e depois se pretendem confirmadas a qualquer custo pelos fatos, não consigo compreender por que um homem como Senda se dedicou a um empreendimento tão inútil e cansativo. Dos dois ensaios politicos, o DiscoKrs cl la Nation EKrofl«nne (1932) e La grande éP,eKw dcs démocratics (1945), o primeiro, na sua prosopopéia moralista e na sua estrutura metafisica (a formação da Europa será um momento "do nosso retorno a Deus"), é um exerclcio literário ou se se quiser filosófico de escassa eficácia; o outro, certamente menos arbitrário e mais seriamente construido, peca por excesso de abstração; eu o definiria como mais filosoficamente engenhoso do que politicamente inteligente. Bem mais eficazes os ensaios ocasionais, as notas rápidas, as respostas polêmicas, as escaramuças (schermaglie) e as tiradas de efeito, que os acontecimentos pollticos lhe inspiram! Os dois livros que os recolhem, Précision (194 7) e Les cahiers d'Kn clen: (1949), são, mesmo no seu caráter fragmentário, quase sempre edificantes e, o que é ainda mais raro e admirável, repletos de bons argumentos e de idéias. Benda dizia de si mesmo que era um matemático surpreendido (capitato) entre os literatos. Mas não se distinguiu nem nos escritos matemáticos ou filosóficos nem nos escritos literários, mas sim naqueles em que usou a sua força lógica, o seu amor pela argumentação precisa e correta, a serviço de suas sólidas convicções intelectuais e morais. 3 Das batalhas culturais que Benda desencadeou e conduziu em diversos momentos e por diversas ocasiões, idêntico é o motivo inspira- dor: a defesa da razão contra a paixão, da inteligência que domina e OS INTELECTUAIS E O PODER 41 compreende a vida contra as pretensões da vida de se impor à inteligência. Afirmava pertencer àquela espécie de homens que William James chamou de "once bom": permaneceu a vida inteira fiel aos valores incorporados na juventude, empregando na defesa deles toda a força do seu "fanatismo ideológico". Foi, ~paixonadamente, um adversário intran- sigente de toda forma de paixão. "Ainsi s'expliqwc pcKt-ltre mon cas" - escreve na JeKncsse - "qKi est d'awir écrit contre la \Oie ct la pauion awc beawcoKP de \Oie et de passion". s Em seus livros de recordações apresenta-se como um cartesiano perdido em um século de irracionalistas. Seus três autores prediletos eram Descartes, Malebranche e Espinosa. Para um racionalista absoluto, como ele se definia, eram tempos insidiosos e ingratos. A fé oitocentista na ciência, com as filosofias positivistas e materialistas, estava em declf nio. No inicio do novo século, o cientificismo exasperado e pretensioso dos positivistas havia gerado, como contragolpe, a restauração de filosofias irracionalistas. Uma destas filosofias, por certo a maia largamente difundida na Europa no primeiro decênio do século, o intuicionismo de Bergson, havia surgido e se difundira rapidamente na pátria do racionalismo clássico e do positivismo moderno. A filosofia bergsoniana, Senda se contrapõe como herdeiro não esquecido dos grandes racionalistas do século de ouro e dos racionalistas menores da segunda metade do século XIX (sobretudo Renan e Renouvier). Do momento em que inicia a polêmica (191 O) até o fim de sua longa existência, Bergson será o seu grande inimigo, o maligno, que se encarna nas mais diversas formas de decadência cultural, contra a qual Senda procura antepor o válido obstáculo da inteligência ordenadora. er son torna-se o símbolo de tudo aquilo que ele refuta e dese~~ __ _o _ __.trhmfu do iostiota mntra .lLmãQ. ergsonisme º" Knc philosop ie de la mobilité é uma obra-prima de critica filosófica. Põe as teses do intuicionismo diante da seguinte alternativa: o~ também ela uma forma de conhecimento int,elccu,aJ, e então todas as p~etensas distinções com respeito à ioreligtocia rednzern-ac: a um Joeo de. gã_lavx~~;-ou E!9..t.amhecimcll!U da .,;da, mas coincide com a prómi.a vida, e então, não l)Odendo chegar a nenhum resultado cognoscitivobnão - S La jeuneue d'un clerc, em Nouuelle Rewe Française, 1936, p.282. Em franda no original: "Talvez i110 explique o meu caso, o de ter escrltt> contra a vida e a paixão com muita vida e paixão". (N. T.) 42 NORBERTO BOBBIO tem qualquer interesse filosófico. Portanto, o exaltado método novo da intuição que entra nas coisas em contraposição à inteligência que permanece perenemente fora delas, ou não é um novo método, pois, salvo o engano verbal, procede em sua atividade concreta como sempre procedeu qualquer pesquisa cientifica; ou não é realmente um modo de conhecer, pois é apenas um modo de sentir bom para os sensitivos, para os adoradores do vago e do fluido, os mlsticos, para todos aqueles que não desejam fazer esforços para pensar e ficam fascinados
Compartilhar